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Art. 1 — Se a lei antiga constituiu convenientemente os chefes.

O primeiro discute-se assim. — Parece que a lei antiga constituiu inconvenientemente os chefes.
 
1. — Pois, como diz o Filósofo, a ordenação do povo depende precipuamente do chefe máximo.
 
Ora, a lei não determina como esse chefe supremo devia ser constituído; só determina sobre os chefes inferiores. Assim, diz, primeiro (Ex 18, 21): Escolhe dentre os do povo uns tantos homens tementes a Deus, etc.; e (Nm 11, 16): Ajunta-me setenta homens dos anciãos de Israel; e (Dt 1, 13): Daí dentre vós homens sábios e capazes, etc. Logo, a lei antiga constituiu insuficientemente os chefes do povo.
 
2. Demais. — É próprio do que é ótimo fazer coisas ótimas, como diz Platão. Ora, a ótima constituição de um estado ou de um povo qualquer é ser governado por um rei. Pois esse regime representa por excelência o governo divino, pelo qual o Deus único governa o mundo desde o princípio. Logo, a lei devia ter constituído um rei para o povo e não deixar a escolha ao arbítrio deles, como o permitiu; (Dt 17, 14-15): Quando disseres eu constituirei um rei para me governar, elegerás aquele, etc.
 
3. Demais. — Dia a Escritura (Mt 12, 25): todo reino dividido contra si mesmo será desolado, o que ficou experimentalmente patenteado no povo judeu, cuja causa da destruição foi a divisão do reino. Ora, a lei deve principalmente buscar o que respeita ao bem comum do povo. Logo, a lei antiga devia ter proibido a divisão do reino em dois governos. E nem devia isso ter sido feito por autoridade divina, como, segundo se lê na Escritura (1 Rs 11, 29), o foi por autoridade de Ahias Silonita.
 
4. Demais. — Assim como os sacerdotes são constituídos para a utilidade do povo, no concernente a Deus, conforme o diz a Escritura (Heb 5, 1), assim os príncipes são constituídos tais para essa mesma utilidade, na ordem das coisas humanas. Ora, aos sacerdotes e aos levitas da lei destinavam-se certos proventos de que deviam viver, como os dízimos, as primícias e muitas outras semelhantes. Logo e pela mesma razão, aos príncipes do povo devia se ordenar o que lhes servisse de sustento; e tanto mais quando lhes era proibido aceitar donativos, como diz a Escritura (Ex 23, 8): Não aceitarás donativos, porque eles fazem cegar ainda aos prudentes e pervertem as palavras dos justos.
 
5. Demais. — Assim como o regime real é o melhor de todos, assim o regime do tirano é a pior corrupção do governo. Ora, o Senhor, ao constituir o rei, instituiu um direito tirânico, conforme a Escritura (1 Sm 8, 11): Este será o direito do rei que vos há de governar; ele tomará os vossos filhos etc. Logo, a lei dispôs inconvenientemente sobre a constituição dos príncipes.
 
Mas, em contrário, o povo de Israel se gabava da formosura do seu governo (Nm 24, 5): Que formosos são os teus pavilhões, ó Jacó, e que belas as tuas tendas, ó Israel! Ora, a formosura o governo do povo depende de príncipes bem constituídos. Logo, pela lei o povo foi bem constituído em relação aos seus reis.
 
Solução. — A respeito da boa constituição dos chefes de uma cidade ou nação, duas coisas devemos considerar. Uma, que todos tenham parte no governo; assim se conserva a paz do povo e todos amam e guardam um tal governo, como diz Aristóteles. A outra é relativa à espécie do regime ou à constituição dos governos. E tendo estes diversas espécies, como diz o Filósofo, as principais são as seguintes. A monarquia, onde o chefe único governa segundo o exige a virtude; a aristocracia, i. é, o governo dos melhores, na qual alguns poucos governam segundo também o exige a virtude. Ora, o governo melhor constituído, de qualquer cidade ou reino, é aquele onde há um só chefe, que governa segundo a exigência da virtude e é o superior de todos. E, dependentes dele, há outros que governam, também conforme a mesma exigência. Contudo esse governo pertence a todos, quer por poderem os chefes ser escolhidos dentre todos, quer também por serem eleitos por todos. Por onde, essa forma de governo é a melhor, quando combinada: monarquia, por ser só um o chefe; aristocracia, por muitos governarem conforme o exige a virtude; democracia i. é, governo do povo, por, deste, poderem ser eleitos os chefes e ao mesmo pertencer à eleição deles.
 
E isto foi o que instituiu a lei divina. Pois Moisés e os seus sucessores governavam o povo, sendo, como singularmente, os chefes de todos; e isso é uma espécie de monarquia. Mas eram escolhidos setenta e dois anciões, conforme a virtude. Pois, diz a Escritura (Dt 1, 15) Eu tirei das vossas tribos homens sábios e nobres e os constitui príncipes; sinal de um regime aristocrático.
 
