No meu tempo de rapaz houve uma época em que, cansado de estudar as crateras da lua e os anéis de Saturno, passei a interessar-me pela avicultura. E, como sempre misturei às coisas mais práticas um pouco de teoria, comecei por munir-me de um tratado. Ora, esse tratado que então adquiri, começava por essas inacreditáveis palavras: «A galinha e as aves domésticas em geral, tanto podem ser cuidadas por um homem como por uma mulher».
Naquele tempo o autor do tratado pareceu-me doido. Assentei comigo mesmo que o era, e que não oferecia grande segurança nos finos problemas de alimentação, do choco e da gosma, um livro que começava com tão colossal quão inútil distinção. Deixei o livro, e poucos meses depois deixei os ovos.
Hoje, entretanto, não sei por que misterioso trabalho da memória, voltou-me aquela primeira frase do avicultor e de repente, descobri-lhe a sabedoria que me escapara na mocidade. Ou então, usando da relatividade, eu diria que o deslocamento de tempo, a modificação das idéias e costumes, acabaram por transformar em sábio o que naquele tempo era insano.
Senão, vejamos. Dizia aquele autor que a galinha pode ser cuidada por um homem ou por uma mulher. Ora, quem diz isto, é porque sabe, e deixa subentendido, que há outras coisas outras atividades, em que não é indiferente o sexo. Ainda mais, o que parece hoje digno de nota naquele texto é o ar, digamos assim, de surpresa, de quase admiração com que o autor reconhece a existência de um gênero de atividade em que a mulher e o homem possam se desempenhar com igual proficiência. Em outras palavras, o que ele dizia lá no tratado de avicultura, podia ser formulado assim: «A mulher e o homem são terrivelmente diferentes; mas apesar disto podem ambos cuidar de galinhas».
É claro que a sabedoria que existe naquele texto, ou que eu porventura lhe empreste, está toda contida na primeira parte da proposição: a mulher e o homem são de fato diferentes. Ambos podem fazer certas coisas, como por exemplo criar galinhas, mas vou agora mais longe que aquele sutil avicultor, e começo a pensar que, mesmo nessa simples atividade, o homem e a mulher não terão o mesmo estilo em avicultura. Ao contrário, na menor das coisas que façam, ficará a marca dos dedos que a fizeram, e como a diferença do sexo vai até a ponta dos dedos, resulta que ficará na coisa cuidada a marca de quem cuidou, homem ou mulher.
O ponto onde quero chegar, com essas considerações que roçam pelo delírio, é o seguinte: devemos acentuar a diferença, ao menos como tática de argumentação, porque um dos vícios de nosso tempo consiste precisamente em procurar a simplificação da uniformidade. A desordem de nosso tempo consiste em tender para o amálgama, para o informe, para a massa, para a sociedade sem classe, para um mundo sem limites, para uma vida sem regras, para uma humanidade sem discriminações.
Ao contrário disto, a sociedade que desejamos construir é uma sociedade ricamente diferenciada, e nitidamente hierarquizada. Só é possível pintar um belo quadro porque o vermelho é diferente do azul; só é possível tocar uma bela música porque há certa consonância nos acordes de quinta e certa dissonância nos acordes de sétima. E só é possível uma bela e boa sociedade de homens se as diferenças de natureza forem levadas até suas últimas conseqüências: quando se admitir, por exemplo, no unânime consenso que a mulher e o homem são diferentes.
A tendência moderna é de atenuar as diferenças. Imaginem o que seria de nós se, por exemplo, os bombeiros hidráulicos resolvessem tornar-se, o mais possível, semelhantes aos avicultores; ou reciprocamente, se os avicultores tentassem trazer para os galinheiros a técnica da solda e do desentupimento. É claro que ao cabo de poucos meses não teríamos nem ovos nem água. Uma sociedade humana não pode dispensar o bombeiro hidráulico, nem o avicultor. Uma sociedade humana, passavelmente organizada, não pode sequer tolerar a idéia de que um cano de chumbo e um ovo sejam aproximadamente a mesma coisa.
Há circunstâncias muito especiais em que todas as pessoas de uma certa comunidade são chamadas a tarefas semelhantes. Nessas circunstâncias triunfa uma certa uniformidade. Trata-se, por exemplo, de um incêndio generalizado? Todos devem acorrer com mangueiras, extintores, areia. Trata-se agora de uma devastadora epidemia? Todos devem trazer sua contribuição de emergência para debelar o flagelo. Trata-se enfim de uma guerra? Todos devem oferecer seus préstimos para a mais breve e decisiva vitória.
Quanto mais nítido e mais próximo é o fim, mais homogênea se torna a necessária contribuição de todos. Mas mesmo nesses casos de fins próximos e nítidos, mesmo na fome, na peste e na guerra, a cooperação verdadeiramente eficaz tem o cunho de organicidade que se constitui pela unidade na diversidade. O concerto dos atos humanos só tem verdadeira ordem e harmonia quando realiza a união de coisas diversas. Vejam na guerra como é bom que existam homens com aptidões diferentes. Vejam no incêndio que os bombeiros, apesar dos uniformes, não são uniformes. Seus gestos, suas atitudes, seus instrumentos, variam tanto como se ali estivessem representando um feérico e harmonioso bailado do fogo. Vejam também na peste que os homens se dividem, tratando estes dos vivos enquanto aqueles cuidam dos mortos.
Ora, o funcionamento normal de uma sociedade, que inscreve todas as vidas e todos os problemas de todas as vidas, é mil vezes mais complexo do que o incêndio, a peste e a guerra, a normalidade é mais rica e mais difícil do que a anormalidade; e o problema social, nas mais intrincadas situações, deve ser tratado com os métodos, os resguardos, as atenções, a harmonia que a normalidade exige. Por isso, mais do que nas situações anômalas, o problema social dos tumultuosos tempos de paz devem ser conduzidos dentro do concerto das aptidões diferentes. E, quanto mais infantil for a criança, e quanto mais mulheril a mulher, e quanto mais varonil o homem, tanto melhor realizaremos em cada situação concreta a ordem, cambiante mas verdadeira, que é o fundamento da felicidade dos povos. O bem, a perfeição da sociedade, está na infantilidade da infância, na feminilidade da mulher, na masculinidade do homem.
