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Art. 6 — Se as observâncias cerimoniais tinham causa racional.

(IIª-IIªª, q. 86., a. 3, ad 1, 2, 3; Ad Rom., cap. XIV, lect. I, III; I Tim., cap. IV, lect. I; Ad Tit., cap. I, lect. IV).
 
O sexto discute-se assim. — Parece que as observâncias cerimoniais não tinham nenhuma causa racional.
 
1. — Pois, como diz o Apóstolo (1 Tm 4, 4) toda cria­tura de Deus é boa e não é para desprezar nada do que se participa com ação de graças. Logo, proibia-se inconvenientemente o uso de certos alimentos, por imundos (Lv 11).
 
2. Demais. — Como os animais eram dados em alimento ao homem, assim também as er­vas; donde o dizer a Escritura (Gn 9, 3): eu vos entre­guei toda carne, como as viçosas hortaliças. Ora, a lei não distinguia ervas imundas, apesar de algumas delas serem venenosas e muito nocivas. Logo, também não devia proibir certos animais, por imundos.
 
3. Demais. — Se a matéria de que alguma coisa provém é imunda, pela mesma razão há de sê-lo o dela gerado. Ora, a carne é gerada do sangue. E como nem todas as carnes eram proibidas, como imundas, pela mesma razão não devia sê-lo, como tal, o sangue, nem a gor­dura dele gerada.
 
4. Demais. — O Senhor diz (Mt 10, 28), que não são para temer os que matam o corpo, porque depois dessa morte, nada mais podem fazer. Ora, tal não seria verdade se se convertesse em mal do homem o que se lhe viesse a fazer ao cadáver. Logo, com maior razão, não importava o modo por que se viessem a cozer as carnes do animal já morto. E portanto, parece irracional o que diz a Escritura (Ex 23, 19): Não cozerás o cabrito no leite da sua mãe.
 
5. Demais. — Era de preceito oferecer ao Senhor, por mais perfeitas, as primícias dos ho­mens e dos animais. Logo, era inconveniente o seguinte preceito (Lv 19, 23): Quando entrares na terra e plantares nela árvores frutíferas, cortar-lhes-ei os seus prepúcios, i. é, os primeiros germens, e serão imundos para vós e não comereis deles.
 
6. Demais. — As vestes são exteriores ao corpo do homem. Logo, não se deviam proibir aos judeus certas vestes especiais, p. ex., como as referidas nos lugares da Escritura (Lv 19, 19): Não usarás de vestido que seja tecido de fios diferentes; (Dt 22, 5) a mulher não se vestirá de homem, nem o homem se vestirá de mulher; e ainda (Dt 22, 11): Não te vestirás de coisa que seja tecida de lã e de linho.
 
7. Demais. — A memória dos mandamentos de Deus não respeita ao corpo, mas ao coração. Logo, era inconveniente o ordenar a Escritura (Dt 6, 8 ss), que os preceitos de Deus ligavam como um sinal na sua mão; e que se deviam escrever no limiar das portas; e que fizessem umas guarnições nos remates das capas, pondo nelas fitas de cor de jacinto, para que se recordem dos mandamentos do Senhor.
 
8. Demais. — O Apóstolo diz (1 Cor 9, 9), que Deus não tem cuidado dos bois; e, por conseqüência, nem dos outros animais irracionais. Logo, eram inconvenientes os preceitos (Dt 22, 6): Se, indo por um caminho, achares o ninho duma ave, não apanharás a mãe com os filhinhos; e (Dt 25, 4): Não atarás a boca ao boi que trilha na eira; e (Lv 19, 19): Não lançarás a tua besta a ter cópula com animais doutra espécie.
 
9. Demais. — Não se fazia nenhuma sepa­ração entre plantas mundas e imundas. Logo, com maior razão, não se devia fazer qualquer distinção relativamente à cultura delas. Por­tanto eram inconvenientes os preceitos (Lv 19, 19): Não semearás o teu campo com diversa semente; e (Dt 22, 9 ss): Não semearás a tua vinha de outra semente; e: Não lavrarás com boi e asno juntamente.
 
10. Demais. — Os seres inanimados, sobre­tudo, estão sujeitos ao poder do homem. Logo, era inconveniente o preceito da lei, que privava o homem do uso da prata e do ouro, de que se fabricavam os ídolos, e do mais que se encon­trava no templo destes. E também era ridículo o outro preceito, que se lê (Dt 7, 25): tendo satisfeito à tua necessidade, cavarás ao redor e cobrirás com a terra que tiraste.
 
11. Demais. — Sobretudo dos sacerdotes se exige a piedade. Ora, esta manda assistirmos aos funerais dos amigos; e por isso Tobias foi louvado (Tb 1, 20 ss). Também algumas vezes, por piedade, pode alguém receber uma meretriz como esposa, pela livrar assim do pecado e da infâmia. Logo, tais coisas se proibiam inconvenientemente aos sacerdotes (Lv 21).
 
Mas, em contrário, diz a Escritura (Dt 18, 14): tu, po­rém, foste instruído de outra sorte pelo Senhor teu Deus. Donde se pode coligir, que as observâncias de que se trata foram instituídas por Deus por uma certa prerrogativa especial do povo judeu. Logo, não eram irracionais ou sem causa.
 
Solução. — O povo judeu, como já disse­mos (a. 5), foi especialmente destinado ao culto divino; e dele, em especial, os sacerdotes. E assim como as coisas aplicadas a esse culto deviam ter algo de particular, exigido pela honorificência do mesmo; assim, o gênero de vida do povo judeu e, sobretudo, dos sacerdotes, devia especial­mente ter uma certa congruência, espiritual ou corporal com tal culto. Ora, o culto da lei figura o mistério de Cristo. Por isso, todas as suas observâncias figuram o concernente a Cristo, conforme a Escritura (1 Cor 10, 11): Todas estas coisas lhes aconteciam a eles em figura. Por isso, duas razões se podem assinalar a essas observâncias: a congruência com o culto divino, e o figurarem o que respeita à vida dos Cristãos.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Como já dissemos (a. 5 ad 4, 5), a lei estabelecia dupla corrup­ção ou imundice. Uma, da culpa, que mancha a alma; a outra, a de qualquer corrupção que de certo modo contamina o corpo. — Quanto, pois, à primeira imundice, não havia nenhum gênero de comida por natureza imundo ou susceptível de contaminar o homem; donde o dizer a Es­critura (Mt 15, 11): Não é o que entra pela boca o que faz imundo o homem; mas o que sai da boca, isso é o que faz imundo o homem; o que é aplicado aos pecados. Contudo certas comidas podiam acidentalmente manchar a alma, por serem toma­das contra a obediência, o voto, ou por nímia concupiscência; ou enquanto constituíam fo­mento à luxúria, razão pela qual certos se absti­nham do vinho e da carne.
 
Quanto à imundice corpórea, a proveniente de alguma corrupção, certas carnes dos animais a tinham. Ou porque estes se nutrem de coisas imundas, como o porco. Ou vivem imunda­mente, como alguns, que habitam debaixo da terra, p. ex., as toupeiras, os ratos e semelhantes, que contraem também por isso mau cheiro. Ou porque a carne deles, por causa da demasiada umidade ou secura, geram humores corruptos no corpo humano. Por isso, eram proibidas aos judeus as carnes dos animais que têm sola, i. é, unha inteira, não fendida por causa da sua terre­neidade. Semelhantemente, era-lhes proibida a carne dos animais que têm muitas fendas nos pés, como a do leão e outros semelhantes porque são muito coléricos e ardentes. Pela mesma razão, certas aves de rapina, demasiado secas; e certas aves aquáticas, pelo excesso de umidade. Tam­bém certos peixes sem barbatanas e escamas, como as enguias e outros, por causa do excesso de umidade. Era-lhes permitido comer os animais ruminantes, de unha fendida, porque tem humores bem digeridos e de compleição média; e porque nem são demasiado úmidos, como as unhas o significam; nem demasiado terrenos, por não terem a unha inteira, mas fendida. Dos peixes eram-lhes permitido os mais secos, como o davam a entender as escamas e as barbatanas, que tornam temperada a compleição úmida deles. Das aves, as melhor constituídas, como a galinha, a perdiz e outras. — A outra razão era fazer detestar a idolatria. Pois, os gentios e principalmente os egípcios, entre os quais os judeus viviam, imolavam aos ídolos esses ani­mais proibidos ou os empregavam para feiti­çarias. Ao passo que não comiam aqueles que era permitido aos judeus comerem; mas os adoravam como deuses. Ou por alguma outra causa se abstinham deles, como já dissemos (a. 3, ad 2). — A terceira razão era para impedir a diligência demasiada em relação à comida. Por onde, concediam-lhes os animais susceptíveis de serem conseguidos fácil e prontamente.
 
