Category: Santo Tomás de Aquino
112 — Como foi dito, o Verbo de Deus é o Filho de Deus, como o verbo (mental) do homem é concebido pela inteligência. Mas algumas vezes o verbo (mental) do homem fica como morto, quando alguém pensa em realizar alguma coisa, mas a vontade de executa-la não se manifesta. Assim também quando alguém crê e não faz as obras, a sua fé pode ser chamada de morta, conforme se lê na carta de São Tiago: “Como o corpo sem alma é morto, a fé sem as obras é morta” (Tiag. 2, 26).
(Infra, q. 65, a. 1; De Virtut., q. 5, a. 2; Quodl. XII, q. 15, a. 1; VI Ethic., lect X).
O quinto discute-se assim. — Parece que a virtude intelectual pode existir sem a moral.
1. — Pois, a perfeição do que vem antes não depende da do que vem depois. Ora, a razão é anterior ao apetite sensitivo e o move. Logo, a virtude intelectual, que é a perfeição da razão, não depende da moral, que é a perfeição da parte apetitiva. Logo, pode existir sem ela.
2. Demais. — Os atos morais são matéria da prudência, assim como o que podemos produzir constitui a matéria da arte. Ora, esta pode existir sem a matéria própria, como o ferreiro pode existir sem o ferro. Logo, também a prudência o pode sem as virtudes morais, que contudo, entre todas as virtudes intelectuais, é a mais unida com as morais.
3. Demais. — A prudência é uma virtude que nos faz aconselhar retamente, como já se disse. Ora, muitos aconselham retamente, que entretanto são desprovidos das virtudes morais. Logo, a prudência pode existir sem estas.
Mas, em contrário. — Querer fazer o mal opõe-se diretamente à virtude moral, mas não, a alguma virtude capaz de existir sem ela. Ora, pecar voluntariamente opõe-se à prudência, como se disse. Logo, a prudência não pode existir sem a virtude moral.
SOLUÇÃO. — Todas as virtudes intelectuais, menos a prudência, podem existir sem as virtudes morais. E a razão é que a prudência é a razão reta dos nossos atos, e não só universalmente, mas também na ordem particular a que pertencem os atos. Ora, a razão reta supõe princípios donde parta. Logo, em relação ao particular, é necessário a razão proceder de princípios, não só universais, mas também particulares. Ora, em relação aos princípios universais reguladores dos seus atos o homem se comporta retamente pelo intelecto natural dos princípios, pelo qual sabe que não deve praticar nenhum mal; ou ainda por alguma ciência prática. Isto porém, não basta para raciocinar sobre casos particulares. Pois acontece às vezes, que o princípio universal, de que agora tratamos, conhecido pelo intelecto ou pela ciência, oblitera-se num caso particular, por influência de alguma paixão. Assim, ao vencido pela concupiscência parece-lhe bem o que deseja, embora vá contra o juízo universal da razão. E portanto, assim como nos dispomos, para proceder retamente, em relação aos princípios universais, pelo intelecto natural ou pelo hábito da ciência; assim também, para procedermos retamente, em relação aos princípios particulares reguladores dos nossos atos, que são os fins, é necessário sejamos aperfeiçoados por certos hábitos, que, de certo modo, nos tornam conatural o julgamento reto do fim. E isto se dá pela virtude moral. Pois, o virtuoso julga retamente do fim da virtude, porque, tal como somos, tal se nos afigura o fim, como já se disse. Logo, a razão reta dos nossos atos, que é a prudência exige tenhamos a virtude moral.
Donde a resposta à primeira objeção. — A razão, enquanto apreensiva do fim, precede o apetite deste. Mas o apetite do fim, por sua vez, precede a razão que raciocina para escolher os meios, o que pertence à prudência, assim como, na ordem especulativa, o intelecto dos princípios é o princípio da razão raciocinante.
Resposta à terceira. — Os princípios das coisas artificiais não os julgamos nós bem ou mal, por uma disposição do nosso apetite, como julgamos dos fins, que são os princípios na ordem moral; mas os julgamos só pela consideração racional. E por isso, a arte não exige, como a prudência, a virtude, que aperfeiçoa o apetite.