O concurso que as mulheres têm trazido ultimamente, lamento dizê-lo, tem mais a marca da uniformidade do que o cunho autêntico da organicidade. Elas vieram ao nosso encontro. A última guerra viu mãos femininas nos tornos mecânicos e no controle dos aviões de bombardeio. E essa situação ainda continua. Elas vieram ao nosso encontro, mas o seu concurso tem sido apenas numérico, quantitativo, mecânico. Vieram ao nosso encontro como pessoas, como braços, como cabeças, mas não vieram como mulheres. O coro das vozes engrossou, mas não se tornou mais harmonioso. O conjunto de gestos se multiplicou, mas não se tornou mais ordenado. Vieram ao nosso encontro para fazer as mesmas coisas. Com os mesmos gestos.
E, se vieram fazer o que nós fazemos, é forçoso convir que se declararam derrotadas naquilo que as diferencia de nós. Se adotaram os nossos gestos, forçoso é convir que uma tal capitulação não merece, senão à custa de uma ginástica verbal o nome de emancipação. Lembro aqui uma passagem de Chesterton em que ele dizia que o tigre pode emancipar-se das barras da jaula, mas não pode emancipar-se das barras da sua pele tigrina.
O mundo, com essa contribuição da mulher, arrisca-se ao mais terrível dos cataclismas: a ficar reforçado na quantidade, e mutilado na qualidade. Imaginem que pobre música seria aquela em que as flautas andassem constantemente uma oitava acima dos fagotes a lhes imitar todos os contornos melódicos. Seria justo falar na grande emancipação das flautas?
Pois o que eu quero dizer é que a famosa emancipação da mulher é qualquer coisa como andar sempre uma oitava acima de nossos timbres masculinos. Dizem as nossas mesmas frases, mas em falsete.
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É evidente que estou desagradando. Mas por favor não imaginem que eu deseje prender as mulheres em casa ou recusar-lhes o concurso na batalha do mundo. Não é esta a minha idéia. O que reclamo não é a impertinência; é a verdadeira contribuição.
Há uma mobilização que se torna urgente, e que deve abranger a todos. Mas essa mobilização é essencialmente diferente daquela dos tempos da guerra. Todos são chamados. Mas são chamados a ficar onde estão, sendo o que são. É uma esquisita mobilização em que cada um deve ficar exatamente onde está. E nesta esquisita mobilização, que quase seria melhor chamar de imobilização, o que é pedido à mulher é que seja mulher.
Na verdade, o que estamos precisando urgentemente é de uma chuva de santos. A liturgia dos tempos do Advento anuncia o Salvador que virá do céu como uma chuva. O que nós precisamos, no ressequido chão de nossa cultura e de nossos costumes, é de um bom sistema de irrigação que espalhe na terra das almas essa água do céu. Precisamos de muitos santos. Ora, está provado que a mulher, nessa divina aventura, vai mais longe do que nós outros, os fátuos conquistadores do mundo; e está provado também, por Leon Bloy, que a mulher, quanto mais santa, é mais mulher.
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Um romancista medíocre escreveu há tempos a história do que ele chamava As Mulheres sem Homens. Hoje num sentido diverso, pensando mais no problema cultural do que nos desajustamentos sexuais, poderíamos escrever a triste história dos Homens sem Mulher.
Esse é o traço que infelizmente se acentua em nossa civilização, e quem o diz, e muito bem dito, é uma mulher. Gertrud Von Le Fort, no seu pequeno livro, A Mulher Eterna, diz que o mundo moderno está fazendo a dolorosa experiência de uma cultura de valores masculinos. Eis as suas palavras: «A cultura exclusivamente masculina não se contenta de excluir todos os traços femininos para caracterizar as épocas em que impera. Pior do que isto, tal cultura substitui a fé nas potências escondidas pela confiança exclusiva no que se vê: a força, no domínio da matéria; a publicidade, no domínio do espírito. E ainda mais, ela exagera as propriedades masculinas e deforma os traços do homem-sem-mulher. A ausência de uma das partes da realidade provoca sempre – e isto é muito importante! – uma alteração da imagem da outra».
E quais são esses traços deformados? Perguntamos nós.
Eu diria que, entre muitos, são dois os principais. O primeiro, como diz a mesma autora, é o gosto predominante pela visibilidade, a luta cruel pelo prestígio, as torvas manobras em busca do sucesso. O segundo, digo-o eu, é a recusa da doação, a incapacidade, cada dia maior, de se descobrir que há realmente mais alegria em dar do que em receber.
Mas vejam bem – e isto é muito importante!– que não pretendo dizer que esses traços de cabotinismo e de egoísmo sejam característicos da psicologia masculina normal. Não. O que digo é que esses são os traços cavados no mundo masculinizado negativamente, isto é, privado da necessária componente feminina. Serão, digamos assim, os indícios da nossa avitaminose.
Num sentido um pouco diferente do que sugere Gertrud Von Le Fort, eu diria que esta cultura está masculinizada, não pela predominância do masculino, mas pelo desfalque do feminino. Importa muito acentuar esse aspecto de carência para compreender bem que o retrato do homem-sem-mulher é uma triste caricatura do homem...
Apesar do medíocre romancista, estou inclinado a crer que mais depressa vive a mulher sem homem do que o homem sem mulher. Qualquer das duas situações é horrorosa, e para lhes dar exemplos históricos eu lhes apresentarei dois. A situação dos fiéis da Igreja Católica no Brasil, até poucos anos atrás, é um exemplo convincente de uma comunidade de mulheres-sem-homens. Numa das suas admiráveis Cartas de Inglaterra, Rui Barbosa descreveu-nos esse tempo como o de uma generalizada incredulidade beata. Do outro lado, como exemplos de culturas de homens-sem-mulher, temos o nazismo alemão e o comunismo russo. E também, cumpre notar, a sociedade burguesa capitalista que tende vertiginosamente para uma daquelas formas totalitárias.