Mas era também democrático por serem esses escolhidos dentre todo o povo: Escolhe dentre os do povo uns tantos sábios, etc. E também era o povo quem os escolhia: Daí entre vós homens sábios, etc. Por onde é claro que a melhor constituição dos chefes foi a estabelecida pela lei.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — O povo judeu era governado por Deus, com especial cuidado. Por isso diz a Escritura (Dt 7, 6): O Senhor teu Deus te escolheu para seres o seu povo próprio. Por isso, o Senhor reservou para si a escolha do chefe supremo. E foi isto que Moisés pediu (Nm 27, 16): O Senhor Deus dos espíritos de todos os homens escolha algum homem que vigie sobre essa multidão. Assim, por ordem de Deus, foi Josué constituído no principado, depois de Moisés. E a respeito de cada um dos juízes, sucessores de Josué, se lê que Deus suscitou ao povo um salvador; e que o espírito do Senhor esteve neles, como está claro na Escritura. Por isso o Senhor também não cometeu ao povo a eleição do rei, mas a reservou para si, como se lê na Escritura (Dt 17, 15): Constituirás rei aquele a quem o Senhor teu Deus tiver escolhido.
 
Resposta à segunda. — O governo real é o melhor regime para o povo, se não se corromper. Mas, por causa do grande poder de que o rei é dotado, o seu governo facilmente degenera em tirania, se não for perfeita a virtude de quem foi investido nesse poder. Pois, como diz Aristóteles, só o virtuoso pode suportar a boa fortuna. Ora, são poucos os de virtude perfeita; e principalmente os judeus eram cruéis e inclinados à avareza, vícios que sobretudo fazem os homens cair na tirania. Por isso o Senhor, desde o princípio, não lhes deu nenhum rei com amplos poderes; mas juízes e governadores, que lhes servissem de guardas. Mas depois, o pedido do povo, concedeu-lhe, quase indignado, um rei, como é claro pelo que disse a Samuel (1 Sm 8, 7): Não é a ti que eles rejeitaram, mas a mim, para eu não reinar sobre eles. Contudo, desde o princípio, para a escolha do rei, instituiu, primeiro, o modo de elegê-lo. Para isso estabeleceu as duas condições seguintes. Que, ao elegê-lo, procurassem conhecer o juízo de Deus. E não constituíssem reis de outra nação, por terem esses pouca afeição à nação de que foram feitos chefes, e por conseqüência não cuidam dela. Em segundo lugar, ordenou como os reis já constituídos deviam ter o seu gênero de vida: não multiplicarem os seus carros e cavalos, nem as mulheres, nem acumular riquezas imensas. Pois é por tais cobiças, que resvalam na tirania e se divorciam da justiça. Também determinou o modo de se haverem para com Deus: lerem sempre e meditarem a sua lei, e tê-lo sempre em temor e obediência. Ordenou ainda como havia de proceder em relação aos súditos: não os desprezar soberbamente, nem oprimi-los nem se desviarem da justiça.
 
Resposta à terceira. — A divisão do reino e a multidão dos reis foram dadas, antes, como pena aos judeus, por causa das suas muitas dissensões, que suscitaram principalmente contra o reinado justo de David, do que para a perfeição deles. Donde o dizer a Escritura (Os 13, 11): Eu te darei um rei no seu furor: e ainda (Os 8, 4): Eles reinaram por si mesmos e não por mim; eles foram príncipes e eu não os conheci.
 
Resposta à quarta. — Os sacerdotes eram destinados ao culto, conforme à sucessão na família. E isto para serem tidos em maior reverência, por não poder qualquer do povo vir a ser sacerdote. Por isso, a honra que lhes era devida redundava em reverência ao culto divino. Por onde, era necessário se lhes destinassem certos bens especiais de que vivessem, os quais eram tirados dos dízimos, das primícias, como também das oblações e dos sacrifícios. Os príncipes, porém, eram tirados dentre todo o povo; e por isso tinham certos bens próprios de que podiam viver. E tanto mais quanto o Senhor proibira que mesmo o rei superabundasse em riquezas ou em magnificência de aparato. Quer porque, assim, não lhes era fácil serem arrastados pela soberba e caírem na tirania; ou também porque, não sendo os príncipes muito ricos e sendo laborioso o principado e cheio de cuidados, este não era muito desejado pela gente do povo, e assim desapareciam os motivos de sedição.
 
Resposta à quinta. — O direito referido não era devido ao rei por instituição divina; mas antes, prenunciava a usurpação dos reis, que para si constituíram um direito iníquo, degenerando em tiranos e depredadores do povo. Isso é claro pelo que a Escritura acrescenta: E vós sereis seus servos, o que constitui, propriamente, a tirania; pois, os tiranos governam os seus súditos como se estes fossem escravos. E o dito de Samuel tinha por fim aterrá-los para não pedirem um rei. Mas, continua ainda a Escritura, o povo não quis dar ouvidos às razões de Samuel. Pode porém acontecer que um bom rei, sem tirania, tome os filhos do povo, constituindo-se seus tribunos e centuriões, e se apodere de muitos bens dos seus súditos, a fim de procurar o bem comum.

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