Resposta à terceira. — A prudência não só aconselha mas também julga e ordena com acerto. O que não poderia ser sem a remoção dos impedimentos das paixões, corruptoras do juízo e da ordenação da prudência; e essa remoção se dá pela virtude moral.
(Infra, q. 65, a. 1; De Virtut., q. 5, a. 2; Quodl. XII, q. 15, a. 1; VI Ethic., lect. X, XI).
O quarto discute-se assim. — Parece que a virtude moral pode existir sem a intelectual.
1. — Pois, a virtude moral, como diz Túlio, é um hábito a modo de natureza, consentâneo com a razão. Ora, não é necessário a razão da natureza existir em todos os seres, só porque a natureza é consentânea com uma razão movente superior, como bem o deixam ver os seres naturais privados de razão. Logo, pode haver em nós uma virtude moral, a modo de natureza, que nos incline a nos submeter à razão, embora esta não seja perfeita pela virtude intelectual.
2. Demais. — Pela virtude intelectual conseguimos o uso perfeito da razão. Ora, dá-se às vezes que certos, em que não impera o uso da razão, são virtuosos e amados de Deus. Logo, a virtude moral pode existir sem a intelectual.
3. Demais. — A virtude moral nos inclina a agir retamente. Ora, muitos têm tal inclinação, mesmo sem o juízo da razão. Logo, as virtudes morais podem existir sem as intelectuais.
Mas, em contrário, diz Gregório, que as outras virtudes não podem de nenhum modo ser tais, sem que pratiquem prudentemente o que desejam. Ora, a prudência é uma virtude intelectual, como já se disse. Logo, as virtudes morais não podem existir sem as intelectuais.
SOLUÇÃO. — Não há dúvida que as virtudes morais podem existir sem certas virtudes intelectuais, como a sabedoria, a ciência e a arte; não o podem porém sem o intelecto e a prudência. — Assim, não podem existir sem a prudência, por ser a virtude moral um hábito eletivo, i. é, que torna boa a eleição. Ora, para esta ser boa se exigem duas condições. A primeira é haver a devida intenção do fim; e isto se dá pela virtude moral, que inclina a potência apetitiva ao bem conveniente com a razão, que é o fim devido. A segunda é que nos sirvamos retamente dos meios, o que se não pode dar senão pela razão, que aconselha retamente, no julgar e no ordenar, o que pertence à prudência e às virtudes anexas, como já dissemos. Por onde, a virtude moral não pode existir sem a prudência. — E por conseqüência, sem o intelecto. Pois, por este é que conhecemos os princípios evidentes, tanto na ordem especulativa como na operativa. Por onde, assim como a razão reta, na ordem especulativa, enquanto procede de princípios naturalmente conhecidos, pressupõe o intelecto dos princípios, assim também a prudência, que é a razão reta dos atos.
Donde a resposta à primeira objeção. — A inclinação da natureza, nos seres privados de razão, não inclui a eleição, e portanto essa inclinação não é necessariamente racional. Ao passo que a inclinação da virtude moral é eletiva e, portanto, necessita, para ser perfeita, que a razão o seja, por meio da virtude intelectual.
Resposta à segunda. — Não é necessário, no homem virtuoso, o uso da razão imperar em universal, mas só em relação ao que ele deve praticar virtuosamente. E assim o uso da razão impera em todas as pessoas virtuosas. Por onde, mesmo aqueles que parecem simples, por destituídos da astúcia mundana, podem ser prudentes, conforme aquilo da Escritura (Mt 10, 16): Sede prudentes como as serpentes, e simples como as pombas.
Resposta à terceira. — A inclinação natural para o bem da virtude é um certo começo desta, embora não seja virtude perfeita. Pois, quanto mais perfeita essa inclinação, tanto mais perigosa pode ser, se não se lhe acrescentar a razão reta, pela qual se faz a reta eleição dos meios convenientes ao fim devido; assim como um cavalo cego, que corre, tanto mais dará encontrões e se ferirá, quanto mais impetuosamente correr. E portanto, embora a virtude moral não seja a razão reta, como dizia Sócrates, também não é somente segundo a razão reta, no sentido em que inclina para o que é conforme a essa razão, como ensinavam os Platônicos; mas também é necessário seja acompanhada da razão reta, segundo Aristóteles dizia.