Volto pois a dizer que o homem não pode viver sem a mulher. Transpondo para outro plano essas considerações, lembro que fora da Igreja não há salvação. Ora, a Igreja é feminina. Logo, sem a mulher não há salvação. E quando eu digo que a Igreja é feminina, não creiam, por favor, que esteja explorando indevidamente uma pura metáfora. É claro que há uma analogia, mas uma analogia que é mais do que uma metáfora. A Igreja é realmente feminina. Nos seus atributos, na sua virginal maternidade, a Igreja acompanha, na quarta dimensão de sua realidade mística, os traços da figura de Maria.
Descendo novamente ao plano da cultura, eu me atreveria a dizer que há um certo paralelismo e que aí também, como na vida das almas, o homem não pode viver sem a boa vitamina dos valores autenticamente femininos. Privado desse elemento o mundo se transforma num quartel ou num hospício.
Disse há pouco que a sociedade de nosso tempo tem a marca de uma carência: a dos valores femininos. Ocorre logo perguntar de quem é a culpa e como se operou esse desequilíbrio. De quem é a culpa? Imaginem o tumulto que ocorreria se eu cometesse a imprudência de convocar uma reunião para o debate desse problema.
Esse tumulto, aliás, existe. Existe lá fora. Existe, aberto ou disfarçado, confessado ou engolido. Existe a desconfiança. A luta dos sexos. Existe a hostilidade. Existe a incompreensão de que se valem e com que engordam os psiquiatras, o mágico dos tempos modernos.
Chego mesmo a imaginar que foi essa a primeira discussão entre o homem e a mulher nas portas do paraíso perdido.
O fato é que as mulheres, emancipadas de sua feminilidade, passaram de boca em boca a mais monumental descoberta dos últimos tempos: «A vida dos homens é mais interessante do que a nossa» – o que praticamente pode ser enunciado assim: «arrumar um fichário é mais interessante do que arrumar uma gaveta». É possível que os homens tenham dado abundantes motivos para tornar a casa um lugar de desterro; é possível que as mulheres, levadas pela curiosidade, tenham querido tirar a limpo as tais coisas interessantíssimas que os homens fazem nas oficinas e nas repartições. É possível que ambos tenham partes iguais, disputando cada um o seu direito de disparatar.
Para Gertrud Von Le Fort o caso parece ser o de uma vitória masculina, pelo abuso da força. Mas eu não sei... eu me perco em conjeturas,porque nessa questão de vitória é bem sabido que a da mulher, muitas vezes, consiste precisamente em ser vencida.
Existirá sempre esse problema, essa tensão entre os dois sexos. Como diz Chesterton, o homem e a mulher são de fato incompatíveis. Viverão sempre em dificuldades. Serão sempre dois estrangeiros cada um a falar mal o idioma do outro. Prolongarão indefinidamente esse duelo que leva as maiores santas a nos tratarem, pobres de nós, ora com astúcia, ora com provocação. Santa Escolástica, para iludir o rigor monástico de seu santo irmão, rezou pedindo uma chuva torrencial. Santa Teresa d’Ávila, espanhola e atrevida, dizia, pensando num diretor espiritual que fora injusto com uma de suas filhas: «Olhe que nós outras não somos assim tão fáceis de compreender». E a história de Heloísa e Abelardo não foi outra coisa senão uma contínua e ininterrupta esgrima de provocações.
Essa tensão entre os dois pólos da humanidade não é um mal. O homem e a mulher podem viver, em honroso convívio, uma civilização, discutindo e brigando – como no matrimônio – desde que mantenham a honra do combate. É claro que o bom entendimento recíproco é bom. No casamento o bom entendimento, o paralelismo de gostos e opiniões, é uma coisa maravilhosa, mas não creiam que seja, como se diz, o elemento mais importante. No casamento, o decisivo é compreender bem, em tempo e contratempo, a natureza mesma do ato matrimonial, e a honra do novo estado. Enquanto essa bandeira estiver no mastro da nau familiar, pode chover e ventar, podem as ondas avolumarem-se em montanhas e cavarem-se em abismos, que a arca portadora desse casal, que Deus prefere a todos os outros casais, chegará ao monte da salvação. Não serão muito felizes os viajantes dessa tormentosa travessia, sem dúvida, mas chegarão. E numa travessia é isso o que importa.
Mas não insistamos mais neste insolúvel e antipático problema de saber quem tem a culpa, se o homem, se a mulher, na situação de nossa atual cultura. Ambos provavelmente; cada um a seu modo; como no paraíso.
Analisemos agora aqueles dois pontos principais que nos parecem característicos da cultura privada de valores femininos. O primeiro é, como já vimos, o excessivo pendor para a visibilidade, para o brilho, para o sucesso. Eu diria mesmo o despudor.
O homem moderno só crê no que vê, mas nisto ele crê demais, nisto ele chega a ser supersticioso. O homem moderno constrói sua vida, sua cidade, sua civilização com esse critério estridente e multicolor da vanglória. A vida interior, a vida da alma e a vida da família entre quatro paredes vai perdendo dia a dia a sua organicidade, e vai cedendo terreno à vida devastadora das ruas. Faz-se hoje tudo em público. Desde o sorvete lambido nas calçadas de Copacabana pelo indivíduo de blusão azul, que anda com um ar bonzão e felizardo de quem acabou de se aliviar, até as mais extremadas manifestações amorosas dos casais curados dos antigos preconceitos pela moderna psiquiatria, tudo hoje tende a tornar-se público e ostensivo.
Eu diria, citando mais uma vez Gertrud Von Le Fort, que o mundo moderno precisa de um véu, símbolo do invisível e paciente mundo feminino. Mas com essa idéia de reclamar o véu, eu não quero dizer simplesmente que se deva apenas promover uma campanha para conseguir que as mulheres se vistam com mais modéstia. Nestes últimos tempos as saias, que estavam acima dos joelhos, desceram ao nível dos tornozelos e quase se adivinha uma tendência para as anquinhas que me permitem ver na moça que passa a silhueta da minha bisavó.
