Category: Santo Tomás de Aquino
O terceiro discute-se assim. — Parece que só uma virtude moral é a que versa sobre as obras.
1. — Pois, a retidão de todos os atos externos pertence à justiça. Ora, esta é uma virtude. Logo, só há uma virtude que diz respeito a elas.
2. Demais. — Há uma diferença máxima entre as obras ordenadas ao bem individual e as ordenadas ao bem comum. Mas esta diferença não diversifica as virtudes morais; pois, como diz o Filósofo, a justiça legal, que ordena os nossos atos para o bem comum, não difere da que os ordena para o nosso bem individual, senão por uma diferença de razão. Logo, a diversidade das obras não causa a das virtudes morais.
3. Demais. — Se a obras diversas se referissem virtudes morais diversas, seria necessário que tal fosse a diversidade das virtudes morais qual a das obras. Ora, isto é claramente falso, pois à justiça pertence estabelecer a retidão dos diversos gêneros são só das trocas, como das distribuições, conforme se vê em Aristóteles. Logo, a obras diversas não correspondem virtudes diversas.
Mas, em contrário, a religião é uma virtude diferente da piedade; contudo, uma e outra versa sobre determinados atos.
SOLUÇÃO. — Todas as virtudes morais, que versam sobre as obras, convêm numa noção geral de justiça, que se funda no devido a outrem; distinguem-se porém por diversas razões especiais. E isto porque a ordem racional dos atos externos se funda, como já dissemos, não na relação com o afeto humano, mas na conveniência da causa consigo mesma, da qual deduzimos a idéia do devido, que funda a noção de justiça, a qual exige paguemos o débito. E portanto, todas as virtudes, como ela, que versam sobre as obras, participam de certo modo da justiça. Mas a noção de débito não é a mesma em todos os casos. Assim, umas vezes devemos ao nosso igual; outras, ao superior; outras, a um inferior; umas vezes, em virtude de um contrato, outras, de uma promessa ou por um benefício recebido. Ora, a estas idéias diversas de débito correspondem virtudes diversas; assim, pela religião damos a Deus o que lhe é devido; a piedade nos manda pagar o débito aos pais ou à pátria; o agradecimento, aos benfeitores e assim por diante.
Donde a resposta à primeira objeção. — A justiça propriamente dita é uma virtude especial fundada em a noção perfeita de débito, susceptível de ser satisfeito por equivalência. Mas também se chama justiça, em sentido mais amplo, a virtude que exige a satisfação de qualquer débito. E nesta última acepção ela não é uma virtude especial.
Resposta à segunda. — A justiça, que visa o bem comum, é uma virtude diferente da ordenada ao bem privado de alguém; e por isso o direito comum se distingue do direito privado, e Túlio admite uma virtude especial, a piedade, ordenada ao bem da pátria. Ora, a justiça, que ordena o homem para o bem comum, tem um império geral, pois ordena todos os atos das virtudes ao devido fim, que é o bem comum. Mas também a virtude se chama justiça, que é ordenada pela justiça, no primeiro sentido. Por onde, a virtude só racionalmente difere da justiça legal, assim como só racionalmente difere a virtude, que obra por si mesma, da que o faz por império de outra.
Resposta à terceira. — Todas as obras pertencentes à justiça especial supõem a mesma noção de débito. E portanto, constituem a mesma virtude da justiça, principalmente quanto às trocas. Mas talvez, a justiça distributiva é de espécie diferente da comutativa, questão esta de que mais adiante se tratará.
(III Ethic., lect. VIII).
O segundo discute-se assim. — Parece que as virtudes morais não se distinguem entre si por serem, umas, relativas às obras e outras, às paixões.
1. — Pois, como diz o Filósofo, a virtude moral versa sobre o prazer e a tristeza e obra o que é ótimo. Ora, o prazer e a tristeza são paixões, como já se disse. Logo, a mesma virtude, que versa sobre as paixões, versa também, como operativa, sobre as obras.
2. Demais. — As paixões, sendo princípios das obras externas, as virtudes que as retificam, hão-de, conseqüente e necessariamente, retificar também as obras. Logo, as mesmas virtudes morais versam sobre as paixões e sobre as obras.