O terceiro discute-se assim. — Parece que a virtude humana não se divide suficientemente em moral e intelectual.
1. — Pois, a prudência é considerada meio entre a virtude moral e a intelectual, por ser enumerada entre as virtudes intelectuais; por outro lado, todos comumente a colocam entre as virtudes cardeais, que são morais, como a seguir se verá. Logo, a virtude não se divide suficiente e imediatamente em intelectual e moral.
2. Demais. — A continência, a perseverança e mesmo a potência não se incluem nas virtudes intelectuais. E nem são morais, por não constituírem um meio termo de paixões que, antes, nelas abundam. Logo, a virtude não se divide suficientemente em intelectuais e morais.
3. Demais. — A fé, a esperança e a caridade são virtudes. Mas não intelectuais, que são só as cinco seguintes: a ciência, a sabedoria, o intelecto, a prudência e a arte, como já se disse. E também não são virtudes morais, por não dizerem respeito às paixões, a que se referem principalmente as virtudes morais. Logo, as virtudes não se dividem suficientemente em intelectuais e morais.
Mas, em contrário, diz o Filósofo: há duas espécies de virtudes; uma intelectual e outra moral.
SOLUÇÃO. — A virtude humana é um hábito que aperfeiçoa o homem para obrar retamente. Ora, os atos humanos têm só dois princípios: o intelecto, ou razão, e o apetite; estes são os dois princípios motores no homem, como já se disse. Por onde, toda virtude humana há de forçosamente ser perfectiva de um desses dois princípios. Se o for do intelecto especulativo ou prático, a virtude será intelectual; e moral, se da parte apetitiva. Donde se conclui, que toda virtude humana ou é intelectual ou moral.
Donde a resposta à primeira objeção. — A prudência é essencialmente uma virtude intelectual; mas, pela sua matéria, convém com as virtudes morais, pois é a razão reta das nossas ações, como já dissemos; e portanto, se enumera entre as virtudes morais.
Resposta à segunda. — A continência e a perseverança não são perfeições da virtude apetitiva sensitiva. E isto bem o demonstra o continente e o perseverante, em quem superabundam as paixões desordenadas; e isso não se daria se o apetite sensitivo fosse aperfeiçoado por algum hábito, que o pusesse de conformidade com a razão. Pois, a continência ou perseverança é a perfeição da parte racional que se contrapõe às paixões, para esta não ser levada de vencida. É deficiente, porém da noção de virtude, porque a virtude intelectiva, que faz a razão comportar-se retamente em relação à atividade moral, pressupõe o apetite reto do fim, para poder haver-se com acerto em relação aos princípios, i. é, os fins, nos quais se baseia para raciocinar; ora, isto falta ao continente e ao perseverante. Por outro lado, também não pode ser perfeita a obra procedente das duas potências, se cada uma delas não for aperfeiçoada pelo devido hábito; assim como não pode resultar uma ação perfeita do agente principal, que se serve de um instrumento, por mais perfeito que ele seja, se o instrumento estiver mal disposto. Por onde, se o apetite sensitivo, movido pela parte racional, não for perfeito, por mais que esta última o seja, a ação conseqüente não poderá ser perfeita. E portanto, nem será virtude o princípio da ação; e por isso, a continência dos prazeres e a perseverança nos sofrimentos não são virtudes, mas algo menos que a virtude, como diz o Filósofo.
Resposta à terceira. — A fé, a esperança e a caridade são superiores às virtudes humanas; pois, são virtudes do homem enquanto participante da graça divina.
(III Sent., dist. XXIII, q. 1, a. 4, qª 2; De Virtut., q. 1, a. 12; Ethic., lect. XX).
O segundo discute-se assim. — Parece que a virtude moral não se distingue da intelectual.
1. — Pois, como diz Agostinho, a virtude é a arte de viver retamente. Ora, a arte é uma virtude intelectual. Logo, a virtude moral não difere da intelectual.
2. Demais. — Muitos incluem a ciência na definição das virtudes morais, e assim definem a perseverança como a ciência ou hábito daquilo em que devemos ou não nos deter; e a santidade, a ciência que nos torna fiéis e observantes do que é justo para com Deus (Dos afetos, obra atribuída a Andrónico). Ora, a ciência é uma virtude intelectual. Logo, a virtude moral se não deve distinguir da intelectual.