Deveremos nós considerar com alvissareiro otimismo esse acréscimo de pano que parece vir ao encontro do símbolo do véu? Poderemos nós esperar que esse palmo de babado reestruture a nossa civilização?
Não o creio. A moda tem suas astúcias. Essa descida das saias não me parece ser um sinal de contrição, antes me parece ser uma manobra de valorização como as que se fazem nos títulos das bolsas e nas queimas de café. Além disso salta aos olhos que o pano que sobeja nas saias foi tirado das blusas.
Não quero absolutamente dizer que esse problema da toilette feminina não tenha importância. Não pretendo ridicularizar as campanhas que têm sido organizadas para obter um pouco mais de decoro nas praias, nas ruas e até nas igrejas. Não subestimo esse problema do vestuário feminino, mesmo porque se eu o subestimasse, se eu dissesse que ele não tem importância, eu estaria aquém do b-a-ba, em matéria de psicologia feminina.
Mas a idéia do véu, como vitamina mulheril para o escorbuto de nosso tempo, deve ser compreendida de um modo mais geral. Não é somente o corpo que urge velar, é a própria vida íntima, o próprio coração. E não é somente nas pessoas, uma por uma, que se aplica essa dieta, mas na própria civilização.
O homem moderno precisa efetivamente recuperar o gosto da invisibilidade e da interioridade. Se há na vida das cidades uma atividade pública, e se há na vida da Igreja um culto visível e público, é preciso que a essas coisas corresponda uma componente de vida interior, na família e na alma. Faltando essa componente, como é o caso, pode-se dizer com aquela autora, já muitas vezes citada, que faltará o elemento especificamente feminino.
A publicidade é um dos grandes ideais modernos. Quem não aparece, quem não é visto, sofre dessa invisibilidade como se duvidasse de seu próprio existir. Apalpa-se, duvida-se de si mesmo, sente-se desencarnado, alma do outro mundo, e só se tranqüiliza quando os outros, os olhos dos outros, a atenção dos outro, vêm confirmar aquela existência em crise.
A propaganda é um dos aspectos mais repulsivos dessa cultura estridente. A última guerra, como todos sabem, foi uma guerra de propaganda, e só pôde ter a horrível feição que teve, porque os homens perderam o recato.
Vejam por exemplo na política os despudorados esgares da demagogia. Vejam o que se entende hoje por bem-comum. Quando os governantes querem dar boa impressão de seu mandato, o que fazem eles? Obras monumentais. Obras visíveis. Palácios. Estádios. Obeliscos. E mal lhes ocorre, a esses hierofantes do sucesso e da vanglória, que o bem comum é uma coisa obscura que se espalha, que se subdivide pelos homens, que se esconde, para ser verdadeiramente o que é, sob os tetos dos homens.
A idéia do véu, como componente essencial de uma civilização, é muito mais geral do que o simples problema do vestuário. Há um pudor das sociedades, como há um pudor das pessoas. Ora, o pudor, a modéstia, está para a mulher como a coragem está para o homem. Por isto eu lhes digo que esta vida de rua e de cartazes é qualquer coisa como uma sociedade despida.
A idéia do véu tem alcance muito maior do que a regulamentação de vestidos e maillots; aplica-se ao nudismo e ao mundanismo, à falta de panos e ao excesso de plumas, à publicidade das pernas e à publicidade do crime. Aplica-se ao monumentalismo e às pompas dos casamentos vespertinos; às expansões amorosas dos casais que se libertaram dos preconceitos burgueses, e às expansões demagógicas dos caçadores do poder.
Trata-se pois, como vêem, de coisa mais ampla e mais grave do que à primeira vista parecia, e, se estou certo, depende muito da mulher, de sua atitude, de sua fidelidade, diria até do seu heroísmo, a possibilidade de uma recuperação do espírito de simplicidade e de pobreza (e portanto de obscuridade) sem o qual não podemos falar em civilização cristã. Tenho a intenção de voltar um dia a esse assunto, com mais vagar; mas agora já é tempo de dizer alguma coisa a respeito do segundo elemento de nossa avitaminose cultural.
O segundo traço, que deforma a imagem de nossa civilização, é o reconhecimento oficial dos direitos do egoísmo. «Não dar» é a divisa escrita no estandarte do nosso tempo.
Mas esse traço não parece provir de uma carência do feminino.
Realmente, nós outros, os masculinos, costumamos afagar a fátua presunção de que a generosidade seja virtude de nosso sexo, que só em segunda mão possa estar nas mulheres. Há um certo fundamento para esta fatuidade. É fácil observar, e até provar com estatísticas, que as mulheres são em geral mais mesquinhas do que nós. Os salários que pagam são mais disputados, as esmolas que dão são mais contadas.
Ora, o que eu pretendo demonstrar aqui é o contrário: que a generosidade nasce na mulher; que o dom de si mesmo é o mais feminino dos impulsos; e que a nossa presunção se origina numa confusão, muito do nosso estilo, entre o que nós entendemos e o que elas entendem por dar.
Para isso permitam-me abrir aqui um parêntese para uma série de considerações preparatórias a partir da história de uma moça que, com grande espanto de sua família, resolve tomar o hábito de religiosa.
*
Ninguém na família viu a coisa com bons olhos. É claro. Entre as perspectivas normais para o futuro da moça, essa incongruidade vinha trazer confusão e desassossego. Entre as classificações sociais possíveis, a freira é quase um escândalo. É uma nódoa escura no álbum da família.
Todos estimam, evidentemente, a civilização cristã. Todos a desejam, desde que os padres e as freiras, já que são necessários, segundo parece, venham de outros planetas por panspermia, ou produzam-se por geração espontânea.