3. Demais. — O apetite sensitivo é movido, bem ou mal, a todas as obras exteriores. Ora, estes movimentos são paixões. Logo, as mesmas virtudes, que versam sobre as obras versam também sobre as paixões.
Mas, em contrário, o Filósofo diz que a justiça versa sobre as obras; e por outro lado, a temperança, a fortaleza e a mansidão, sobre certas paixões.
SOLUÇÃO. — A obra e a paixão podem se relacionar de dois modos com a virtude. Primeiro, como efeito e então toda virtude moral produz certas obras boas, e uma certa deleitação ou tristeza, que são paixões, como já dissemos. — Em segundo lugar, a obra pode relacionar-se com a virtude moral, como a matéria sobre a qual versa. E então, das virtudes morais, umas versam sobre as obras e outras, sobre as paixões.
E a razão disto está em o bem e o mal de certas obras nelas mesmas se fundarem, como quer que o homem seja afetado por elas; i. é, o bem e o mal delas depende da relação de medida com outra coisa. Assim sendo, é necessário haver uma virtude diretiva das obras, em si mesmas; tal é o caso da compra e venda, e atos semelhantes, nos quais se leva em conta a relação de débito ou de não-débito para com outrem. E por isso a justiça e as suas partes dizem respeito propriamente às obras, como sua matéria adequada. — O bem e o mal de outras porém se fundam só na relação de medida com o sujeito delas. E por isso neste caso é necessário levar em conta o modo bom ou mau por que este é afetado; e por conseqüência necessária, as virtudes, relativas a essas obras versam principalmente sobre os afetos internos chamados paixões da alma; e isso se dá com a temperança, a fortaleza e virtudes semelhantes.
Ora, pode acontecer que, nas obras relativas a outrem, seja posposto o bem da virtude pela paixão desordenada da alma. E então, desaparecida a relação de medida da obra exterior, há de desvanecer-se a justiça; e a desaparição corrompida da relação de medida das paixões interiores acarretará a desaparição de alguma outra virtude. Assim, quem levado da ira, fere indebitamente outrem, lesa ao mesmo tempo a justiça; ao passo que a ira imoderada elimina a mansidão. E o mesmo se dá nos casos semelhantes.
E daqui se deduzem as respostas às objeções. — Pois, a primeira objeção se funda na obra enquanto efeito da virtude. — As outras duas se fundam em que o ato e a paixão concorrem para o mesmo fim; mas, em certos casos, a virtude versa principalmente sobre a obra — e, em outros, sobre a paixão, pela razão já exposta.
(III Sent., dist. XXXIII, q. 1, a. qª 1).
O primeiro discute-se assim. — Parece que há só uma virtude moral.
1. — Pois, assim como a direção dos atos morais pertence à razão, sujeito das virtudes intelectuais, assim a inclinação pertence à virtude apetitiva, sujeito das virtudes morais. Ora, é uma só a prudência, virtude intelectual diretora de todos os atos morais. Logo, também é uma só a virtude moral, que imprime a inclinação em todos os atos morais.
2. Demais. — Os hábitos não se distinguem pelos objetos materiais, mas pelas razões formais dos objetos. Ora, a razão formal do bem, a que se ordena a virtude moral, a saber, o modo da razão, é uma só. Logo, é uma só a virtude moral.
3. Demais. — Os atos morais se especificam pelo fim, como já dissemos. Ora, o fim comum de todas as virtudes morais é um só, a saber, a felicidade, enquanto os fins próprios e próximos são infinitos. Ora, não sendo as virtudes morais infinitas, conclui-se que é uma só a virtude moral.
Mas, em contrário, um mesmo hábito não pode pertencer a diversas potências, como já se disse. Ora, o sujeito das virtudes morais é a parte apetitiva da alma, que se divide em várias potências, como já se disse na Primeira Parte. Logo, não pode haver uma só virtude moral.
