3.7 - Cisma e Sagração sem mandato
O que foi escrito pelo prof. Kaschewski e publicado anteriormente nos parágrafos 3.1. a 3.6 — e se trata de doutrina clara, confirmada e inatacável segundo as normas em vigor — faz ver como a sagração [de bispos] sem mandato pontifício e o cisma são dois fatos delituosos totalmente independentes e que, enquanto tais, não se implicam mutuamente, São regulados por dois cânones distintos do Código (cânon 1382 para a consagração ilegítima e cânon 1384, § 1 para o cisma), mesmo se a pena prevista é a mesma: a excomunhão latae sententiae (antes de 1951 a ordenação sem mandato era punida somente pela suspensão a divinis, cânon 2370 CIC de 1917).
E, apesar disso, os documentos que ilustram ou declaram a condenação de D. Lefebvre contêm todos a acusação de cisma, e cisma no sentido formal, a começar pelo comunicado anônimo, já citado do Osservatore Romano de 30-6-1988/1-7-1988, publicado dois dias antes da publicação dos documentos da Santa Sé. Afirma-se neste documento, como foi visto, que, não sendo permitido a qualquer bispo sagrar outro bispo "se antes não houver o mandato pontifício" (ex. cânon 1013), as sagrações episcopais bem conhecidas, feitas “não obstante a advertência de 17 de junho, foram realizadas expressamente contra a vontade do Papa num ato formalmente cismático segundo o cânon 751, tendo [D. Lefebvre] recusado abertamente a submissão ao Soberano Pontífice e a comunhão com os membros da Igreja a ele submetido”'. Em conseqüência disto, se diz, "não se pode nem aplicar o cânon 1323, pois não se está no caso duma das situações particulares que ele prevê, a partir do momento em que mesmo o pretenso estado de "necessidade" foi criado expressamente por D. Lefebvre para conservar uma atitude de divisão em relação à Igreja católica, apesar dos oferecimentos de comunhão feitos pelo Santo Padre João Paulo II” 1.
A declaração oficial da excomunhão pelo cardeal Gantin (10 de julho de 1988) afirma igualmente que D. Lefebvre "praticou um ato por natureza cismático pelo fato de sagrar quatro bispos sem mandato pontifício e contra a vontade do Soberano Pontífice"2. Por outro lado o motu proprio do Papa, Ecclesia Dei adflicta, de 2 de julho (o dia seguinte ao da declaração da excomunhão), condena as sagrações de Écône como "ato cismático”, dando explicações complementares, isto é, as motivações desta condenação do ponto de vista teológico e canônico, sobre o modelo do que é afirmado no Comunicado: "Em si mesmo este ato foi uma desobediência para com o Soberano Pontífice Romano numa matéria gravíssima e de importância capital para a unidade da Igreja, dado que se trata da ordenação de Bispos, graças à qual se realiza sacramentalmente a sucessão apostólica. É por isso que tal desobediência, constituindo em si mesma uma verdadeira recusa do primado Romano (vera repudiatio Primati Romani), constitui um ato cismático [segue, em nota, a citação do cânon 751 CIC que define o cisma]. Praticando tal ato apesar da advertência formal dirigida a ele pelo cardeal prefeito da Congregação dos Bispos a 17 de junho último, D. Lefebvre e os sacerdotes [...] incorrem na pena gravíssima da excomunhão prevista pela disciplina eclesiástica (segue, em nota a referência ao cânon 1382 que, como se sabe, prevê a excomunhão latae sententiae para as sagrações sem mandato]"3.
É apenas o comunicado anônimo de L 'Osservatore Romano que fala expressamente de ato "formalmente" cismático (portanto não se trata de cisma "virtual"). Como já dissemos, este comunicado fornece o motivo canônico da condenação que iria aparecer no mesmo jornal dois dias mais tarde, a 3 de julho, com a publicação simultânea do Decreto e do Motu Proprio que citamos.
Este comunicado é, pois, duma extrema importância. Ele dá a conhecer o motivo pelo qual as autoridades vaticanas não julgaram dever aplicar os impedimentos dirimentes previstos pelo cânon 1323 CIC: porque D, Lefebvre teria aberto caminho a um verdadeiro cisma em sentido formal. E quando se encontra em face deste, isto é, quando se manifesta com a vontade declarada de menosprezar o primado de Pedro e separar-se dele criando uma "Igreja" paralela, não é, evidentemente, possível invocar nenhuma circunstância dirimente, ou seja, que anule a imputabilidade.
Esta maneira de ver as coisas, abertamente declarada pela Santa Sé, esta imputação de cisma em sentido formal não foi inteiramente negada pelo decreto e o "motu proprio", não obstante o fato de usarem o adjetivo "cismático" sem o advérbio "formalmente",
D. Lefebvre, portanto, foi acusado não só de desobediência, mas também de cisma no sentido formal. Tanto um como outro fazem incorrer na excomunhão ipso iure. Devemos então considerar que ele tenha incorrido em duas excomunhões duma só vez? Os delitos imputáveis são em número de dois, Houve dois atos, um relativo à desobediência e o outro, pelo contrário, ao cisma?