E claro que se entende perfeitamente a mágoa dos pais sem fé que vêem a filha afastar-se de casa, abandonar o conforto e o afeto, para a loucura de correr, com véu e grinalda, ao encontro de um noivo invisível. Enquanto ela ia à Missa e em certos dias do ano recusava o bife na mesa, andava tudo muito bem. Não deixava de ser esquisita a relação entre o filé e um Deus todo-poderoso, mas enfim, já que a civilização cristã deve existir, é justo exigir de seus mais fiéis participantes o cumprimento de certas regras. Tudo é assim no mundo. Se o indivíduo é acadêmico, há dias e circunstâncias em que é de preceito o fardão com as insígnias da imortalidade. Se é militar, há outros dias e outras circunstâncias em que o verde-oliva cotidiano se transfigura nos esplendor do uniforme de gala. São regras. E sem regras não há civilização. Ora, se é deveras desejável que adornem nossa sociedade os ditames do suave Nazareno, como diz o Sr. Matos Pimenta, é inevitável que existam regras. Sejam elas embora esquisitas, e às vezes francamente incompreensíveis, nem por isso nos chocam em demasia, porque há também muitas regras incompreensíveis fora da religião.
Quem será capaz de explicar, por exemplo, a sentinela nas portas dos quartéis? E o selo de educação: quem seria capaz de explicar cabalmente a misteriosa conexão entre a estampilha e o descalabro do ensino? E o costume de ir na sacristia, em Missa de sétimo dia, assinar um papel? E esse outro hábito de dizer em discurso, no dia da posse, que tal ministério rendoso ou folgada sinecura são postos de sacrifício? E o telegrama? E a pluma? E a gravata? E a estátua portátil de Pedro Álvares Cabral cantando a ária final da Tosca? E o zebu: Quem será capaz de explicar o zebu e a estátua do zebu?
Tudo isto são regras da vida civilizada, como também é regra da vida não civilizada, na Nova Guiné, sair o viúvo inconsolável para caçar na floresta próxima um canguru-fêmea, e atar-lhe depois ao pescoço um colar de dentes de cão, e deixar-se então persuadir, já consolado, que a falecida encarnou-se naquele esquisito quadrúpede.
Na verdade o homem é que é esquisito, e não o canguru. O homem é que tem mania de inventar dificuldades e cerimônias.
Até aqui vamos pois muito bem. Estamos no respeito das regras. Mas quando a moça vem dizer que resolveu entrar no Carmelo ou na Abadia Beneditina, e que entre os noivos possíveis escolheu o invisível, e que entre todas as vidas escolheu uma morte – dizendo que é vida! – e que entre todas as festas escolheu a festa obscura, a núpcia do mistério e do silêncio, em que não se vê o noivo, como se ele tardasse dentro da noite, devendo ela esperá-lo ali, de ouvidos atentos, hoje, amanhã, depois, dentro da noite, sozinha (sim sozinha), na espera do noivo, sozinha num deserto, na aridez da espera de um noivo que tarda, mas que virá (porque prometeu), mas que virá não se sabe quando, até quando? Até quando?... então sim, então eu compreendo bem que os pobres pais sem fé se aflijam e se lamentem. E não me levem a mal o riso que mal disfarço, envolvendo na tristeza de um vazio quarto de moça, de um armário com vestidos inúteis, de um par de sapatos esquecidos a um canto, essas grotescas histórias de zebus, estátuas, jornalistas e cangurus.
Não me levem a mal, porque rio-me aqui como lá se ria aquele monge moribundo do padre Manuel Bernardes, com a diferença que o meu riso é por procuração, antecipando-me ao bom riso final desses pais amados por Deus. Chorem hoje, embora, chorem adiantados. E antes assim, que o riso é sempre melhor que chegue atrasado.
Quando porém a família é católica, integrada naquela já muitas vezes mencionada civilização cristã, o nosso espanto, diante do espetáculo de oposição às vocações, se torna perfeitamente justificado.
De onde querem essas pessoas que saiam as freiras e os padres? De onde querem que nasçam os santos? O que me parece bem claro é que não querem santos na família. Não digo porem que os não querem deliberadamente, positivamente, que sejam capazes de sufocá-los. Não. O modo de não querer é antes evasivo e negativo: uma espécie de anticoncepcionalismo espiritual.
Na maioria dos casos ainda é mais brando e disfarçado esse não querer santos em casa, não chegando a ser uma frustração. É apenas um espanto, uma perplexidade, um problema que nunca fora sequer armado. Aquela menina nunca passou pela idéia de ninguém que ela acabasse no claustro. A novidade é chocante porque sempre nos parecera que padres e freiras existem, como outras coisas existem em torno de nós, sem que nós contribuíssemos para isto de algum modo. A chefatura da polícia, o prefeito, o observatório astronômico, e muitas outras instituições existem sem que ninguém nos venha buscar os filhos em casa. São coisas que sempre vimos, inevitáveis, indiscutíveis e quase tão naturais como os lagos e as montanhas. Agora, aparecer-nos casa a dentro uma dessas coisas é tão fantástico e subversivo como se devêssemos nós doravante, amassar o pão que comemos ou tecer o pano com que nos vestimos.
Tudo isto, normalmente, vem de fora. Quem traz o pão é o padeiro. O Tesouro da Juventude explica às crianças que o pão é feito de trigo, e que o trigo se planta e se colhe, mas essa história nos parece uma lenda remota. Dizem também os livros que a água vem dos rios, e que os rios nascem da chuva, mas para nós a água vem do cano.
O que eu quero dizer com esses esdrúxulos exemplos, é muito simples: nós outros,os baluartes da civilização cristã somos uma raça secularmente habituada a receber a água da bica, o pão do padeiro, e os padres das misteriosas usinas onde eles se fabricam. Ou melhor, somos uma raça pouco habituada a dar. Por isso, os diversos processos de produção nos parecem alheios, e sobretudo devidos, indiscutivelmente devidos. Se escasseia o pão, nós dizemos: «Há poucos lavradores! Há falta de braços! Nós precisamos de mais padeiros!» Se há falta de padres, nós bradamos com severidade: «Há falta de padres! Precisamos de padres!»
O que eu quero dizer, em suma, é que a nossa raça, ou classe, ou lá o que seja, tem a finíssima sensibilidade dos sismógrafos de precisão para registrar aquilo de que precisamos.