Contudo geralmente era-lhes proibido come­rem o sangue e a gordura de qualquer animal. — O sangue, quer para evitarem a crueldade e detestarem derramar sangue humano, como já dissemos (a. 3, ad 8). Quer também para fazer evitar o rito da idolatria; porque era costume dos idólatras reunirem-se ao redor do sangue recolhido, para comerem em honra dos ídolos, a quem o consideravam muitíssimo agradável. Por isso o Se­nhor mandou, que o sangue fosse derramado e coberto com terra. E também lhes era proibido comer animais sufocados ou estrangulados, por­que o sangue deles não se separa da carne; ou porque tais gêneros de morte fazem os animais sofrer muito, e o Senhor queria afastá-los da crueldade, mesmo para com os brutos, para que, habituando-se a tratá-los, mesmo a estes, com comiseração, mais se afastassem da crueldade para com os homens. — Também era-lhes proibida a gordura, quer porque os idólatras a co­miam em honra dos seus deuses;quer também porque era queimada em honra de Deus; quer enfim porque o sangue e a gordura não fazem boa nutrição, causa essa dada pelo Rabbi Moisés. A causa de ser proibido comer os nervos está na Escritura (Gn 32, 32): os filhos de Israel não comem nervo, porque o anjo tocou o nervo da coxa de Jacó, e ficou entorpecido.
 
A razão figurada dessas observâncias é que todos esses animais eram proibidos por serem figuras de certos pecados. Donde o dizer Agos­tinho: A quem indagar se o porco e o cordeiro são limpos por natureza, por ser boa toda criatura de Deus, respondemos que, em certo sentido, o cordeiro é limpo e o porco é imundo. Mas, per­guntar isto seria o mesmo que perguntar, conside­rando a natureza da expressão, e as letras e sílabas, de que constam, se as palavras — estulto e sábio — são puras. Pois, uma é pura e a outra, imunda. Assim, o animal ruminante e de casco fendido era puro porsignificação. Porque a fenda das unhas significa a distinção entre os dois Testamentos; ou a do Padre e do Filho; ou a das duas naturezas de Cristo; ou a separação entre o bem e o mal. A ruminação significa a meditação das Escrituras e a sã inteligência das mesmas. Ora, quem não é capaz de compreender alguma destas coisas é imundo.
 
Semelhantemente, os peixes, que têm esca­mas e barbatanas eram puros, por significação. Pois, as barbatanas significam a vida sublime ou a contemplação; e as escamas, a vida áspera. Sendo ambas elas necessárias à pureza espiritual.
 