3. Demais. — Agostinho diz, que a virtude é a razão reta e perfeita. Ora, isto pertence à virtude intelectual, como já se disse claramente. Logo, a virtude moral não é distinta da intelectual.
4. Demais. — Nada se distingue do que entra na sua definição. Ora, a virtude intelectual entra na definição da virtude moral; pois, com diz o Filósofo, a virtude moral é um hábito eletivo, consistente num meio termo racional, como o sapiente o determinaria. Ora, a razão reta que determina o meio termo da virtude moral pertence à virtude intelectual, como se mostrou. Logo, a virtude moral não se distingue da intelectual.
Mas, em contrário, está o seguinte, as virtudes se determinam pela diferença que torna umas, intelectuais, outras, morais.
SOLUÇÃO. — O princípio primeiro de todas as obras humanas é a razão; e quaisquer outros princípios, que existam, dessas obras, obedecem-lhe, de certo modo, mas de maneiras diversas. Assim, certos lhe obedecem ao nuto, absolutamente, sem qualquer contradição, com p. ex., os membros do corpo, se tiverem a sua consistência natural; pois, sob o império da razão, as mãos ou os pés são levados a agir. E por isso o Filósofo diz que a alma rege o corpo com um governo despótico, i. é, como o senhor, o escravo, que não tem direito de se lhe opor. Donde vem o terem certos ensinado que todos os princípios ativos existentes no homem se comportam desse modo para com a razão. Ora, se isto fosse verdade, bastaria fosse a razão perfeita para que nós agíssemos bem; e desde que a virtude é um hábito que nos aperfeiçoa para bem agir, ela forçosamente só existiria na razão, e portanto toda virtude seria intelectual. Esta foi à opinião de Sócrates, que considerava todas as virtudes como formas da prudência, conforme já se disse; e portanto, ensinava que o homem que tem ciência não pode pecar e todos os que pecam por ignorância o fazem.
Mas esta opinião procede de uma suposição falsa. Pois, a parte apetitiva obedece à razão, não porém, absolutamente, ao seu nuto, mas com o poder de se lhe opor. Por onde, diz o Filósofo, que a razão rege a potência apetitiva com um governo político, como aquele com que governamos os filhos, que tem às vezes direito de oposição. E por isso Agostinho diz, que às vezes a inteligência precede, sem o afeto lhe obedecer, ou apenas tardamente, porque às vezes as paixões ou os hábitos da parte apetitiva podem, num caso particular, travar o uso da razão. E neste caso é de algum modo verdadeiro o dito de Sócrates, que ninguém peca com a ciência presente, contanto que esse dito se estenda ao uso da razão, numa eleição particular.
Assim pois, para agirmos retamente é necessário, não só a razão estar bem disposta pelo hábito da virtude intelectual, mas também a potência apetitiva o estar pelo hábito da virtude moral. Portanto, assim como o apetite se distingue da razão, a virtude moral se distingue da intelectual. Logo, assim como o apetite é princípio dos atos humanos enquanto participa, de certo modo, da razão, assim o hábito moral realiza a noção de virtude humana na medida em que se conforma com a razão.
Donde a resposta à primeira objeção. — Agostinho comumente toma a arte no sentido de qualquer razão reta. E assim na arte inclui também a prudência, que é a razão reta dos nossos atos, assim como a arte é a razão reta das coisas factíveis. E desde então, o seu dito, que a virtude é a arte de viver bem, convém essencialmente à prudência, e, participativamente, às outras virtudes, enquanto dirigidas pela prudência.
Resposta à segunda. — As definições aduzidas, sejam de quem forem, procedem da opinião socrática; e devem ser entendidas do modo pelo qual tratamos da arte.
E semelhante é a resposta à terceira objeção.
Resposta à quarta. — A razão reta, segundo a prudência inclui-se na definição da virtude moral, não como parte essencial desta, mas como algo de participado por todas as virtudes morais, enquanto a prudência as dirige a todas.