Dias atrás, num de nossos suplementos, a grande escritora Rachel de Queiróz, que freqüentemente não acha o que fazer e o que dizer com seu talento, estampou uma carta curiosa de um cavalheiro que procurava a verdade e que, de passagem, reclamava a falta de heroísmo dos católicos. Precisamos de heroísmo!
A descoberta que mais nos assusta fazer é que nós precisamos dar.
Reclama-se abundância, pureza e heroísmo, dos outros, como se essas coisas fossem tão devidas como um regular serviço municipal.
Uma das causas dessa mentalidade está na complexidade do mundo moderno (o que é inevitável), combinada cm a falta de unidade moral própria da sociedade burguesa. Nossas atividades são pouco produtivas, ou muito indiretamente produtivas. Somos burocratas, funcionários, intermediários, citadinos, professores, dirigentes, conferencistas. Esta situação, faltando-lhe a retificação, inculca o hábito de não estabelecer a necessária ligação entre o trabalho e os seus frutos.
O burocrata, mesmo na mais útil das funções, é um pobre sujeito que se move numa atmosfera de valores abstratos. Passa o dia escrevendo relatórios ou exposições de motivos; vive registrando nomes de coisa que nunca viu. No fim do mês recebe uma certa soma de dinheiro. Com esse dinheiro no bolso ele sai e compra manteiga, por exemplo.
Vejam como é diferente o caso do sujeito que tem uma vaca, que a ordenha, e que levando o leite à batedeira, obtém a mesma manteiga. Este homem vê o encadeamento das causa: o leite saiu da vaca, a manteiga saiu do leite. No caso do burocrata, porém, as relações parecem acidentais. Não há uma linha de causalidade essencial ligando o relatório ao ordenado e o ordenado à manteiga. Neste esquema as linhas de causalidade são fortuitas, caprichosamente cruzadas, dando a impressão de um mero jogo.
É claro que a inteligência do problema se restauraria se, a par da crescente e inevitável complexidade social, crescesse também a consciência da fraternidade política e do bem-comum. Faltando esse elemento resulta nas pessoas que vivem longe do trabalho imediatamente produtivo, o vício mental de não apreender a conexão entre o seu trabalho e o seu ordenado. O seu trabalho parecerá de um arbitrário que toca a demência; o seu ordenado passa a ser considerado como um indefinido direito sem outra regulação a não ser a resistência do meio.
Agravando-se, esse vício – não saber que precisa dar – penetra os recantos mais íntimos da personalidade e chega às fontes da vida natural, com a recusa de gerar filhos, e às fontes da vida espiritual com a mais categórica recusa de gerar santos.
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Pretendo agora mostrar que nesse crime da frustração das fontes da vida a responsabilidade feminina é maior do que a nossa. É inevitável o desagrado que estas palavras causarão, embora eu me esforce em provar que nessa acusação está contida uma homenagem. As mulheres são muito suscetíveis a esse tipo de reivindicação ainda que nos esforcemos para lhe adoçar as arestas. Enquanto o processo dos costumes e da política era feito em torno do Homem com H maiúsculo, elas se sentiam alheias, consentindo em crer que toda essa história se passa entre os homens com h minúsculo. Mas logo que começamos a dizer: «as mulheres...» cada uma se considera logo atingida.
Enquanto nós outros temos a propriedade, talvez ainda mais assustadora, de raramente nos sentirmos atingidos, as nossas queridas companheiras deste vale de lágrimas são facilmente desconfiadas e vêem, quase sempre, em nossas generalizações uns oblíquos propósitos de alusões pessoais.
Mas é fácil provar que, havendo coisas em que o mundo masculino é mais responsável, não é injusto pensar que para outras coisas seja mais responsável o mundo feminino.
Estou que a recusa de dar é mais grave na mulher do que no homem. Sob esse ponto de vista parece-me que o emburguesamento da mulher é ainda mais repulsivo do que o nosso. E digo isto como corolário do adágio: a corrupção do ótimo é péssima.
A mulher, efetivamente, tem na sua natureza, na sua alma, nos seu corpo as fontes da vida. Ela mesma é uma fonte viva, que dá seu sangue normalmente, numa espécie de ensino, de treinamento, de exercício periódico de sacrifício cruento. Resulta daí uma aparente contradição logo nas primeiras conseqüências: ela nos parece mais guardadeira, mais absorvente e mais mesquinha do que nós. Mas até aí está certa. Ela tem de ser assim pela força de sua natureza e de suas próprias virtudes. Se um de nós, por exemplo, quer dar a bicicleta do filho ao garoto da rua que veio ingenuamente pedi-la, a mulher se interpõe com violência – Você está doido! Se queremos deixar que o amigo traga uma camionete para levar mais depressa nossa biblioteca, a mulher se atravessa no caminho, mesmo que não estime demais a biblioteca. E marca os livros. E lembra-se dos que não foram devolvidos. Se a gente, num arroubo, quer dar cem mil réis ao pobre, ela dá dez mil réis e olhe lá!
Mas um dia, essa mesma mulher que reduziu a dádiva e limitou o empréstimo, dá sua vida, toda, sem discutir, e sem admitir que se discuta, para não frustrar a vida que possa nascer de sua morte. Isto é um fato. É claro que existem damas que sufocam a criança que acabou de nascer: os jornais estão cheios dessas coisas. Nem quero eu levar minha polidez ao ponto de romantizar as realidades. Mas é um fato verificável, experimentável, que aquela mesma senhora que um dia nos pareceu mesquinha – aquela mesma! – foi capaz de dar sua vida, toda inteira, pela vida de um outro... Dir-se-ia que ela desdenhava um pouco essa nossa generosidade masculina que se exprime por bicicletas, livros e notas de cem cruzeiros; dir-se-ia que ela precisava aquela retenção, aquela coesão, aquela força estranha de guardar, reter, reduzir, economizar para a explosão final de uma generosidade perfeita.
