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Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Art. 2 — Se Cristo devia ser tentado no deserto.

O segundo discute-se assim. — Parece que Cristo não devia ser tentado no deserto.  

1. — Pois, Cristo quis ser tentado para nosso exemplo, como se desse. Ora, o exemplo deve ser claramente proposto aos que devem aproveitar dele, Logo, não devia ser tentado no deserto.
 
2. Demais. — Crisóstomo diz que contra os solitários é que o diabo emprega toda a força da sua tentação. Por isso, no princípio tentou a mulher, quando a viu desacompanhada de Adão. E assim, Cristo, indo ao deserto para ser tentado, parece que se expôs à tentação. Ora, como se deixou tentar para nosso exemplo, parece que também nós devemos nos expor à tentação. O que, contudo é perigoso; pois, ao contrário, devemos contar as ocasiões das tentações.
 
3. Demais. — A segunda tentação de Cristo referida pelo Evangelho é a seguinte: O diabo, tomando-o, o levou à cidade santa e o pôs sobre o pináculo do Templo, o qual certamente não estava num deserto. Logo, nem só no deserto foi tentado.
 
Mas, em contrário, o Evangelho: Jesus estava no deserto quarenta dias e quarenta noites e ali foi tentado por Satanás,
 
SOLUÇÃO. — Como se disse Cristo por vontade própria deixou-se tentar pelo diabo, assim como voluntàriamente entregou o corpo à morte; do contrário, o diabo não ousaria aproximar-se dele. Ora, o diabo atenta de preferência os solitários; pois, como diz a Escritura, se alguém prevalecer contra um, dois lhe resistem, Por isso foi Cristo para o deserto, como para o campo da luta, para ser nele tentado pelo diabo. Donde o dizer Ambrósio, que Cristo foi ao deserto deliberadamente, para provocar o diabo. Pois, se este não viesse atacá-la, isto é, o diabo, Cristo não o teria vencido. - Mas acrescenta ainda outras razões, dizendo que Cristo assim procedeu misteriosamente para livrar Adão do exílio; pois, este fora precipitado, do paraíso, num deserto. Para nos mostrar, com o seu exemplo, que o diabo inveja os que progridem no bem.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Cristo é proposto como exemplo a todos, pela fé, segundo aquilo do Apóstolo. Pondo os olhos no autor e consumador da fé, Jesus. Ora, a fé, como ainda o diz o Apóstolo, é pelo ouvido e não, pelos olhos. Antes, na expressão do Evangelho, bem-aventurados os que não viram e creram. Assim, para a tentação de Cristo nos servir de exemplo, não era necessário fosse presenciada pelos homens, bastando que lhes fosse narrada.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Há duas espécies de ocasião à tentação. - Uma da parte do homem, como quando não evitamos as ocasiões próximas de pecar. Pois tais ocasiões devemos evitá-las, como foi dito a Lot: Não pares em parte alguma dos arredores de Sodoma. A outra espécie de ocasião vem do diabo, sempre invejoso de quem e esforça por ser melhor. E essa ocasião de tentação não devemos evitá-la. Por isso diz Crisóstomo: Não Cristo foi levado pelo Espírito ao deserto, mas também todos os filhos de Deus possuidores do Espírito Santo, que não consentem em ficar ociosos, mas são ungidos pelo Espírito Santo a empreender grandes obras; e isso, para o diabo, é estar no deserto, onde não há o pecado com que ele se compraz. Também todas as boas obras constituem um deserto, para a carne e para o mundo, porque contrariam as tendências de uma e de outro. Ora, dar tal ocasião de tentação ao diabo não é perigoso, porque maior é o auxílio do Espírito Santo, autor das obras perfeitas, do que o ataque do diabo invejoso.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Certos dizem que todas as tentações tiveram por teatro o deserto. Desses, uns dizem que Cristo foi levado à cidade santa, não realmente, mas em visão imaginária. Outros porém opinam que a própria cidade santa, isto é, Jerusalém, é chamada deserto, por ter sido abandonada por Deus. - Mas não há necessidade de tais interpretações, porque Marcos diz ter sido Cristo tentado pelo diabo no deserto, mas não que o fosse só no deserto.

 

Art. 1 — Se Cristo devia ser tentado.

O primeiro discute-se assim. — Parece que Cristo não devia ser tentado.  

1. — Pois, tentar é fazer uma experiência, e esta não a fazemos senão do que ignoramos. Ora, também os demônios conheciam a virtude de Cristo, conforme odiz o Evangelho: Não permitia os demônios falarem, pois sabiam que ele mesmo era o Cristo. Logo, parece que não devia Cristo ser tentado.
 
2. Demais. — Cristo veio destruir as obras do diabo, segunda a Escritura: Para destruir as obras do diabo é que o Filho de Deus vez ao mundo. Ora, ninguém pode ao mesmo tempo destruir as obras de outrem e sofrer-lhes a ação. Por onde, parece Que Cristo não devia ter sofrido ser tentado pelo diabo.
 
3. Demais. — Há três formas de tentação: a da carne, a do mundo e a do diabo. Ora, Cristo não foi tentado nem pela carne nem pelo mundo. Logo, também não devia ter sido tentado pelo diabo.
 