(III Sent., dist. XXIII, q. 1, a. 4, qª 2; I Ethic., lect. XX; II. Lect I).
O primeiro discute-se assim. — Parece que toda virtude é moral.
1. — A virtude moral tira a sua denominação da palavra mos, moris, que significa costume. Ora, podemos nos acostumar aos atos de todas as virtudes. Logo, toda virtude é moral.
2. Demais. — O Filósofo diz, que a virtude moral é um hábito eletivo consistente no meio termo racional. Ora, toda virtude é hábito eletivo, porque podemos praticar, por eleição, os atos de qualquer delas. E demais disso toda virtude consiste, de certo modo, num meio termo racional, como mais adiante claramente demonstraremos. Logo, toda virtude é moral.
3. Demais. — Túlio diz na sua Retórica, que a virtude é um hábito, ao modo da natureza, consentâneo com a razão. Ora, toda virtude humana, ordenando-se ao bem do homem, há de necessariamente ser consentânea com a razão, pois tal bem consiste em estar de acordo com a razão, com diz Dionísio. Logo, toda virtude é moral.
Mas, em contrário, o Filósofo diz: Tratando dos costumes, não dizemos que alguém é sábio ou inteligente, mas, humilde ou sóbrio. Por onde, a sabedoria e o intelecto não são morais, embora sejam virtudes, como já se disse. Logo, nem toda virtude é moral.
SOLUÇÃO. — Para resolver com evidência a questão vertente devemos considerar o que é o costume; assim poderemos saber o que é a virtude moral. Ora, a palavra costume tem duas significações. Umas vezes quer dizer modo ou rito, como no passo da Escritura (At 15, 1): Pois se vos não circuncidais segundo o rito de Moisés, não podeis ser salvos. Outros, exprime uma certa inclinação natural, ou quase natural, para fazer alguma coisa; e neste sentido atribuímos certos costumes aos brutos, como o faz a Escritura (2 Mc 11, 11): lançando-se eles com grande ímpeto sobre seus inimigos, segundo o costume dos leões, mataram-nos. E ainda o mesmo sentido aparece em outro passo, que diz (Sl 67, 7): (Deus) que faz morar os de uns costumes sem casa. E ambos estes sentidos não se distinguem, entre os latinos, verbalmente. Distinguem-se porém em grego; pois, ethos, que em latim significa costume (mos), às vezes tem a primeira longa e escrita com a letra grega η; outras, a tem breve e escrita com ε.
Ora, a virtude moral tira a sua denominação da palavra latina, mos, moris, com o sentido de inclinação natural ou quase natural a fazer alguma coisa. E desta se aproxima a outra significação, com o sentido de costume (consuetudo); pois este, de certa maneira, converte-se em natureza e torna a inclinação semelhante ao natural. Ora, é manifesto que a inclinação para o ato convém propriamente à virtude apetitiva, à qual é próprio mover todas as potências para o ato como do sobredito se colhe. E portanto nem toda virtude é considerada moral, mas só a pertencente à potência apetitiva.
Donde a resposta à primeira objeção. — A objeção procede se referente aos modos (mos) com o sentido de costume.
Resposta à segunda. — Todos os atos virtuosos podem ser praticados por eleição; mas só a virtude residente na parte apetitiva da alma é a que procede por eleição reta, pois, conforme já dissemos, eleger é ato da virtude apetitiva. Por onde, hábito eletivo, que é o princípio da eleição, é só aquele que aperfeiçoa a virtude apetitiva, embora os atos dos outros hábitos também possam entrar na esfera da eleição.
Resposta à terceira. — A natureza é o princípio do movimento, como diz Aristóteles. Ora, mover à ação é próprio da parte apetitiva. E portanto, assimilar-se à natureza, por ser consentâneo com a razão, é próprio das virtudes da potência apetitiva.
Em seguida devemos tratar das virtudes morais. E primeiro, da distinção entre elas e as virtudes intelectuais. Segundo, da distinção delas entre si, conforme a matéria própria. Terceiro, da distinção entre as principais ou cardeais e as outras.
Sobre a primeira questão cinco artigos se discutem:
(II Sent., dist. XXVII, a. 2; De Virtut., q. 1, a. 2).
