Muitas vezes aludimos à crise que envenenou o Ocidente cristão, e que hoje se tornou universal graças ao movimento histórico da ocidentalização que, por paradoxo, se volta contra o Ocidente. Mais de uma vez tentamos percorrer os marcos históricos e as correntes de idéias que animaram a chamada civilização moderna e que agora deságuam pelo imenso estuário de mil disparates num oceano de sombrias perplexidades. A Renascença e a Reforma, debaixo de seus aspectos progressistas, e a par dos reais progressos trazidos pelas ciências da natureza, que asseguraram ao homem o conhecimento e o domínio das coisas exteriores e inferiores, foi o primeiro degrau do itinerário em que o homem se extravia de si mesmo, e para ganhar o mundo hipoteca a própria alma. Depois, na Revolução Francesa temos outro marco onde começa a grande impostura moderna das histórias mal contadas. Poderíamos dizer, embora nos repugne o neologismo, que a história recente é uma sucessão de estórias mal contadas. Num processo de sucessivo empulhamento que começou nos primórdios da Revolução Francesa, com as famosas societés de pensée denunciadas por Augustin Cauchin, seguiu-se a história do socialismo, a ascensão do liberalismo, a Revolução Russa, e as duas grandes guerras. Até hoje se conta a história da 2ª Guerra como se a Rússia tivesse desempenhado nela papel decisivo, papel de vencedor. Agora temos a super-impostura do progressismo “católico”, como uma síntese de todos os erros cometidos pela humanidade nestes últimos séculos. E qual é a direção geral, o efeito principal desses movimentos históricos?
Ninguém negará, evidentemente, a ocorrência de um progresso de que se gloria a moderna civilização: o homem inventou o telégrafo, a máquina a vapor, os computadores eletrônicos, o raio laser e finalmente chegou à Lua. Mas dificilmente se contestará outra evidência: o homem se distancia do humano, do espiritual, do sagrado. Os imbecis, evidentemente, pensarão que o homem só se reaproximará do humano na medida em que se afastar do espiritual e do sagrado.
Em nossa reta doutrina nós sabemos que o homem, de dois modos e em dois níveis, transcende ao mundo físico e à história. Por sua natureza racional, o homem possui uma dimensão que ultrapassa todo o universo; por sua elevação à ordem da graça e por sua ordenação à glória da visão de Deus três vezes santo, o homem ultrapassa o próprio nível de sua natural humanidade.
Ora, o movimento histórico a que nos referimos parece ter o objetivo principal de negar e de destruir esses títulos de nobreza que nos vêm da razão e da graça de Deus.
Nas correntes filosóficas nascidas da mesma raiz nominalista, temos o chamado idealismo que desnatura o conhecimento, deixando o espírito humano encerrado em si mesmo; e o chamado empirismo que só abre para o exterior a janela da experiência, do fenômeno e da medida. Progridem as ciências físicas com essa mutilação; regridem as ciências propriamente humanas, que só podem viver centradas no primado do espiritual, que o empirismo resolutamente desconhece.
Nessa direção será tanto mais avançado, tanto mais evoluído o homem quanto mais materializado se mostrar.
Pervertidas as ciências humanas, por falta de centro e de referência a Deus, pervertem-se as tentativas de convivência política e social.
No mundo de hoje temos os dois volumosos resultados de tal crise: de um lado o liberalismo dissolvente da dignidade humana, por ceticismo, tolerância e capitulação; de outro lado o totalitarismo socialista que degrada o homem por achatamento e escravização.
* * *
Não diríamos que os homens estão sempre em guerra com os homens, como disse o perverso Hobbes, mas diremos que, a partir da grande apostasia histórica, os homens estão em guerra contra o homem. Dispensamos a maiúscula, mas não dispensamos a referência à essência, à natureza do homem. Há na história dos últimos séculos uma visível intenção de rebaixar e degradar o bizarro ser que ousou crer-se a imagem e semelhança de Deus.
A Igreja lutou tenazmente contra as duas correntes corruptoras. Tornou-se hoje um lugar comum nas rodas progressistas dizer que a Igreja, antes de sua comunização, nada fez pelo mundo, pela sociedade e pelo homem. Diante do insucesso — critério que bastaria para ridicularizar o Cristo na hora da Cruz —, a primeira idéia que ocorre aos católicos progressistas é a de culpar a Igreja de ineficiência, e não a de argüir o mundo de indocilidade.