"Não é a sagração dum bispo que cria o cisma — afirma o decano da Faculdade de Direito Canônico do Instituto Católico de Paris — mesmo se se trata duma violação grave da disciplina da Igreja: o que cria o cisma é o fato de conferir em seguida: a este bispo uma missão apostólica. De fato, esta usurpação dos poderes do soberano pontífice prova que se quer constituir uma Igreja paralela"4.
No mesmo tom, o professor canonista Neri Capponi da Faculdade de Jurisprudência da Universidade de Florença declara “para consumar um cisma, D. Lefebvre deveria ter constituído a sua própria hierarquia"5. A doutrina teológica e canônica está de acordo para considerar que as condições essenciais requeridas para um cisma no sentido próprio ou formal consistem 1. na negação expressa do primado pontifício; 2. na negação da comunhão com os membros da Igreja submetidos ao Papa; 3. na atribuição do poder de jurisdição 6.
As duas primeiras condições não precisam necessariamente ser preenchidas simultaneamente, basta uma só. E, mesmo se elas não são explicitamente afirmadas, ou uma, ou outra, ou ambas juntas, o ato de atribuição do poder de jurisdição é suficiente para constituir um cisma. Este ato, implicando o estabelecimento duma jurisdição eclesiástica num território determinado, faz nascer uma hierarquia própria, criada por este ato e, portanto, distinta da hierarquia da Santa Igreja e paralela a esta. Nisto se dá a ruptura formal da unidade. Por este ato se confere ao bispo escolhido o que se chama a "missão apostólica" ou "canônica". Este é o ato típico do cisma: ele manifesta em si a negação do primado pontifício e a recusa da comunhão. O ato de desobediência por si só (uma sagração sem mandato) não constitui em si o cisma: nenhuma desobediência é cismática, mas somente aquela que manifesta uma vontade neste sentido.
No caso das sagrações de Ecône, como todo o mundo sabe, não houve, porém, nenhum ato deste gênero. Ao ato (pela força das circunstâncias) de desobediência na sagração não se segue nenhum outro pelo qual se tenha conferido uma "missão apostólica" qualquer que seja.
Houve, em termos de direito, um só ato imputado a D. Lefebvre: as sagrações de Écône. A excomunhão é, portanto, única. Mas o fato de que um ato único tenha recebido duas inculpações de delito diferentes entre elas (desobediência e cisma formal) demonstra que a Santa Sé quis estabelecer uma relação intrínseca entre a sagração sem mandato e o cisma. Para ser válida do ponto de vista do direito canônico, esta ligação de duas inculpações diferentes (desobediência e cisma), deve, entretanto, encontrar o seu fundamento no ato único realizado por D. Lefebvre. Doutra maneira: no mandato durante a cerimônia de 30 de junho de 1988 deve-se poder encontrar uma declaração que justifique a acusação do Vaticano de ter sido este ato "cismático por natureza". Do próprio texto do mandato lido em Écône deveria resultar esta "recusa aberta" e este "verdadeiro repúdio” da submissão ao Papa e da comunhão com os membros da Igreja imputados a D. Lefebvre pelo comunicado anônimo de L 'Osservatore Romano já citado e pelo Motu proprio.
presbyteros consecravit episcopos sine Mandato Pontificio atque contra Summi Pontificis voluntatem ... ". Como acontece freqüentemente na Igreja, o texto em língua vulgar é o autêntico: "tendo realizado um ato de natureza cismática mediante a consagração episcopal” (somos nós que sublinhamos). O ato cismático é a consagração episcopal. O Pe. Murray notou que o cardeal Gantin, na advertência assinada por ele e dirigida a D. Lefebvre duas semanas antes da excomunhão, na qual ele o intimava a não proceder às sagrações, o cardeal acusava o Bispo da Tradição de se preparar para a violação (só) do cânon 1382 (proibição da sagração sem mandato). Sobre a suposta significação "cismática" de seu ato, nem mesmo uma simples alusão! (The Latin Mass, cit., p. 56).
tomo XIV, col. 1286¬1312: cal. 1299 seg. Ver também os verbetes Cisma e cismático em Dictionnaire de Droit Canonique, col. 886¬887. Sobre o cisma em sentido virtual, cf. col 886 "O cisma efetuado somente em espírito, por um ato interior da vontade, é uma falta, mas não constitui um delito e não faz incorrer em censura. O cismático não é atingido pelas sanções eclesiásticas senão quando a sua vontade de separação se traduziu em atos, sendo o mais explícito destes a adesão a uma seita organizada”.