Das aves eram proibidos certos gêneros es­peciais. Na águia, de vôo alto, proíbe-se a soberba. No grifo, nocivo aos cavalos e aos homens, a crueldade dos poderosos. O halieto, que se nutre de pequenas aves, significa os molestos aos pobres. O milhano, muito dado a preparar insídias, os fraudulentos. O abutre, que acom­panha os exércitos, no fito de comer os cadáveres dos mortos — os que provocam mortes e sedições entre os homens, para daí tirarem lucro. Os animais do gênero dos corvos significam os difamados pelos prazeres; ou os desprovidos de bons afetos, pois o corvo, uma vez mandado fora da arca, não voltou. O avestruz, apesar de ave, incapaz de voar e sempre apegado à terra, os que militando por Deus vivem, con­tudo, implicados em negócios seculares. O bufo, de visão noturna aguda, mas que não vê de dia, os astutos nas coisas temporais, mas botos nas espirituais. A gaivota, que voa no ar e nada na água, os que veneram a circuncisão a par do batismo; ou, ainda, os que querem alçar o vôo da contemplação, mas vivem nas águas dos pra­zeres. O açor, empregado para caçar, os que servem aos poderosos para depredarem os pobres. O mocho, que busca alimento de noite e se es­conde de dia, os luxuriosos que buscam ocultar o que fazem, agindo de noite. O mergulo, capaz de ficar muito tempo debaixo da água, os gulosos que se atacam nas águas dos prazeres. O íbis, ave da África, de bico comprido, e que se nutre de serpentes e é talvez o mesmo que a cegonha, os invejosos que se nutrem, como de serpentes, dos males dos outros. O cisne, de cor branca e de pescoço comprido, com o qual tira o alimento do fundo da terra ou da água, pode significar os homens que, sob candor da justiça externa buscam lucros terrenos. O onocrótalo, ave dos países orientais, de bico comprido, com umas bolsinhas na garganta onde repõe, primeiro, o alimento que, depois de uma hora, manda ao ventre, significa os avarentos que, com cuidados imoderados, acumulam o necessário à vida. O porfirião, diferente das outras aves, tem um pé espalmado para nadar e outro fendido para andar, pois nada na água como os adens e anda na terra como as perdizes; e só bebe, ao co­mer, molhando na água a comida. Significa os que nada querem fazer por vontade de outrem, senão só o que for banhado na água da vontade própria. A cegonha, vulgarmente chamada fal­cão, significa aqueles cujos pés são ligeiros para derramar sangue. O carádrio, ave gárrula, os loquazes. A poupa, que nidifica no estrume e nutre-se de excrementos fétidos, e simulando no canto um gemido, significa a tristeza do século geradora de morte, nos homens imundos. O morcego, que voa achegado à terra, aqueles a quem, ornados da ciência profana, só sabem as coisas terrenas.
 
Além disso, das aves e dos quadrúpedes só lhes eram permitidos os de pernas posteriores mais longas, para poderem saltar. Eram porém proibidos os que vivem mais apegados à terra, por serem considerados imundos os que abusam da doutrina dos quatro Evangelistas, afim de não serem por ela elevados para o alto.
 
No sangue enfim, na gordura e no nervo entendiam-se proibidas a crueldade, a volúpia e a contumácia no pecado.
 
Resposta à segunda. — Já antes do dilúvio os homens nutriam-se de plantas e mais ervas da terra. Mas parece que o uso da carne foi introduzido depois, conforme a Escritura (Gn 9, 3): eu vos dei toda carne como viçosas hortaliças. E isto porque alimentar-se dos frutos da terra é mais próprio da simplicidade da vida; ao passo que comer carne revela antes o prazer e o apego ao viver. Pois naturalmente a terra germina em ervas, ou, com pequeno esforço, obtém-se em grande cópia esses, produtos; ao contrário, só com grande diligência podem-se nutrir ou apa­nhar os animais. Por onde, querendo o Senhor reduzir o seu povo a uma vida mais simples, proibiu-lhes muitos gêneros de animais, e não dos produtos da terra. Ou também porque aqueles eram imolados aos ídolos e não, estes.
 
À terceira objeção é clara a resposta, pelo já dito.
 