SOLUÇÃO. — Como já dissemos, as virtudes morais são certos hábitos da parte apetitiva. Ora, estes diferem especificamente conforme as diferenças especiais dos objetos, conforme estabelecemos. Ora, espécie do objeto desejável, como a de qualquer coisa, depende da forma específica, procedente do agente.
Devemos porém considerar, que a matéria do paciente tem dupla relação com o agente. Às vezes recebe a forma do agente, essencialmente, tal como existe no agente; e isso se dá com todos os agentes unívocos. E portanto, é necessário que, sendo o agente especificamente uno, a matéria receba também forma especificamente una; assim, o fogo não gera, univocamente, senão o que é de espécie ígnea. Outras vezes, porém, a matéria recebe a forma do agente, não essencialmente, tal como ela nele existe, e é o caso dos geradores não unívocos; assim, o animal é gerado pelo sol. E então as formas recebidas na matéria, provenientes do mesmo agente, não são da mesma espécie, mas se diversificam conforme a matéria está diversamente proporcionada a receber o influxo do agente. Assim, vemos que a mesma ação do sol gera, por putrefação, animais de diversas espécies, segundo a proporção diversa da matéria.
Mas, como é manifesto, na ordem moral a razão é que ordena e move, sendo a potência apetitiva a ordenada e movida. Ora, o apetite não respeita, quase univocamente, a impressão da razão, por não ser racional por essência, mas por participação, como se disse. Por onde, o desejável, conforme a moção racional, tem tantas espécies diversas, quantas as relações diversas que mantém com a razão. Donde se segue que, longe de constituírem uma só virtude, as virtudes morais são especificamente diversas.
Donde a resposta à primeira objeção. — O objeto da razão é a verdade. Ora, todos os atos morais, sendo de existência contingente, manifestam a mesma essência da verdade. Portanto, há neles só uma virtude dirigente, que é a prudência. O objeto da potência apetitiva porém é o bem desejado, cuja essência difere conforme a relação diversa mantém com a razão dirigente.
Resposta à segunda. — As formalidades em questão são do mesmo gênero por causa da unidade do agente; mas, se diversificam especificamente, por causa das relações diversas dos pacientes, como acima dissemos.
Resposta à terceira. — Os atos morais não se especificam pelo fim último, mas pelos fins próximos; e estes, embora numericamente infinitos, não o são contudo especificamente.
Em seguida devemos tratar da distinção das virtudes morais entre si. E sobre esta questão cinco artigos se discutem:
O quinto discute-se assim. — Parece que a virtude moral pode existir sem as paixões
1. — Pois, quanto mais a virtude moral é perfeita, tanto mais vence as paixões. Logo, no estado de perfeição total não devem coexistir com nenhuma paixão.
2. Demais. — É perfeito o remoto do seu contrário e do que a este inclina. Ora, as paixões inclinam ao pecado. Contrário à virtude; e por isso a Escritura (Rm 7, 5) as denomina paixões dos pecados. Logo, a virtude perfeita não é compatível com nenhuma paixão.
3. Demais. — Assemelhamo-nos a Deus pela virtude, como está claro em Agostinho. Ora, Deus obra sem paixão. Logo, a virtude perfeitíssima é incompatível com qualquer paixão.
Mas, em contrário, não há justo que se não alegre com a obra justa, como já se disse. Ora, a alegria é uma paixão. Logo, a justiça não pode existir sem a paixão; e com maior razão as outras virtudes.
Solução. — Se, com os estóicos, considerarmos as paixões como afetos desordenados, é manifesto que a virtude perfeita é incompatível com elas.
Se porém dermos essa denominação a todos os movimentos do apetite sensitivo, é claro que as virtudes morais que têm as paixões como matéria própria, não podem existir sem elas. Do contrário, a virtude moral tornaria o apetite sensitivo absolutamente vão. Pois, não é função da virtude tornar a potência, sujeita à razão, privada dos seus atos próprios, mas, praticando-os, executar o império da razão. Por onde, assim como a virtude ordena os membros do corpo aos atos exteriores devidos, assim ordena o apetite sensitivo aos seus movimentos próprios.
