...estes tempos que se chamam obscuros
(Miguel de Unamuno)
Durante muito tempo pensou-se que para se explicar a sociedade medieval bastava usar a divisão clássica em três ordens: clero, nobreza e terceiro estado. É o que ensinam ainda os livros de história: três categorias de indivíduos, bem definidas, tendo cada uma suas atribuições próprias, separadas nitidamente das outras. Nada mais afastado da realidade histórica! Essa divisão em três classes pode ser aplicada ao Antigo Regime, nos séculos XVII e XVIII, onde, de fato, os diferentes níveis da sociedade formavam ordens distintas, onde as prerrogativas e relações davam conta do mecanismo da vida. Mas seria superficial aplicar esta divisão à Idade Média: ela explica os grupos, a repartição, a distribuição de forças, mas não revela nada sobre as origens, sobre a mola, a estrutura profunda da sociedade. Pelo que aparece nos textos jurídicos, literários e outros, a sociedade medieval é uma hierarquia, com uma ordem determinada, mas esta ordem não é aquilo que se imaginou, e antes de mais nada, ela é bem mais diversa. Nos atos notariais vemos freqüentemente um senhor de um condado, um pároco, servirem de testemunha em transações entre vilões, e a mesnie de um barão – ou seja, seus próximos, seus familiares – inclui tanto servos e monges quanto altas personalidades. As atribuições destas classes são também estreitamente ligadas: a maioria dos bispos também são senhores; ora, muitos deles saíram do povo humilde. Um burguês que compra uma terra nobre, em certas regiões, passa a ser nobre. Basta abandonar os livros de história para mergulhar nos documentos, e esta noção de «três classes da sociedade» mostra-se fictícia e sumária.
Apesar de mais perto da verdade, também a divisão entre privilegiados e não-privilegiados é incompleta, pois na Idade Média, havia privilégios de alto a baixo da escala social. Um simples aprendiz, de certo modo, é um privilegiado, pois ele participa dos privilégios da corporação; os benefícios da Universidade servem tanto aos estudantes e seus valetes quanto aos mestres e aos doutores. Certos grupos de servos rurais gozam de privilégios particulares que seus senhores são obrigados a respeitar. Considerar como privilégios apenas os da nobreza e do clero, é ter uma noção inteiramente falsa da ordem social.
Para se compreender bem a sociedade medieval, é necessário estudar sua organização familiar. Aí se acha a chave da Idade Média, e sua originalidade. Todo relacionamento desta época é estabelecido sobre o modo familiar: os dos senhores aos vassalos, os de mestre a aprendiz. A vida rural, a história do nosso solo, só se explica pelo regime das famílias que aí viveram. Queria-se avaliar a importância de um vilarejo? Contava-se o número de feux, e não o número de indivíduos que o formava. Na legislação, nos costumes, todas as disposições tomadas tratam do bem de família, do interesse da linhagem – ou, alargando esta noção familiar a um círculo maior, ao interesse do grupo, da corporação, que nada mais é que uma grande família, fundada sobre o mesmo modelo da família propriamente dita. Os grandes barões são, antes de tudo, pais de família, unindo em torno de si todos os seres que, por seu nascimento, fazem parte do domínio patrimonial; suas lutas são brigas de família, na qual toma parte toda esta mesnie que eles têm encargo de defender e administrar. A história da feudalidade é a história de suas principais famílias. E, se avaliarmos bem, o que é a história do poder real, do século X ao século XIV? É a história de uma dinastia, estabelecida graças à sua fama de coragem, ao valor demonstrado por seus ancestrais: muito mais do que um homem, é uma família que os barões escolheram por chefe; na pessoa de Hugo Capet, eles viam o descendente de Roberto o Forte que defendera aquela região contra o invasor normando, de Hugo o Grande, que já havia carregado a coroa; isso aparece no famoso discurso de Adalberto de Reims: «Escolhei para chefe o duque dos Francos, glorioso por suas ações, por sua família e por seus homens, o duque em quem encontrareis um tutor, não apenas dos negócios públicos, mas ainda dos seus negócios particulares». Esta linhagem se manteve no trono por hereditariedade, de pai para filho, e viu seu domínio crescer pelas heranças e casamentos, muito mais que por conquistas: história que se repete milhares de vezes em nossa terra, em diversas esferas, e que decidiu de uma vez por todas o destino da França, fixando na terra as linhagens dos camponeses e dos artesãos, cuja perseverança diante de mil obstáculos e sofrimentos criou, de fato, nossa nação. Na base da "energia francesa" está a família, como a Idade Média a entendeu e conheceu.
Para entender bem a importância desta base da sociedade medieval, composta de famílias, vamos compará-la, por exemplo, com a sociedade da antiguidade, composta de indivíduos. Na sociedade greco-romana o homem (vir) é que conta; na vida pública ele é o cidadão (civis), que vota, que faz as leis e toma parte dos negócios do Estado; na vida privada ele é o proprietário de um bem que lhe pertence pessoalmente (paterfamilias), do qual ele é o único responsável e sobre os quais ele possui atribuições mais ou menos ilimitadas. Nunca se constata uma participação de sua família ou de seu parentesco nestas atribuições. Sua mulher e seus filhos lhe são inteiramente submissos e guardam um estado de menoridade perpétua; ele tem sobre eles, como sobre seus escravos ou sobre seus bens fundiários, o poder de usar e abusar (jus utendi et abutendi). A família parece só existir em estado latente; ela só vive pela personalidade do pai, ao mesmo tempo chefe militar e sacerdote-mor; e isso com todas as conseqüências morais que decorrem, entre elas o infanticídio legal. Aliás, na antiguidade, a criança é a grande sacrificada: ela é um objeto cuja vida depende do juízo e do capricho paternal. Ela está submetida a todas as eventualidades de uma troca ou de uma adoção, e quando o direito à vida lhe é cedido, fica na dependência do paterfamilias até a morte deste; mesmo então ele não herda de pleno direito, pois seu pai pode dispor de seus bens em testamento a seu grado. Quando o Estado se interessa por uma criança, nunca será para intervir em seu favor, mas tão somente para formar o futuro soldado ou o cidadão.
Nada disso subsiste na nossa Idade Média. Nela o que importa não é mais o homem, mas a linhagem. A antiguidade pode ser estudada, e é de fato, pelas biografias individuais: a história de Roma é a história de Sylla, de Pompéia, de Augusto; a conquista da Gália é a história de Júlio César. Entrando na Idade Média uma mudança se impõe: a história da unidade francesa é a história da linhagem capeciana; a conquista da Sicília é a história dos descendentes de uma família normanda, numerosa demais para os seus domínios. Para se entender bem a Idade Média deve-se considerá-la na sua continuidade, no seu conjunto. Por isso, talvez, ela seja tão mal conhecida e seu estudo bem mais difícil que o do período antigo, pois é preciso desembaralhar sua complexidade, segui-la na continuidade do tempo, através destas mesnies que formam a trama; e não apenas as que deixaram um nome pela grandeza de suas conquistas ou pela importância de seus domínios, mas também os humildes moradores, os habitantes das cidades e do campo, que devemos conhecer em sua vida familiar, se desejamos entender o que foi a sociedade medieval.
Esta importância dada à família traduz-se em uma preponderância, muito clara na Idade Média, da vida privada sobre a vida pública. Em Roma, um homem só vale na medida em que ele exerce seus direitos de cidadão: que ele vota, delibera e participa dos negócios do Estado; os esforços da plebe para obter uma representação, por um tribuno, são bem significativas disto. Na Idade Média raramente se faz menção de negócios públicos: ou melhor, os negócios públicos são logo vistos como administração familiar; são contas dos domínios, pagamentos de arrendatários e proprietários; e mesmo quando os burgueses, quando se formaram os municípios, reclamam de direitos políticos, é com o único intuito de poder exercer livremente seu trabalho, sem ter de pagar pedágios e taxas; a atividade política propriamente dita não tem nenhum interesse para eles. Aliás, a vida rural é infinitas vezes mais ativa que a vida urbana, e em ambas é a família, e não o indivíduo, que prevalece como unidade social.
Tal como se apresenta desde o século X, a sociedade assim compreendida tem como traço essencial a noção de solidariedade familiar, nascida dos costumes bárbaros, germânicos ou nórdicos. A família é considerada como um corpo onde corre, em todos seus membros, o mesmo sangue — ou como um mundo reduzido, com cada ser cumprindo a sua parte, consciente de fazer parte de um todo. A união não se estabelece mais, como na antiguidade romana, por uma concepção estatista da autoridade de seu chefe, mas por este fato de ordem biológica e também moral: todos os indivíduos que compõem uma mesma família são unidos pela carne e pelo sangue, seus interesses são solidários, e nada é mais respeitável que a afeição natural que os anima, uns pelos outros. É muito vivo o sentimento deste caráter comum dos seres de uma mesma família:
Les gentils fils des gentils pères
Des gentils et des bonnes mères
Ils ne font pas de pesants heires".
"Gentis filhos de gentis pais
Gentis e boas mães
Não brigam pela herança"
diz um autor do tempo. Os que vivem sob o mesmo teto cultivam o mesmo campo e se aquecem no mesmo fogo. Ou, na linguagem do tempo, os que repartem o pão e a taça sabem que podem contar uns com os outros e que, na necessidade, o apoio de sua mesnie não faltará. A união aqui é, com efeito, mais forte do que em qualquer outro grupo, pois é baseada nos laços incontestáveis do parentesco e do sangue, apoiando-se numa comunhão de interesses não menos visível e evidente. O autor do verso citado acima, Etienne de Fougères, protesta no seu Livre des Manières contra o nepotismo de certos bispos; no entanto ele mesmo reconhece que os bispos fazem bem de se cercar de seus parentes «se eles são competentes», pois, diz ele, nunca se tem certeza da fidelidade dos estrangeiros, enquanto que os seus, pelo menos, não lhe trairão.
Dividi-se assim as alegrias e as tristezas. Recolhe-se à casa os filhos dos que faleceram ou que passam necessidade, e numerosos familiares se levantam para vingar um de seus membros que tenha sido insultado. O direito à guerra privada, reconhecido durante boa parte da Idade Média, é apenas a expressão desta solidariedade familiar. Ele correspondia, na origem, a uma necessidade: quando o poder central não tinha força, o indivíduo só podia contar com a ajuda da mesnie para se defender, e, durante toda a época das invasões bárbaras, ele estaria abandonado, se estivesse só, a toda espécie de perigos e misérias. Para viver era necessário se defender, se agrupar — e qual grupo podia valer mais que uma família firmemente unida?
A união familiar, expressa em caso de necessidade pelo socorro das armas, resolvia então o difícil problema da segurança pessoal e dos domínios. Em certas províncias, particularmente no norte da França, o habitat traduz este sentimento de união: a principal peça da casa é a sala; ela preside, com sua vasta lareira, às reuniões de família, a sala onde se reúnem para as refeições, para as festas de casamento ou aniversário e também para velar os mortos; é o hall do costume anglo-saxão, pois a Inglaterra teve, na Idade Média, costumes semelhantes aos franceses, permanecendo fiel a eles em muitos pontos.
Essa comunidade de bens e de afeição necessita de um administrador. Quem assume este cargo é, naturalmente, o pai de família. Mas ele não é um chefe absoluto e pessoal, como no direito romano, ele é mais um gerente: gerente responsável, diretamente interessado na prosperidade da casa, mas que cumpre um dever mais do que exerce um direito. Este encargo consiste principalmente em proteger os seres indefesos, como as mulheres, as crianças e os que trabalham em sua casa, vivendo sob o mesmo teto e assegurar a gestão do patrimônio; mas ele não é considerado como um mestre vitalício nem como o proprietário dos domínios. Se ele goza dos bens patrimoniais, só o faz como usufruto: como ele o recebeu de seus ancestrais, assim deverá transmiti-lo aos que, por nascimento, deverão lhe suceder. O verdadeiro proprietário é a família, não o indivíduo.