Resposta à quarta. — Embora o bode imolado não sinta como, lhe sejam as carnes cozidas, contudo, ao espírito de quem o coze parece implicar uma certa crueldade, empregar, para lhes consumir o leite materno, que lhe foi dado como nutrição. Ou pode-se dizer, que os gentios, na solenidade dos ídolos, coziam total­mente as carnes do bode, para imolá-las ou comê-las. E por isso, a Escritura, depois de ter tratado das solenidades que se deviam, pela lei, celebrar, acrescenta (Ex 23): Não cozerás o cabrito no leite de sua mãe.
 
A razão simbólica dessa proibição é figurar que Cristo, comparado com o bode, por causa da semelhança da carne do pecado, não devia ser cozido, i. é, morto, pelos judeus, no leite ma­terno i. é, no tempo da infância. Ou significa que o bode, i. é, o pecador, não deve ser cozido no leite materno, i. é, corrompido pelas lisonjas.
 
Resposta à quinta. — Os gentios ofereciam aos seus deuses as primícias dos frutos, que jul­gavam afortunadas; ou então os queimavam para fazer certas magias. Por isso, foi pre­ceituado aos judeus considerassem imundos os frutos dos três primeiros anos. Pois, em três anos, quase todas as árvores da terra deles, cultivadas de semente, pela enxertia ou pela plantação, produziam fruto. E raramente acon­tecia que os caroços dos frutos da árvore, ou as sementes latentes fossem semeados, por pro­duzirem frutos mais retardados. Ora, a lei diz respeito ao que mais freqüentemente se faz. Por onde, os pomos do quarto ano, como sendo as primícias dos frutos puros, eram oferecidos a Deus; os do quinto, porém e seguintes, comidos.
 
A razão figurada desses preceitos é simbo­lizar que, depois dos três estados da lei — o primeiro, de Abraão até Davi; o segundo, até a transmigração de Babilônia; o terceiro, até Cristo — Cristo, que, é o fruto dela, devia ser oferecido a Deus. Ou que as primícias das nossas obras nos devem ser suspeitas, por causa da sua imperfeição.
 
Resposta à sexta. — Como diz a Escritura (Sr 19, 27), o vestido do corpo dá a conhecer qual o homem é. Por onde, o Senhor quis que o seu povo se dis­tinguisse dos outros, não só pelo sinal carnal da circuncisão, mas também: por uma diferença no vestir. E por isso, foi-lhe proibido vestir-se de roupa tecida de lã e de linho; e que as mulheres usassem trajes masculinos e inversamente, por duas razões. — A primeira fazer evitar a idola­tria. Pois, os gentios, no culto dos seus deuses, usavam de várias vestes de diversas contexturas. E também, no culto de Marte, as mulheres usavam das armas dos homens; no de Vênus, ao inverso, os homens usavam trajes femininos. A outra razão era fazer evitar a luxúria. Pois, pela exclusão de várias misturas nos tecidos das vestes, excluía-se toda união em coitos desorde­nados. Porque é um incentivo à concupiscência e dá ocasião à libidinagem o vestir a mulher tra­jes masculinos.
 
A razão figurada de proibir nas vestes, tecidas de lã e de linho, é evitar a união da inocência e da simplicidade, representadas pela lã, como a sutileza e a malícia, figuradas pelo linho. Também proibia a mulher usurpar para si a doutrina ou os ofícios dos homens; ou ao homem o pendor para a efeminação.
 
Resposta à sétima. — Diz Jerônimo: O Senhor mandou que se fizesse umas guarnições de jacinto nas quatro pontas das capas, para distinguir o povo de Israel dos outros povos. Pois, assim, mostravam ser judeus e, à vista desse sinal, despertavam a memória da sua lei. E o que diz a Escritura — E as atarás com um sinal na tua mão, e estarão sempre diante dos teus olhos — os Fariseus interpretavam mal, escrevendo em pergaminho o decálogo de Moisés, e prendendo-o na fronte, como coroa, para que se movesse diante dos olhos. Entretanto a intenção do Senhor, mandando assim fazer, era que fossem ligadas na mão, i. é, nas obras, e estivessem diante dos olhos, i. é, na meditação. As fitas cor de jacinto, entremeadas nas capas significam a intenção celeste, inspiradora de todas as nossas obras. E também pode-se dizer que, como o povo judeu era carnal e de cerviz dura, era necessário excitá-los à observância da lei por esses sinais sensíveis.
 
Resposta à oitava. — Há no homem duplo afeto: o racional e o passional. — Ao primeiro não importa como se tratem os brutos, porque Deus lhe sujeitou todas as coisas ao poder, conforme a Escritura (Sl 8, 8): Todas as coisas sujeitastes debaixo de seus pés. E neste sentido o Apóstolo diz que Deus não cuida dos bois, por não exigir lhe dê o homem contas de como trata os bois ou os outros animais. — Mas, pelo afeto da paixão o homem é movido em relação aos brutos. Pois, como a paixão da misericórdia nasce dos sofri­mentos alheios, e sofrer também podem os brutos, no homem pode nascer o afeto da mise­ricórdia mesmo para com os sofrimentos deles. Ora, quem com os animais exerce o afeto da misericórdia está mais próximo a tê-lo para com os homens. Donde o dizer a Escritura (Pr 11, 10): O justo atende pela vida dos seus animais; mas as entranhas dos ímpios são cruéis. E por isso o Senhor, para provocar a misericórdia no povo judaico, inclinado à crueldade, quis exercê-lo na miseri­córdia, mesmo para com os brutos, proibindo-lhe tratá-los com qualquer crueldade. Por onde, era proibido aos judeus cozer o bode no leite da mãe, prender a boca do boi que trilhava, matar a mãe com os filhos.Embora também se possa dizer, que isso lhes era proibido para levá-los a detestar a idolatria. Pois, os egípcios reputavam por nefário os bois comerem dos grãos que trilhavam. E alguns feiticeiros também empregavam a ovelha, enquanto amamentava os filhos, e estes, apanhados simultaneamente com ela, para conseguir a fecundidade e a boa fortuna em a nutrição dos filhos. E também porque nos augúrios tinha-se como boa fortuna encontrar a mãe criando os filhos.
 
Do cruzamento entre animais de espécies diversas pode-se assinalar tríplice razão literal. — Uma, fazer detestar a idolatria dos egípcios, que provocavam esses cruzamentos diversos, para cultuar aos planetas que, conforme as suas diversas conjunções, produzem efeitos vários e sobre diversas espécies de coisas. — Outra razão era excluir o coito contra a natureza. — A ter­ceira, tolher universalmente, toda ocasião de concupiscência. Pois, animais de espécies di­versas não se cruzam facilmente, se não forem provocados pelo homem; e a vista do coito provoca no homem movimentos de concupiscência. Por isso, ainda mesmo nas tradições dos judeus, preceitua-se, como refere Rabbi Moisés, que os homens desviem os olhos de ani­mais em cópula.
 
A razão figurada é que o boi que trilha; i. é, o pregador, que distribui as sementes da doutrina, não deve ser privado da subsistência necessária à vida, como diz o Apóstolo (1 Cor 9, 4 ss). — Tam­bém não devemos tomar a mãe juntamente com os filhos; porque em certos casos devemos seguir o sentido espiritual, como filho; e aban­donar como nas cerimônias da lei a observância literal, como mãe. — Também era proibido fazer os jumentos, i. é, os homens do povo cristão, ter cópula, i. é, ter sociedade, com animais de outra espécie, i. é, com os gentios ou judeus.
 
Resposta à nona. — Todos os cruzamentos a que se alude, eram proibidos na agricultura, literalmente, para fazer detestar a idolatria. Porque os egípcios, em veneração das estrelas, faziam diversas misturas de sementes, animais e roupas, representativas das diversas conjunções delas. — Ou, todas essas várias mesclas eram proibidas para fazer detestar o coito contra a natureza.
 