As virtudes morais porém, que não versam sobre as paixões, mas sobre as obras, podem existir sem aquelas. E tal é a justiça, que leva a vontade a aplicar-se ao seu ato próprio, que não é uma paixão, mas ao qual se segue, ao menos na vontade, a alegria que não é paixão. E se a alegria se multiplicar, pela perfeição da justiça, redundará até o apetite sensitivo, porque as potências inferiores seguem o movimento das superiores, como já dissemos. Assim, esta redundância, quanto mais perfeita for, tanto mais causará a paixão.
Donde a resposta à primeira objeção. — A virtude reprime as paixões desordenadas e provoca as moderadas.
Resposta à segunda. — As paixões desordenadas, e não as moderadas, é que induzem o pecado.
Resposta à terceira. — O bem de um ser depende da condição da sua natureza, Ora, em Deus e nos anjos não há, como no homem, apetite sensitivo. E por isso a boa obra de Deus e do anjo é absolutamente livre de paixão, assim como do corpo; ao passo que a boa obra do homem vai junto com a paixão bem como com o ministério do corpo.
O quarto discute-se assim. — Parece que toda virtude moral diz respeito às paixões.
1. — Pois, diz o Filósofo, que a virtude moral versa sobre os prazeres e as tristezas. Ora, o prazer e a tristeza são paixões, como já se disse. Logo, toda virtude moral versa sobre as paixões.
2. Demais. — O racional por participação é o sujeito das virtudes morais, como já se estabeleceu. Ora, é nessa parte da alma que existem as paixões, conforme já se disse. Logo, toda virtude moral diz respeito às paixões.
3. Demais. — Em toda virtude moral se descobre alguma paixão. Logo, ou todas dizem respeito às paixões, ou nenhuma. Ora, algumas, como a fortaleza e a temperança, versam sobre paixões, segundo já se provou. Logo, todas as virtudes morais versam sobre as paixões.
Mas, em contrário, a justiça, que é uma virtude moral, não diz respeito às paixões, como se disse.
Solução. — A virtude moral aperfeiçoa a parte apetitiva da alma, ordenando-a ao bem da razão, consistente no que é por ela moderado ou ordenado. Por onde, tudo o que pode ser ordenado ou moderado pela razão pode ser virtude moral. Ora, a razão ordena não só as paixões do apetite sensitivo, mas também as do intelectivo, que é a vontade e que não é sujeito das paixões, como já dissemos. E portanto nem todas as virtudes morais dizem respeito às paixões, mas umas, às paixões e outras, às operações.
Donde a resposta à primeira objeção. — Nem toda virtude moral tem como matéria própria os prazeres e as tristezas; mas, lhes são relativas como a algo de conseqüente ao ato próprio dela. Pois, toda pessoa virtuosa se deleita com o ato de virtude e se entristece com o ato contrário. E por isso Aristóteles, depois das palavras citadas na objeção, acrescenta que se as virtudes são relativas aos atos e às paixões; e se a deleitação e a tristeza são conseqüentes a toda paixão e a todo ato, a virtude há de dizer respeito aos prazeres e às tristezas, i. é, a algo de conseqüente.
Resposta à segunda. — O racional por participação não só é o apetite sensitivo, sujeito das paixões, mas também à vontade, onde elas não existem, como já se disse.
Resposta à terceira. — Certas virtudes têm as paixões como matéria própria; certas outras, não. Por onde, não há semelhança de casos, como a seguir se mostrará.
O terceiro discute-se assim. — Parece que a virtude não é compatível com a tristeza.
1. — Pois, as virtudes são efeitos da sabedoria, conforme a Escritura (Sb 8, 7): (a divina sabedoria) ensina a temperança e a justiça, a prudência e a fortaleza. Ora, como se acrescenta mais adiante (Sb 8, 16), a conversação da sabedoria não tem nada de desagradável. Logo, as virtudes são incompatíveis com a tristeza.
2. Demais. — A tristeza é impedimento a agir, como se vê claramente no Filósofo. Ora o que impede a boa operação repugna à virtude. Logo, a tristeza repugna à virtude.
