Category: Anônimo
3.7 - Cisma e Sagração sem mandato
O que foi escrito pelo prof. Kaschewski e publicado anteriormente nos parágrafos 3.1. a 3.6 — e se trata de doutrina clara, confirmada e inatacável segundo as normas em vigor — faz ver como a sagração [de bispos] sem mandato pontifício e o cisma são dois fatos delituosos totalmente independentes e que, enquanto tais, não se implicam mutuamente, São regulados por dois cânones distintos do Código (cânon 1382 para a consagração ilegítima e cânon 1384, § 1 para o cisma), mesmo se a pena prevista é a mesma: a excomunhão latae sententiae (antes de 1951 a ordenação sem mandato era punida somente pela suspensão a divinis, cânon 2370 CIC de 1917).
E, apesar disso, os documentos que ilustram ou declaram a condenação de D. Lefebvre contêm todos a acusação de cisma, e cisma no sentido formal, a começar pelo comunicado anônimo, já citado do Osservatore Romano de 30-6-1988/1-7-1988, publicado dois dias antes da publicação dos documentos da Santa Sé. Afirma-se neste documento, como foi visto, que, não sendo permitido a qualquer bispo sagrar outro bispo "se antes não houver o mandato pontifício" (ex. cânon 1013), as sagrações episcopais bem conhecidas, feitas “não obstante a advertência de 17 de junho, foram realizadas expressamente contra a vontade do Papa num ato formalmente cismático segundo o cânon 751, tendo [D. Lefebvre] recusado abertamente a submissão ao Soberano Pontífice e a comunhão com os membros da Igreja a ele submetido”'. Em conseqüência disto, se diz, "não se pode nem aplicar o cânon 1323, pois não se está no caso duma das situações particulares que ele prevê, a partir do momento em que mesmo o pretenso estado de "necessidade" foi criado expressamente por D. Lefebvre para conservar uma atitude de divisão em relação à Igreja católica, apesar dos oferecimentos de comunhão feitos pelo Santo Padre João Paulo II” .
A declaração oficial da excomunhão pelo cardeal Gantin (10 de julho de 1988) afirma igualmente que D. Lefebvre "praticou um ato por natureza cismático pelo fato de sagrar quatro bispos sem mandato pontifício e contra a vontade do Soberano Pontífice". Por outro lado o motu proprio do Papa, Ecclesia Dei adflicta, de 2 de julho (o dia seguinte ao da declaração da excomunhão), condena as sagrações de Écône como "ato cismático”, dando explicações complementares, isto é, as motivações desta condenação do ponto de vista teológico e canônico, sobre o modelo do que é afirmado no Comunicado: "Em si mesmo este ato foi uma desobediência para com o Soberano Pontífice Romano numa matéria gravíssima e de importância capital para a unidade da Igreja, dado que se trata da ordenação de Bispos, graças à qual se realiza sacramentalmente a sucessão apostólica. É por isso que tal desobediência, constituindo em si mesma uma verdadeira recusa do primado Romano (vera repudiatio Primati Romani), constitui um ato cismático [segue, em nota, a citação do cânon 751 CIC que define o cisma]. Praticando tal ato apesar da advertência formal dirigida a ele pelo cardeal prefeito da Congregação dos Bispos a 17 de junho último, D. Lefebvre e os sacerdotes [...] incorrem na pena gravíssima da excomunhão prevista pela disciplina eclesiástica (segue, em nota a referência ao cânon 1382 que, como se sabe, prevê a excomunhão latae sententiae para as sagrações sem mandato]".
É apenas o comunicado anônimo de L 'Osservatore Romano que fala expressamente de ato "formalmente" cismático (portanto não se trata de cisma "virtual"). Como já dissemos, este comunicado fornece o motivo canônico da condenação que iria aparecer no mesmo jornal dois dias mais tarde, a 3 de julho, com a publicação simultânea do Decreto e do Motu Proprio que citamos.
Este comunicado é, pois, duma extrema importância. Ele dá a conhecer o motivo pelo qual as autoridades vaticanas não julgaram dever aplicar os impedimentos dirimentes previstos pelo cânon 1323 CIC: porque D, Lefebvre teria aberto caminho a um verdadeiro cisma em sentido formal. E quando se encontra em face deste, isto é, quando se manifesta com a vontade declarada de menosprezar o primado de Pedro e separar-se dele criando uma "Igreja" paralela, não é, evidentemente, possível invocar nenhuma circunstância dirimente, ou seja, que anule a imputabilidade.
Esta maneira de ver as coisas, abertamente declarada pela Santa Sé, esta imputação de cisma em sentido formal não foi inteiramente negada pelo decreto e o "motu proprio", não obstante o fato de usarem o adjetivo "cismático" sem o advérbio "formalmente",
D. Lefebvre, portanto, foi acusado não só de desobediência, mas também de cisma no sentido formal. Tanto um como outro fazem incorrer na excomunhão ipso iure. Devemos então considerar que ele tenha incorrido em duas excomunhões duma só vez? Os delitos imputáveis são em número de dois, Houve dois atos, um relativo à desobediência e o outro, pelo contrário, ao cisma?
"Não é a sagração dum bispo que cria o cisma — afirma o decano da Faculdade de Direito Canônico do Instituto Católico de Paris — mesmo se se trata duma violação grave da disciplina da Igreja: o que cria o cisma é o fato de conferir em seguida: a este bispo uma missão apostólica. De fato, esta usurpação dos poderes do soberano pontífice prova que se quer constituir uma Igreja paralela".
No mesmo tom, o professor canonista Neri Capponi da Faculdade de Jurisprudência da Universidade de Florença declara “para consumar um cisma, D. Lefebvre deveria ter constituído a sua própria hierarquia". A doutrina teológica e canônica está de acordo para considerar que as condições essenciais requeridas para um cisma no sentido próprio ou formal consistem 1. na negação expressa do primado pontifício; 2. na negação da comunhão com os membros da Igreja submetidos ao Papa; 3. na atribuição do poder de jurisdição .
As duas primeiras condições não precisam necessariamente ser preenchidas simultaneamente, basta uma só. E, mesmo se elas não são explicitamente afirmadas, ou uma, ou outra, ou ambas juntas, o ato de atribuição do poder de jurisdição é suficiente para constituir um cisma. Este ato, implicando o estabelecimento duma jurisdição eclesiástica num território determinado, faz nascer uma hierarquia própria, criada por este ato e, portanto, distinta da hierarquia da Santa Igreja e paralela a esta. Nisto se dá a ruptura formal da unidade. Por este ato se confere ao bispo escolhido o que se chama a "missão apostólica" ou "canônica". Este é o ato típico do cisma: ele manifesta em si a negação do primado pontifício e a recusa da comunhão. O ato de desobediência por si só (uma sagração sem mandato) não constitui em si o cisma: nenhuma desobediência é cismática, mas somente aquela que manifesta uma vontade neste sentido.
No caso das sagrações de Ecône, como todo o mundo sabe, não houve, porém, nenhum ato deste gênero. Ao ato (pela força das circunstâncias) de desobediência na sagração não se segue nenhum outro pelo qual se tenha conferido uma "missão apostólica" qualquer que seja.
Houve, em termos de direito, um só ato imputado a D. Lefebvre: as sagrações de Écône. A excomunhão é, portanto, única. Mas o fato de que um ato único tenha recebido duas inculpações de delito diferentes entre elas (desobediência e cisma formal) demonstra que a Santa Sé quis estabelecer uma relação intrínseca entre a sagração sem mandato e o cisma. Para ser válida do ponto de vista do direito canônico, esta ligação de duas inculpações diferentes (desobediência e cisma), deve, entretanto, encontrar o seu fundamento no ato único realizado por D. Lefebvre. Doutra maneira: no mandato durante a cerimônia de 30 de junho de 1988 deve-se poder encontrar uma declaração que justifique a acusação do Vaticano de ter sido este ato "cismático por natureza". Do próprio texto do mandato lido em Écône deveria resultar esta "recusa aberta" e este "verdadeiro repúdio” da submissão ao Papa e da comunhão com os membros da Igreja imputados a D. Lefebvre pelo comunicado anônimo de L 'Osservatore Romano já citado e pelo Motu proprio.
3.6. Estado de necessidade: sentido objetivo e subjetivo
Do que temos visto, é incontestável que, para o C.D.C. em vigor, as circunstâncias atenuantes e que isentam, têm um valor não somente objetivo, mas também subjetivo. O que significa isto? Que se deve fazê-los valer quando a situação de força maior (estado de necessidade, grande temor, etc) existe unicamente no espírito do sujeito agente, fruto dum erro de avaliação de sua parte, devido mesmo à sua falta, isto é, a uma ignorância culpável que impele o sujeito a um "falso julgamento a respeito duma coisa".
Retomemos o texto do professor Kaschewski: "Mesmo se se quisesse pôr em dúvida a situação de perigo ["estado de necessidade"] como foi descrita [a sua definição jurídica e a análise da situação espantosa da Igreja atual - n.d.r.] convém averiguar o seguinte: "Ninguém pode negar que um bispo que, nas circunstâncias assinaladas mais acima, sagre, em vista dela, um outro, está, ao menos subjetivamente, convencido de que se trata dum estado de necessidade ruinoso para as almas. Segue-se que não se pode falar duma violação premeditada da lei. Com efeito, quem, contrariamente à lei, crê, mesmo sem razão, no bom fundamento de sua ação, não age de maneira premeditada contra a lei [O novo Código de Direito Canônico é muito claro neste ponto, como se viu]. Também aquele que quisesse supor a existência do estado de necessidade somente no capricho e imaginação do bispo sagrante, dificilmente poderia objetar-lhe que esta concepção, supostamente errônea, seria punível!
"Mas mesmo se alguém lhe quisesse dizer que ele teria interpretado o estado de necessidade, na realidade inexistente, dum modo punível, seguir-se-ia que: 1) a excomunhão não poderia ser infligida como prevista pelo cânon 1382 [para a sagração sem mandato - n.d.r.]; 2) uma pena eventualmente infligida por um juiz deveria ser, em todo o caso, mais clemente do que a prevista pela lei, de sorte que, também neste caso, a excomunhão não seria admissível".
Ora, como se pode negar que, no caso de sagrações impostas pela necessidade, "um bispo está pelo menos subjetivamente convencido de que se trata dum estado de necessidade ruinoso para as almas? E o novo Código de Direito Canônico protege esta convicção a ponto de estabelecer uma verdadeira presunção de boa fé, dado que ele a protege mesmo quando é errônea, isto é, mesmo quando ela fosse a conseqüência dum valor de avaliação atribuído ao sujeito agente e não às circunstâncias. É evidente que as normas em vigor tornam praticamente impossível a aplicação da excomunhão "latae sententiae" à sagração dum bispo sem mandato e que, portanto, uma excomunhão declarada com desprezo destas normas (cânones 1323 e 1324) deve ser considerada como totalmente inválida, tendo em conseqüência a nulidade intrínseca de todos os efeitos que o direito canônico lhes atribui.
Como poderia a Santa Sé cometer um erro deste gênero no caso de D. Lefebvre? Poder-se-ia ter movido um processo de intenções contra ele, violando o principio de internis non iudicat Ecclesia, coisa que só Deus pode fazer? De fato, no famoso Comunicado publicado em "L'Osservatore Romano" de 30/06/1988 - 01/07/1988 "referente a boatos que circulam nos meios de D Lefebvre relativos à excomunhão latae sententiae prevista no cânon 1382", ou seja, em relação à opinião -- bem enraizada neste meio -- de que uma excomunhão deveria ser considerada como totalmente inválida, parece que neste comunicado anônimo há um julgamento de intenções, porque ai se acusa D. Lefebvre, e mesmo não veladamente, de má- fé... Ali se diz, com eleito, que naquela circunstância "não se pode aplicar o cânon 1323", que tem em vista, como se sabe, o estado de "necessidade", como condição que isenta da imputabilidade do cisma, pela simples razão de que "mesmo a pretensa 'necessidade' foi criada por D Lefebvre propositadamente para criar um estado de divisão da Igreja Católica". Pode-se ser mais claro? E quem "cria propositadamente" uma situação de estado de necessidade para se manter numa "atitude de divisão para com a Igreja Católica", como se deve dizer que ele agiu: de boa ou de má-fé?
É como se se dissesse: D. Lefebvre é o novo Fócio! A suposta má-fé do Bispo, impedindo a aplicação do cânon 1323, justificaria, portanto, a excomunhão! Em seguida é preciso notar que o Comunicado em questão não menciona absolutamente o cânon 1324, que estabelece as famosas circunstâncias atenuantes, mesmo havendo erro imputável ao sujeito agente. O que chamamos a importância subjetiva do estado de necessidade, concebida pelo novo C.D.C., de modo a excluir qualquer julgamento de intenções, foi aqui totalmente silenciado.
Certamente, não podemos crer que as autoridades vaticanas desconheçam o direito canônico. O Silêncio sobre o cânon 1324 tem, a nosso ver, uma razão precisa. De lato, como se pode provar a suposta má-fé num bispo que acreditasse, sem razão, se achar em estado de necessidade, e agisse em conseqüência dela? É uma demonstração -- nós o repetimos - que pode resultar somente dum processo de intenções. E, não obstante, a alusão à má-fé ("pretensa necessidade criada propositadamente") é inteiramente clara no Comunicado. Segue-se que se tentará fazer aparecer a má-fé a partir da vontade cismática, atribuída (injustamente) a D. Lefebvre. As sagrações de Écône, continua de fato o Comunicado, "realizadas expressamente contra a vontade do Papa", devem-se considerar simplesmente como "um ato formalmente cismático segundo o cânon 751, pois [D. Lefebvre] recusou abertamente a sua submissão ao Soberano Pontífice e a comunhão com os membros da Igreja submetidos a Ele".
A vontade cismática de D. Lefebvre seria então a prova de sua má-fé em invocar o estado de necessidade. Esta tese contém, em substância, o dispositivo da declaração da condenatória emitida contra o Bispo francês. O ponto central da principal acusação é dado, portanto, pelo conceito de cisma.
Uma representação deformada das normas em vigor
Antes de analisar o cisma do ponto de vista jurídico (este será o nosso próximo degrau na exposição dos termos jurídicos da questão), queremos, contudo, notar como a ausência de menção do cânon 1324, citado mais acima, equivalente à exclusão de qualquer circunstância atenuante possível, da parte da Igreja "conciliar", na sua vontade de perseguir D. Lefebvre e os que, a seu luminoso exemplo e ao de D. Mayer, se mantiveram e mantêm fiéis ao dogma, se tornou uma verdadeira constante, ao ponto de ter provocado até uma representação deformada duma norma do novo C.D.C.
Nós nos referimos ao parecer contendo a Precisão do Conselho Pontifício, já citada, para a interpretação dos textos legislativos sobre a questão da validade da excomunhão declarada a seu tempo (ver a nota 33 do presente estudo). Nesta precisão se declara, contra a "tese Murray": "De qualquer maneira não se pode racionalmente duvidar da validade da excomunhão dos bispos, declarada pelo motu-proprio e pelo decreto, Em particular, a possibilidade de achar circunstâncias atenuantes ou dirimentes sobre a imputabilidade do delito (cânones 1323-1324) não parece admissível. No que concerne ao estado de necessidade no qual D. Lefebvre ter-se-ia encontrado, é preciso relembrar que tal estado deve existir objetivamente [sic] e a necessidade de sagrar bispos contra a vontade do Pontífice Romano, cabeça do Colégio dos Bispos, jamais ocorre" [68].
Esta precisão fornece claramente uma imagem inexata do que está estabelecido no C.D.C. De fato, ela afirma que, para este Código, o estado de necessidade "deve existir objetivamente", enquanto que, segundo o novo Código, o estado de necessidade, como se viu, pode existir também subjetivamente. Assim se dá uma representação deformada das normas em vigor como se o novo Código considerasse o estado de necessidade somente no seu valor objetivo (como para o código Pio X/Bento XV). Assim se passam em silêncio estas circunstâncias atenuantes. O legitimo recurso a elas, se a Santa Sé o tivesse querido, poderia ter impedido a aplicação duma excomunhão, não só injusta, mas inválida.
3.5. As circunstâncias atenuantes e que isentam
As circunstâncias atenuantes não eliminam a imputabilidade, mas a reduzem, impedindo que ela possa ser considerada plena, em conseqüência disso, tem-se uma mitigação da pena já estabelecida, ou a sua substituição por outras sanções, por exemplo, penitências (que não são tecnicamente penas, mas as substituem ou aumentam: cânon 1312 e 1313). O cânon 1324 no § 10, efetivamente, precisa: "O autor, da violação não é isento da pena, mas esta, estabelecida pela lei ou por uma ordenação, deve ser temperada, ou, em seu lugar se lhe deve assinalar uma penitência, se o delito foi perpetrado: 1. por uma pessoa em uso apenas imperfeito da razão... " [segue a lista das outras nove circunstâncias atenuantes, n.d.r] .
Entre estas circunstâncias, duas nos interessam particularmente: a do n.° 5 e do n.° 8. No primeiro se tem em vista o caso de alguém que foi coagido "por um medo grave, se bem que apenas relativo, ou então por necessidade ou um grave incômodo, se o delito é intrinsecamente mau ou se ele se torna em prejudicial às almas". Qual é o sentido dessa norma? Que aquele que realiza uma ação "intrinsecamente má" ou que "se torna prejudicial às almas", não de modo deliberado, mas apenas por coação ou por um grande medo, necessidade ou grave embaraço, tem o direito de que estas circunstâncias, atenuando a sua imputabilidade, sejam tomadas em consideração. E isto comporta o fato de não poder a pena ser prescrita na sua plenitude ou drasticamente, mas dever ser substituída por um outro tipo de sanção, como, por exemplo, a penitência.
Mas por que as circunstâncias atenuantes, mencionadas no no. 5 do cânon em exame, não fazem desaparecer totalmente a imputabilidade? Porque a ação à qual o autor se sentiu constrangido era "intrinsecamente má " ou então "prejudicial às almas". Sendo a ação desta natureza, é preciso que se mantenha uma forma de sanção em vista do bem comum. Entretanto, entre as penas que não podem ser mantidas, há a excomunhão.
No no. 8 do cânon sobre as circunstâncias atenuantes, se encara, pelo contrário, o caso de quem "por erro, embora por sua falta, julga existirem algumas circunstâncias, de que se trata no cânon 1325 no. 4 e 5". Este último estabelece as sete circunstâncias que, dispensando o agente de toda a imputabilidade, tornam impossível a aplicação da pena. As circunstâncias que isentam mencionadas são aquelas em que a lei foi violada por medo grave, mesmo se relativo, necessidade e grave inconveniente "quando o ato praticado não seria intrinsecamente mau ou prejudicial às almas" ou teria sido realizado em estado de legítima defesa . Assim, no que concerne ao estado de necessidade (categoria cuja análise nos interessa sobremaneira) quando a violação da norma se deu pelo fato duma ação intrinsecamente má ou nociva para a salvação das almas, se tem uma circunstância somente atenuante, suficiente contudo para excluir a aplicação da excomunhão, que deve ser substituída por uma outra pena ou penitência. Se a violação, pelo contrário, sucedeu por meio dum ato nem intrinsecamente mau nem prejudicial às almas, então a imputabilidade de modo nenhum subsiste e não se pode infligir nem pena nem uma outra forma de sanção. Se, todavia, o sujeito - por um erro culpável (per errorem, ex sua tamen culpa) - se julgou encontrar nas condições previstas nos nos. 4 e 5 do citado cânon 1323, ou seja, de ser constrangido de agir em estado de necessidade (ou por medo ou embaraço grave ou legítima defesa), sem que a sua ação constitua algo de mau em si ou prejudicial à salvação das almas, então, neste caso, se tem direito às circunstâncias atenuantes. Isto significa que, inclusive em caso merecedor de excomunhão, esta não pode ser declarada porque deve ser substituída por outra pena ou penitência. Além disso, é preciso lembrar que, quando o erro de avaliação de que acabamos de falar existe sem falta da parte do sujeito agente, então, em lugar de circunstâncias atenuantes, o sujeito em questão tem direito ás circunstâncias isentantes (cânon 1323, n.o 7).
3.4. Imputabilidade e penas "latae sententiae"
Todo o direito penal evoluído toma em consideração o elemento subjetivo do culpado e faz disso uma condição determinante de sua imputabilidade ao sujeito agente. Para que este último possa ser considerado como punível não basta ter cometido uma ação criminosa que lhe seja imputável, isto é, que a ação praticada contra a lei lhe possa ser atribuída na qualidade de ação dum sujeito capaz de compreender e querer e, portanto, sustentado por uma vontade orientada livremente em direção dum fim determinado. Para haver nisso a plena imputabilidade penal é preciso que o sujeito tenha agido com o "animus laedendi' ou ainda, como diziam os juristas romanos, dolo mala (dolosamente). De fato, o cânon 1321, § 2° assim precisa: "Quem violou deliberadamente a lei ou o mandamento está sujeito à pena estabelecida pelos mesmos..."
Pelo contrário, uma forma atenuada de imputabilidade é a relativa, não ao dolo, mas à falta, entendida não no sentido moral, mas técnico-jurídico, como disposição do sujeito (chamada "imprudência") que não demonstra o "animus laedendi", mas uma simples "omissão da devida diligência" (cânon 1321 e 1322 do C.D.C de 1983). Nos casos de violação "culpável" das normas, pode faltar o caráter punível (cânon cit.) . No direito da Santa Igreja, o elemento subjetivo (a vontade, a intenção do sujeito agente) sempre gozou duma importância particular. Isto depende do próprio caráter da concepção religiosa e moral que a Igreja criou, defendeu e desenvolveu por meio de seu sistema jurídico. Para que o sujeito seja punível, ele deve, portanto, ser responsável. O cânon 1321 § 1° precisa: "Ninguém é punido se a violação externa da lei ou do mandamento, que ele cometeu, não é gravemente imputável por dolo ou falta".
A plena imputabilidade da pena vale, portanto, para quem violou a lei deliberadamente, com plena consciência e intenção. Por este motivo, o C.D.C exige que, no caso de penas latae sententiae, tratando-se de penas que - como se viu - se aplicam sem julgamento, haja sempre: 1) o dolo e 2) a plena imputabilidade. A primeira condição é requerida pelo cânon 1318 do C.D.C. de 1983, que precisa: "O legislador não deve infligir penas latae sententiae, a não ser em algum delito doloso (nisi forte in singularia quaedam delictis dolosa), que possa causar, ademais, um grande escândalo, ou não ser punido eficazmente por penas ferendae sententiae; todavia ele não deve estabelecer censuras, especialmente a excomunhão, senão com a máxima moderação e somente nos delitos mais graves".
O convite do Código à prudência e à circunspeção em matéria tão delicada. se concretiza no enunciado de três condições necessárias para a imputação das penas latae sententiae : a) o delito deve ser doloso, isto é, haver nele dolo da parte do seu autor: os delitos por imprudência, estão portanto, a priori, excluídos deste tipo de pena; b) o delito não deve ser punível mediante as penas ferendae sententiae . No plano de nossa dissertação, o que nos interessa é ter o C.D.C querido acentuar a presença do dolo como requisito indispensável para uma imputação duma pena latae sententiae. Mas pode-se demonstrar o dolo somente se o sujeito é plenamente imputável, pois é apenas a um sujeito tal que se pode atribuir a falta moral de ter querido violar deliberadamente a lei. Se, portanto, falta a plena imputabilidade, a pena latae sententiae, inclusive a excomunhão, não pode ser aplicada. A necessidade da plena imputabilidade do culpado vale naturalmente para todo o tipo de delito doloso, e se pode considerar isto como um verdadeiro principio geral de toda a organização penal evoluída. E é tanto mais válido para as penas latae sententiae, dado o seu caráter excepcional. E, de fato, o cânon 1324, estabelecendo dez casos de circunstâncias atenuantes da imputabilidade, precisa, no § 3° que, em todos estes casos "o culpado não está sujeito à pena latae sententiae".
3.3. Excomunhão "latae et ferendae sententiae"
A excomunhão pode ser latae sententiae ou ferendae sententiae. São as duas categorias muito gerais do direito penal da Igreja que se aplicam também em caso de excomunhão. Uma pena canônica é chamada "latae sententiae" quando "se incorre nesta pena pelo próprio fato de ter cometido um delito". Isto significa que a pena é inerente, por assim dizer, ao ato culposo, sem ser preciso esperar que um juiz ou um superior o inflijam por meio duma sentença ou decreto. Por isso se tem o costume de dizer que a excomunhão "latae sententiae" se aplica automaticamente. Portanto, a aplicação da pena tem apenas um valor declaratório, porque o decreto ou a sentença que a contém se limitam a declarar a sua existência. Tanto isto é verdadeiro que os efeitos jurídicos desta declaração se produzem ex tunc (desde então), ou seja, a partir do momento da realização do ato culposo (cânon 2232, par. 2, C.D.C de 1917), e não a partir do momento da sentença ou do decreto.
A pena ferendae sententiae, pelo contrário, "deve ser infligida pelo juiz ou superior". E isto sucede normalmente após um julgamento. Neste caso, a sentença ou o decreto são constitutivos da pena: não se limitam a declarar a existência duma pena já inerente a um certo comportamento, mas a fazem existir, constituem esta pena no termo dum julgamento, que se poderia, de fato, concluir mesmo por uma absolvição. Portanto, os efeitos jurídicos da pena ferendae sententiae se produzem ex nunc (desde agora), isto é, a partir do momento da sentença ou decreto e não a seguir ao momento em que se cometeu o ato imputado como culpável. Não há retroatividade alguma. Ao contrário do caso da pena latae sententiae, na ferendae sententiae não pode haver pena sem julgamento, sentença ou decreto conseqüentes. A diferença não é pequena. Isto é tão verdadeiro que o código Pio X/Bento XV (1917) especifica que "a pena sempre se deve entender ferendae sententiae", a menos que se afirme expressamente que deve ser entendida latae sententiae ou ainda ipso facto ou ipso iure e outras expressões equivalentes
3.2. A excomunhão injusta
Uma espécie de excomunhão injusta existia (e sempre existiu) entre os judeus e São João nos diz que os chefes judeus favoráveis a Jesus, não ousavam declarar ser Ele o Messias prometido, por medo de serem expulsos da Sinagoga, isto é, formalmente excluídos da comunidade dos crentes por decreto da autoridade .
Existe, portanto, a possibilidade de excomunhão infligida injustamente. As "excomunhões" que os fariseus incrédulos e perseguidores ameaçavam infligir aos discípulos de Nossos Senhor (ou se dispunham a fazê-lo), são um exemplo de excomunhão injusta "Expulsar-vos-ão das sinagogas. E tempo virá em que os que vos matarem, julgarão prestar homenagem a Deus. Eles vos tratarão assim porque não conheceram nem o Pai nem a Mim" (Jo 16,2).
Um outro exemplo famoso (de excomunhão injusta) é o da excomunhão de Savonarola, infligida por Alexandre VI .
3 - Os termos jurídicos da questão
3.1. A Excomunhão
D. Lefebvre foi condenado por ter sagrado quatro bispos sem mandato do Papa.
Sobre esta questão seguimos a exposição do professor Kaschewski:
"1. A sagração episcopal ocupa o lugar mais elevado na hierarquia das sagrações: de fato, para o cardeal ou o Papa não há sagração. O Bispo goza de dois poderes: 1) o poder de ordem [no qual entra o poder de ordenar padres e sagrar bispos]; 2) o poder de jurisdição, que ele não pode exercer se não está na posse duma diocese. O poder episcopal é um poder de direito divino, conferindo ao bispo uma autonomia jurídico-constitucional que o próprio Papa não pode suprimir ou modificar".
Esta autonomia possuída pelo bispo depende da natureza do seu poder que decorre diretamente de Nosso Senhor, por serem os bispos sucessores dos apóstolos e por isso gozam deste poder conferido aos apóstolos por Cristo em pessoa e não por um deles. Aquele que, entre os Doze, já tinha sido investido por Nosso Senhor com a autoridade indiscutÍvel de chefe (São Pedro) não foi, realmente, a fonte do poder dos outros apóstolos, poder idêntico ao de Pedro: de ensinar a sã doutrina, de absolver os pecados, de celebrar a Santa Missa, de sagrar bispos e ordenar sacerdotes. Contudo, a autonomia do poder episcopal, não quer dizer a independência. A submissão dos bispos à autoridade do Papa era afirmada de maneira muito clara pelo C.D.C. [Código de Direito Canônico], de 1917, no cânon 329/1: "Os bispos são os sucessores dos apóstolos e, por instituição divina, estão à frente das igrejas locais, as quais eles governam com poder ordinário debaixo da autoridade do Pontífice romano".
No novo C.D.C., em conseqüência das instâncias democráticas que o Vaticano II quis, de modo inconveniente, afirmar na Igreja, o principio de submissão ao papa, embora presente, é declarado de modo menos claro, para não dizer ambíguo (por exemplo no cânon 375/2). Todavia mantendo uma prática (a partir de Gregório VII), o próprio C.D.C. de 1983 afirma ser proibido sagrar um bispo sem mandato pontifício, isto é, sem autorização prévia do papa. E, de fato, assim continua o texto do professor Kaschewski:
"2. Não é permitido a ninguém sagrar um bispo sem mandato pontifício (cânon 1013 C.D.C. de 1983). Quem infringir este cânon incorre em excomunhão ''latae sententiae" reservada a Sé Apostólica (cânon 1382 C.D.C de 1983). Incorre-se em excomunhão "latae sententiae" "ipso facto"; isto é, no próprio momento do delito, não sendo necessário que a pena seja infligida por decreto. Pela sagração ilegal de bispos o antigo código ameaçava somente de suspensão ("ipso iure suspensi sunt, donec Sedes Apostolica eos dispensaverit", cânon 2370, C.D.C. de 1917), É apenas com o decreto do Santo Ofício, de 9/8/1951, em conseqüência dos acontecimentos trágicos vividos pela Igreja na República chinesa [bispos da "igreja patriótica" chinesa nomeados pelos governos comunistas - nota do redator] que foi introduzida a pena de excomunhão (ipso facto) reservada à Santa Sé "de modo todo especial".
O novo C.D.C. não nos dá a definição de excomunhão que deve ser tirada do Código de Direito Canônico de 1917 (cânon 2257 e seg.). Ela consiste na "exclusão" (exterior) da "comunhão dos fiéis" e pertence ao tipo de penas chamadas "censuras" (censurae), que são: a excomunhão, o interdito, a suspensão (C.D.C 1917, cânon 2255, par.1). As censuras são penas "medicinais" porque devem constituir um remédio para o desobediente (ou "contumax") a fim de que ele se convença do seu erro e confesse a sua culpa. No momento em que o culpado ou "contumax" se retrata da sua culpa, a pena lhe deve ser perdoada (ou "absolvida") . As penas medicinais se distinguem das "vindicativas" ("expiatórias" no novo C.D.C), as quais têm, pelo contrário, como objetivo essencial não a correção do culpado, mas a ordem jurídica violada . A excomunhão, mesmo se ela é grave nos seus efeitos (comporta, entre outras coisas, o interdito, tanto de administrar como de receber os sacramentos) é uma sanção de tipo administrativo que pode ser absolvida pela própria autoridade que a aplicou. Ademais, a comunhão, da qual se é excluído, não é a interna, inerente a alma e compreendendo os bens da Vida teoloqal, como a graça e as virtudes teologais da fé, esperança e caridade, que são de natureza invisível, mas a comunhão dos bens externos, visíveis, confiados à Igreja e ordenados a produzir os bens espirituais internos ou os outros externos inseparavelmente ligados aos bens internos (sacramentos, sacrifício, poder eclesiástico, etc). A comunhão radical ou ontológica, que nos faz membros [com o batismo, n.d.r.] do Corpo Místico de Cristo não fica comprometida pela excomunhão".
2.2. Os precedentes
O Pe. Murray não foi o primeiro a defender a invalidade da excomunhão injustamente declarada nas lutas de D. Lefebvre e na inexistência do assim chamado "cisma" imputado a ele. Em primeiro lugar se recorda o breve mas denso ensaio - uma verdadeira e própria posição jurídica - do canonista alemão, Prof. Rudolf Kaschewski. publicado em Una Voce - Korrespondenz 18/2 de março-abril de 1988, sobre a natureza da consagração episcopal sem mandato pontifício . Tal estudo, publicado um pouco antes das sagrações episcopais de junho daquele ano, e por um autor inteiramente independente dos círculos "lefebvristas", demonstra inequivocamente que, com base no Código de Direito Canônico (CIC), em vigor desde 1983, a sagração episcopal sem mandato pontifício não pode ser punida com a excomunhão. Efetivamente, escreve o autor em conclusão do seu ensaio: "A afirmação, ouvida freqüentemente, que a sagração de um ou mais bispos sem mandato pontifício, comportaria automaticamente em excomunhão e conduziria ao cisma, é falsa. Considerados os termos próprios da lei, no caso em exame, a excomunhão não pode ser aplicada nem ipso facto, nem por sentença judicial"
Ademais, se recorda o amplo artigo aparecido em Sì sì no no de julho de 1988 (XIV) 13, intitulado Nem cismáticos nem excomungados (reimpresso recentemente como opúsculo) no qual, ao lado das avaliações teológicas sem exceção, se demonstra como, no caso daquelas sagrações, se realizaram todas as cinco condições requeridas para usar do direito correspondente ao estado de necessidade. Ei-las: 1) a existência do estado de necessidade; 2) ter experimentado os caminhos para remediá-lo com meios ordinários; 3) não ser tal ação "extraordinária" realizada intrinsecamente má nem prejudicial ao próximo; 4) manter-se nos limites das exigências efetivamente impostas, pelo estado de necessidade; 5) não ter jamais questionado sobre o poder da autoridade competente, da qual se teria podido presumir, com toda a legitimidade, o consentimento em circunstâncias normais .
Sobre a real existência dum estado de necessidade na Igreja atual (que o Vaticano negou e nega nos documentos oficiais) se apresenta o quadro assaz sombrio das condições da mesma, traçado pelo próprio cardeal Ratzinger em discurso feito na Conferência Episcopal Chilena a 13 de julho de 1988, sobre os últimos desenvolvimentos do "caso Lefebvre". O discurso, impresso pelo semanário Il Sabato de 30 de julho de 1988, foi reproduzido por Si si no no, no número de 15 de outubro de 1988 (XIV) 17, com o título O card. Ratzinger demonstra o estado de necessidade na Igreja. De fato: "o próprio card. Ratzinger atesta, no seu discurso, que Roma não cumpre as suas funções necessárias e indispensáveis e os Bispos não utilizam ou são postos na impossibilidade de utilizar aquele poder que, por direito divino, eles possuem na Igreja para a salvação eterna das almas. É, portanto, o próprio card. Ratzinger que documenta aquele estado e direito de necessidade, ao qual apelou D. Lefebvre quando usufruiu, a 30 de junho, duma competência jurídica extraordinária".
No trecho do referido discurso do cardeal, há o seguinte: "Não se tolera a critica às opções do tempo pós-conciliar: porém, onde estão em jogo as regras antigas, ou as grandes verdades da fé - por exemplo, a virgindade corporal de Maria, a divindade de Jesus, a imortalidade da alma, etc - não se reage de modo nenhum ou se faz com extrema moderação. Eu mesmo pude ver quando era professor, como o mesmo Bispo que antes do Concilio tinha expulso um professor irrepreensível pelo seu falar um pouco rústico, não teve condições de afastar, após o Concilio, um docente que negava abertamente algumas verdades fundamentais da fé. Tudo isto leva muita gente a perguntar-se se a Igreja de hoje é realmente a de ontem ou se a mudaram noutra sem percebê-lo... ".
O ensaio Nem cismáticos nem excomungados, o do Prof. Kaschewski com o extrato do trabalho do Prof. May, o discurso do cardeal Ratzinger, juntamente com um artigo sobre o exato conceito de tradição e com três apêndices, foram depois unidos num volume intitulado La tradition excomuniée (A tradição excomungada), editado pelo Courrier de Rome (edição francesa de Sì sì no no) em 1989 .
Nem se pode esquecer o acurado estudo do Pe. Gérard Mura, Les sacres épiscopaux de 1988, Etude theólogique, que citamos na ampla síntese publicada em francês pela revista Sel de la terre, em quatro números, em 1993 e 1994 . A contribuição marcante deste estudo, situado no plano prevalentemente teológico, consiste na tese de que "a proibição pontifícia à celebração das sagrações deve ser considerada nula e inexistente" por ser "contrário ao bem comum da Igreja, determinado pela defesa da fé"; a defesa da fé, visto o estado de necessidade, no qual se encontra a Igreja, exigia as sagrações efetuadas por D. Lefebvre.
Enfim se menciona o livro do jurista católico americano Charles P. Nemeth, The Case of Archbishop Marcel Lefebvre, Trial by Canon Law, Angelus Press, Kansas City, 1994. Trata-se duma análise estritamente jurídica, que nega a validade da excomunhão e acusação de cisma, unindo-se às mesmas conclusões do Prof. Kaschewski .
Quisemos recordar estes precedentes também para chamar a atenção sobre o fato de que o Pe. Murray não diverge substancialmente das conclusões do Prof. Kaschewski. Pode-se dizer, pelo contrário, que ele as aplica ao caso concreto. E o que demonstra isto? A nosso parecer, que o teor das normas do C.I.C. é bastante claro, tanto por ter de fato permitido a constituição duma verdadeira e própria opinio prudentium ("de jurisconsultos" independentes entre si, embora de índole científica diversa), opinião que concorda na mesma direção: no caso em questão pela norma do estrito direito, não se podia declarar a excomunhão nem se podia considerar cismático o ato censurado.
Consideremos agora os termos estritamente jurídicos da questão, para que os leitores (na maioria não especialistas) possam ter diante dos olhos um quadro mais claro possível.
Boletim Lettre à nos frères prêtres, nº 8, dezembro de 2000
Este boletim é distribuído pela Fraternidade São Pio X a todos os padres da França
No início do outono, um cardeal romano de passagem por nosso país aceitava encontrar-se discretamente com uns trinta padres, todos em função pastoral em diversas dioceses da França. Em número restrito pelo caráter imprevisto dessa reunião, esses padres na força da idade resolveram dizer em alto e bom som o que um número sempre crescente de padres pensa no íntimo: eles queriam resumir diante de um representante romano a triste sorte da Igreja da França e a esperança que os anima. Nessa ocasião, enviou-se ao cardeal uma carta, escrita por um padre de paróquia que não quisera deslocar-se. É esta carta que publicamos aqui. Tendo obtido a adesão total dos padres presentes, ela é mais expressiva que todas as propostas que então se fizeram…
Padre XXX, Pároco
do conjunto paroquial de XXX
A propósito da reunião
de X-X-2000 em XXX
O convite para participar de uma reunião de padres em torno de um cardeal vindo de Roma não podia deixar de me interessar. Se a graça do sacerdócio é há X anos [entre 10 e 15] a alegria constante de minha vida, e se creio profundamente no valor e na utilidade de minha atividade de pároco de aldeia, muitas questões se colocam: claro está que como todos os padres consagrados ao ensinamento da fé e da moral da Igreja Católica, fiéis ao costume eclesiástico e à celebração digna dos sacramentos e da missa, constato que somos criticados, marginalizados e, em todo o caso, mantidos afastados de qualquer decisão e de qualquer responsabilidade importante em nossas dioceses, que os grupúsculos que nos acusam têm todos os direitos e que certos irmãos são verdadeiramente perseguidos. Por outro lado, o imenso erro que constituiu a interdição da liturgia dita "de São Pio V" e as limitações que ela continua a sofrer seguem dividindo os católicos, e tudo o que permitir àquela liturgia reencontrar tranqüilamente seu lugar na Igreja não pode senão ser bem-vindo.
Apesar das aparências (as belas iniciativas do Ano Santo, a multidão da Jornada da Juventude), os problemas de fundo são muito graves, na França. Não falo simplesmente da ruína numérica do catolicismo (batismos, catecismo, nível de prática religiosa), das divisões entre católicos que já nem sempre têm a mesma fé (interroguem um grupo de "praticantes" acerca da Presença Real ou acerca da infalibilidade papal!!); falo sobretudo da crise do clero: nenhuma melhora real quanto às vocações, a carga paroquial crescente (tenho X grandes paróquias [mais de 10] e aguardo "receber" outras)… e falo sobretudo da crise do jovem clero; há quinze anos está claro que ele é majoritariamente de espírito mais tradicional, mas tal não é admitido; os meios de comunicação "cristãos", alguns confrades, certos bispos (não tão raros como seria de supor) criticam-nos publicamente; os (já raros) seminaristas de espírito modernista são favorecidos, suas ordenações são ocasião de elogios recusados a outros, e sua promoção, rápida; os "acertos de contas" são freqüentes (de modo abafado) no clero, donde rancores, querelas – e um isolamento crescente de cada um. Não creio que nossos bispos (e particularmente Roma) se dêem conta do estado inquietante do jovem clero: saídas antes da ordenação (e isto não por motivos de costumes), entre o diaconato e o sacerdócio, e muitos também após a ordenação (e em circunstâncias bem tristes); para os que permanecem, quantas depressões nervosas, compensações miseráveis (álcool, costumes dissolutos, concubinato)!; houve suicídios; e outros se refugiaram em cargos de arquivista, de minúscula paróquia, entraram em comunidades para as quais não estavam necessariamente preparados mais do que lhes permitia a "pastoral" atual; quantos errantes sem diocese, "vagus"! Com respeito a todos esses pontos, posso citar muitos fatos precisos. E é muito freqüente ouvir jovens padres dizer que não conseguem sequer falar acerca deles com seu bispo ou superior religioso (a reunião dos jovens padres em torno de bispos, em Lourdes, em 1999 me pareceu, antes, um "lance publicitário"): estes não os compreendem, buscam fazê-los "evoluir" (e alegram-se quando o conseguem) e, quando muito, dão-lhes vagas consolações espirituais. O fato de que a reunião de X-X-2000 seja quase secreta por medo de que o episcopado francês a impeça é em si significativo.
Espanta-me igualmente a segregação de todo e qualquer padre que celebre a missa de São Pio V; chega-se ao absurdo de certas dioceses francesas em que o progressismo esterelizou totalmente as numerosas vocações de outrora e onde os únicos padres de menos de trinta anos não figuram no calendário diocesano porque celebram esta missa; ou de uma diocese próxima, onde o único seminário (e que caminha bem) não existe oficialmente, por ser da Fraternidade São Pio X! Tudo isso é absurdo.
Eu teria pois muitas coisas que dizer nesta reunião. Mas, após bem considerar tudo, resolvi não comparecer, e digo por quê: diz-se freqüentemente que Roma está mal informada do que se passa na França, mas não creio que isto seja verdade. Desde há uns quarenta anos e, especialmente, desde a crise dos anos 60, muitos padres e fiéis têm enviado grossos dossiês repletos de fatos. Quantos cardeais (incluído o cardeal Ratzinger) receberam longas visitas de padres franceses! Há dois anos, um cardeal participou em X de uma reunião do mesmo tipo que a de X-X-2000… Mas não vejo absolutamente o que isso mudou. Em X-X-2000, reencontraremos irmãos com as mesmas aspirações, ficaremos felizes de ouvir boas palavras de uns e de outros, e receberemos certamente muito belas palavras de sua Eminência o Cardeal – e encontraremos as mesmas dificuldades em nosso retorno e tomaremos conhecimento de novas nomeações episcopais na França que nos consternarão…
Não passo um simples pároco de aldeia, mas me permitirei, para concluir, dar minha opinião quanto à saída da crise:
Antes de tudo, confiança absoluta no Senhor Jesus e no Espírito Santo. A Igreja depende d’Eles, e Eles varrerão o modernismo, de que não restará mais que o vento. A promessa de Fátima, no meio da cidade em ruínas que é a Igreja em crise (permito-me protestar contra a pouca seriedade e honestidade da burocracia do Vaticano em querer impor uma "interpretação" do 3° segredo de Fátima sem o mínimo valor), é que "o Coração imaculado de Maria triunfará".