O que a mulher entende por dar, no dicionário de seu sexo, na clave de fá de sua pauta, é diferente do que nós outros entendemos, e é quase sempre traduzido por um sinal concreto, muito substancial, muito próximo de nossos olhos, de nossas bocas, de nossas mãos. Tinha razão o infortunado Werther quando descrevia o mais belo espetáculo que jamais avistara: a cena em que Carlota distribuía a merenda das crianças. O exaltado romântico tinha mais bom senso do que muito realista, sabendo ver ali, naquela cena familiar e simples, a chave do eterno feminino, o mistério da mulher eterna que o mesmo Goethe procurará em vão nas outras situações, que Wagner procurará em vão na magnífica duplicidade de Kundry, e que Gertrud Von Le Fort procurou também, um pouco em vão, a meu ver, entre os mais autênticos símbolos cristãos. Werther tinha razão em dizer que aquela partilha de um bolo entre as crianças era o mais belo espetáculo do mundo.
E Michelet, um outro grande desvairado, que também escreveu sobre a mulher um livro quase completamente insensato, tinha razão de ver a figura da perfeita caridade num quadro de Andrea del Sarto, em que o pintor representava uma mulher moça e robusta, cercada de pequeninos mendigos. E adivinhem que esmola lhes dá essa mulher compadecida? Que moedas lhes distribui? De que bolso profundo as arranca? Lá está ela, a mulher caridosa que tirou lágrimas de nosso bom adversário; lá está ela fixada na tela na penumbra do museu, a nos ensinar como é que a mulher dá, a dizer-nos como é próxima, quente, substancial, a caridade perfeitamente feminina. Ela toma nos braços os meninos pobres, ergue-os, pendura-os em seu seios, e dá-lhes o seu leite, esse vinho de doce e branca ebriedade, esse sangue de paz.
*
Deus que sonda os nossos rins, escolheu uma mulher para que o Verbo descesse à humanidade do homem; e escolheu-a virgem, isto é, econômica, guardada, retida. E foi essa mulher a primeira criatura que por si e por todos disse: «Faça-se em mim segundo a vossa palavra!»
Deus, que sem nós nos criou, sem nós não nos pôde salvar. No momento decisivo da redenção, quando estava suspensa a salvação de todos nós e de cada um de nós, Ele precisou – atrevo-me a dizer – do concurso da criatura. E escolheu-a mulher, para que ela dissesse por si e por nós, com sua força, com sua voz, na clave misteriosa de seu sexo: «Faça-se em mim segundo a vossa palavra».
Depois cantou o Magnificat. E depois calou-se, guardando o grande segredo de dor e glória, debaixo do véu e dentro do coração.
Perdão. Ela não se calou até o fim. Houve um dia em que tornou a falar, e nesse dia, que era um dia de festa, por pouco não deixou escapar o amoroso e doloroso segredo de seu Filho.
Isto passou-se em circunstâncias que lembram o espetáculo que Werter achou ser o mais belo do mundo; apenas em vez de pão tratava-se de vinho.
Foi no terceiro dia, durante as bodas de Caná da Galiléia que a Mãe de Deus, que se achava entre os convivas, tornou a falar. E eis o que ela diz ao seu Filho: «Eles estão sem vinho...» A boa dona de casa, a boa mãe, inquieta-se porque os vasos chegaram ao fim antes do fim da festa, no terceiro dia. É o amor da ordem que a leva a pedir a intervenção de seu Filho. É o instinto econômico que lhe dita aquelas palavras. Quisera talvez poupar, distribuir melhor, reter um pouco. Mas agora, já que os vasos se esvaziam, o instinto guardador se subverte. Já é tarde para reter, agora é tempo de dar. E então apela para seu Filho: Eles estão sem vinho. O mistério virginal desabrocha no mistério maternal. Diz eles. Eles, somos nós. Nós somos os filhos. E a mãe que se inquieta pelos seus filhos, quando lhes falta o vinho ou o pão, é bem diferente do homem impulsivo que quer dar a bicicleta e os livros. Ela também quer dar, mas no fim de contas o que ela quer é guardar. Guardar os filhos. Por isso se inquieta e intercede: Eles estão sem vinho...
Mas depois, como sabem disse para os criados: «Façam o que Ele lhes ordenar». Ora, é aqui, nesta palavra que parece menos generosa do que a outra, que reside a verdadeira e essencial generosidade. Reclamando vinho, ela mais queria guardar do que dar; ensinando a obediência perfeita, agora sim ela ensina a perfeita oblação.
Eis como se invertem as coisa, ou pelo menos como nos parecem elas invertidas, em relação aos eixos usuais dos valores masculinos, quando é uma mulher que fala. Em cada um dos termos daquele binômio aparece o paradoxal mistério da virgindade maternal que concilia, numa harmonia de alto nível, a humildade que retém e a generosidade que entrega.
Mas nós passamos em silêncio o que Jesus disse quando sua Mãe chamou-lhe a atenção para a falta do vinho. Ouçam, ouçam agora a estranha palavra que Ele disse: «Mulher, o que temos nós dois a fazer juntos? Minha hora ainda não chegou».
É curioso notar que todos geralmente se espantam que Nosso Senhor tenha dito «mulher» a sua Mãe. Dois sábios exegetas que consultei apressam-se a explicar, antes que o leitor pense mal, que os gregos e os orientais empregavam esse termo, em relação às pessoas da mais alta honorabilidade, em sinal de respeito dobrado de ternura. E fazem bem em explicar depressa porque parece que na linguagem e nos costumes dos ocidentais, o termo «mulher» tornou-se um desaforo.
A mim me parece entretanto, com todo o respeito que os ignorantes devem tributar aos sábios, que os exegetas, na precipitação de uma interpretação que quase parece uma desculpa, deixaram escapar a chave desse misterioso diálogo. Eu creio que a palavra forte e nítida está ali, no texto, para bem assinalar que as duas declarações de Maria, a do vinho e a da obediência, estão inscritas e devem ser compreendidas sob a clave da mulher. O texto dispensaria aquela palavra sem sacrifício da clareza; seria mesmo mais claro, como se depreende do esforço dos exegetas. A sua presença, entretanto, parece ter a intenção de bem marcar que aquele diálogo se passa com uma mulher que pede.