Se é verdade que ele possui toda a autoridade necessária para suas funções, ele está longe de possuir sobre sua mulher e seus filhos este poder ilimitado que lhe concedia o direito romano. Sua mulher colabora na administração da comunidade e na educação dos filhos; o marido gerencia os bens que ela possua em próprio porque ele é considerado mais capaz do que ela para levá-lo à prosperidade, o que não se consegue sem esforço e trabalho; mas quando, por alguma razão, ele deve se ausentar, sua mulher retoma em mãos esta gestão sem o mínimo obstáculo e sem qualquer autorização. Mantém-se tão acesa a lembrança da origem de sua fortuna que, a mulher morrendo sem filhos, seus bens pessoais voltam integralmente à sua família; nenhum contrato pode se opor a isso, as coisas acontecem assim naturalmente.
O pai é o protetor, guarda e mestre das crianças. Sua autoridade paternal termina com a maioridade, a qual chega muito cedo: quase sempre com quatorze anos para os que não são nobres e, para estes últimos, varia entre quatorze e vinte anos, pois os nobres tinham a obrigação de defender o feudo com um serviço mais ativo, o que exigia mais força e experiência. Os reis de França eram considerados maiores com quatorze ou quinze anos, e foi com esta idade que Felipe-Augusto atacava chefiando seus soldados. Uma vez maior de idade, o jovem continua a ter a proteção dos seus e a solidariedade familiar, mas, diferentemente do que acontecia em Roma e, mais tarde, nos paises de direito escrito, ele ganhava plena liberdade de iniciativa e podia se afastar, fundar uma família, administrar seus próprios bens, como entendesse. Desde que ele saiba agir por si mesmo, nada vinha atrapalhar sua atividade; ele é seu mestre, apesar de conservar o apoio da família de onde saiu. É uma cena clássica dos romances de cavalaria, ver o filho, assim que é capaz de pegar em armas e de usar armadura, deixar a casa paterna para correr o mundo ou para servir ao suserano.
A noção familiar, assim entendida, tem uma base material: o bem de família: bem fundiário em geral, pois a terra constitui, no início da Idade Média, a única fonte de riqueza, permanecendo em seguida como o bem estável por excelência. «Herança não se pode mover, mas os móveis podem desaparecer», dizia-se então. Este bem familiar, seja ele as terras de um servo ou os domínios senhoriais, permanece sempre propriedade da linhagem. Ele é impenhorável e inalienável; as dificuldades acidentais da família não podem prejudicá-lo. Ninguém pode arrancá-lo e a família não tem o direito de vendê-lo ou de trocá-lo.
Com a morte do pai, este bem de família passa aos herdeiros diretos. Tratando-se de um feudo nobre, o mais velho fica com quase tudo, pois é preciso um homem, e um homem amadurecido pela experiência, para manter e defender os domínios; esta é a razão do direito de primogenitura, consagrado pela maioria dos costumes. Para os bens dos que não são nobres, o uso varia de acordo com a província: às vezes a herança é dividida, mas em geral é o filho mais velho que sucede. Lembremos que até aqui só falamos da herança principal, do bem de família; os outros são, segundo as necessidades, divididos pelos filhos mais moços, mas é ao mais velho que cabe a casa sede, com extensões de terra suficientes para que possa viver, ele e sua família. E é justo, pois quase sempre é o filho mais velho quem ajudou o pai, sendo aquele que, depois do pai, mais contribuiu para a manutenção e defesa do patrimônio. Em algumas províncias, como na Hainaut, na Artois, na Picardia e em partes da Bretanha, será o mais moço, e não o mais velho, quem sucederá ao pai como herdeiro principal, e ainda aqui, por uma razão de direito natural: em geral, o mais velho se casa primeiro e vai se estabelecer por conta própria, enquanto que o mais moço fica mais tempo com seus pais, cuidando deles em sua velhice. Este direito do mais moço mostra bem a maleabilidade e a diversidade dos costumes, que se adaptam aos hábitos familiares, seguindo as condições de existência.
De qualquer forma, o que devemos assinalar neste sistema de herança dos bens, é que eles passam a um herdeiro único, o qual é designado pelo sangue. «Não há herança por testamento», diz-se em direito consuetudinário (dos costumes). Na transmissão do bem familiar a vontade do testamentário não interfere. Na morte de um pai de família, seu sucessor natural entra de pleno direito em possessão do patrimônio: «Le mort saisit le vif» , dizia-se ainda na linguagem medieval, que possuía o segredo das expressões marcantes. É a morte do pai que dá ao sucessor seu título de propriedade, que o põe em saisine, ou seja, em possessão legal da herança, do uso de sua terra; o homem de leis não tem nada a fazer aí, como acontece hoje. Se os costumes variam segundo o lugar, tornando herdeiro natural, aqui ao mais velho, lá ao mais moço; se a maneira como sobrinhos e sobrinhas podem pretender à sucessão quando falta herdeiro direto varia segundo a província, ao menos uma regra é constante: só se recebe herança em virtude dos laços naturais que lhe unem ao defunto. Isto quando se trata de bens imóveis; os testamentos só existem para os bens móveis ou para as terras adquiridas durante a vida e que não fazem parte do bem de família. Quando o herdeiro natural é notoriamente conhecido como indigno de seu encargo, ou quando não tem cabeça para administrar um domínio, admite-se certas ponderações. Mas, em geral, a vontade humana não interfere contra a ordem natural das coisas. Não se faz instituição de um herdeiro, dizem os juristas consuetudinários. Neste sentido se diz ainda, quando se fala da sucessão real: «Le roi est mort, vive le roi — o rei morreu, viva o rei». Não há nem interrupção nem vacância possível quando só a hereditariedade designa o sucessor. Assim, a gestão do bem de família acha-se sempre assegurada. Todos os costumes visam a não deixar que se enfraqueça o patrimônio. Por isso nunca havia mais de um herdeiro, pelo menos para os feudos nobres. Temia-se a divisão que tira da terra sua capacidade de gerar bens; a divisão sempre provocou discussões e processos, atrapalhando o cultivador e bloqueando o progresso material, pois para que o camponês aproveite dos progressos e melhorias trazidas pela ciência ou pelo próprio trabalho, é necessário um empreendimento de certa importância, capaz inclusive de suportar os prejuízos parciais, e de qualquer forma, oferecer recursos variados. O grande domínio, como existia na feudalidade, permitia uma exploração eficiente da terra, deixando-se periodicamente uma parte em descanso, dando-lhe tempo de se renovar, e variando as culturas e mantendo-se entre elas proporção harmoniosa. Assim, durante a Idade Média, a vida rural foi extraordinariamente ativa, e muitas culturas foram então introduzidas na França.
Isto é devido, em boa parte, às facilidades que o sistema rural da época oferecia ao espírito de iniciativa de nossa raça. O camponês desta época não é nem um retardatário nem um acostumado. A unidade, a estabilidade do domínio eram garantias para o futuro como para o presente, porque favoreciam a continuidade do esforço familiar. Hoje, quando se está diante de vários herdeiros, desmembra-se os fundos e realiza-se diversas negociações para que um deles possa retomar a empresa paternal. A exploração da empresa cessa com o indivíduo. Ora, o indivíduo passa e o lar permanece. Na Idade Média havia a tendência a permanecer. Se existe uma palavra significativa na terminologia medieval ela é: manoir (casa), lugar onde se permanece, manere em latim – o nó que amarra a linhagem, o teto que abriga seus membros, passados e presentes, e que permite às gerações de sobreviver pacificamente.
Outro bem característico é a medida agrária chamada manse: extensão de terra suficiente para que uma família possa se fixar e viver. Ela variava naturalmente segundo as regiões: na Normandia ou na Gascogne de terras férteis um pequeno sítio de terras produz mais ao cultivador que vastas terras da Bretanha ou do Forez; a manse tem um valor variável de acordo com o clima, qualidade do solo e condições de existência. É uma medida empírica e essencialmente familiar, não individual. Ela resume perfeitamente a característica mais marcante da sociedade medieval.
Assegurar para a família uma base fixa, firmá-la no solo, como que criando raízes, frutificá-la e perpetuá-la, esta é a finalidade de nossos antigos. Se é possível fazer negócios com as riquezas móveis, dispô-las em testamento, é que elas são essencialmente cambiáveis e pouco estáveis; ao contrário, o bem fundiário, propriedade familiar, é inalienável. O homem é apenas seu protetor, tem dela o usufruto; o verdadeiro proprietário é a linhagem.
São muitos os costumes medievais que vêm desta preocupação de proteger o bem de família. Quando faltam herdeiros diretos, os bens de origem paterna voltam à família do pai, e os bens de origem materna voltam à família da mãe, enquanto que em direito romano só era reconhecido o laço do lado masculino. Essa divisão era chamada fente (fenda), que dividia pelas origens os bens de uma família extinta. Também a chamada retração de linhagem dava aos parentes afastados a precedência, quando um domínio era vendido. A guarda de uma criança órfã era também organizada por uma legislação familiar. A tutela era exercida por toda a família, enquanto que o grau de parentesco designava naturalmente aquele que devia administrar os bens da criança, sendo assim seu tutor. O atual Conselho de família é o que restou do costume medieval sobre transações dos feudos e da guarda das crianças.
Aliás, a Idade Média tem sempre grande preocupação em respeitar o desenrolar natural das coisas, sem criar rupturas no caminho do bem de família. Quando os representantes de uma família morrem sem herdeiros antes de se pensar em devolver os bens às respectivas famílias de origem, procura-se os parentes afastados, primos, sobrinhos netos: «Bens de família não voltam atrás». Isso vem do desejo de se respeitar a ordem normal da vida, que se transmite do mais velho para o mais moço, sem voltar atrás: os rios não voltam para sua fonte, assim os elementos da vida devem alimentar os representantes da juventude, do futuro. É aliás mais uma garantia para o bem da linhagem quando ele vai necessariamente para os mais moços, mais ativos e capazes de frutificá-los por mais tempo.
De qualquer forma, mesmo fora da comunidade tácita, a família, considerada no seu prolongamento através das gerações, é o verdadeiro proprietário do bem patrimonial. O pai de família que recebeu este bem de seus ancestrais, deve contas aos seus descendentes; que ele seja servo ou senhor, ele nunca é o dono absoluto, tendo ainda o dever de defender, de proteger e de melhorar a sorte de todos, seres e coisas, dos quais ele foi constituído guarda natural.
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E assim se formou a França, obra de milhares de famílias, obstinadamente fixadas ao solo, no tempo e no espaço. Francos, Burgondos, Normandos, Visigodos, todos estes povos errantes cuja massa instável faz da Alta Idade Média um caos tão impressionante, formam, a partir do século X, uma nação, solidamente ligada à sua terra, unida por laços mais fortes que qualquer federação conhecida dos homens. O esforço renovado destas famílias microscópicas havia originado uma vasta família, um macrocosmo, cuja linhagem capetiana, que conduziu gloriosamente o destino da França, de pai para filho, durante mais de três séculos, simboliza maravilhosamente a dignidade. Seguramente trata-se dos mais belos espetáculos oferecidos pela História, esta família se sucedendo como nossos chefes, em linha direta, sem interrupção ou quedas, durante mais de trezentos anos, um tempo igual ao decorrido entre a coroação de Henrique IV e a guerra de 1940...
Mas o que devemos compreender é que a história dos capetianos diretos é apenas a história de uma família francesa entre milhares de outras. Esta vitalidade, esta persistência sobre nosso solo, está presente em todos os lares de França de modo semelhante, salvo acidentes ou acasos inevitáveis na existência. A Idade Média, saída da incerteza e do desespero, da guerra e das invasões, foi uma época de estabilidade, de permanência, no sentido etimológico do termo.
Foram suas instituições familiares, como estão expostas no nosso direito consuetudinário, que proporcionaram esta estabilidade. Elas conciliam o máximo de independência individual e o máximo de segurança. Cada indivíduo encontra em sua casa a ajuda matéria, nos laços familiares a proteção moral de que pode necessitar; ao mesmo tempo, desde que ele sabe se cuidar ele está livre para desenvolver sua iniciativa, fazer sua vida: nada contraria a expansão de sua personalidade. Mesmo os laços que o ligam ao lar paterno, a seu passado, a suas tradições, nunca serão obstáculos. A vida recomeça para ele como que por inteiro, assim como, biologicamente, ela é nova e inteira para um ser que vem ao mundo – ela é como a experiência pessoal, tesouro incomunicável que cada um deve construir para si e que só tem valor na medida em que nos é própria.
É evidente que tal concepção da família basta para dar todo um dinamismo e solidez a uma nação. A aventura de Roberto Guiscard e seus irmãos, mais moços de uma família normanda muito pobre e muito numerosa, que emigra e chega a ser o rei da Sicília, fundando aí uma dinastia poderosa, é tipicamente uma história medieval, feita toda de coragem, de sentimentos familiares e de fecundidade. O direito consuetudinário, que fez a força de nosso país, se opunha diretamente, neste ponto, ao direito romano, no qual a coesão da família só se mantém pela autoridade do chefe, enquanto que todos os seus membros lhe são submissos por toda a vida, através de rigorosa disciplina: concepção militar, estatal, baseada numa ideologia de legistas e funcionários públicos, e não no direito natural. A família nórdica já foi comparada a uma colméia que enxameia periodicamente, multiplicando-se e renovando as áreas de floração, enquanto que a família romana seria uma colméia que nunca enxameasse. A família forjada pelos costumes formava pioneiros e homens empreendedores, mas a família romana formava militares, administradores e funcionários.
É curioso seguir ao longo dos séculos a história de povos formados por diferentes disciplinas para constatar os diferentes resultados obtidos. A expansão romana foi militar, política e não étnica; os romanos conquistaram seu império pelas armas e o conservaram por seus burocratas; este império só se manteve enquanto soldados e funcionários puderam vigiá-lo facilmente. Mas a desproporção entre as fronteiras e a centralização do poder, finalidade ideal e conseqüência inevitável do direito romano, só fazia aumentar: o império romano desfazia-se sozinho, devido às suas próprias instituições, quando a força das invasões bárbaras veio lhe dar o golpe de misericórdia.
Por outro lado temos o exemplo das raças anglo-saxãs. Seus costumes familiares eram idênticos aos nossos durante toda a Idade Média, com a diferença que eles os conservaram. Isso explica, sem dúvida, sua prodigiosa expansão pelo mundo. O que forma um império são as ondas de exploradores, pioneiros, mercadores, aventureiros que tudo arriscavam, deixando seus lares para tentar fortuna, sem esquecer sua terra natal e as tradições de seus pais.
Já os países germânicos, que nos forneceram grande parte dos costumes adotados na Idade Média, impuseram-se desde cedo o direito romano. Seus imperadores quiseram retomar as tradições do Império do Ocidente, e julgaram que para unificar as vastas terras a eles submissas o direito romano lhes dava um bom instrumento de centralização. Desde o fim do século XIV ele era a lei comum do Santo Império , enquanto que na França, por exemplo, ele só será ensinado na Universidade de Paris a partir de 1679. Isso explica por quê a expansão germânica foi mais militar do que étnica.
Enquanto isso, a França era construída sobre o direito consuetudinário. É verdade que costuma-se falar do sul do Loire e do vale do Rhône como região de direito escrito, ou seja, de direito romano, mas isso quer dizer que os costumes destas províncias se inspiravam na lei romana, não que o código Justiniano estivesse aí em vigor. Durante toda a Idade Média a França conservou intactas seus costumes familiares, suas tradições domésticas. Somente a partir do século XVI que nossas instituições, pela influência de legistas, evoluem num sentido cada vez mais «latino». É uma transformação que se realiza lentamente, aparecendo no início em pequenas modificações: a maioridade passa aos vinte e cinco anos, como na Roma antiga, onde a criança, mantendo em relação a seu pai perpétua menoridade, não sofria maiores inconvenientes se a maioridade civil viesse tarde.
Ao casamento, considerado até então como sacramento, como adesão de duas vontades livres para a realização de suas finalidades, acrescenta-se a noção de contrato, acordo puramente humano, baseado em estipulações materiais. A família francesa passa a se modelar sobre um tipo estatal que ela nunca tinha conhecido, e assim como o pai de família vai concentrar em suas mãos todo o poder familiar, assim também o Estado caminha para uma Monarquia absoluta. Apesar das aparências, a Revolução Francesa (1789) não foi um começo, mas um fim de linha: resultado da evolução de dois ou três séculos, ela representa o estabelecimento definitivo em nosso meio da lei romana, em prejuízo dos costumes; Napoleão só fez consolidar sua obra instituindo o Código Civil e organizando o exército, o ensino, a nação inteira, pelo ideal de funcionários da Roma antiga.
Podemos, além disso, perguntar se o direito romano, apesar de todos os seus méritos, convinha ao gênio próprio de nossa raça, ao caráter do nosso solo. Este conjunto de leis, todo ele forjado por militares e legistas, esta criação doutrinária, teórica, rígida, podia ela ser colocada no lugar de nossos costumes, elaborados pela experiência de gerações lentamente moldadas na medida de nossas necessidades? – Nossos costumes que eram apenas nossa educação, constatada e formulada juridicamente, os usos de cada um, ou melhor, de cada grupo ao qual cada um pertencia. O direito romano fora concebido para um Estado urbano, não para um país rural. Falar da Antigüidade é lembrar Roma ou Bizâncio; para relembrar a França medieval não falamos de Paris, mas sim de Île-de-France, nem de Bordéus, mas da Guyanna, nem de Rouen, mas da Normandia. Só podemos considera-la em suas províncias de solo fértil, do bom trigo e bom vinho. É significativo ver, na Revolução Francesa, aquele que era o manant (o permanente) passar a ser o cidadão: palavra que nos evoca outra — cidade. É coerente até, visto que a cidade vai passar a ser a potência política, logo a principal potência, pois, tendo desaparecido o costume, tudo devia depender das leis. As novas divisões administrativas da França, seus departamentos, todos eles concebidos em volta de uma grande cidade, sem considerar o tipo de solo dos campos adjacentes, manifesta bem esta evolução do estado de espírito.
A vida familiar, a partir da Revolução, estará tão enfraquecida que verá se estabelecer instituições tais como o divórcio, a alienação do patrimônio ou as leis modernas de herança. As liberdades privadas, tão defendidas outrora, desapareceram diante de uma concepção de um Estado centralizado sobre o modelo romano. Talvez devêssemos procurar aí a origem de problemas que apareceram mais tarde com tanta força: problemas da infância, da educação, da família, da natalidade — que não existiam na Idade Média porque a família era então uma realidade, com base material e moral , e com as liberdades necessárias para sua existência.
Lumières du Moyen-Age, Editions Grasset, Paris, 1944, cap.1.
Tradução de Permanência)