O quarto discute-se assim. — Parece que não é conveniente a definição de virtude comumente dada: a virtude é uma boa qualidade da mente, pela qual vivemos retamente, de que ninguém pode usar mal, e que Deus obra em nós, sem nós.
1. — Pois, a virtude é a bondade do homem, porque torna bom quem a possui. Ora não se pode dizer que a bondade seja boa, como não se pode dizer que a brancura é branca. Logo, é inexato afirmar que a virtude é uma boa qualidade.
2. Demais. — Nenhuma diferença é mais comum que o seu gênero, pois ela é que o divide. Ora, o bem é mais comum que a qualidade, pois que se converte no ente. Logo, o bem não deve entrar na definição da virtude, como diferença da qualidade.
3. Demais. — Como diz Agostinho tudo o que não nos for comum com os brutos pertence ao espírito. Ora, também há certas virtudes das partes irracionais, como diz o Filósofo. Logo, nem toda virtude é uma boa qualidade da mente.
4. Demais. — Parece que a retidão pertence à justiça; por isso os mesmos que se chamam retos se chamam também justos. Ora, a justiça é uma espécie de virtude. Logo, é inconveniente incluir a idéia de reto na definição da virtude e dizer: pela qual vivemos retamente.
5. Demais. — Quem se ensoberbece com alguma coisa usa mal dela. Ora muitos se ensoberbecem com a virtude; pois, diz Agostinho, que a soberba lhes arma ciladas mesmo com as boas obras, para que pereçam. Logo, é falso que ninguém use mal da virtude.
6. Demais. — O homem se justifica pela virtude. Ora, Agostinho diz, comentando aquilo de João (Jo 14, 12) — e fará outras ainda maiores —: Quem te criou sem ti não te justificará sem ti. Logo, é inexato dizer que a virtude Deus a obra em nós sem nós.
Mas, em contrário, é a autoridade de Agostinho, de cujas palavras foi tirada a referida definição; e principalmente do II de lib. Arb. (C.XIX).
Solução. — Esta definição exprime perfeitamente toda a essência da virtude. Pois a essência perfeita de um ser deduz-se da reunião de todas as suas coisas. Ora, a definição de que se trata compreende todas as causas da virtude. — Assim, a causa formal da virtude, como de tudo, é deduzida do seu gênero e da diferença, quando se diz que ela é uma qualidade boa; pois, o gênero da virtude é a qualidade e a diferença, o bem. Contudo, a definição seria mais conveniente se, em lugar da qualidade, se pusesse o hábito, que é o gênero próximo. — Em seguida, a virtude não tem matéria pela qual (ex-qua) exista, nem quaisquer acidentes; mas tem matéria sobre que diz respeito (circa quam) e sobre a qual (in qua) recai, que lhe constitui o sujeito. A matéria sobre que diz respeito é o objeto da virtude, mas ela não pode entrar na referida definição da virtude, porque pelo seu objeto a virtude é especificamente determinada, e agora tratamos de uma definição em geral da virtude. E por isso põe-se o sujeito em lugar da causa material, quando se diz que a virtude é uma boa qualidade da mente. — Em terceiro lugar, o fim da virtude, que é um hábito operativo, é a obra mesma. Devemos porém notar que certos hábitos operativos — os viciosos — sempre dizem respeito ao mal; outros, ora ao bem, ora ao mal, como a opinião, que tem por objeto tanto o verdadeiro como o falso. Mas, a virtude é um hábito sempre referente ao bem. E portanto, para discernir-se a virtude dos hábitos que são sempre relativos ao mal, a definição diz — pelo qual vivemos retamente; e para discernir-se dos que dizem respeito, ora, ao mal e, ora, ao bem, diz — de que ninguém pode usar mal. — E por fim, a causa eficiente da virtude infusa, de que trata a definição, é Deus. Por isso a definição diz — que Deus obra em nós, sem nós; e se esta parte da definição fosse eliminada, o restante seria comum a todas as virtudes, tanto as adquiridas como as infusas.