3. Demais. — A tristeza é uma espécie de doença da alma, no dizer de Túlio. Ora, tal doença contraria a virtude, que é um bom hábito da alma. Logo, a tristeza é contrária à virtude e não pode com ela coexistir.
Mas em contrário, Cristo teve virtude perfeita. Ora, nele houve tristeza, como diz a Escritura (Mt 26, 38): A minha alma está numa tristeza mortal. Logo, a tristeza é compatível com a virtude.
Solução. — Como diz Agostinho, para os estóicos há na alma do sábio três eupatias, i. é, três paixões boas, correspondentes às três perturbações, a saber: a vontade, correspondente à cobiça: à alegria, o contentamento; a precaução ao medo. Mas, negaram a possibilidade de existir, na alma do sábio, o correspondente á tristeza, e por duas razões.
Primeiro, porque a tristeza supõe o mal já acontecido. Ora, na opinião deles, nenhum mal pode suceder ao sábio. Pois pensavam que, assim como a virtude é o único bem do homem, com exclusão dos bens corpóreos, assim o único mal do mesmo é o desonesto, que não pode existir no virtuoso. — Mas esta opinião é irracional porque, sendo o homem composto de corpo e alma, tudo lhe é bem que concorra a conservar a vida do corpo; embora não seja esse o bem máximo, porque o homem pode usar mal dele. Logo, o mal, contrário a tal bem, pode existir no sábio e produz uma tristeza moderada. — Além disso, embora o virtuoso possa viver sem pecado grave, ninguém há que possa passar a vida sem pecados leves, conforme aquilo da Escritura (1 Jo 1, 8): Se dissemos que estamos sem pecado, nós mesmos a nós mesmos nos enganamos. — Terceiro, porque o virtuoso, embora atualmente sem pecado, nem sempre talvez esteve assim. E disto louvavelmente se dói, conforme aquilo da Escritura (2 Cor 7, 10): Porque a tristeza, que é segundo Deus, produz para a salvação uma penitência estável. — Quarto, porque pode ele também, louvavelmente, condoer-se do pecado dos outros. Por onde, na medida em que a virtude moral é compatível com as várias paixões moderadas pela razão, nessa mesma o é com a tristeza.
Em segundo lugar, os estóicos eram movidos pela razão, que a tristeza supõe o mal presente; enquanto que o temor é relativo ao mal futuro, assim como o prazer o é ao bem presente e o desejo, enfim, ao bem futuro. Pois, pode ser do domínio da virtude, que gozemos do bem já adquirido, ou desejemos o que ainda não possuímos, ou enfim, que nos acautelemos do mal futuro. Mas, o curvar-se a nossa alma pela tristeza ao mal presente, sendo, como é, absolutamente contrário à razão, não pode ser compatível com o virtuoso. — Mas esta opinião também é irracional. Pois, como já dissemos, há um mal que pode ser presente ao virtuoso, e repugnante à razão. E por isso o apetite sensitivo nisto acompanha a repugnância da razão por entristecer-se também com esse mal, embora moderadamente, segundo o juízo racional. Ora, pertence à virtude tornar o apetite sensitivo conforme a razão, como já dissemos. Por onde, também à virtude pertence o fazê-lo entristecer-se moderadamente, quando deve entristecer-se, conforme diz ainda o Filósofo. O que também é útil para fugir o mal. Pois, assim como é buscado mais prontamente o bem, pelo prazer que nos proporciona, assim, é evitado mais fortemente o mal, pela tristeza que nos causa.
E portanto devemos concluir, que a tristeza, pelo que convém com a virtude, não pode existir simultaneamente com ela, pois a virtude se compraz no seu objeto próprio. Mas se entristece moderadamente com tudo o que de algum modo lhe repugna.
Donde a resposta à primeira objeção. — Do lugar citado se conclui que o sábio não se entristece com a sabedoria; mas sim do que lhe serve a ela de impedimento. E por isso não há nenhum lugar para a tristeza nos bem-aventurados, a cuja sabedoria nenhum impedimento pode existir.
Resposta à segunda. — A tristeza impede a obra, cuja não-realização nos contrista; mas nos move a executar mais prontamente o que nos livra dela.
