Category: Santo Tomás de Aquino
O primeiro discute-se assim. – Parece que o primeiro homem via a Deus em essência.
1. Pois, a beatitude do homem consiste na visão de Deus. Ora, o primeiro homem, vivendo no paraíso, tinha uma vida feliz e rica de todos os bens, como diz Damasceno. E Agostinho: Se os homens tinham os seus afetos, como agora os temos, como eram felizes naquele lugar de inenarrável beatitude, i. é., no paraíso? Logo, o primeiro homem, no paraíso, via a Deus em essência.
2. Demais. – Agostinho diz: ao primeiro homem não faltava nada do que a boa vontade pode alcançar. Ora, nada de melhor pode alcançar a boa vontade do que a visão da divina essência. Logo, o homem via a Deus em essência.
3. Demais. – Pela visão de Deus em essência, vê-se a Deus, sem termo médio e sem enigma. Ora, o homem, no estado de inocência, via a Deus sem termo médio, como diz o Mestre das Sentenças. Também o via sem enigma, porque, como diz Agostinho, o enigma importa obscuridade, e esta foi introduzida pelo pecado. Logo, o homem, no primeiro estado, via a Deus por essência.
Mas, em contrário, diz a Escritura: Não primeiro o que é espiritual, senão o que é animal. Ora, o que é espiritual em máximo grau é ver a Deus em essência. Logo, o primeiro homem, no primeiro estado da vida animal, não via a Deus em essência.
SOLUÇÃO. – O primeiro homem não via a Deus em essência, no estado comum da sobredita vida; a menos que não se diga que o visse em rapto, quando Infundiu o Senhor Deus um profundo sono a Adão, segundo refere a Escritura. E a razão é que, sendo a divina essência a beatitude mesma, o intelecto de quem vê tal essência está para Deus como qualquer homem está para a beatitude. Ora, é manifesto que nenhum homem pode, voluntariamente, deixar de querer a felicidade; pois, natural e necessariamente o homem a busca, e foge da infelicidade. Por onde ninguém que veja a Deus em essência pode afastar-se dele voluntariamente e pecar. Por isso todos os que assim o vêm estão de tal modo consolidados no amor de Deus, que não poderão pecar, eternamente. Ora, como Adão pecou, é claro que não via a Deus em essência.
Conhecia-o, todavia, por um certo conhecimento mais elevado que aquele com o qual agora o conhecemos; e assim, de certo modo, o seu conhecimento era intermédio entre o da vida presente e o da pátria onde se vê a Deus em essência. Para a evidência do que devemos considerar que a visão de Deus, em essência, se divide por oposição com a visão de Deus, por meio da criatura. Ora, quanto mais uma criatura é elevada e semelhante a Deus, tanto mais claramente o vê; assim como um homem vê-se mais perfeitamente no espelho que mais nitidamente lhe reflete a imagem. Por onde é claro que Deus é muito mais eminentemente visto pelos efeitos inteligíveis, do que pelos sensíveis e corpóreos. Ora, na vida presente o homem está privado do conhecimento pleno e lúcido dos efeitos inteligíveis, porque é solicitado pelas coisas sensíveis e a elas se atém. Mas, como diz a Escritura: Deus criou o homem reto. E a retidão do homem criado por Deus consistia em que as coisas inferiores se sujeitassem ás superiores, e estas não fossem impedidas por aquelas. Por onde, o primeiro homem não ficava privado, pelas coisas exteriores, da contemplação firme e clara dos efeitos inteligíveis, que percebia pela irradiação da verdade primeira, fosse por conhecimento natural ou gratuito. E, por isso, diz Agostinho: Talvez, Deus antes falasse com os primeiros homens, como agora fala com os anhos, ilustrando-lhes as mentes pela própria verdade incomutável; embora não com tanta participação da divina essência como a de que os anjos são susceptíveis. Assim, pois por esses efeitos inteligíveis de Deus, conhecia-o mais claramente do que agora conhecemos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O homem era feliz no paraíso, não daquela perfeita beatitude à qual havia de ser transferido, consistente na visão da divina essência; levava, contudo, como diz Agostinho, uma vida feliz, de certo modo, por ter a integridade e uma certa perfeição natural.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Boa é a vontade bem ordenada. Ora, a do primeiro homem não seria ordenada, se, no estado de merecimento, quisesse ter o que lhe estava prometido como premio.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Há duplo termo médio. Um, no qual o que por ele é visto o é simultaneamente com ele; assim, quando um homem se vê no espelho vê-se simultaneamente com o próprio espelho. Outro é aquele, pelo conhecimento do qual, chegamos ao conhecimento de algo desconhecido; tal é o termo médio da demonstração. Ora, Deus era visto sem este termo médio; não porém sem o primeiro. Pois, não era necessário ao primeiro homem, como o é para nós, chegar ao conhecimento de Deus por uma demonstração deduzida de algum efeito; mas, simultaneamente, com os efeito, sobretudo com os inteligíveis, conhecia a Deus ao seu modo. – Semelhantemente, devemos notar que a obscuridade que implica o nome de enigma pode ser entendida de duplo modo. Enquanto qualquer criatura é algo de obscuro, comparada com a imensidade do esplendor divino; e então Adão via a Deus em enigma, porque o via pelo efeito criado. De outro modo, pode se entender por obscuridade a que resultou do pecado, pela qual o homem fica privado, pela atração das coisas sensíveis, da consideração dos inteligíveis; e então não via a Deus a não ser em enigma.
O terceiro se discute assim. – Parece que os astros do céu são animados.
1. – Pois, o corpo superior deve ser ornado com mais nobres ornamentos. Ora, os ornatos dos corpos inferiores são animados, como os peixes, as aves e os animais terrestres. Logo, também os astros que são os ornatos do céu.
2. Demais. – A forma do corpo mais nobre é mais nobre. Ora, o sol, a lua e os outros astros são mais nobres do que os corpos das plantas e dos animais. Logo, tem mais nobre forma. Forma nobilíssima, porém, é a alma, princípio da vida; pois, como diz Agostinho, qualquer substância viva é, na ordem da natureza, superior à que não o é. Logo, os astros do céu são animados.