Mas também têm uma razão figurada. Pois, o preceito — Não semearás a tua vinha doutra semente — deve ser entendido, espiritualmente, da Igreja, que, sendo a vinha espiritual, não deve ser semeada com doutrina estranha. — E seme­lhantemente, o campo, i. é, a Igreja, não o semearás com diversa semente, i. e, com a doutrina católica e a herética. — Não lavrarás com boi e asno juntamente, porque o fátuo, na predicação, não se deve unir com o sábio, porque um é empecilho ao outro.
 
Resposta à décima. — Com razão a Escri­tura (Dt 7) proibia a prata e o ouro, não por não estarem sujeitos ao poder dos homens, mas porque tanto os ídolos, como tudo aquilo de que eram fundidos, estavam sujeitos à maldição, como soberanamente abomináveis a Deus. E isso está claro no seguinte passo do referido capí­tulo (Dt 7, 26): Nem em tua casa meterás coisa alguma que seja de ídolo, por não vires a ser anátema, como ele o é também. Ou ainda para que, recebendo cobiçosamente o ouro e a prata, não viessem com facilidade a cair na idolatria, à qual eram os judeus inclinados. — O segundo preceito, de cobrir as dejeções com terra, era justo e ho­nesto, quer por limpeza corporal;quer para conservar a salubridade do ar; quer pela reverência devida ao tabernáculo da aliança, colocá-lo no arraial, onde se dizia habitar o Senhor. E isto está claramente dito no lugar em que, depois de se estabelecer esse preceito, dele se dá a razão: O Senhor teu Deus anda no meio do campo para te livrar de todo o perigo etc.; e para que o teu campo seja santo, i. é, limpo, e não apareça nele coisa de fealdade.
 
A razão figurada desse preceito, segundo Gregório, é significar que os pecados oriundos do instinto da nossa mente, como excrementos fétidos, devem ser cobertos pela penitência, para sermos aceitos a Deus, conforme aquilo da Escritura (Sl 31, 1): Bem-aventurados aqueles cujas iniqüidades são perdoados, e cujos pecados são cobertos. Ou, conforme a Glosa: Para que, conhecida a miséria da condição humana, a surdisse da mente enaltecida e soberba fosse coberta e purgada pela humildade, na fossa da profunda meditação.  
 
Resposta à undécima. — Os feiticeiros e os sacerdotes dos ídolos empregavam, nos seus ritos, os ossos ou as carnes dos mortos. E por isso, para extirpar o culto da idolatria, o Senhor mandou os sacerdotes menores, que ministravam no santuário em tempos determinados, não se contaminarem nas mortes, senão só dos parentes muito próximos, como o pai e a mãe, e outras pessoas assim chegadas. Porém, o pontífice devia estar sempre preparado para o ministério do santuário; e por isso lhe era totalmente proibido achegar-se aos mortos, embora lhe tivessem sido próximos. — Também lhes era proibido tomar mulher meretriz ou repu­diada; mas que a tomassem virgem. Quer pela reverência para com eles, cuja dignidade pare­ceria, de certo modo, diminuída com uma tal união; quer também por causa dos filhos, por quem seria uma ignomínia a torpeza da mãe. O que era sobretudo para evitar, quando a digni­dade do sacerdócio era conferida conforme à su­cessão na família. — Também lhes era preceituado não raspassem a cabeça nem a barba, nem fizessem incisão no corpo; para remover o rito da idolatria. Pois, os sacerdotes aos gentios raspavam a cabeça e a barba; por isso, diz a Escritura (Br 6, 30): Estão assentados os sacerdotes tendo as túnicas rasgadas e as cabeças e a barba rapada. E também, no culto dos ídolos, eles se retalhavam com canivetes e lance­tas, como se diz em outro lugar (1 Rs 18, 28). Por onde, mandou-se o contrário aos sacerdotes da lei antiga.
 
A razão espiritual desses preceitos é deve­rem os sacerdotes ser absolutamente imunes de obras mortas, que são as do pecado. E também não devem raspar a cabeça, i. é, perder a sabe­doria; nem a barba, i. é, perder a perfeição da sabedoria; nem ainda cindir as vestes ou fazer incisão no corpo, isto é, não incorrer no vício do cisma.

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