Resposta à terceira. — A tristeza imoderada é uma doença da alma; mas na condição da vida presente, a tristeza moderada pertence ao bom hábito da alma.
(II Ethic., lect. III).
O segundo discute-se assim. — Parece que as virtudes morais não podem coexistir com as paixões.
1. — Pois, como diz o Filósofo, pacífico é o que não sofre perturbação; paciente, quem a sofre, mas não se deixa vencer por ela. E o mesmo se pode dizer de todas as virtudes morais. Logo, não podem coexistir com as paixões.
2. Demais. — A virtude é um hábito reto da alma, como a saúde o é do corpo, segundo já se disse. Por onde, a virtude foi considerada saúde da alma, de certo modo, no dizer de Túlio. Ora, nesse mesmo livro, Túlio considera as paixões como certas doenças da alma. Ora, a saúde não é compatível com nenhuma doença. Logo, nem a virtude o é com as paixões da alma.
3. Demais. — A virtude moral supõe o uso perfeito da razão, mesmo nos casos particulares. Ora, isto fica impedido pelas paixões, pois, diz o Filósofo, que os prazeres corrompem a ponderação da prudência; e Salústio diz, que quando elas, isto é, as paixões, governam, a alma não descobre facilmente a verdade. Logo, as virtudes morais não podem coexistir com as paixões.
Mas, em contrário, diz Agostinho: A vontade perversa terá os movimentos (das paixões) perversos; na vontade reta, ao contrário, eles não só serão isentos de culpa, mas ainda louváveis. Ora, as virtudes morais não excluem nada de louvável. Logo, não excluem as paixões e podem coexistir com elas.
Solução. — Sobre esta questão dissentem os estóicos e os peripatéticos, como o refere Agostinho. Assim, aqueles ensinavam que as paixões não podem existir na alma do sábio ou virtuoso. Estes, pelo contrário, sequazes de Aristóteles, como diz Agostinho, no mesmo lugar, doutrinavam que as paixões podem coexistir com as virtudes morais, mas reduzidas ao justo meio.
Ora, esta diversidade de opiniões, como no passo aduzido diz Agostinho, se funda mais nas palavras do que no modo de pensar deles. Assim, os estóicos, não distinguindo entre o apetite intelectual, chamado vontade, e o sensitivo, dividido em irascível e concupiscível, também não distinguiam como os peripatéticos as paixões da alma, que são movimentos do apetite sensitivo, dos outros afetos humanos, que não são paixões, mas movimentos do apetite intelectivo, chamado vontade. Mas punham a distinção só em serem paixões quaisquer afetos repugnantes à razão. E estas, se nascem deliberadamente, não podem existir no sábio e virtuoso; se surgirem porém subitamente, este pode ser susceptível delas. Pois, as imaginações da alma, chamadas fantasias, influem em nós sem de nós dependerem, nem em si mesmas, nem quanto ao tempo em que surgem; e quando originadas de circunstancias aterrorizantes, necessariamente hão de mover o ânimo do sábio, de modo a fazê-lo experimentar as primeiras emoções do medo ou contrair-se pela tristeza, essas paixões tomando a dianteira ao papel da razão; nem por isso contudo o sábio aprova tais coisas ou nelas consente, como o refere Agostinho, citando a Aulo Gélio.
Por onde, consideradas como afeto desordenados as paixões não podem existir no virtuoso, de modo que este nelas deliberadamente consista, segundo opinavam os estóicos. Se dermos, porém esse nome a quaisquer movimentos do apetite sensitivo, então poderão nele existir, enquanto governadas pela razão. E por isso diz Aristóteles: os que consideram as virtudes como estados de impassibilidade e de quietude, não as compreendem bem por falta de distinção; pois deviam dizer também que são estados de quietude relativamente às paixões, que atuam como não devem e inoportunamente.