Mas, em contrário, o Evangelho: Foi levado Jesus pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo.
 
SOLUÇÃO. — Cristo quis ser tentado, primeiro, para nos dar auxílio contra as tentações. Por isso diz Gregório: Não era indigno do nosso Redentor querer ser tentado, ele que veio para ser imolado; para que assim vencesse as nossas tentações com as suas, assim como venceu com a sua a nossa morte.  Segundo para nossa cautela: a fim de que ninguém, por santo que seja, se julgue seguro eimune da tentação. Por isso quis ser tentado depois do batismo; porque, como diz Hilário, as tentações do diabo são mais freqüentes, sobretudo contra os santos, porque sobre estes é que ela mais deseja a vitória. Donde o dizer a Escritura: Filho, quando entrares no serviço de Deus, tem ser firme na justiça e no temor e prepara a tua alma para a tentação.  Terceiro, para nos dar o exemplo de como devemos vencer as tentações do diabo. Donde o dizer Agostinho: Cristo deixou-se tentar pelo diabo, para nos mostrar como venceremos as suas tentações, não somente pelo seu auxílio, mas também pelo seu exemplo.  Quarto, para nos excitar à confiança na sua misericórdia. Donde o dizer o Apóstolo: Não temos um pontífice que não possa compadecer-se das nossas enfermidades, mas que foi tentado em todas as coisas à nossa semelhança, exceto o pecado.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Como diz Agostinho, Cristo deixou-se conhecer pelos demônios tanto quanto quis não pelo concernente à sua vida eterna, mas por certos efeitos temporais do seu poder, por onde podiam de certo modo conjeturar que Cristo era Filho de Deus. Mas como, por outro lado, viam nele certos sinais da fraqueza humana, não tinham como certo que fosse Filho de Deus. E por isso não quiseram tentá-lo conforme ao que diz o Evangelho: Depois que teve fome chegou-se a ele o tentador. Porque, como diz Hilário, o diabo não teria ousado tentar a Cristo, senão o reconhecesse: como homem, quando o virou; sujeito à miséria da fome. E isto mesmo se conclui do seu modo de tentar quando disse - Se és o Filho de Deus. Expondo o que, diz Gregório: Que quer significar começando com tais palavras, senão que, embora sabedor que o Filho de Deus devia vir ao mundo, não pensava, contudo que viesse sujeito a essas misérias do corpo?
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Cristo veio destruir as obras do diabo, não pelo emprego do seu poder, mas antes sofrendo-lhe a ação e a dos seus partidários, de modo a vencê-la pela justiça e não pela onipotência. Por isso diz Agostinho: O diabo foi vencido, não pelo poder, mas pela justiça de Deus. Por onde, a respeito da tentação de Cristo devemos considerar o que fez por vontade própria e o que sofreu do diabo. Assim por vontade própria deixou-se tentar do diabo, como está no Evangelho: Foi levado Jesus pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo. Lugar que Gregório diz dever ser entendido do Espírito Santo, e significa que o seu Espírito o levou onde o espírito maligno o encontrasse para tentá-lo. Mas, sofreu a ação do diabo quando este o levou para sobre o pináculo do Templo, ou para um monte muito alto. Nem é para admirar, como diz Gregório, que se deixasse conduzir pelo diabo a um monte, quem permitiu que os seus partidários o crucificassem. Mas não devemos pensar que fosse tomado à força pelo diabo, mas que, como nota Orígenes, o seguia a este para o lugar da tentação, como um atleta que marcha voluntàriamente para o combate.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz o Apóstolo, Cristo quis ser tentado em todas as causas, exceto o pecado. Ora, a tentação proveniente do diabo pode ser sem pecado, pois, ela se faz pela só sugestão intervir. Ao passo que originada na carne não pode deixar de ser pecaminosa, porque se faz pela deleitação e pela concupiscência. E, como diz Agostinho, há sempre pecado quando a carne deseja contra o espírito. Donde o ter Cristo querido a tentação do diabo, mas não a da carne.

 

Art. 8 — Se era conveniente que os Magos viessem adorar e venerar a Cristo.

O oitavo discute-se assim. — Parece não era conveniente os Magos terem vindo a adorar e venerar a Cristo.

1. — Pois aos reis devem-lhes reverência os súbditos. Ora, os Magos não pertenciam ao reino dos Judeus, Logo, quando souberam, pela vista da estrela, do nascimento do Rei dos Judeus parece que não andaram bem em ter vindo adorá-la.
 
2. Demais. — É estulto anunciar o nascimento de um rei enquanto ainda há outro vivo. Ora, no reino da Judéia reinava Herodes. Logo, os Magos procederam com estultícia anunciando a natividade desse rei.
 
3. Demais. — Um indício celeste é mais certo que o humano. Ora, os Magos, dirigidos por um indício celeste, vieram do Oriente para a Judéia. Logo, procederam estultamente quando pediam alem do indício da estrela, um indício humano, ao interrogarem: Onde está o rei dos judeus, que é nascido?
 
4. Demais. — A oferenda de presentes e a reverência da adoração só se devem aos reis enquanto reinam. Ora, os Magos não encontraram a Cristo refulgindo com a dignidade real. Logo, andaram mal oferecendo-lhe presentes e reverenciando-lhe a realeza.
 
Mas, em contrário, a Escritura: Andaram as gentes na tua luz e os reis no esplendor do teu nascimento. Ora, os dirigidos pela luz divina não erram. Logo, os Magos puderam, sem engano, prestar reverência a Cristo.
 
SOLUÇÃO. — Como dissemos, os Magos foram as primícias dos gentios que acreditaram em Cristo. E neles se manifestou, como um presságio, a fé e a devoção das gentes que vieram a Cristo, das mais remotas regiões. Por onde, assim como a devoção e a fé dos gentios não estava contaminada de nenhum erro, por inspiração do Espírito Santo, assim também devemos crer que os Magos inspirados pelo Espírito Santo, prestaram sabiamente reverência a Cristo.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Diz Agostinho: Dos muitos reis dos judeus, nascidos e mortos, a nenhum os Magos vieram procurar para adorá-la. Não era, pois, a nenhum dos reis, como eram os dos judeus, que os Magos, habitantes de uma região longínqua, alienígenas e tão completamente estranhos ao reino judaico não era a eles que julgavam ser devida a tão grande honra que vinham prestar. Mas sabiam, sem a menor dúvida, que o recém-nascido era um rei tal, por cuja adoração obteriam a salvação segundo Deus.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — A anunciação dos Magos prefigurava a constância dos gentios, que confessaram a Cristo até a morte. Donde o dizer Crisóstomo: Considerando no Rei futuro, não temiam o presente. Pois, ainda não viam à Cristo, e já estavam prontos a morrer por ele.
 
RESPOSTA À TERCEIRA  Diz Agostinho: A estrela, que conduziu os Magos ao lugar onde o Deus infante estava com sua mãe, podia também tê-las conduzido à cidade mesma de Belém, onde nasceu Cristo. Contudo, escondeu-se-lhes aos olhares, até que os próprios judeus dessem testemunho da cidade onde nasceu Cristo. E assim, confirmados por um testemunho duplo, como diz Leão Papa, buscassem com fé mais ardente aquele que punham de manifesto o clarão da estrela e a autoridade das profecias. E assim os Magos anunciam a natividade de Cristo e interrogam qual o lugar, crêem e procuram, como pronunciando os que vivem na fé e desejam a visão, conforme ensina Agostinho. - Quanto aos judeus, que lhes mostraram aos Magos o lugar da natividade de Cristo, tornaram-se semelhantes aos fabricantes da Arca de Noé, que, proporcionando aos outros o meio de se livrarem, pereceram eles próprios no dilúvio. Os que vieram a procura do menino viram-no e foram-se; ao passo que os judeus, que lhes deram as informações e os instruíram ficaram no mesmo lugar, semelhantes aqueles marcos miliários, que mostram o caminho mas não andam. - E foi também por determinação divina que os Magos, mesmo sem avistarem então a estrela, guiados pelo senso humano, chegaram à Jerusalém onde, na cidade real, buscaram o Rei nascido; e assim foi Jerusalém o primeiro lugar onde se anunciou publicamente a natividade de Cristo, segundo aquilo da Escritura: De Sião sairá a lei e de Jerusalém a palavra do Senhor. E também para que o trabalho a que se deram os Magos, vindos de tão longe, condenasse a displicência dos judeus, que viviam tão perto.
 
RESPOSTA À QUARTA. — Como diz Crisóstomo, se os Magos tivessem saído à procura de um rei terreno ficariam confundidos por terem sem causa se dado ao trabalho de uma viagem tão longa. E por isso não o teriam adorado nem lhe oferecido presentes. Mas, porque buscavam um Rei celeste, embora nada descobrissem nele denotador da excelência real, contudo, contentes com o só testemunho da estrela, adoraram-no. Pois, reconhecem um Deus no homem que vem. E oferecem dois convenientes à dignidade de Cristo: ouro, como a um grande Rei; o incenso, usado nos sacrifícios divinos, como a Deus; e a Mirra, com que se embalsamam os corpos dos mortos, lh'o oferecem como a quem havia de morrer pela salvação de todos. Desse modo como adverte Gregório, somos instruídos a fim de oferecermos ao Rei nascido o ouro, símbolo da sabedoria, por cujo lume resplenderemos na sua presença; o incenso, símbolo da oração devota, oferece-Io-emos e Deus se, pela oração frequente, soubermos exalar ao céu o perfume da nossa vida santa; enfim, ofereceremos a mirra, símbolo da mortificação da carne, se pela abstinência mortificarmos os vícios carnais.

 

Art. 7 — Se a estrela, que apareceu aos Magos era uma das estrelas do céu.

O sétimo discute-se assim. — Parece que a estrela que apareceu aos Magos, era uma das estrelas do céu.  

1. — Pois, diz Agostinho: Enquanto um Deus pende dos peitos maternos e sofre ser envolvido em panos vis, de repente brilhou no céu uma nova estrela. Logo, foi uma estrela do céu a que apareceu aos Magos.
 
2. — Demais. — Agostinho diz: Aos pastores, os anjos; aos Magos, uma estrela revelou o Cristo. A ambos fala a língua dos céus por ter se calado a língua dos Profetas. Ora, os anjos que apareceram aos Pastores foram verdadeiramente anjos do céu. Logo, também a estrela dos Magos foi verdadeiramente uma estrela do céu.
 
3. Demais. — As estrelas que aparecem, não no céu, mas no ar, chamam-se cometas; e essas não anunciam natividade dos reis, mas antes são o prenúncio da morte deles. Ora, a referida estrela anunciava a natividade do Rei; donde o perguntarem os Magos: Onde está orei dos Judeus, que é nascido? Porque nós vimos no Oriente a sua estrela.
 
Mas, em contrário, Agostinho diz: Essa estrela não era daquelas que, desde o início do mundo, guardam a lei do seu curso que o Criador lhes traçou; mas, uma nova estrela que apareceu por ocasião do parto da Virgem.
 
SOLUÇÃO. — Como diz Crisóstomo, por muitas razões é manifesto que a estrela aparecida aos Magos não foi nenhuma das estrelas do céu. Primeiro, porque nenhuma dessas estrelas descreve tal trajetória. E, essa dirigia-se do setrentrião para o meio dia; pois, a Judéia está ao sul da Pérsia, donde os Magos vieram. - Segundo, por causa do tempo. Pois, aparecia não só de noite, mas também ao meio dia. O que não o podem as estrelas e nem mesmo a lua. - Terceiro, porque ora aparecia e ora se ocultava. Assim, quando entraram em Jerusalém, ocultou-se; e depois, quando deixaram Herodes, mostrou-se de novo. - Quarto, porque não tinha movimento contínuo; mas, quando os Magos deviam caminhar, caminhava; e quando deviam parar, parava como acontecia com a coluna de nuvem no deserto. - Quinto, porque indicou o lugar do parto da Virgem, não permanecendo no alto, mas descendo até ele. Assim, diz o Evangelho: A estrela que tinham visto no Oriente lhes apareceu, indo diante deles, até que, chegando, parou sobre onde estava o menino. Donde se conclui que as palavras dos Magos - Vimos no Oriente a sua estrela - não se devem entender como significando, que a eles, vivendo no Oriente, apareceu-lhes uma estrela na terra de Judá; mas, que o viram no Oriente, e ela os precedeu até a Judéia; embora certos ponham isto em dúvida. Pois, não poderia indicar distintamente uma casa, se não estivesse vizinha da terra. Ora, como o Santo Doutor acrescenta, isso não é próprio de nenhuma estrela, mas, de algum poder racional. Donde se conclui que essa estrela era um poder invisível transformado em tal aparição.
 
Por isso, certos opinam que assim como o Espírito Santo desceu sobre o Senhor batizado em forma de pomba, assim apareceu aos Magos em forma de estrela. - Mas outros pensam que o Anjo que apareceu aos Pastores em forma humana apareceu aos Magos em forma de estrela. - Parece mais provável porém que essa foi estrela criada de novo, não no céu, mas no ar vizinho à terra, que se movia segundo a vontade divina. Donde o diz Leão Papa: Aos três Magos apareceu na região do Oriente uma estrela de nova claridade, que, mais refulgente e mais bela que as outras, atraía a si os olhos e os pensamentos dos que a contemplavam; de modo que logo advertiam não ser vão o que tão insólito lhes parecia.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O céu, na Sagrada Escritura, é às vezes chamado ar como naquele lugar: As aves do céu e os peixes do mar.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Os anjos do céu tem por ofício descer até nós, mandados em algum ministério. Ora, as estrelas do céu não mudam de lugar. Logo, a comparação não colhe.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Assim como a estrela dos Magos não seguiu o curso das estrelas do céu, assim também os cometas, que não aparecem de dia, não mudam o seu curso habitual. - E contudo essa estrela desempenhava de certo modo a função dos cometas. Pois, o reino celeste de Cristo esmigalhará e consumirará a todos os reinos e ele mesmo subsistirá para sempre no dizer da Escritura.

 

Art. 6 — Se a natividade de Cristo foi manifestada na ordem conveniente.

 

O sexto discute-se assim. — Parece que a a natividade de Cristo foi manifestada numa ordem inconveniente.
 
1. — Pois, a natividade de Cristo devia ser manifestada primeiro aos mais chegados a ele e que mais o desejavam, conforme o lugar da Escritura: Ela se antecipa aos que a cobiçam, de tal sorte que se lhes patenteia primeiro. Ora, os justos eram os mais chegados a Cristo pela fé e os que mais lhe desejavam o advento. Por isso, diz o Evangelho, de Simeão, que era homem justo e timorato e esperava a redenção de Israel. Logo, a natividade de Cristo devia ser manifestado primeiro a Simeão, que aos pastores ou magos.
 
2. Demais. — Os Magos eram as primícias dos gentios, que haviam de crer em Cristo. Ora, primeiro, a multidão das gentes recebe a fé e depois todo Israel há de salvar-se, como ensina o Apóstolo. Logo, a natividade de Cristo devia manifestar-se primeiro aos Magos, que aos pastores.
 
3. Demais. — O Evangelho diz: Herodes mandou matar todos os meninos que havia em Belém e em todo o seu termo, que tivessem dois anos e daí para baixo, regulando-se nisto pelo tempo que tinha exatamente averiguado dos Magos. Donde se conclui que dois anos depois da natividade de Cristo é que os Magos chegavam a Cristo: Logo, a natividade de Cristo foi inconvenientemente, só depois de tanto tempo, manifestada aos gentio.
 
Mas em contrário, a Escritura: E ele mesmo é o que muda os tempos e os séculos. E assim, o tempo da manifestação da natividade de Cristo foi disposto na ordem conveniente.
 
SOLUÇÃO. — A natividade de Cristo foi primeiro manifestada aos Pastores, no dia mesmo da natividade de Cristo. Assim, diz o Evangelho: Naquela mesma comarca havia uns pastores que vigiavam e revezavam entre si as vigílias da noite para guardarem o seu rebanho. E aconteceu que, depois que os anjos se retiravam deles para o céu falavam entre si os pastores dizendo: Passemos até Belém. E foram com grande pressa. - Em segundo lugar, os Magos vieram adorar a Cristo, no décimo terceiro dia da sua natividade, dia em que se celebra a festa da Epifania. Assim que, se tivessem vindo depois de passado um ano, ou ainda dois, não o teriam já encontrado em Belém, pois, como se lê no Evangelho, depois que eles deram fim a tudo, segundo o que mandava a lei do Senhor, isto é tendo apresentado o menino Jesus no templo, voltaram à Galileu para a sua cidade de Nazaré.  Em terceiro lugar manifestou-se aos justos no templo, no quadragésimo dia da natividade, como se lê no Evangelho.
 
A razão dessa ordem é, que os Pastores significavam os Apóstolos e os outros judeus crentes, a quem primeiro foi revelada a fé de Cristo; e entre esses não houve muitos poderosos nem muitos nobres, segundo o Apóstolo. - Em segundo lugar a fé de Cristo chegou à plenitude das gentes, prefigurada pelos Magos - Enfim, em terceiro, à plenitude dos judeus, prefigurada pelos justos. Por isso, no Templo dos judeus é que Cristo se lhes manifestou.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO — Como diz o Apóstolo, Israel, que seguia a lei da justiça, não chegou à lei da justiça; ao passo que os gentios, que não seguiam a justiça, em geral preveniram os judeus na justiça da fé. E na figura, destes, Simeão, que esperava a consolação de Israel, foi o último a saber do nascimento de Cristo; e foi procedido pelos Magos e pelos Pastores, que não esperavam essa natividade tão solicitamente.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Embora a plenitude dos gentios recebesse a fé primeiro que a plenitude dos judeus, contudo as primícias dos judeus preveniram na fé as primícias dos gentios. Por isso aos Pastores foí-Ihes manifestada a natividade de Cristo, antes de o ser aos Magos.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Há duas opiniões a respeito da estrela que apareceu aos Magos. - Crisóstomo e Agostinho dizem que a estrela apareceu aos Magos dois anos antes da natividade de Cristo. E só então, começando a meditar na viagem e a preparar-se para ela, das remotíssimas partes do Oriente chegaram até Cristo no décimo terceiro dia da sua natividade. E por isso Herodes, logo depois da partida dos Magos, vendo-se iludido por eles, mandou matar os meninos que tivessem dois anos e daí para baixo, estando na dúvida se Cristo nasceu quando apareceu a estrela, conforme ouvira dos Magos. - Mas outros dizem, que a estrela apareceu só quando Cristo nasceu; e desde então os Magos, ao verem a estrela pondo-se a caminho, realizaram a longuíssima jornada em treze dias, em parte ajudados do poder divino, e em parte pela velocidade dos dromedários. E isto, digo, no caso em que tivessem vindo das extremas partes do Oriente. Mas outros são de opinião que eles vieram de uma região próxima, donde era Balaão, de cuja doutrina eram os sucessores. E só o Evangelho diz que vieram do Oriente, é que essa terra está na parte oriental da terra dos judeus. E então, Herodes mandou matar os meninos, não logo depois da partida dos Magos, mas depois de um biênio. E isso, ou porque, como se diz, tendo sido acusado, foi durante esse tempo a Roma; ou porque, agitado pelo terror de certos perigos, desistiu por enquanto da idéia de matar o menino. Ou por ter sido levado a crer, que os Magos, enganados pela visão falaz da estrela, tiveram vergonha de voltarem a ele, depois de não terem encontrado o recém-nascido que procuravam, como opina Agostinho. E por isso, não só mandou matar os meninos de dois anos, mas ainda daí para baixo; porque, como diz Agostinho, temia que o menino, a quem as estrelas serviam, transformasse o seu corpo no de idade superior ou inferior.

 

Art. 5 — Se a natividade de Cristo devia manifestar-se pelos anjos e pela estrela.

O quinto discute-se assim. — Parece que a natividade de Cristo não devia manifestar-se pelos anjos nem pela estrela  

1. — Pois, os anjos são substâncias espirituais, segundo a Escritura: Que faz os seus anjos espíritos. Ora, a natividade de Cristo era segundo a carne, e não segundo a sua substância espiritual. Logo, não devia ser manifestada pelos anjos.
 
2. Demais. — Maior é a afinidade dos justos com os anjos do que com quaisquer outros, segundo a Escritura: O anjo do Senhor andará à roda dos que o temem e os livrará. Ora aos justos Simeão e Ana a natividade de Cristo não se manifestou pelos anjos. Logo, nem aos pastores devia ter-se manifestado pelos anjos. Item. - Parece que também aos Magos não devia ter-se manifestado pela estrela.
 
3. — Pois, o fato de o ter seria ocasião de engano para os que pensam que os astros influem no nascimento dos homens. Ora, aos homens se lhes devem poupar as ocasiões de pecar. Logo, não era conveniente que a natividade de Cristo fosse manifestada por uma estrela.
 
4. Demais. — Um sinal há de ser segura manifestação de uma realidade determinada. Ora, unia estrela não é sinal certo da natividade. Logo, inconveniente era a natividade de Cristo manifestar-se por uma estrela.
 
Mas, em contrário, a Escritura: As obras de Deus são perfeitas. Ora, a referida manifestação foi obra divina. Logo, realizou-se pelos sinais convenientes.
 
SOLUÇÃO. — Assim como a demonstração silogística nós a fazemos partindo do que nos é mais conhecido, assim o que se nos manifesta por sinais deve apoiar-se em sinais, que nos sejam mais familiares. Ora, é claro que aos varões justos é familiar e habitual serem ensinados pela inspiração interna do Espírito Santo, sem manifestação de sinais sensíveis, ou seja, pelo espírito de profecia. Ao contrário, os dados às causas corpóreas são conduzidos ao inteligível pelo sensível. Ora, os Judeus estavam habituados a receber as determinações divinas por ministério dos anjos, mediante os quais também receberam a lei, segundo a Escritura: Recebestes a lei por ministério dos anjos. Ao passo que os gentios, e sobretudo os astrólogos, estavam habituados a observar o curso dos astros. Por isso aos justos Simeão e Ana, manifestou-se a natividade de Cristo por inspiração interior do Espírito Santo, segundo àquilo do Evangelho: Havia recebido resposta do Espírito santo, que ele não veria a morte sem ver primeiro ao Cristo do Senhor. Mas aos pastores e aos Magos, como dados as causas materiais, a natividade de Cristo manifestou-se por aparições visíveis. E como a sua um sinal. E assim como o Senhor, quando lá falava, o anunciaram, aos gentios, pregadores, por meio da palavra, assim, enquanto ainda não falava foi anunciado pelos elementos mudos. ­ Mas Agostinho dá ainda a razão seguinte: A Abraão, diz, foi-lhe prometida uma sucessão inumerável, que devia ser gerada, não por via seminal, mas pela fecundidade da fé. Por isso foi comparada à multidão das estrelas, para que fosse esperada uma progênie celeste. E eis porque os gentios designados pelas estrelas, são advertidos, pelo nascimento de um novo astro, a se darem a Cristo, que os tornará filhos de Abraão.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO.  Precisa de manifestação o que em si mesmo é oculto, mas não o que já por si é manifesto. Ora, ao passo que o corpo de Cristo se tornou manifesto pela sua natividade, a sua divindade permanecia oculta. Por isso foi convenientemente manifestada a sua natividade pelos anjos, que são os ministros de Deus. Donde o anjo ter aparecido resplendente de luz, para mostrar que quem tinha nascido era o esplendor da glória paterna, no dizer do Apóstolo.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Os justos não precisavam de nenhuma aparição visível dos anjos, mas lhes bastava a inspiração interior do Espírito Santo, para a perfeição deles.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — A estrela, que manifestou a natividade de Cristo, não deu lugar a nenhuma ocasião de erro. Pois, como diz Agostinho, nenhum astrólogo jamais ensinou que o destino dos homens, ao nascerem, estivesse de tal modo dependente das estrelas, que por ocasião do nascimento de um deles, ela abandonasse o seu curso normal, para projetar-se sobre o recém-nascido, como se deu com a estrela que manifestou o nascimento de Cristo. O que, pois, não vinha confirmar o erro daqueles que pensam depender a sorte dos que nascem ao curso dos astros, mas não crêem que podem eles mudar o seu curso, para anunciar a natividade de um homem. – E semelhantemente como diz Crisóstomo, não é a função da Astronomia saber, por meio das estrelas, quais os recém-nascidos, mas, predizer o futuro desde, hora da natividade. Ora, os Magos não conheceram o tempo da natividade para, partindo daí, desvendarem o futuro pelo movimento das estrelas; mas antes, ao contrário.
 
RESPOSTA À QUARTA. — Como refere Crisóstomo, em algumas escrituras apócrifas se lê que um certo povo do extremo Oriente, nas margens do Oceano, possuía um escrito, com a assinatura de Set, referindo-se à estrela, de que tratamos, e aos dons que deviam ser oferecidos ao recém-nascido. E esse povo, esperando atentamente o momento do nascer a estrela, tendo destacado, para o saber, doze observadores, que, em tempos determinados, subiam indefectivelmente a um monte, do Alto do qual enfim a descobriram, deixando de aparecer como a figura de um menino e, acima, a semelhança de uma cruz. Ou devemos dizer com um autor: Os referidos Magos seguiam a tradição de Balaão, que disse - A estrela nascerá de Jacó. Por isso vendo eles uma estrela extraordinária entenderam ser essa. a que Balaão profetizou que haveria de anunciar a vinda do Rei dos Judeus. Ou podemos dizer, com S. Agostinho, por alguma advertência dos anjos, concernente à revelação, os Magos souberam que uma estrela: havia de manifestar o nascimento de Cristo. E provàvelmente, dos bons anjos, pois, o adorarem a Cristo já lhes redundava em benefício da salvação deles. Ou, como ensina Leão Papa, além daquela aparição que lhes feria a visão corpórea, o raio mais refulgente da verdade enriqueceu-lhes os corações com a iluminação da fé.

 

Art. 1 — Se a natividade de Cristo devia ser manifesta a todos.

O primeiro discute-se assim. — Parece que a natividade de Cristo devia ser manifesta a todos.  

1. — Pois, uma promessa deve ser cumprida. Ora, da promessa do advento de Cristo diz a Escritura: Deus virá manifestamente. Ora, veio pela natividade da carne. Logo, parece que a sua natividade devia ser manifesta a todos.
 
2. Demais. — O Apóstolo diz: Jesus Cristo veio a este mundo para salvar os pecadores. Ora, isso só se dá por se lhes manifestar a graça de Cristo, segundo ainda o Apóstolo: A Graça de Deus nosso Salvador apareceu a todos os homens, ensinando-nos que, renunciando à impiedade e às paixões mundanas, vivamos neste século sóbria, justa e piamente. Logo, parece que a natividade de Cristo devia ser manifesta a todos.
 
3. Demais. — Deus é, por excelência, inclinado à compaixão, segundo a Escritura: As suas misericórdias são sobre todas as suas obras. Ora, no seu segundo advento, quando julgar as justiças, virá de um modo manifesto a todos, segundo o dito do Evangelho: Como um relâmpago sai do oriente e se mostra até o ocidente, assim há de ser também a vida do Filho do Homem. Logo, com muito maior razão, a sua primeira ainda, quando nasceu neste mundo, segundo a carne, devia ser manifesta a todos.
 
Mas, em contrário, a Escritura: Tu verdadeiramente és um Deus escondido, o Deus d'Israel, o salvador. E noutro lugar: O seu rosto se achava como encoberto e parecia desprezível.
 
SOLUÇÃO. — A natividade de Cristo não devia ser, em geral, manifesta a todos. - Primeiro, porque teria assim ficado impedida a redenção humana, que havia de realizar-se pela sua cruz; pois, como diz o Apóstolo, se eles a conheceram, não crucificaram nunca ao Senhor da glória. - Segundo, por que ficaria diminuído o mérito da fé, pela qual viera justificar os homens, segundo o Apóstolo: A justiça de Deus é infundida pela fé de Jesus Cristo. Se, pois, por indícios manifestos, a natividade de Cristo fosse, na ocasião do seu nascimento, manifesta a todos, desapareceria a razão de ser da fé, que é um argumento das coisas que não aparecem. - Terceiro, porque lançaria dúvidas sobre a verdade da sua humanidade. Por isso diz Agostinho: Se não mudasse de idade, passando da infância para a juventude: se não tomasse nenhum alimento nem o repouso do sono, não confirmaria assim uma opinião errônea e não daria a crer que de nenhum modo assumiu verdadeiramente a humanidade? E depois de ter feito tantos milagres iria privar-nos das riquezas da sua misericórdia?
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO.  O lugar citado se entende do advento de Cristo no dia do juízo, como o expõe a Glosa a esse lugar.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Todos os homens deviam, para se salvarem, ser instruídos na graça de Deus Salvador. Não porém logo, no princípio da sua natividade, mas num tempo mais avançado, quando obrou a salvação no meio da terra. Por isso, depois da sua paixão e ressurreição, disse aos seus discípulos: Ide e ensinai a todas as gentes.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — O juízo implica no conhecimento da autoridade do juiz; e por isso é necessário seja manifesto o advento de Cristo quando vier julgar. Ora, o seu primeiro advento foi para a salvação de todos, que se operam pela fé; e esta tem por argumento as coisas que não aparecem. Por isso o primeiro advento de Cristo devia ser oculto.

 

Art. 4 — Se Cristo viveu segundo a lei.

 O quarto discute-se assim. — Parece que Cristo não viveu segundo a lei.

 
1. — Pois, a lei ordenava que nenhuma obra se fizesse no sábado, assim como Deus descansou no sétimo dia de toda obra que fizera. Ora,
Cristo curou um homem no sábado e mandou-o levar o seu leito. Logo, parece que não viveu segundo a lei.
 