Donde a resposta à primeira objeção. — O que primeiramente cai sob a apreensão do intelecto é o ser. Por isso, a tudo o que apreendemos atribuímos o ser; e por conseguinte, a unidade e a bondade, que no ser se convertem. Por onde, dizemos que a essência é ser, uma e boa; e que a unidade é ser, uma e boa; e o mesmo dizemos da bondade. Mas, isto não se dá com as formas especiais, como a brancura e a saúde; pois nem tudo o que apreendemos sob a noção de branco, apreendemos também sob a de são. Devemos contudo considerar que, assim como os acidentes e as formas não subsistentes se chamam entes, não porque tenham por si mesmos o ser, mas porque por eles alguma coisa existe, assim também se consideram bons ou unos, não, certo, por alguma outra bondade ou unidade, mas porque, por eles, algum ser é bom ou uno. Assim, pois, a virtude é considerada boa porque, por ela, algum ser é bom.
Resposta à segunda. — O bem incluído na definição da virtude não é o bem comum conversível no ente e que é mais que uma qualidade; mas o bem da razão, no sentido em que Dionísio diz, que o bem da alma é ser racional.
Resposta à terceira. — A virtude não pode existir na parte irracional da alma, senão enquanto esta participa da razão, como já se disse. Por onde, a razão ou mente é o sujeito próprio da virtude humana.
Resposta à quarta. — A retidão é própria da justiça, que tem por objeto as coisas exteriores que servem ao uso do homem e constituem a matéria própria dela, como a seguir se dirá. Ao passo que a retidão, que implica em ordenar-se ao fim devido e à lei divina, da vontade humana, como já dissemos, é comum a todas as virtudes.
Resposta à quinta. — Podemos usar mal da virtude como objeto; assim, quando pensamos mal dela ou a odiamos ou com ela nos ensoberbecemos; não porém como princípio do uso, de modo que seja mau o ato da virtude.
Resposta à sexta. — A virtude infusa é causada em nós sem a nossa cooperação, mas não sem o nosso consentimento. E neste sentido é que devemos entender a parte da definição, que diz — que Deus obra em nós sem nós. E quanto aos nossos atos, Deus os causa em nós, mas não sem nós; pois ele age em toda vontade e natureza.
(III Sent., dist. XXIII, q. 1, a. 3, qª 1; dist. XXVI, q. 2, a. 1; II Ethic., lect. VI).
O terceiro discute-se assim. — Parece que não é da essência da virtude ser um hábito bom.
1. — Pois, o pecado sempre tem por objeto o mal. Ora, também há uma virtude do pecado, conforme aquilo do Apóstolo (I Cor 15, 56): a virtude do pecado é a lei. Logo, a virtude nem sempre é um hábito bom.
2. Demais. — A virtude responde à potência. Ora, esta é relativa, não só ao bem, mas ainda ao mal, segundo aquilo da Escritura (Is 5, 22): Ai de vós os que sois poderosos para beber vinho, e varões fortes para beberdes a largos sorvos a ebriedade. Logo, a virtude também é relativa ao bem e ao mal.
3. Demais. — Segundo o Apóstolo (II Cor 12, 9), a virtude se aperfeiçoa na enfermidade. Ora, a enfermidade é um mal. Logo, a virtude é relativa, não só ao bem, mas ainda, ao mal.
Mas, em contrário, diz Agostinho: Ninguém duvidará que a virtude torne ótima a alma. E o Filósofo diz, que a virtude torna bom quem a tem bem como as obras que pratica.
Solução. — Como já se disse, a virtude implica a perfeição da potência; e por isso a virtude de um ser se determina pelo que é ultimamente capaz como ficou estabelecido. Ora, o de que uma virtude é ultimamente capaz há de necessariamente ser o bem, pois todo mal implica um certo defeito; donde o dizer Dionísio, que todo mal é uma enfermidade. E por isso é necessário que a virtude de um ser seja ordenada para o bem. Logo, a virtude humana, que é um hábito imperativo, é um hábito bom e operativo do bem.
Donde a resposta à primeira objeção. — Como a perfeição, também o bem é empregado metaforicamente em relação ao mal; assim, falamos de um perfeito e de um bom gatuno ou ladrão, como se vê claramente no Filósofo. Ora, de acordo com este modo de falar, também a virtude é empregada metaforicamente em relação ao mal. E assim dizemos que a virtude do pecado é a lei, enquanto que, por ela, o pecado aumenta ocasionalmente e chega quase ao seu máximo.
