2.2. Os precedentes
O Pe. Murray não foi o primeiro a defender a invalidade da excomunhão injustamente declarada nas lutas de D. Lefebvre e na inexistência do assim chamado "cisma" imputado a ele. Em primeiro lugar se recorda o breve mas denso ensaio - uma verdadeira e própria posição jurídica - do canonista alemão, Prof. Rudolf Kaschewski. publicado em Una Voce - Korrespondenz 18/2 de março-abril de 1988, sobre a natureza da consagração episcopal sem mandato pontifício 1. Tal estudo, publicado um pouco antes das sagrações episcopais de junho daquele ano, e por um autor inteiramente independente dos círculos "lefebvristas", demonstra inequivocamente que, com base no Código de Direito Canônico (CIC), em vigor desde 1983, a sagração episcopal sem mandato pontifício não pode ser punida com a excomunhão. Efetivamente, escreve o autor em conclusão do seu ensaio: "A afirmação, ouvida freqüentemente, que a sagração de um ou mais bispos sem mandato pontifício, comportaria automaticamente em excomunhão e conduziria ao cisma, é falsa. Considerados os termos próprios da lei, no caso em exame, a excomunhão não pode ser aplicada nem ipso facto, nem por sentença judicial"2
Ademais, se recorda o amplo artigo aparecido em Sì sì no no de julho de 1988 (XIV) 13, intitulado Nem cismáticos nem excomungados (reimpresso recentemente como opúsculo) no qual, ao lado das avaliações teológicas sem exceção, se demonstra como, no caso daquelas sagrações, se realizaram todas as cinco condições requeridas para usar do direito correspondente ao estado de necessidade. Ei-las: 1) a existência do estado de necessidade; 2) ter experimentado os caminhos para remediá-lo com meios ordinários; 3) não ser tal ação "extraordinária" realizada intrinsecamente má nem prejudicial ao próximo; 4) manter-se nos limites das exigências efetivamente impostas, pelo estado de necessidade; 5) não ter jamais questionado sobre o poder da autoridade competente, da qual se teria podido presumir, com toda a legitimidade, o consentimento em circunstâncias normais 3.
Sobre a real existência dum estado de necessidade na Igreja atual (que o Vaticano negou e nega nos documentos oficiais) se apresenta o quadro assaz sombrio das condições da mesma, traçado pelo próprio cardeal Ratzinger em discurso feito na Conferência Episcopal Chilena a 13 de julho de 1988, sobre os últimos desenvolvimentos do "caso Lefebvre". O discurso, impresso pelo semanário Il Sabato de 30 de julho de 1988, foi reproduzido por Si si no no, no número de 15 de outubro de 1988 (XIV) 17, com o título O card. Ratzinger demonstra o estado de necessidade na Igreja. De fato: "o próprio card. Ratzinger atesta, no seu discurso, que Roma não cumpre as suas funções necessárias e indispensáveis e os Bispos não utilizam ou são postos na impossibilidade de utilizar aquele poder que, por direito divino, eles possuem na Igreja para a salvação eterna das almas. É, portanto, o próprio card. Ratzinger que documenta aquele estado e direito de necessidade, ao qual apelou D. Lefebvre quando usufruiu, a 30 de junho, duma competência jurídica extraordinária"4.
No trecho do referido discurso do cardeal, há o seguinte: "Não se tolera a critica às opções do tempo pós-conciliar: porém, onde estão em jogo as regras antigas, ou as grandes verdades da fé - por exemplo, a virgindade corporal de Maria, a divindade de Jesus, a imortalidade da alma, etc - não se reage de modo nenhum ou se faz com extrema moderação. Eu mesmo pude ver quando era professor, como o mesmo Bispo que antes do Concilio tinha expulso um professor irrepreensível pelo seu falar um pouco rústico, não teve condições de afastar, após o Concilio, um docente que negava abertamente algumas verdades fundamentais da fé. Tudo isto leva muita gente a perguntar-se se a Igreja de hoje é realmente a de ontem ou se a mudaram noutra sem percebê-lo... "5.
O ensaio Nem cismáticos nem excomungados, o do Prof. Kaschewski com o extrato do trabalho do Prof. May, o discurso do cardeal Ratzinger, juntamente com um artigo sobre o exato conceito de tradição e com três apêndices, foram depois unidos num volume intitulado La tradition excomuniée (A tradição excomungada), editado pelo Courrier de Rome (edição francesa de Sì sì no no) em 1989 6.
Nem se pode esquecer o acurado estudo do Pe. Gérard Mura, Les sacres épiscopaux de 1988, Etude theólogique, que citamos na ampla síntese publicada em francês pela revista Sel de la terre, em quatro números, em 1993 e 1994 7. A contribuição marcante deste estudo, situado no plano prevalentemente teológico, consiste na tese de que "a proibição pontifícia à celebração das sagrações deve ser considerada nula e inexistente" por ser "contrário ao bem comum da Igreja, determinado pela defesa da fé"; a defesa da fé, visto o estado de necessidade, no qual se encontra a Igreja, exigia as sagrações efetuadas por D. Lefebvre.
Enfim se menciona o livro do jurista católico americano Charles P. Nemeth, The Case of Archbishop Marcel Lefebvre, Trial by Canon Law, Angelus Press, Kansas City, 1994. Trata-se duma análise estritamente jurídica, que nega a validade da excomunhão e acusação de cisma, unindo-se às mesmas conclusões do Prof. Kaschewski 8.
Quisemos recordar estes precedentes também para chamar a atenção sobre o fato de que o Pe. Murray não diverge substancialmente das conclusões do Prof. Kaschewski. Pode-se dizer, pelo contrário, que ele as aplica ao caso concreto. E o que demonstra isto? A nosso parecer, que o teor das normas do C.I.C. é bastante claro, tanto por ter de fato permitido a constituição duma verdadeira e própria opinio prudentium ("de jurisconsultos" independentes entre si, embora de índole científica diversa), opinião que concorda na mesma direção: no caso em questão pela norma do estrito direito, não se podia declarar a excomunhão nem se podia considerar cismático o ato censurado.
Consideremos agora os termos estritamente jurídicos da questão, para que os leitores (na maioria não especialistas) possam ter diante dos olhos um quadro mais claro possível.