Em seguida, a certeza de que é em nossas paróquias, nossas dioceses, nossos institutos religiosos que é preciso impor que o catolicismo reencontre direito de cidade: se nos conseguimos entender para além das diferenças de rito (que não são essenciais, porque temos a mesma fé católica), bem sabemos que o modernismo instalado – porque tem o dinheiro, o poder, os meios de comunicação consigo – é, apesar de tudo, estéril: ele não produz nada, nem vocações, nem jovens lares cristãos, nem paróquias vivas… não produz senão exasperados que agitam cartazes e reclamam o poder absoluto para com ele não fazer nada de bom.
1° Que se nomeiem na França bispos que aceitem enfim "deixar fazer a experiência da Tradição" (em ambos os ritos, isso não é o essencial). Entre os padres que se encontrarão com o Cardeal, alguns poderão dizer que foram postergados nas ordens, expulsos de uma diocese, perseguidos por tal ou qual vigário geral, capelão diocesano de ação católica, diretor ou superior de seminário de que Roma fez bispo da França nesses últimos meses. Que é que padres podem ouvir de bom de um bispo recentemente promovido que não cessou de lhes dizer que "eles não eram o tipo de ministros de que a Igreja da França atual tem necessidade"? Por que nomear (sistematicamente desde que a França tem novo núncio) burocratas que não foram senão excepcionalmente padres de paróquia, que já nem sequer fazem o esforço (como há alguns anos) de pôr um colarinho romano para a foto oficial e cujos escritos e decisões anteriores revelam uma orientação bem modernista? Responder-me-ão que Roma nos deu recentemente belos textos (como Dominus Iesus, da Congregação para a Doutrina da Fé); mas sem homens nem bispos para os ensinar eles não passarão de "muralhas de papel". Sem bispos receptivos à Tradição, o jovem clero continuará a sofrer; ora, nenhum dos últimos bispos nomeados é receptivo à Tradição.
2° Que se diga claramente que, para a missa privada, qualquer padre de rito latino pode sem problema de consciência celebrar à vontade a missa de Paulo VI ou a missa de São Pio V (é bastante evidente que para a missa pública é preciso acordo com o Bispo ou o Superior religioso). O ano 1999/2000 foi penoso, porque houve uma multidão de respostas, de opiniões… em torno da celebração ocasional ou não da missa de Paulo VI pelos padres que celebram a missa de São Pio V. Em um país onde já um padre em cinco ordenados o é para a missa de São Pio V, a questão não se coloca. Que Roma faça o gesto claro de liberar as consciências sacerdotais.
3° Que sejam retomadas verdadeiras negociações e encontros com a Fraternidade São Pio X. Esta se desenvolve muito, atrai muito, é benéfica (somos numerosos os que apreciamos a iniciativa da Lettre à nos frères prêtres). Será caridoso agir como se estes irmãos não existissem? E espantamo-nos de ver que nenhum gesto significativo foi feito desde 1988.
Sem estes três pontos, a crise do clero francês não fará senão continuar.
(Carta assinada).
Trechos do trabalho do prof. Georg May sobre o Estado de Necessidade na Igreja
(in Revista Permanência, nº 240, Nov-Dez 1988)
ESTADO DE NECESSIDADE - O Código de Direito Canônico de 1917 fala da necessidade no Cânon 2.205, n. 2 e 3. O Código de 1983, nos Cânones 1323 n. 4 e 1324 n. 1 e 5. Os Códigos não explicitam o que se deve entender sob esse termo, deixam a precisão de sua significação para a jurisprudência e os doutores. Mas, do contexto resulta que a necessidade é um estado em que os bens necessários à vida são postos em perigo de tal modo que, para sair deste, é inevitável a violação de certas leis.
DIREITO DE NECESSIDADE - O Código reconhece a necessidade como uma circunstância que isenta de qualquer penalidade no caso de violação da lei (Cânon 1323, 4 do novo Código) desde que a ação não seja em si, intrinsecamente perversa ou não cause prejuízo às almas; neste último caso, a necessidade seria apenas uma atenuante da pena. Mas nenhuma penalidade «latae sentenciae» pode atingir quem agiu em tais circunstâncias (Novo Código, Cânon 1324, n. 3).
ESTADO DE NECESSIDADE NA IGREJA - Na Igreja, como na sociedade civil, é concebível um estado de necessidade ou de urgência que não pode ser submetido às normas do direito positivo. Uma tal situação existe na Igreja, quando a persistência, a ordem ou a atividade da Igreja são ameaçadas ou lesadas de maneira considerável. Esta ameaça pode incidir principalmente sobre o ensinamento, a liturgia e a disciplina eclesiástica.
DIREITO DE NECESSIDADE NA IGREJA - O estado de necessidade justifica o direito de necessidade. O direito de necessidade na Igreja é a soma das regras jurídicas que valem em caso de ameaça contra a perpetuidade ou a atividade da Igreja.
Este direito de necessidade só pode ser reivindicado quando se esgotou todas as possibilidades de restabelecer uma situação normal com base no direito positivo. O direito de necessidade comporta também a autorização positiva de tomar as medidas, lançar as iniciativas, criar os organismos que são necessários para que a Igreja possa continuar sua missão de pregar a verdade divina e dispensar a graça de Deus.
O direito de necessidade justifica somente as medidas que são necessárias para a restauração das funções da Igreja. É preciso observar o princípio da proporcionalidade.
A Igreja e seus órgãos, antes de mais nada, têm o direito mas também o dever, de tomar todas as medidas necessárias para afastar os perigos. Em uma situação de necessidade, os Pastores da Igreja podem tomar medidas extraordinárias para proteger ou restabelecer a atividade da Igreja. Se um órgão não executa suas funções necessárias ou indispensáveis, os outros órgãos têm o direito e o dever de utilizar o poder que têm na Igreja a fim de que a vida da Igreja seja garantida e seu fim atingido. Se as autoridade eclesiásticas se recusam a isso, a responsabilidade dos outros membros da Igreja cresce mas também cresce sua competência jurídica.