3. Demais. – A causa é mais nobre que o efeito. Ora, o sol, a lua e os outros astros são causas da vida, como de maneira sumamente clara se vê nos animais gerados da putrefação, que têm vida pela virtude do sol e das estrelas. Logo, com muito mais razão, os corpos celestes vivem e são animados.
4. Demais. – Os movimentos do céu e dos corpos celestes são naturais, como se vê claramente em Aristóteles. Ora, o movimento natural provém de um princípio intrínseco. Logo, sendo o princípio dos movimentos dos corpos celestes uma substância apreensiva, movida, como o é quem deseja, pela causa desejada, conforme diz Aristóteles; resulta que o princípio apreendente é o princípio intrínseco aos corpos celestes. Logo, estes são animados.
5. Demais. – O primeiro móvel é o céu. Ora, no gênero dos móveis, o primeiro é o móvel que a si mesmo se move, como o prova o filósofo, porque o existente por si é anterior ao existente por outro. Ora, só os seres animados movem-se a si mesmos, como também o mostra Aristóteles. Logo, os corpos celestes são animados.
SOLUÇÃO. – Sobre esta questão houve diversas opiniões, entre os filósofos. Assim, Anaxágoras, como refere Agostinho, foi acusado pelos atenienses por ter dito que o sol era uma pedra ardente, negando absolutamente que fosse deus, ou algum ser animado. Porém os Platônicos ensinavam, que os corpos celestes são animados. Também, semelhantemente, sobre este assunto, variam as opiniões dos Doutores da fé. Assim, Orígenes admitia que os corpos celestes fossem animados. Também Jerônimo parece da mesma opinião, ao expor a passagem: O vento corre, visitando tudo em roda. Basílio, porém, e Damasceno afirmam que os corpos celestes não são animados. Ao passo que Agostinho deixou a questão duvidosa, não se inclinando para nenhuma opinião, como se vê nos seus comentários e no Enquirídio, onde também diz, que se os corpos celestes são animados, as suas almas pertencem à sociedade dos anjos.
Para se conhecer de algum modo a verdade, em tal diversidade de opiniões, deve-se considerar, que a união da alma e do corpo não é para o corpo, mas para a alma; porque a forma não é para a matéria, senão inversamente. Ora, a natureza e a virtude da alma se depreendem das suas operações, que também de certo modo são o fim dela. Mas, sendo o nosso corpo necessário a certas operações da alma, que só se exercem mediante ele – como é claro nas operações da alma sensitiva e nutritiva – segue-se que tais almas necessariamente estão, por causa das suas operações, unidas aos corpos. Há porém certas operações da alma, que não se exercem mediante o corpo, fornecendo-lhes este apenas um adminículo; assim, o corpo fornece à alma humana os fantasmas de que ela carece para inteligir. Por onde, é necessário seja tal alma unida ao corpo, para as suas operações, embora possa ser dele separada.
Ora, é manifesto, a alma do corpo celeste não pode ter as operações da alma nutritiva, que são nutrir, crescer e gerar; pois, tais operações não são próprias ao corpo incorruptível por natureza. Semelhantemente, também não são próprios ao corpo celeste as operações da alma sensitiva, pois, todos os sentidos se fundam no tato, que é apreensivo das qualidades elementares. Ora, todos os órgãos das potências sensitivas exigem uma determinada proporção mediante certa comissão dos elementos, dos quais, estão separados, por natureza, os corpos celestes.
Resta portanto que, das operações da alma, só duas podem convir à alma celeste, convém a saber, inteligir e mover; pois, o apetecer é consecutivo ao sentido e ao intelecto, e se ordena relativamente a ambos. A operação do intelecto, porém, não se exercendo pelo corpo, deste não precisa, salvo enquanto dele recebe, pelos sentidos, os fantasmas. Ora, as operações da alma sensitiva não convém aos corpos celestes, como já ficou dito. Por onde, não sendo por causa da operação intelectual que a alma haveria de unir ao corpo celeste, resulta, que haveria de sê-lo só por causa da moção. Mas, para mover não é necessário que a alma se lhe uma como forma, senão só pelo contato da virtude, assim como o motor se une ao móvel. Por isso Aristóteles, após haver mostrado que o primeiro auto-motor compõe-se de uma parte motora e de outra movida, diz que essas duas partes se unem por contato; quer mutuamente, de uma com a outra, se ambas forem corpos; quer de uma com a outra, mas não inversamente, se uma for corpo e outra, não.
Ao passo que para os Platônicos as almas se unem aos corpos só pelo contato da virtude, como o motor ao móvel. Assim, quando Platão ensina que os corpos celestes são animados, quer dizer que as substâncias espirituais se unem aos corpos celestes como os motores aos móveis.
E que os corpos celestes sejam movidos por uma substância apreendente, e não só pela natureza, como os graves e os leves, bem se vê pelo fato de a natureza não mover senão para um termo, o qual, atingido, ela repousa; o que não acontece com o movimento dos corpos celestes. Donde, resta que se movam por alguma substância apreendente. Por isso, Agostinho diz, Deus governa todos os corpos pelo espírito de vida.
Assim, é claro que os corpos celestes não são animados do mesmo modo que as plantas e os animais, mas equivocamente. Por onde, entre os que dizem que são animados e os que dizem que inanimados, há pequena ou nenhuma diferença real, senão só verbal.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Ao ornato pertencem certos seres com movimento próprio. E neste ponto, os astros do céu, movidos por uma substância viva, convém com outros seres pertencentes ao ornato.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Nada impede seja absolutamente mais nobre o que, todavia, sob certos aspectos não o é. Assim, a forma do corpo celeste, embora não seja, absolutamente mais nobre do que a alma do animal, o é , todavia, quanto à natureza da forma. Pois, aperfeiçoa totalmente a sua matéria para que esta não seja potencial em relação á outra forma; coisa que a alma não faz. Por onde, quanto ao movimento, os corpos celestes se movem por motores mais nobres.
RESPOSTA À QUARTA. – O movimento do corpo celeste é natural, não por princípio ativo, mas passivo; porque tem na sua natureza, a aptidão a ser movido pelo intelecto, por um determinado movimento.
RESPOSTA À QUINTA. – Diz-se que o céu se move a si mesmo, enquanto composto de motor e de móvel e não como composto de forma e matéria; porém, pelo contato da virtude, como ficou dito. E deste modo, também pode dizer-se, que o seu motor é um princípio intrínseco; de modo que assim o movimento do céu possa chamar-se natural, por parte do princípio ativo; bem como se diz natural ao animal, enquanto animal, o movimento voluntário, segundo se vê em Aristóteles.
O segundo artigo se discute assim. – Parece que não se assinala com propriedade a causa da produção dos astros.
1. – Pois, diz a Escritura: Não temais os sinais do céu como temem as gentes. Logo, os astros não foram feitos para servir de sinais.
2. Demais. – O sinal entra numa mesma divisão com a causa. Ora, os astros são a causa das coisas de que agora se trata. Logo, não são sinais.
3. Demais. – A distinção das estações e dos dias começou desde o primeiro dia. Logo, os astros não foram feitos para distinguir as estações, os dias e os anos.
4. Demais. – Nada se faz por causa do que é mais vil; pois o fim é melhor do que os meios. Ora, os astros são melhores do que a terra. Logo, não foram feitos para que a iluminem.
5. Demais. – A lua nova não preside à noite. Ora, é provável que a lua começasse a existir como nova, pois, é assim que os homens começam a contar. Logo, a lua não foi feita para presidir à noite.
Em contrário, basta a autoridade da Escritura.
SOLUÇÃO. – Como dissemos antes, pode-se afirmar que uma criatura é feita para o seu ato próprio, para outra criatura, para todo o universo, ou para a glória de Deus. Mas Moisés, querendo desviar o povo da idolatria, só tocou na causa que as fez para a utilidade dos homens. Por onde diz a Escritura: Não seja que, levantando os olhos ao céu, vejas o sol e a lua e todos os astros do céu, e caindo no erro adores e dês culto a essas coisas que o Senhor teu Deus criou para servir a todas as gentes que vivem debaixo do céu. Ora, este ministério está explicado por três motivos, no princípio do Gênesis. – Pois, primeiro, advém aos homens utilidade dos astros, quando à vista, que dirige nas obras e é útil, sumamente, para se conhecerem as coisas. E, então diz: Resplandeçam no firmamento, e alumiem a terra. – Segundo, quanto às vicissitudes das estações, que impedem a monotonia, conservam a saúde e fazem nascer as coisas necessárias à alimentação, coisas que não existiriam se fosse sempre verão ou inverno. E, então diz: Para distinguir os tempos, os dias, e os anos. - Terceiro, quanto ao oportuno das atividades e das obras, pois, pelos astros dos céu se conhece o tempo chuvoso e o sereno, convenientes às várias atividades. E, então, diz: Sirvam para sinais.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Os astros assinalam as transmutações das coisas corpóreas, não porém as dependentes do livre arbítrio.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Pela causa sensível somos, por vezes, levados ao conhecimento do efeito oculto, e inversamente. Por onde, nada impede que a causa sensível seja um sinal. Todavia, diz, antes, sinais do que causas, para afastar ocasião à idolatria.
RESPOSTA À TERCEIRA. – No primeiro dia foi feita a distinção comum do tempo, em dia e noite, conforme o movimento diurno, comum a todo o céu que, pode-se admitir, começou no primeiro dia. Mas, as distinções especiais dos dias e das estações, enquanto que um dia é mais quente que outro, uma estação, do que outra, e um ano, do que outro, essas fazem-se conforme os movimentos especiais das estrelas que, pode-se admitir, começaram a existir no quarto dia.
RESPOSTA À QUARTA. – Na iluminação da terra se compreende a utilidade do homem que, pela alma, é superior aos corpos dos astros. Nada porém impede dizer-se que a criatura mais digna pode ser feita para a inferior, não considerada aquela em si, mas enquanto ordenada à integridade do universo.
RESPOSTA À QUINTA. – A lua cheia nasce de tarde, morre de manhã e, assim, presida à noite. E é muito provável que a lua foi feita cheia, assim como as ervas foram feitas perfeitas, produzindo a semente; e, semelhantemente, os animais e o homem. Pois, embora pelo processo natural, comece-se do imperfeito para o perfeito, todavia, absolutamente, o perfeito é anterior ao imperfeito. Agostinho, porém, não o afirma, dizendo não haver inconveniente em que Deus fizesse coisas imperfeitas que, em seguida, ele mesmo aperfeiçoasse.
O primeiro discute–se assim. – Parece que estão inconvenientemente assinaladas as virtudes anexas à justiça.
1. – Pois, Túlio enumera as seis virtudes seguintes: a religião, a Piedade filial, a gratidão, a punição, o respeito e a veracidade. Ora, a punição parece uma espécie da justiça comutativa, pela qual reparamos pelo castigo as injúrias contra nós assacadas, como do sobredito se colhe. Logo, não deve ser colocada entre as virtudes anexas à justiça.
2. Demais. – Macróbio enumera as sete virtudes seguintes: a inocência, a amizade, a concórdia, a Piedade filial, a religião, a afeição e a humanidade, várias das quais são omitidas por Túlio. Logo, parecem insuficientemente enumeradas as virtudes adjuntas à justiça.
3. Demais. – Certos outros enumeram cinco partes da justiça, a saber: a obediência, para com o superior; a disciplina, para com o inferior; a equidade, para com os iguais; a fidelidade e a veracidade, para com todos. Ora, dessas só a veracidade entra na enumeração de Túlio. Logo, parecem insuficientemente enumeradas as virtudes anexas à justiça.
4. Demais. – Andronico Peripatético considera como nove as partes anexas à justiça, a saber: a liberalidade, a benignidade, a vindicativa, a eugnomósine, a eusébia, a eucaristia, a santidade, a boa comutação e a legislativa. Ora, dessas, só claramente entra na enumeração de Túlio a vindicativa. Logo, parece ter sido essa enumeração insuficientemente feita.
5. Demais. – Aristóteles considera a epieiqueia como adjunta à justiça, da qual não faz menção nenhuma das enumerações referidas. Logo, são insuficientemente enumeradas as virtudes anexas à justiça.
SOLUÇÃO. – Nas virtudes adjuntas a uma virtude principal, devemos considerar dois elementos: primeiro, que essas virtudes hão de convir por algum lado com a principal; segundo, que, por outro lado, hão de se afastar da noção perfeita da mesma. Pois, como a justiça diz respeito a terceiros, segundo do sobredito se infere, todas as virtudes que a terceiros dizem respeito podem, em razão da conveniência, ser–lhe anexas. Ora, a justiça, por natureza, consiste em dar a outrem o que lhe é devido, conforme a igualdade, como do sobredito se colhe. Por onde, de dois modos uma virtude, que respeita a terceiros, decai da noção de justiça: de um modo, decaindo da noção de igualdade; de outro, da do que é devido. E, em primeiro lugar, tudo o que o homem retribui a Deus é lhe devido; e, contudo, não pode haver aí igualdade, de modo que lhe retribua quanto deve, conforme àquilo da Escritura: Que darei eu em retribuição ao Senhor por todos benefícios que me tem feito! E, por ser assim, é que se adjunge à justiça a religião, como diz Túlio, que presta adoração, realiza cerimônias ou cultua à natureza suprema chamada divina.
– Em segundo lugar, não podem os pais ser pagos, com igualdade, do que lhes é devido, como está claro no Filósofo. E por isso adjunge–se à justiça a piedade filial, pela qual, como diz Túlio, cumprimos o nosso dever e prestamos um culto diligente aos que nos são chegados pelo sangue e aos que foram benfeitores da pátria.
– Em terceiro lugar, a virtude não podemos recompensá–la com prêmios iguais, como está claro no Filósofo. E por isso à justiça se adjunge o respeito, pelo qual, como diz Túlio, os homens eminentes por alguma dignidade são dignificados por um certo culto e honra.
Se levarmos em conta porém a noção de débito, a deficiência da justiça pode ser considerada relativamente a um duplo débito: o moral e o legal. Débito legal é o que estamos obrigados a satisfazer por uma lei estrita; e esse pertence propriamente à justiça, que é uma virtude principal. E quanto ao débito moral, é o que devemos pela virtude da honestidade. E como o débito implica uma necessidade, daí resultam dois graus dele. – Pois, há uma certa necessidade sem a qual não pode conservar–se a honestidade dos costumes; e essa participa mais da natureza do débito. E se considerarmos, como podemos, esse débito relativamente ao próprio devedor, ele exige que nós nos manifestemos aos outros por palavras e obras, como realmente somos. Por isso é que se adjunge à justiça a veracidade, que nos leva a referir, sem alteração, aquilo que é, foi ou há de ser. Mas, o débito também pode ser considerado relativamente aquele a quem devemos, isto é, quando recompensamos a outrem pelo que nos fez. Às vezes, pelo bem; e por isso se adjunge à justiça a gratidão, que implica a memória da amizade e dos bons serviços de outrem e a vontade de remunerá–los. Outras vezes, pelo mal, e por isso se adjunge à justiça a punição, que, como diz Túlio, nos leva a repelir, para nos defendermos ou nos vingarmos, a injúria e absolutamente tudo o que pode nos prejudicar. – Mas, há um outro débito necessário, como visando a uma honestidade maior, mas sem o qual a honestidade pode conservar–se. – E a esse débito diz respeito a liberalidade, a afabilidade, ou amizade ou outras virtudes semelhantes, que Túlio omite na referida enumeração, porque pouco implicam da noção de débito.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A punição imposta por autoridade do poder público, em obediência à sentença do juiz, pertence à justiça comutativa, Mas, a que fazemos por nossa própria iniciativa, sem contudo contrariarmos à lei, ou a que requeremos ao juiz, pertence à virtude adjunta à justiça.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Macróbio atendeu às duas partes integrais da justiça, consistentes em nos afastarmos do mal, o que constitui a inocência, e em fazermos o bem, o que abrange as seis outras virtudes. Das quais duas se exercem entre iguais, que são, a amizade, relativa à convivência externa, e a concórdia, à interna. Outras duas dizem respeito aos superiores e são: a piedade filial, relativa aos pais, e a religião, a Deus. Duas enfim respeitam os inferiores e são: o afeto, quando nos alegramos com o bem deles; e a humanidade, que nos leva a socorrer–lhes às necessidades. Pois, como diz Isidoro, chama–se humano quem tem para com os outros amor e afeto de comiseração; donde a denominação de humanidade, que nos leva a nos socorrermos uns aos outros. E por isso a amizade é considerada como ordenadora do convívio externo, segundo o Filósofo. Mas também pode ser considerada enquanto respeitando propriamente ao afeto, como também o faz Aristóteles. E então abrange três virtudes: a benevolência, a que agora chamamos afeto; a concórdia e a beneficência, aqui chamada humanidade. Mas, estas Túlio, as omite, porque pouco implicam da noção de débito, como se disse.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A obediência se inclui na observância, citada por Túlio; pois, às pessoas muitos excelentes é devida tanto a reverência da honra como a obediência. – Quanto à boa fé, pela qual cumprimos o prometido, ela se inclui na veracidade, como observância das promessas. Mas, a veracidade tem um conceito mais amplo, como a seguir se verá. – [www.permanencia.org.br] Quanto à disciplina, não é ela devida por necessidade, porque nenhum inferior, como tal, está obrigado para com o inferior; pode porém um superior ser obrigado a prover às necessidades dos inferiores, conforme àquilo da Escritura: O servo fiel e prudente, a quem seu senhor pôs sobre a sua família. Por isso Túlio omite essa virtude. Mas, também pode ser incluída na humanidade, que entra na enumeração de Macróbio. E por fim a equidade pode ser incluída na epieiqueia ou amizade.
RESPOSTA À QUARTA. – A enumeração referida inclui certas virtudes pertinentes à verdadeira justiça. Assim, à particular pertence a boa comutação, que Túlio define como um hábito que observa a igualdade nas comutações. Como pertencente à justiça legal, no atinente ao que devemos comumente observar, está posta a leqislativa que, segundo ele próprio o diz, é a ciência das comutações politicas relativas à comunidade. Como respeitante àquilo que, às vezes, deve praticar o particular, fora das leis comuns, foi posta a eugnomósine, quase boa gnome. que dá a diretiva em tais casos, segundo dissemos antes, no tratado da prudência. Por isso, Túlio diz que ela é uma justificarão voluntária; porque nos leva a praticar, pelo nosso arbítrio próprio e não pela lei escrita, aquilo que é justo. E essas duas virtudes se atribuem à prudência, quanto à direção: mas à justiça, quanto à execução. A eusébia significa como que o culto legítimo; sendo, por isso, o mesmo que a religião. Pelo que, Túlio a define a ciência do serviço divino; e adota a linguagem de Sócrates, dizendo que todas as virtudes são ciências. E ao mesmo se reduz a santidade, como a seguir se dirá. A eucaristia é o mesmo que a boa gratidão enumerada por Túlio, bem como a vindicativa. A benignidade é idêntica ao afeto, de que fala Macróbio. Donde o dizer Isidoro que benigno é o homem pronto a fazer o bem espontaneamente e doce no falar. E o próprio Andronico define a benignidade como um hábito voluntariamente benfeitor. E, quanto à liberalidade, ela pertence à humanidade.
RESPOSTA À QUINTA. – A epieiqueia não é anexa à justiça particular, mas, à legal. E deve ser considerada idêntica à chamada eugnomósine.
O quarto discute-se assim. – Parece que o pecado de omissão é mais grave que o de transgressão.
1. – Pois, delito parece ser o mesmo que derelictum, abandonado; e por consequência parece ser o mesmo que omissão. Ora, o delito é mais grave que o pecado de transgressão, porque precisava de uma expiação maior na lei antiga. Logo, o pecado de omissão é mais grave que o de transgressão.
2. Demais. – Ao maior bem o põe-se um maior mal, como está claro no Filósofo Ora; fazer o bem, ao que se opõe a omissão, é parte mais nobre da justiça, do que evitar o mal, ao que se opõe a transgressão, como do sobredito resulta. Logo, a omissão é mais grave pecado que a transgressão.
3. Demais. – O pecado da transgressão pode ser tanto venial como mortal. Ora, parece que o de omissão é sempre mortal, por se opor a um preceito afirmativo. Logo, parece que a omissão é mais grave pecado que a transgressão.
4. Demais. – A privação da visão de Deus, que é a pena de dano devida ao pecado de omissão, é maior que a pena do sentido, devida ao de transgressão como está claro em Crisóstomo. Ora, a pena se proporciona à culpa. Logo, é mais grave o pecado de omissão que o de transgressão.
Mas, em contrário, é mais fácil abster-se de fazer o mal do que fazer o bem. Logo, peca mais gravemente quem não se abstém de fazer mal, o que é transgredir, do que quem não pratica o bem, o que é omitir.
SOLUÇÃO. – Um pecado é grave na medida em que se afasta da virtude. Pois, a contrariedade é a oposição máxima, como diz Aristóteles. Por isso um contrário dista mais do outro do que deste, a simples negação dele; assim, o preto dista mais do branco do que o simplesmente não branco; pois, todo preto é não branco, mas não inversamente. Ora, é manifesto que a transgressão contraria ao ato de virtude, ao passo que a omissão implica a negação dele. Por exemplo, é pecado de omissão não ter o devido respeito para com os pais; mas, de transgressão, proferir contra eles qualquer contumélia ou injúria. Por onde é manifesto que, simples e absolutamente falando, a transgressão é pecado mais grave que a omissão, embora alguma omissão possa ser mais grave que alguma transgressão.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O delito, tomado em sentido geral, significa qualquer omissão. Mas às vezes, e em sentido estrito, exprime a omissão do que se refere a Deus, ou o abandono, consciente, com um certo desprezo, do que devemos fazer. E assim implica uma certa gravidade, em razão da qual precisa de maior expiação.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Ao fazer bem se opõe o não o fazer, o que é omitir, e fazer o mal, o que é transgredir. Mas, a primeira oposição é contraditória e a segunda, contrária; o que implica maior distância. Por onde, a transgressão é pecado mais grave.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Assim como a omissão se opõe aos preceitos afirmativos, assim, a transgressão, aos negativos. Por isso uma e outra, propriamente falando, implicam por natureza o pecado mortal. Pode porém chamar-se transgressão ou omissão, em sentido lato, ao que é feito contra os preceitos afirmativos ou negativos e que dispõe para os respectivos contrários. Por onde, em sentido lato, uma e outra pode ser pecado mortal.
RESPOSTA À QUARTA. – Ao pecado de transgressão corresponde a pena de dano, por causa da aversão de Deus, e a do sentido por causa da conversão desordenada para um bem transitório. Semelhantemente, à omissão é devida não só a pena de dano, mas também a de sentido, segundo aquilo da Escritura. Toda a árvore que não dá bom fruto será cortada e metida no fogo. E isto por causa da raiz donde ela procede; embora não implique necessariamente a conversão atual para nenhum bem transitório.
O terceiro discute-se assim. – Parece que a omissão não é um pecado especial.
1. – Pois, todo pecado ou é original ou atual. Ora, a omissão não é pecado original, porque não foi contraído desde a origem; nem atual, porque pode existir independente de qualquer ato, como já se demonstrou, quando se tratou dos pecados em geral. Logo, a omissão não é um pecado especial.