Resposta à segunda. — O mal da embriaguez e do excesso no beber está na falta de ordenação racional. Ora, pode-se dar que, com a ausência da razão, uma potência inferior venha a ser perfeita relativamente ao que pertence ao seu gênero, mesmo com repugnância ou ausência da razão. Mas, a perfeição de uma tal potência, implicando falta de razão, não pode chamar-se virtude humana.
Resposta à terceira. — A razão se mostra tanto mais perfeita, quanto mais puder vencer ou tolerar as enfermidades do corpo e das partes inferiores. Por isso dizemos que, a virtude humana, atribuída à razão, se aperfeiçoa na enfermidade, não, certo, da razão, mas na do corpo e das partes inferiores.
(III Sent., dist. XXIII. Q. 1, a. qª 1).
O segundo discute-se assim. — Parece que não é da essência da virtude humana ser um hábito operativo.
1. — Pois, diz Túlio, o que se dá com a saúde e a beleza do corpo se dá também com a virtude da alma. Ora, a saúde e a beleza não são hábitos operativos. Logo, também não o é a virtude.
2. Demais — Há, nos seres naturais, virtude, não só para agir, mas também para existir; pois, vemos claramente no Filósofo, que certos seres têm a virtude de existir sempre; outros a de existir, não sempre, mas durante um determinado tempo. Ora, a virtude natural se comporta, nos seres naturais, como a virtude humana, nos racionais. Logo, também a virtude humana é relativa, não só ao agir, mas também ao existir.
3. Demais. — O Filósofo diz, que a virtude é uma disposição do perfeito para o ótimo. Ora, o ótimo, para o qual o homem se dispõe pela virtude, é o próprio Deus, como Agostinho o prova; para o qual ela se dispõe pela assimilação. Logo, parece que a virtude deve ser denominada uma certa qualidade da alma ordenada para Deus, enquanto que nos torna semelhantes a ele, e não, ordenada para a operação. Logo, não é um hábito operativo.
Mas, em contrário, o Filósofo diz, que a virtude de um ser é o que lhe torna boa a operação.
Solução. — A virtude, conforme a significação mesma da palavra, implica uma certa perfeição da potência, com já se disse. Ora, como há dupla potência — uma relativa ao ser e outra, ao agir — a perfeição de uma e outra se chama virtude. A potência para o ser, porém, se funda na matéria, que é um ser potencial; ao passo que a potência para agir se funda na forma, que é o princípio da ação, porque um ser age na medida em que é atual. Ora, na constituição do homem, o corpo se comporta como matéria e a alma, como forma. Ora, o homem tem corpo como os brutos, como também tem as potências comuns ao corpo e à alma. Só as faculdades próprias à alma, i. é, as racionais, é que pertencem exclusivamente ao homem. Por onde, a virtude humana, de que agora tratamos, não pode pertencer ao corpo, mas somente ao que é próprio da alma. Logo, ela não implica em ordenar-se para o ser, mas antes, para a ação. E, portanto, é da essência da virtude humana ser um hábito operativo.
Donde a resposta à primeira objeção.— O modo da ação é conseqüente à disposição do agente, pois um ser, assim como é, assim age. Por onde, sendo a virtude o princípio de certas operações, é necessário preexista no agente, relativamente à virtude, alguma disposição que lhe seja conforme. Ora, a virtude é que torna a operação ordenada. Por onde, a virtude, em si mesma, é uma disposição ordenada da alma, pela qual as potências desta se ordenam, de certo modo, uma para as outras e para o que lhes é exterior. E portanto, a virtude, enquanto disposição conveniente da alma, assimila-se à saúde e à beleza, que são disposições próprias do corpo. Mas isto não impede que a virtude seja também um princípio de operação.
Resposta à segunda. — A virtude relativa ao existir não é própria do homem; mas só a relativa à atividade da razão, que lhe é própria a ele.
Resposta à terceira. — A substância de Deus, sendo a sua ação, a suma assimilação do homem com Deus é fundada em alguma operação. Por onde, como já se disse, a felicidade ou beatitude, pela qual o homem sobretudo se conforma com Deus, fim da vida humana, consiste na ação.