Donde a resposta à primeira objeção. — O Filósofo aduz o exemplo citado, bem como muitos outros, nos seus livros de lógica; não que representem a sua opinião, mas sim, a de outros. Ora, no caso presente, ele expõe a opinião dos estóicos, que consideravam as virtudes incompatíveis com as paixões da alma. E essa opinião o Filósofo a rejeita, dizendo que as virtudes não são estados de impassibilidade. Mas também podemos entender a sua opinião, que o pacífico não sofre perturbação, como referente à paixão desordenada.
Resposta à segunda. — As concepções citadas, bem como todas as que Cícero aduz, no caso vertente, se referem às paixões como afetos desordenados.
Resposta à terceira. — Se a paixão, tomando a dianteira ao juízo da razão, prevalecer na alma, de modo a fazê-la consentir, trava o conselho e o uso da razão. Se porém lhe for subseqüente, quase ordenada por ela, ajudará a execução do império racional.
(III Sent., dist. XXIII, q. 1, a. 3, qª 2; II Ethic., lect V).
O primeiro discute-se assim. — Parece que a virtude moral é uma paixão.
1. — Pois, o meio é do mesmo gênero que os extremos. Ora, a virtude moral é um meio entre as paixões. Logo, é paixão.
2. Demais. — O vício e a virtude, sendo contrários, pertencem ao mesmo gênero. Ora, certas paixões, como a inveja e a ira são consideradas vício. Logo, certas paixões são virtudes.
3. Demais. — A misericórdia é uma paixão, pois consiste na tristeza causada pelos males alheios, como já se disse. Ora, Cícero, orador egrégio, não duvidou chamar-lhe virtude, como refere Agostinho. Logo, a paixão pode ser uma virtude moral.
Mas em contrário, já se disse, que as paixões não são virtudes nem malícias.
Solução. — Por tríplice razão a virtude moral não pode ser paixão. — Primeiro, porque a paixão é um movimento do apetite sensitivo, como já se disse. Ora, a virtude moral, sendo um hábito, não é movimento, mas antes, princípio do movimento apetitivo. — Segundo, porque as paixões em si mesmas não implicam bondade nem maldade. Pois, o bem ou o mal humanos dependem da razão; por onde, as paixões, em si mesmas consideradas, implicam o bem e o mal, segundo convêm ou não com a razão. Ora, nada disto pode dar-se com a virtude, que só diz respeito ao bem, como já dissemos. — Terceiro, dado que, de algum modo, uma paixão diga respeito só ao bem ou só ao mal, contudo o movimento da paixão, enquanto paixão, tem o seu princípio no apetite, e o termo, na razão, para conformidade com a qual tende o apetite. Ao contrário, o movimento da virtude tem o seu princípio na razão, e o termo, no apetite, enquanto movido pela razão. E por isso, na definição da virtude moral, se diz que é um hábito eletivo, consistente num meio termo, determinado pela razão, como o sábio o determinaria.
Donde a resposta à primeira objeção. — A virtude, por essência, não é um meio entre as paixões; mas sim, pelo seu efeito, porque constitui um meio entre as paixões.
Resposta à segunda — Se tomarmos o vício como um hábito pelo qual obramos mal, é claro que nenhuma paixão é vício. Se porém o considerarmos como pecado, que é um ato vicioso, nada impede a paixão de ser um vício, e também contrariamente, de concorrer para o ato de virtude, segundo o qual a paixão contraria a razão ou lhe segue o ato.
Resposta à terceira. — Consideramos a misericórdia uma virtude, i. é, um ato de virtude na medida em que esse movimento da alma obedece à razão; isto é, quando a misericórdia é feita de modo a observarmos a justiça, quer quando fazemos esmola ao indigente ou perdoamos ao arrependido. Se porém a tomarmos como um hábito, que aperfeiçoa o homem a se compadecer racionalmente, nada impede então a considerarmos uma virtude; e o mesmo se pode dizer das paixões semelhantes.
Em seguida devemos tratar das diferenças das virtudes morais entre si.
E como as relacionadas com as paixões se distinguem conforme a diversidade destas, é necessário, primeiro, tratar, em geral, das relações entre as virtudes e as paixões. Segundo, da distinção entre as virtudes morais, relativamente às paixões.
Sobre a primeira questão cinco artigos se discutem: