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Disparates e contradições do tempo

 

O mundo freqüentemente pretende nos insinuar como boa, até como excelente, a filosofia do fato consumado, pela qual, graças à ação dissolvente ou lubrificante do hábito e da repetição, passamos a considerar com naturalidade aquela mesma coisa que nos provocaria gritos de repulsa ou de susto se não fosse apresentada de repente, nua e crua. Vejam, por exemplo, o comunismo. Querem que o aceitemos, pela simples razão de estar aí, diante de nós, os cronistas e pensadores bem inseridos no artigo do dia que a História lhes inculca, uma ausência de sensibilidade, uma ausência de reação, sob pena de sermos apontados como reacionários. O sr. Foster Dulles era um reacionário porque continuava a ver no comunismo um mal, e não um simples fato histórico.
 
 
Por outro lado, a mesma História que oficializa o comunismo e que apresenta como coisa natural a cortina de ferro, e outros fenômenos semelhantes, coloca no banco dos réus um conjunto de fatos que durante muitos anos foram considerados tão simples e naturais como o ato de beber água ou comer pão. Refiro-me ao colonialismo. Está em moda, ao mesmo tempo, ser benevolente, progressista em relação ao comunismo e intolerante em relação ao colonialismo. Um curioso exemplo desse manequim intelectual nos é dado pelo último volume de “Histoire Génerale des Civilisations” editada pelas Presses Universitaires de France, e dirigida por Maurice Crouzet, que neste último tomo, relativo à época contemporânea, é também o principal redator. No capítulo dedicado à revolta dos povos dominados pelas potências ocidentais, que ocorreu depois da guerra, o autor diz o seguinte: “A influência da URSS e, desde 1949, o exemplo chinês, não pode ser subestimada; a URSS, para o problema das relações entre os povos de desigual desenvolvimento econômico e cultural, achou uma solução fundada sobre a igualdade diante da lei, sobre a ausência de qualquer preconceito racial e de qualquer discriminação, e sobre uma política de rápida promoção econômica e intelectual que confia aos autóctones competentes as responsabilidades mais elevadas e visa a apagar todos os vestígios de relação de dominante a dominado; além disso, todas as vezes que surgiu diante da ONU um conflito entre as potências coloniais e as colonizadas, a URSS dá regularmente seu apoio aos povos de cor, enquanto as democracias ocidentais usam a coação e a força armada para manter os colonizados em obediência. Assim, para os povos dominados, a URSS e a China simbolizam a liberação, enquanto a democracia de tipo ocidental aparece como símbolo de dependência dos povos colonizados; as democracias liberais são as primeiras a confirmar esse juízo dos povos coloniais, porque os movimentos nacionalistas são sistematicamente denunciados como movimentos comunistas”.
 
Há nesta passagem um grosseiro erro filosófico para o qual chamo a atenção do leitor, por estar na moda e por já tê-lo encontrado em textos onde sua presença é menos justificável do que no grosso tomo redigido por um francês esquerdizante. Rata-se do emprego equívoco do termo e do conceito de liberdade. Para o autor daquela passagem, como para tantos cronistas de nossos dias, a noção de liberdade aplica-se primordialmente a nações, povos, raças, e secundariamente a pessoas. Ora, isto é um erro, e grosseiro. O conceito de liberdade, como o da inteligência, vontade, e tantos outros, se aplica propriamente e diretamente a indivíduos humanos, a pessoas; e é somente depois de bem firmada essa prioridade, que se poderá aplicar aos grupos raciais ou nacionais, o conceito analógico, derivado daquele que diz respeito aos valores realizados na pessoa humana. O que precisa ser liberado é o Homem e não o bloco árabe ou a raça amarela. Se a libertação de algum grupo, em dada conjuntura histórica, vem servir o ideal último de elevação humana e de mais ampla liberdade, entende-se que tal emancipação seja ardentemente desejada por quem tiver em alta estima os valores humanos e pessoais. Mas não se entende que um regime escravizador de seus próprios habitantes seja apontado como libertador de povos.
 
Além disso, cumpre notar um outro erro filosófico que também se insinua nas proposições do tipo daquela que estamos analisando, e que consiste em tomar um povo, uma nação, como uma forma substancial tão definida e tão bem arrematada como a forma de um gato ou de um homem. Fala-se hoje, nos meios nacionalistas, como se as nações fossem entidades orgânicas, monstros dotados de certa imanência vital, ou até como se fossem pessoas. E essa hipostasiação dos grupos nacionais chega freqüentemente ao nível das conversas em que se ouvem em salão de barbeiro, e em que o comentarista de política internacional diz coisas assim: “Então a Inglaterra virou-se para a França e disse...”. Há um erro filosófico semelhante a esse primarismo em quase todas as proposições em que se encontra a famosa fórmula de autodeterminação dos povos. Mas onde é que começa e onde é que acaba o contorno de um povo? E onde é que começa o monstro terrível que é o OUTRO povo? Se respeitamos o critério histórico que aponta uma unidade nacional como um fato da conjuntura, se por exemplo Brasil é o que a história fez que o Brasil fosse, então não vejo porque não seguir o mesmo critério quietista que reconheceria o direito da Inglaterra sobre as Índias.
 
Também não podemos definir uma nação em termos de raça sem ficarmos obrigados a denunciar quase todas as unidades políticas do mundo presente. Uma nação não é uma natureza, do mesmo modo que é um animal ou um homem. É uma forma acidental. É uma unidade política criada por um consenso, por uma unidade interna, e portanto definida em última análise em termos de consciência pessoal e de dimensões humanas. A independência de uma nação só deve ser desejada ou definida por homens sensatos em termos da independência de seus habitantes e do estado de maturidade de um unânime desejo interno dessa independência nacional. Vê-se pois, que a famosa autodeterminação dos povos só forma sentido e só pode ser pronunciada por quem crê na autodeterminação do homem, por quem preza a vertical do espírito, por quem professa a essencial liberdade da alma humana. E por aí se percebe o ridículo daquela passagem do historiador francês que, com a maior seriedade do mundo, fala na ação libertadora da URSS.
 
Há naquela passagem citada, e nas congêneres, uma curiosa contradição, além dos erros filosóficos já apontados: a URSS é elogiada em termos de justiça, isto é, em termos que significam a mais categórica e formal reprovação de toda a sua doutrina. Eu, se fosse comunista, ficaria furioso com que viesse atribuir-me intenções de justiça ou aspiração de liberdade. O elogio tem suas regras sutis. Quem quer elogiar o salteador deve gabar a destreza de sua mão e sobretudo a ausência de qualquer escrúpulo. Quem deseja agradar o elegante deve escrever essas coisas que vêm nas colunas sociais e que teriam gosto de desaforo para quem não estiver bem instalado nas regras da boa vida. Os seguidores ou simpatizantes desse esquerdismo que pensam ser a regra de ouro do futuro não parecem perceber que o materialismo ateu deve ser acompanhado de certas conseqüências duras. Em um ensaio sobre o humanismo de seu existencialismo, Sartre queixava-se, e com muita razão, do ateísmo burguês que continua a usar as mesmas categorias verbais usadas no tempo em que ainda estava vivo o Criador de todas as coisas. É quase com piedade, quase graças a Deus, que esses ateus são ateus. Assim também são esses comentaristas que não gostavam de Foster Dulles, que não gostam de Adenauer e que certamente não gostaram das lágrimas de Eisenhower. A admiração deles está volta para o Oriente, de onde eles pensam que está vindo o mundo de amanhã. Olham enternecidamente para o casaco de Mao-Tse-Tung, que lá para eles deve ter força de símbolo, e símbolo de esperança.
 
E é nessa viscosidade intelectual que temos de viver e lutar, se quisermos praticar a teimosia de resistir, de defender os valores fundamentais que dão sentido a todas as outras palavras e frases com que se enchem as colunas de jornais e as páginas de livros.
 

 

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