O fato bruto é este: a Igreja, sobretudo no tumultuoso século XIX, não se cansou de apontar os erros do liberalismo, do modernismo e do socialismo. Ora, o liberalismo cobriu a metade do planeta, enquanto a outra metade vestiu-se de socialismo; e o progressismo católico está aí. Logo... a Igreja falhou. E se falhou é porque errou; é porque não havia compreendido o mundo.
Agora estamos diante da obra-prima daquelas correntes históricas que trabalharam juntas para achatar a dignidade do homem. Estamos diante da depravação do corpo humano erigida em “momento histórico”. Cobre o mundo inteiro, nos seus hemisférios antagônicos, mas nisto concertados, a maré de pornorréia que pretende amortalhar a última veleidade de pureza inspirada pela idéia da Encarnação do Verbo, e constantemente iluminada pela figura da Senhora que apareceu às crianças de Portugal e da França no seu manto de Rainha e de Imaculada.
A Igreja afrontou todos os ridículos, todas as finesses dos intelectuais que queriam ver no seu zelo germes de neo-maniqueísmo. Lembremos a voz de Pio XI que ainda trovejava contra o impudor. Em 1930, ontem!, o Papa se preocupava com os decotes e com o comprimento das mangas. E como nós todos nos rimos da pruderie do bom velhinho! E como evoluímos desde então! Pio XII, já com melancolia gritava: “Ó mães cristãs, se soubésseis o porvir de angústia, de perigos e vergonhas que preparais para vossos filhos e filhas, acostumando-os a viver tão despidos...”. Em vão gritou. Como assinala Luce-Quinette, “Itineraires” n° 139, outro poder, outra Autoridade do mundo dirige os costumes. E quando essa Autoridade comandou: “joelho!”, um bilhão de joelhos se descobriram; e quando a Autoridade decretou: “coxas!”, um bilhão de coxas se mostraram com docilidade, e nas mais variadas circunstâncias. Tudo isto parece pueril, dirão os inteligentíssimos progressistas que desaprenderam tudo o que o Cristianismo nos ensinou sobre a alma humana. E atrás dessa docilidade bocó com que todas as mulheres do mundo se afastaram do seu modelo, do figurino da única “grande Dame”, veio o dilúvio de impurezas, a maré de pornorréia que hoje nos afoga. Em Fátima, a Virgem também trovejou como trovejaram ex-catedra os papas. E eis o que Jacinta nos deixou poucos dias antes de morrer: “Os pecados que atiram no Inferno o maior número de almas são os da impureza. O mundo lançará modas que ofenderão Nosso Senhor...”.
Dirão os evoluídos que Nosso Senhor não irá perder tempo em tais futilidades, mas acontece que Ele tem uma estima infinita por esse nosso machucado e tão mal servido Corpo. Ele levou para o Céu o frêmito de divina alegria que sentiu no seio de sua Mãe, cumprindo a profecia: ela, a Sabedoria de Deus, se alegrará no meio dos homens.
E nós, herdeiros desse júbilo divino, devemos compreender que a dignidade humana mais depressa começa pelo decoro da veste do que pela conquista da Lua. Não compreendemos. Rejeitamos as profecias, os sermões de Cristo, os conselhos dos Apóstolos, dos Papas, e deixamos invadir o mundo a maré de pornorréia que já começa a inquietar os mais adormecidos católicos.
(...) A lepra inundou os costumes, envenenou os espetáculos públicos, ganhou as instituições oficiais, e conquistou lugar de honra nos institutos católicos. Sob o eufemismo de educação sexual o que se faz é erotização precoce e infinitamente perversa. Degradam-se as mulheres, maculam-se as consciências infantis, e com essas duas pontas de lança da ofensiva dos infernos, não se vê como será possível a reconquista da dignidade do Homem. Será sempre possível, com a graça de Deus, mas tememos muito que somente através de sofrimentos inconcebíveis poderá a humanidade lavar-se em um novo dilúvio. O ponto a que chegamos é sinistro: eles começam pelas crianças. Os novos pedagogos que nas Américas e na Europa querem libertar o sexo do universo moral, começam pela dessensibilização dos inocentes. Esse horror tem valia apologética, por tornar menos repulsiva a idéia de Inferno. Por aí, por um primeiro temor, por uma leve e inicial desconfiança talvez comece a onda de repressão. E nós podemos meditar nestas palavras que não passarão com as modas:
“O que escandalizar porém a um destes que crê em Mim, melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço a pedra da mó e que lançassem no fundo do mar”. (Mateus, XVIII, 6).
Editorial Permanência, n°18, Ano III, Março de 1970.