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Art. 1 — Se a lei nova devia ordenar ou proibir certos atos externos.

(Quodl. IV, q. 8, a. 2; Ad Rom., cap. III, lect. IV)
 
O primeiro discute-se assim. — Parece que a lei nova não devia ordenar nem proibir certos atos externos.
 
1. — Pois, a lei nova é o Evangelho do reino celeste, conforme a Escritura (Mt 24, 14): Serás pregado este Evangelho do reino por todo o mundo. Ora, o reino de Deus não consiste em atos externos, senão só em internos, conforme a Escritura (Lc 17, 21): Está o reino de Deus dentro de vós; e (Rm 14, 17): O reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça e paz e gozo no Espírito Santo. Logo, a lei nova não devia ordenar nem proibir qualquer ato externo.
 
2. Demais. — A lei nova é a lei do Espírito, como diz a Escritura (Rm 8, 2), onde há o Espírito do Senhor, aí há liberdade, como diz o Apóstolo (2 Cor 3, 17). Logo, não há liberdade, quando o homem é obrigado a fazer ou a evitar certos atos externos. Logo, a lei nova não contem nenhum preceito ou proibição sobre atos externos.
 
3. Demais. — Todos os atos externos dependem das mãos, como os internos, da alma. Ora, a diferença entre a lei nova e a antiga é que esta coibia as mãos, e aquela coíbe a alma. Logo, a lei nova não devia estabelecer proibições e preceitos sobre os atos externos, mas somente sobre os internos.
 
Mas, em contrário, pela lei nova os homens se tornam filhos da luz; e por isso diz a Escritura (Jo 12, 36): Crede na luz, para que sejais filhos da luz. Ora, os filhos da luz devem fazer as obras da luz e não as das trevas, conforme o Apóstolo (Ef 5, 8): Noutro tempo éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor; andai como filhos da luz. Logo, a lei nova devia proibir certas obras externas e ordenar outras.
 
SOLUÇÃO. — Como já dissemos (q. 106, a. 1, 2), o que há de principal na lei nova é a graça do Espírito Santo, que se manifesta na fé que obra por caridade. E esta graça os homens a conseguem pela mediação do Filho de Deus humanado, cuja humanidade foi primeiro, cheia de graça, que, depois, se nos comunicou. Por isso, diz a Escritura (Jo 1, 14): O verbo se fez carne; e em seguida: Cheio de graça e de verdade; e em seguida: E todos nós participamos da sua plenitude, e graça por graça. E por isso acrescenta: a graça e a verdade foi trazida por Jesus Cristo. Por onde, convém que, por certos meios sensíveis externos, a graça que promana do Verbo encarnado chegue até nós; e que a graça interior, que torna a carne sujeita ao espírito, produza certas obras sensíveis externas.
 
Assim pois os atos externos podem de dois modos pertencer à graça — Primeiro, por levarem de certo modo a ela. E tal é a ação dos sacramentos instituídos pela lei nova, como, o batismo, a Eucaristia e outros. — De outro modo, há atos externos produzidos por inspiração da graça. Mas aqui devemos fazer uma distinção. Certos atos externos têm conveniência ou contrariedade necessária com a graça interior, consistente na fé que obra por caridade. E esses atos são ordenados ou proibidos pela lei nova; assim ela ordena a confissão da fé e proíbe a negação. Por isso a Escritura diz (Mt 10, 32-33): Todo aquele que me confessar diante dos homens, também eu o confessarei diante de meu Pai; e o que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante de meu Pai. Há outros atos porém que não têm contrariedade ou conveniência necessária com a fé que obra por caridade. E esses a lei nova não os ordenou nem os proibiu na sua instituição primitiva, mas foi deixado pelo legislador, i. é, por Cristo, ao arbítrio de cada um determinar como deve proceder em relação a eles. Assim, cada qual é livre, relativamente a esses atos, de determinar o que lhe convém fazer ou evitar; e o mesmo deve ordenar aos seus súditos o chefe, determinando o que, em tal caso, deve ser feito ou evitado. Por isso, neste ponto, a lei do Evangelho é chamada lei da liberdade; porque a lei antiga fazia muitas determinações e pouco deixava para ser determinado pela liberdade humana.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O reino de Deus consiste principalmente nos atos internos; por conseqüência, também pertence ao reino de Deus tudo aquilo sem o que esses atos não podem ser praticados. Assim se o reino de Deus consiste na justiça interior e na paz e alegria espiritual, necessariamente todos os atos exteriores, que repugnam à justiça, à paz ou à alegria espiritual repugnam também ao reino de Deus, e portanto devem ser proibidas pelo Evangelho desse reino. O reino de Deus, ao contrário, não consiste no que é indiferente à vida interior, como, p. ex., comer tais comidas ou tais outras. Por isso o Apóstolo disse antes: reino de Deus não é comida nem bebida.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Segundo o Filósofo, é livre quem é causa de seus atos. Logo, pratica um ato livremente quem de si mesmo o faz. Ora, o que o homem pratica por um hábito conveniente à sua natureza, por si mesmo o pratica; porque o hábito inclina ao que é conforme à natureza. Se pois o hábito fosse repugnante á natureza, o homem não agiria por si mesmo, mas levado por uma corrupção sobreveniente. Ora, a graça do Espírito Santo é como um hábito interior infuso em nós, que nos inclina a agir retamente. Logo faz-nos praticar livremente o que convém à graça e evitar o que lhe repugna. — Assim pois, a lei nova se chama lei da liberdade, em dois sentidos. Primeiro, por não nos obrigar a fazer nem a evitar nada, senão o em si mesmo necessário, ou contrário à salvação; e isso entra na ordenação ou na proibição da lei. Em segundo sentido, porque essas ordenações ou proibições ela nos faz cumpri-las livremente, enquanto as cumprimos por inspiração interna da graça. E por estas duas razões a lei nova é chamada lei da perfeita liberdade.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — A lei nova, proibindo os movimentos desordenados da alma, também havia necessariamente de coibir os atos desordenados das mãos, efeitos dos atos internos.

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