O resto da frase ainda mais obscuro e difícil se nos afigura: «Que temos nós dois a fazer?» ou «Que temos nós dois, tu e eu, com isto que acontece?» O filho parece afastar a súplica. Diz que a sua hora ainda não chegou, e que ainda não há entre os dois, ou ainda não atingiu sua plena medida, alguma coisa que dê a Maria o direito de pedir mais vinho.
No decorrer dos séculos os teólogos tentarão explorar em toda a sua profundidade o direito de Maria pedir, interceder e cooperar com seu Filho. Haverá choques de escolas, desvios de doutrina, novas teologias que pretendem violentar as posições clássicas da Igreja. Haverá milagres, aparições, curas de cegos e de paralíticos, longe de nós e perto de nós, para avivar nos homens orgulhosamente masculinos a idéia dos direitos de Maria. Haverá debates, discussões, investigações, mas agora, agora naquele terceiro dia das bodas de Caná nós estamos ouvindo o rumor nascente das águas da vida na sua própria fonte. E as palavras são muito simples, mas muito misteriosas também. Diz a mulher: «Eles não têm mais vinho...» Diz o Filho: «Mulher, o que temos nós dois a fazer? Minha hora ainda não chegou». E a mulher retorna: «Façam o que Ele lhes mandar». E o Filho que parecia recusar, obedece àquela que é a própria obediência.
Nesse texto, penso eu, não é preciso muita erudição para descobrir que mulher quer dizer mulher. Exatamente, literalmente. Nosso Senhor está marcando com esta palavra a clave feminina em que transcorre o diálogo. Como na música, se não temos a clave não sabemos que valores e que relações exatas têm as notas.
Quanto à dura observação que até parece uma recusa: «O que temos nós dois a fazer... minha hora ainda não chegou», além da linha nítida traçada entre o Criador e a Criatura não seria possível descobrir, no tom, no conteúdo mesmo, uma espécie de admiração e até, digamos assim, de susto, se é possível tal sentimento na Pessoa divina? Eu por mim, não acho impossível essa surpresa e essa admiração, porque em outra passagem do Evangelho, diante da confiança do Centurião, está claramente escrito que Jesus admirou-se.
Ora, nesta passagem das bodas de Caná, parece-me que ele tornou a admirar-se, a quase assustar-se, diante do pedido de sua Mãe. E a surpresa do Filho, quando ouve dizer que «eles estão sem vinho» explica-se na clave da palavra Mulher.
Deus que sonda os nossos rins, sabe como é feita a mulher; sabe que sua dedicação não se manifesta, como a nossa em dádivas fragmentadas de uma extrínseca filantropia; sabe que sua maneira de dar é dar-se toda, até a vida, até o sangue.
Por isso, imagino eu, quando ela lhe fez aquela súplica de vinho, como mulher, Jesus viu, pela primeira vez, antecipadamente, o vinho transformar-se em sangue. Dir-se-ia que ela, Mãe de Deus e dos homens, se adiantava, que ela tinha deixado escapar, ali na festa, naquele terceiro dia das bodas de Caná, antes do tempo o segredo dos dois. Ela pede vinho. Ele diz: a minha hora (do sangue) ainda não chegou. A Mãe adiantava-se, evidentemente. Intercedia antes do tempo. E não ficava como saída para a misericórdia de Deus, assim assaltada de surpresa, senão duas coisas quase contraditórias em relação ao pedido: detê-lo, e obedecê-lo. Foi o que Ele fez.
E todos os convivas se admiraram que o dono da casa tivesse deixado para o fim o seu melhor vinho, não sabendo que o verdadeiro dono e a verdadeira dona da casa, naquele curto e esquisito diálogo, tivessem deixado para o fim um outro vinho infinitamente melhor.
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Deixamos para trás, aparentemente, o problema da missão cívica da mulher. Muitas pessoas estarão talvez decepcionadas com o desenlace deste estudo. Que o estejam com a feitura, com a má arrumação das partes no todo, com os defeitos de lógica e de ritmo é perfeitamente justo. Deus sabe de que reservas pude eu tirar este trabalho que aqui lhes trago. Desculpem-me de tudo. Mas do nexo que existe entre a missão cívica da mulher e as bodas de Caná eu não lhes peço desculpas.
Permitam-me, para terminar, um breve alinhavo das principais idéias. Começamos pela missão da mulher. Assinalamos o estado atual da nossa cultura: uma espécie de carência do elemento feminino. Apontamos as duas grandes vitaminas: o véu, símbolo da vida interior; e a doação, o dom de sim mesma, sinal de generosidade perfeita. Vimos que a mulher, quando dá, dá coisas muito próximas e muito vitais. Vimos pelos olhos admirados de Werther, o grande romântico, a cena em que Carlota divide o pão pelas crianças. Vimos o leite, que continua a correr, lá no quadro de Andrea del Sarto, na penumbra do museu. E vimos o vinho que abundou nas bodas de Caná, ou melhor, traduzindo-o com o dicionário de Maria, que nisto se mostrou mais solícita e mais apressada do que Marta, vimos os primeiros sinais do sangue de Jesus.
Tudo isto, se estou certo, nos ensina que faltam em nossa civilização burocratizada esses dois elementos vitais, o gosto da obscuridade e o dom de sim mesmo, e que está nas mãos da mulher, sob esse ponto de vista, a sorte da nossa civilização. Tragam-nos pois esse pão e esse vinho, em mãos de mulher, com gestos de mulher.
Quem ainda duvida que nós precisamos do socorro e da ajuda feminina?
Nós precisamos da mulher. Não somente em casa, como as vezes se diz. Mas na cidade, no mundo, na civilização. Precisamos que venham, mas que venham realmente como mulheres, isto é, com a paciência do véu e com a impaciência do amor.
Transcrição parcial da conferência do mesmo nome incluído no volume As Fronteiras da Técnica Agir, 1955, republicada na Revista Permanência n° 150-151 Maio-Junho 1981