Category: Sociedade
...estes tempos que se chamam obscuros
(Miguel de Unamuno)
Durante muito tempo pensou-se que para se explicar a sociedade medieval bastava usar a divisão clássica em três ordens: clero, nobreza e terceiro estado. É o que ensinam ainda os livros de história: três categorias de indivíduos, bem definidas, tendo cada uma suas atribuições próprias, separadas nitidamente das outras. Nada mais afastado da realidade histórica! Essa divisão em três classes pode ser aplicada ao Antigo Regime, nos séculos XVII e XVIII, onde, de fato, os diferentes níveis da sociedade formavam ordens distintas, onde as prerrogativas e relações davam conta do mecanismo da vida. Mas seria superficial aplicar esta divisão à Idade Média: ela explica os grupos, a repartição, a distribuição de forças, mas não revela nada sobre as origens, sobre a mola, a estrutura profunda da sociedade. Pelo que aparece nos textos jurídicos, literários e outros, a sociedade medieval é uma hierarquia, com uma ordem determinada, mas esta ordem não é aquilo que se imaginou, e antes de mais nada, ela é bem mais diversa. Nos atos notariais vemos freqüentemente um senhor de um condado, um pároco, servirem de testemunha em transações entre vilões, e a mesnie de um barão – ou seja, seus próximos, seus familiares – inclui tanto servos e monges quanto altas personalidades. As atribuições destas classes são também estreitamente ligadas: a maioria dos bispos também são senhores; ora, muitos deles saíram do povo humilde. Um burguês que compra uma terra nobre, em certas regiões, passa a ser nobre. Basta abandonar os livros de história para mergulhar nos documentos, e esta noção de «três classes da sociedade» mostra-se fictícia e sumária.
A família pudera-se muito bem definir como uma instituição humana essencial. Ninguém negará que ela foi a célula principal e a unidade central de quase todas as sociedades que até hoje existiram, excetuando-se, é claro, sociedades tais como a da Lacedemônia, que teve por objetivo supremo a eficiência e pereceu sem deixar vestígio de sua passagem sobre a terra. A despeito de sua profunda revolução, o Cristianismo nem por isso alterou aquela antiqüíssima e bárbara relíquia; não fez senão inverter-lhe a ordem. Não negou a trindade de pai, mãe e filho. Apenas a leu ao contrário, convertendo-a em filho, mãe e pai. E ela passou a chamar-se, não simplesmente família, mas Sagrada Família, pois acontece que muitas coisas ficam sagradas quando são vistas ao contrário. Entretanto, alguns sábios de nossa decadência têm atacado a família. Impugnaram-na, segundo creio, erroneamente; ao passo que outros a têm defendido, mas também equivocadamente. O argumento mais comum de defesa é o de que, em meio à tensão e ao torvelinho da vida, a família representa algo tranqüilo, agradável e coeso. Mas há um outro possível argumento de defesa, que me parece evidente, qual seja o de que a família não é algo tranqüilo, agradável ou coeso.
O jornal de anteontem anunciava aos berros: ABOLIDA A PENA DE MORTE NOS ESTADOS UNIDOS, e logo após enumerava os grandes criminosos beneficiados pelo penúltimo espasmo de permissiveness da grande nação agonizante. Lá estava o assassino do Senador Robert Kennedy. E demais homicidas. Quinhentos.
Há certas frases que todo o mundo pronuncia sentenciosamente e todo o mundo ouve com respeito, sem que ninguém se dê ao trabalho de examinar a sua significação. Pode ser que constitua um desses lemas de universal e anônima sabedoria; mas também pode ser que não passe de um lugar comum ou de uma meia verdade, que, como sabemos, é a mais insidiosa espécie de mentira que o "homo mendax", consegue produzir neste vale de lágrimas.
Muitas vezes aludimos à crise que envenenou o Ocidente cristão, e que hoje se tornou universal graças ao movimento histórico da ocidentalização que, por paradoxo, se volta contra o Ocidente. Mais de uma vez tentamos percorrer os marcos históricos e as correntes de idéias que animaram a chamada civilização moderna e que agora deságuam pelo imenso estuário de mil disparates num oceano de sombrias perplexidades. A Renascença e a Reforma, debaixo de seus aspectos progressistas, e a par dos reais progressos trazidos pelas ciências da natureza, que asseguraram ao homem o conhecimento e o domínio das coisas exteriores e inferiores, foi o primeiro degrau do itinerário em que o homem se extravia de si mesmo, e para ganhar o mundo hipoteca a própria alma. Depois, na Revolução Francesa temos outro marco onde começa a grande impostura moderna das histórias mal contadas. Poderíamos dizer, embora nos repugne o neologismo, que a história recente é uma sucessão de estórias mal contadas. Num processo de sucessivo empulhamento que começou nos primórdios da Revolução Francesa, com as famosas societés de pensée denunciadas por Augustin Cauchin, seguiu-se a história do socialismo, a ascensão do liberalismo, a Revolução Russa, e as duas grandes guerras. Até hoje se conta a história da 2ª Guerra como se a Rússia tivesse desempenhado nela papel decisivo, papel de vencedor. Agora temos a super-impostura do progressismo “católico”, como uma síntese de todos os erros cometidos pela humanidade nestes últimos séculos. E qual é a direção geral, o efeito principal desses movimentos históricos?
No meu tempo de rapaz houve uma época em que, cansado de estudar as crateras da lua e os anéis de Saturno, passei a interessar-me pela avicultura. E, como sempre misturei às coisas mais práticas um pouco de teoria, comecei por munir-me de um tratado. Ora, esse tratado que então adquiri, começava por essas inacreditáveis palavras: «A galinha e as aves domésticas em geral, tanto podem ser cuidadas por um homem como por uma mulher».
Estas reflexões começaram no hall do Municipal onde me achei numa noite de bailado russo. Antes de mais nada, porém, devo dizer, para tornar mais compreensível o que se segue, que costumo passar muito tempo, anos às vezes, sem encontrar certos fenômenos da chamada vida social. Por isso, nessas circunstâncias gozo de uma vantajosa inexperiência e ainda consigo ver certas coisas de chofre, com a surpresa das crianças ou dos idiotas. Ambos esses pontos de vista são indubitavelmente superiores àquele do homem informado, do incurável adulto de visão plastronada, do homem que se habituou, que sabe como se fazem as coisas, como se entra num teatro ou se serve um chá numa tarde de irreparável elegância.
Alguém do Jornal do Brasil telefonou-me perguntando se eu poderia responder a duas perguntas simples: 1° — Quem seria no novo presidente? 2° — Que pensa o senhor do regime e sobretudo desse método de escolha dos chefes?
Um amigo que se julga ateu ou não-católico telefonou-me outro dia, e logo me atirou pelos fios esta pergunta aflita: "Meu caro C. me diga uma coisa: a Igreja antigamente era ou não era uma coisa muito inteligente?"
O mundo freqüentemente pretende nos insinuar como boa, até como excelente, a filosofia do fato consumado, pela qual, graças à ação dissolvente ou lubrificante do hábito e da repetição, passamos a considerar com naturalidade aquela mesma coisa que nos provocaria gritos de repulsa ou de susto se não fosse apresentada de repente, nua e crua. Vejam, por exemplo, o comunismo. Querem que o aceitemos, pela simples razão de estar aí, diante de nós, os cronistas e pensadores bem inseridos no artigo do dia que a História lhes inculca, uma ausência de sensibilidade, uma ausência de reação, sob pena de sermos apontados como reacionários. O sr. Foster Dulles era um reacionário porque continuava a ver no comunismo um mal, e não um simples fato histórico.