2. Demais. – Todo pecado é voluntário. Ora, a omissão às vezes não é voluntária, mas, necessária. Assim, quando já é corrompida a mulher que fez voto de virgindade; ou quando alguém perde uma coisa que devia restituir; ou quando um sacerdote está obrigado a celebrar e tem algum impedimento. Logo, a omissão nem sempre é pecado.
3. Demais. – A todo pecado podemos determinar um tempo desde que começou a existir. Ora, não podemos determiná-lo no caso da omissão, porque todos os modos de omitirmos são semelhantes e nem sempre, fazendo-o, pecamos. Logo, a omissão não é um pecado especial.
4. Demais. – Todo pecado especial se opõe a uma virtude especial. Ora, não se pode determinar nenhuma virtude especial a que a omissão se opõe. Quer porque o bem de qualquer virtude pode ser omitido; quer porque a justiça, a que ela parece mais especialmente se opor, sempre supõe algum ato, mesmo que seja o de desviar-se do mal, como se disse. Ao passo que a omissão pode não implicar nenhum ato. Logo, a omissão não é um pecado especial.
Mas, em contrário, a Escritura: Aquele, que sabe fazer o bem e não no faz, peca.
SOLUÇÃO. – Toda omissão implica a preterição de uni bem; não porém de qualquer, mas, do bem devido. Ora, o bem enquanto correlato da noção de dever é propriamente objeto da justiça. Da legal, se o dever for relativo à lei divina ou humana; da especial, se o dever disser respeito ao próximo. Por onde, do modo pelo qual a justiça é uma virtude especial, como já demonstramos desse mesmo também a omissão é um pecado especial, distinto dos pecados que se opõem às outras virtudes. Ora, do modo pelo qual fazer o bem, ao que se opõe a omissão é uma certa e especial parte da justiça, distinto do ato de desviar-se do mal, a que se opõe a transgressão, desse mesmo também a omissão se distingue da transgressão.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A omissão não é pecado original, mas, atual. Não por implicar algum ato que lhe seja essencial, mas porque a negação de um ato reduz-se ao gênero desse ato. E, sendo assim, não agir é considerado como um certo agir; conforme já dissemos
RESPOSTA À SEGUNDA. – A omissão como dissemos, só pode ser relativa a um bem devido, a que nos liga uma obrigação. Ora, não estando obrigado ao impossível, não pecamos por omissão se não fazemos o que não podemos. Por onde, a mulher corrompida, que fez voto de virgindade, não omite a virgindade por não a ter, mas sim, por não se penitenciar do pecado passado, ou por não fazer o que pode para cumprir o seu voto pela observação da continência. E também um sacerdote não está obrigado a dizer missa, senão suposta a oportunidade devida; e se esta não se oferecer, não comete nenhuma omissão. Semelhantemente, está obrigado a restituir quem tem a faculdade de fazê-lo ; mas se não a tem e nem pode tê-la, não comete nenhuma omissão se faz o que pode. E o mesmo se deve dizer em casos semelhantes.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Assim como o pecado de transgressão se opõe aos preceitos negativos, que nos mandam desviar do mal, assim também o pecado de omissão se opõe aos preceitos afirmativos, que ordenam à prática do bem. Ora, os preceitos positivos não obrigam sempre, mas por um tempo determinado; e dentro desse tempo é que pode começar a existir o pecado de omissão. Pode, porém, dar-se que, nesse tempo, sejamos incapazes de fazer o que devemos. O que se for sem nossa culpa não cometemos, nenhuma omissão do dever, como dissemos. Se porém for por uma culpa precedente, por exemplo, no caso de quem se embriagou tarde e não pode levantar-se em horas matinais, como deve, então certos dizem que o pecado de omissão começa quando houve a prática do ato ilícito, que não pode coexistir com a obrigação. Mas, esta opinião não parece verdadeira, porque, se forçado a levantar-se, fosse cumprir as suas obrigações matinais, não cometeria omissão. Por onde, é claro que a embriaguez precedente não foi uma omissão, mas, causa desta. Por isso, devemos concluir que a omissão começa a lhe ser imputada como culpa, quando era já o tempo de agir; mas, por uma causa precedente que torna voluntária a omissão consequente.
RESPOSTA À QUARTA. – A omissão opõe-se diretamente à justiça, como se disse; pois, não há omissão do bem de nenhuma virtude senão suposta a ideia de dever; o que é próprio da justiça. Ora, o ato de virtude exige, para ser meritório, mais, que o da culpa para ser demeritório; porque o bem procede de uma causa integral, mas o mal, de qualquer defeito por onde, o mérito da justiça exige um ato; mas, não a omissão.
O segundo discute-se assim. – Parece que a transgressão não é um pecado especial.
1. – Pois, nenhuma espécie é compreendida em a noção de gênero. Ora, a transgressão se inclui na definição geral do pecado; porquanto, como define Ambrósio, o pecado é a transgressão da lei divina. Logo, a transgressão não é uma espécie de pecado.
2. Demais. – Nenhuma espécie excede o seu gênero. Ora, a transgressão excede o pecado, porque este é um dito, um ato ou um desejo contra a lei de Deus, como está claro em Agostinho; e a transgressão é também contra a natureza ou o costume. Logo, a transgressão não é uma espécie de pecado.
3. Demais. – Nenhuma espécie contém em si todas as partes em que se divide o gênero. Ora, o pecado da transgressão abrange todos os vícios capitais e mesmo os pecados por intenção, palavras e obras. Logo, a transgressão não é um pecado especial.
Mas, em contrário, ela opõe-se à virtude especial da justiça.
SOLUÇÃO. – O nome de transgressão derivou dos movimentos materiais para os atos morais. Ora, transgredir, aplicado ao movimento material, significa ultrapassar o termo prefixado. Ora, um preceito negativo é que prefixa ao homem, na ordem moral, o termo que ele não deve ultrapassar. Por onde, considera-se propriamente que transgride quem faz alguma coisa contrária a esse preceito negativo. O que, materialmente falando, pode ser comum a todas as espécies de pecado; pois, por qualquer espécie de pecado mortal o homem transgride algum preceito divino. Mas, considerado formalmente, isto é, relativamente à noção especial de agir contra o preceito negativo, então é um pecado especial, de dois modos. De um modo, enquanto se opõe aos gêneros de pecados opostos às outras virtudes; pois, assim como pela sua noção própria, à justiça legal pertence respeitar o dever imposto pelo preceito, assim, pela sua, a transgressão visa o desprezo do mesmo. De outro modo, enquanto se distingue da omissão, que contraria a um preceito afirmativo.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Como a justiça legal é a virtude total do sujeito e como que materialmente, assim a injustiça legal é também, num sentido como que material, o pecado total. E deste modo, Ambrósio definiu o pecado relativamente à noção de injustiça legal.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A inclinação da natureza é relativa aos preceitos da lei natural. Ora, o costume honesto tem força de preceito; pois, como diz Agostinho costume do povo de Deus deve ser considerada lei. Por onde, tanto o pecado como a transgressão, podem contrariar um costume honesto e a inclinação natural.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Todas as espécies enumeradas de pecados podem incluir a transgressão, não nas noções próprias deles, mas, relativamente a uma determinada noção especial, como se disse. Mas, o pecado de omissão distingue se absolutamente da transgressão.
O primeiro discute-se assim. – Parece que evitar o mal e fazer o bem não são partes da justiça.
1. – Pois, toda a virtude nos leva a fazer o bem e a evitar o mal. Ora, as partes não podem exceder o todo. Logo, o evitar o bem e o fazer o mal não devem ser consideradas partes de justiça, que é uma virtude especial.
2. Demais. – Aquilo da Escritura - Desviaste do mal e faze o bem - diz a Glosa: Quem se desvia do mal evita a culpa, quem faz o bem merece a vida e a palma da vitória. Ora, quem prática qualquer virtude merece a vida e essa palma. Logo, desviar-se do mal não é parte da justiça.
3. Demais. – Coisas que se incluem umas nas outras não se distinguem entre si como as partes de um todo. Ora, desviar-se do mal inclui-se no fazer o bem; pois, ninguém faz simultaneamente o bem e o mal. Logo, desviar-se do mal e fazer o bem não são partes da justiça.
Mas, em contrário, Agostinho diz que à justiça da lei pertence desviar-se do mal e fazer o bem.
SOLUÇÃO. – Se se trata do bem e do mal em geral, fazer aquele e evitar este é próprio a todas as virtudes. E, assim sendo, não podem fazer parte da justiça, salvo se esta for considerada como a virtude total. Embora também a justiça, considerada nessa acepção, suponha uma determinada noção especial do bem, enquanto dever ordenado à lei divina ou humana. Mas, a justiça, enquanto virtude especial visa o bem considerado como um dever para com o próximo. E sendo assim, da justiça especial é próprio fazer o bem, considerado como um dever relativo ao próximo, e evitar o mal oposto, isto é, o que lhe é nocivo a ele; ao passo que da justiça geral é próprio fazer o bem, como um dever relativo à comunidade ou a Deus, e evitar o mal oposto. - E esses dois atos são considerados como partes integrantes da justiça geral ou da especial, porque ambos os exige a perfeição do ato de justiça. Pois, a esta pertence estabelecer a igualdade nos atos relativos a outrem, como do sobredito resulta. Por que ao mesmo princípio constitutivo de uma coisa compete também conserva-la. Ora, a igualdade da justiça nós a constituímos fazendo o bem, isto é, dando a outrem- o que lhe é devido; e conservamos a igualdade da justiça já constituída desviando-nos do mal, isto é, não causando nenhum dano ao próximo.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O bem e o mal são aqui considerados sob uma noção especial, enquanto adaptados à justiça. E dela fazem parte, e não, de qualquer outra virtude moral, por causa mesmo dessa noção própria, a que correspondem. Porque as outras virtudes morais versam sobre as paixões, em relação às quais fazer o bem é realizar o justo meio, consistente em nos desviarmos dos extremos, como de males. E assim em relação a essas virtudes fazer o bem e evitar o mal vem a dar no mesmo. Ao passo que a justiça versa sobre os atos e as coisas externas, em relação aos quais realizar a igualdade difere de não destruir a igualdade existente.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Desviar-se do mal, como ato que faz parte da justiça, não importa em negação pura, que é não fazer o mal, o que não merece a palma da recompensa, mas só evita a pena. Pois, importa num movimento da vontade que repudia o mal, como a denominação mesma de evitar o demonstra. E isso é meritório, sobretudo quando somos aliciados a praticar o mal e resistimos.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Fazer o bem é ato completivo da justiça e como que parte principal dela. Ao passo que, desviar-se do mal é ato mais imperfeito e parte secundária da justiça. Por isso é uma como que parte material, sem a qual não pode existir a parte formal completiva.
O quarto discute-se assim. – Não parece lícito receber dinheiro a título de mútuo sob a condição de pagar usura.
1. – Pois, como diz o Apóstolo, são dignos de morte não somente os que cometem pecados, senão também os que consentem aos que os fazem. Ora, quem recebe dinheiro mutuado, sob a condição de pagar usura, consente no pecado do usurário e dá-lhe ocasião de pecar. Logo, também peca.
2. Demais. – Por nenhuma vantagem temporal devemos dar a outrem qualquer ocasião de pecar, por importar em escândalo ativo, que sempre é pecado, como se disse. Ora, quem pede dinheiro a título de mútuo ao usurário, dá-lhe expressamente ocasião de pecar. Logo, não pode ser desculpado por causa de qualquer vantagem temporal.
3. Demais. – Parece que não é menor às vezes a necessidade de entregarmos o dinheiro a um usurário, do que a de recebermos dele como um mútuo. Ora, entregar dinheiro a um usurário parece absolutamente ilícito, como o seria dar uma espada a um louco, uma virgem a um luxurioso ou comida a um guloso. Logo, também não é lícito receber dinheiro de um usurário, a título de mútuo.
Mas, em contrário. – Quem sofre uma injúria não peca, segundo o Filósofo, por isso é que a justiça não é um meio termo entre dois vícios, como também ele o diz. Ora, o usurário peca por cometer uma injustiça para com quem dele recebe dinheiro sob a condição de pagar usura. Logo, quem recebe um mútuo sob essa condição não peca.
SOLUÇÃO. – De nenhum modo é lícito induzir outrem a pecar; é lícito porém tirar proveito do pecado de outrem para o bem; pois, também Deus se serve de todos os pecados para algum bem, porque de qualquer mal resulta sempre algum bem, como diz Agostinho. Por isso, o mesmo Agostinho, interrogado por Publícola se era lícito aceitar o juramento de quem jurou pelos seus falsos deuses, pecando assim manifestamente, por lhes atribuir uma reverência divina, respondeu: Quem, da fé do que jurou pelos seus falsos deuses, tira partido, não para o mal, mas, para o bem, não participa do pecado do que jurou pelos demônios, mas do bom pacto pelo qual conserva a sua fé. Pecaria porém se o induzisse a jurar pelos falsos deuses. Assim, no caso vertente, devemos dizer que de nenhum modo é lícito induzir outrem a dar dinheiro a título de mútuo, sob a condição de lhe pagar usura. É nos lícito porém recebê-lo nessas condições, de quem estiver pronto a fazê-lo e tiver disso a prática, tendo nós em vista a satisfação de uma necessidade nossa ou alheia. Assim como é lícito ao que caiu nas mãos de ladrões exibir os bens que traz consigo e deixa-los cometer o pecado de roubo, para não ser morto por eles, seguindo nisso o exemplo dos dez varões que disseram a Ismael: Não nos mates, porque temos no campo tesouros, como se lê na Escritura.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Quem recebe dinheiro a título de mútuo, sob a condição de pagar usuras, não consente no pecado do usurário, mas, tira proveito dele. Nem aprova o recebimento das usuras, mas, o ato de mutuar, que é bom.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Quem recebe dinheiro a título de mútuo, sob a condição de pagar usuras, não dá ao usurário a ocasião de as receber, mas, de mutuar. O usurário, por seu lado, tira a ocasião de pecar, da malícia do seu coração. Por onde, dele provém o escândalo passivo e não o ativo, do mutuado. Mas esse escândalo passivo não é razão de deixar alguém de pedir dinheiro a título de mútuo, se dele precisar; porque tal escândalo não nasce da fraqueza ou da ignorância, mas, da malícia.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Quem entregasse dinheiro a um usurário, que não poderia de outro modo auferir usuras; ou lho entregasse para, por meio da usura, lucrar mais copiosamente, esse lhe daria matéria de pecar. E portanto também seria participante da culpa. Mas, quem entregasse o seu dinheiro a um usurário, que já o tivesse donde recebesse usuras, e só o fizesse para guardá-lo com maior segurança, esse não pecaria, mas usaria de um homem pecador para o bem.
O terceiro discute-se assim. – Parece que estamos obrigados a restituir todo o dinheiro que recebemos como usura.
1. – Pois diz o Apóstolo. Se é santa a raiz também o são os ramos. Logo, pela mesma razão, se a raiz está infeccionada também o estão os ramos. Ora, no caso, a raiz é a usura. Logo, tudo o que por ela se adquiriu é usurário e, portanto, quem assim adquiriu está obrigado a restituir.
2. Demais. – Uma decretal dispõe: Os bens comprados com dinheiro de usura devem vender-se, e os preços da venda, restituídos aos que foram deles extorquidos. Logo, pela mesma razão, tudo o que foi adquirido com dinheiro de usura deve ser restituído.
3. Demais. – O que compramos com dinheiro de usura nós o adquirimos em troca do dinheiro que demos. Logo, não temos maior direito à coisa adquirida do que ao dinheiro dado em pagamento. Ora, estamos obrigados a restituir o dinheiro ganho pela usura. Logo, também estamos obrigados a restituir a coisa adquirida com esse dinheiro.
Mas, em contrário. – Todos podemos conservar licitamente o que legitimamente adquirimos. Ora, o que adquirimos com dinheiro de usura às vezes legitimamente o adquirimos. Logo, podemos licitamente conservá-lo.
SOLUÇÃO. – Como já dissemos, o uso de certas coisas consiste na consumpção delas, e essas não são susceptíveis de usufruto, segundo o direito.
Portanto, quando tais coisas, Por exemplo, o dinheiro, o trigo, o vinho ou outras semelhantes, foram extorquidas por usura, há obrigação de restituir só o que foi recebido; porquanto o que por meio delas foi adquirido não é fruto das mesmas, mas, da indústria. Salvo o caso de haver a detenção delas danificado o dono, que perdeu assim parte de seus bens; pois, então há obrigação de reparar o dano. - Outras coisas há porém cujo uso não importa na destruição delas; e essas, como uma casa, um campo, etc., são susceptíveis de usufruto. Portanto, quem extorquiu por usura a casa ou o campo de outrem, não só está obrigado a restituir a casa ou o campo, mas também os frutos deles recebidos; porque são frutos de coisas que tem outro dono e, portanto, lhe são devidos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A raiz não só exerce a função de matéria, como se dá com o dinheiro resultante da usura, mas também e de certo modo, a de causa ativa, por fornecer a nutrição. Logo, a comparação não colhe.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Os bens comprados com o dinheiro da usura não pertencem ao dono dela, mas a quem os comprou. Dependem porém daquele de quem foi recebida a usura, assim como os outros bens do usurário. Por isso, não se ordena que sejam atribuídos aqueles de quem a usura foi recebida, por valerem talvez mais do que a que deram por eles; mas, que sejam vendidos, e que se restitua o valor correspondente à quantia recebida como usura.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O adquirido com dinheiro de usura pertence por certo ao adquirente em virtude do dinheiro dela proveniente, dado em pagamento e que é como a causa instrumental da aquisição, sendo a indústria do adquirente a causa principal. Por isso tem mais direito à coisa adquirida com o dinheiro da usura do que a esse dinheiro mesmo.