2. Demais. — Cristo fez o que ensinou, segundo a Escritura: Jesus começou a fazer e a ensinar. Mas, ele próprio ensinou que não é o que entra pela boca o que faz imundo o homem, o que vai contra o preceito da lei, que dizia tornar-se o homem imundo por comer certos animais e ter contacto com eles. Logo, parece que não viveu segundo a lei.
 
3. Demais. — Julgamos do mesmo modo tanto quem faz como quem consente, conforme aquilo do Apóstolo: Não somente os que estas coisas fazem, senão também os que consentem aos que as fazem. Ora, Cristo consentiu pelos excusar, os seus discípulos transgredirem a lei, quando arrancavam as espigas no sábado. Logo, parece que Cristo não viveu segundo a lei.
 
Mas, em contrário, o Evangelho: Não julgueis que vim destruir a lei ou os profetas. Expondo o que, Crisóstomo diz: Cumpriu a lei - primeiro, por não ter transgredido nenhuma das suas injunções; segundo, justificando pela fé, o que a letra da lei não podia fazer.
 
SOLUÇÃO. — Cristo conformou totalmente a sua vida aos preceitos da lei. E para prová-la, quis circuncidar-se: ora, a circuncisão é uma demonstração de cumprimento da lei, segundo aquilo do Apóstolo: Protesto a todo homem que se circuncida que está obrigado a guardar toda a lei. - Ora, Cristo quis viver obediente à lei: primeiro para assim aprovar a lei antiga. - Segundo, a fim de, observando-a, consumá-la em si mesmo e terminá-la, mostrando como ela a si se ordenava. - Terceiro, para não dar aos judeus ocasião de caluniá-lo. - Quarto, para livrar os homens da escravidão da lei, segundo o Apóstolo: Enviou Deus a seu Filho, feito sujeito à lei, a fim de remir aqueles que estavam debaixo da lei.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Nessa matéria, o Senhor se excusa de haver transgredido a lei por três razões. - Primeiro, porque o preceito da santificação do sábado não proíbe as obras divinas, mas, as humanas. Assim, embora Deus tivesse cessado de produzir novas criaturas no sétimo dia, sempre porém a sua ação aparece na conservação e no governo das coisas. Ora, os milagres operados por Cristo eram obras divinas. Donde o dizer o Evangelho: Meu Pai até agora não cessa de obrar e eu obro também incessantemente. - Segundo, excusa-se por não proibir o referido preceito as obras necessárias à saúde do corpo. Assim, ele próprio o disse: Não desprende cada um de vós nos sábados o seu boi ou o seu jumento e não os tira da estribaria para os levar a beber? E mais adiante: Quem há de entre vós que se o seu jumento ou o seu boi cair num poço em dia de sábado, o não tire logo no mesmo dia? Ora, é manifesto que as obras milagrosas, feitas por Cristo, tinham em vista a saúde do corpo e da alma. - Terceiro, porque esse preceito não proíbe as obras relativas ao culto de Deus. Donde o 'dizer o Evangelho: Ou não tendes lido na lei que os sacerdotes nos sábados, no templo quebrantam o sábado e ficam sem pecado? E noutro lugar diz que recebe um homem a circuncisão em dia de sábado. Quanto ao fato de ter Cristo mandado ao paralítico levar o seu leito, no sábado, isso era em vista do culto a Deus, isto é, para louvor da virtude divina. - Por onde é claro que não violava a lei do sábado; embora os judeus falsamente lh’o exprobrassem, quando diziam: Este homem, que não guarda o sábado não é de Deus.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Com as palavras citadas, Cristo quis mostrar que a alma do homem não se torna imunda pelo uso de nenhuns alimentos, quanto à natureza mesma deles, senão só quanto a alguma significação que tenham. Por isso, diz Agostinho: A quem perguntar se o porco e o cordeiro são de natureza pura, respondemos que toda criatura de Deus é pura; mas, em certo sentido, o cordeiro é puro e o porco, impuro.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Também os discípulos, quando, por terem fome, arrancaram as espigas ao sábado, ficam excusados da transgressão à lei, pela necessidade da fome; assim como Davi não foi transgressor da lei quando, ungido pela fome, comeu os pães que lhes era lícito comer. 

Art. 3 — Se Cristo devia viver neste mundo uma vida pobre.

 O terceiro discute-se assim. — Parece que Cristo não devia viver neste mundo uma vida pobre.

 
1. — Pois, Cristo devia assumir a vida mais digna de escolha. Ora, a vida mais digna de escolha é a média, entre as riquezas e a pobreza, conforme àquilo da Escritura: Não me dês nem a pobreza nem as riquezas; dá-me somente o que for necessário para viver. Logo, Cristo não devia viver uma vida pobre, mas medíocre.
 
2. Demais. — As riquezas exteriores se ordenam a alimentar e vestir o corpo. Ora, Cristo alimentava-se e vestia-se de acordo com a vida ordinária daqueles com quem convivia. Logo parece que devia viver do modo comum, uma vida mediana entre rica e pobre, e não na extrema pobreza.
 
3. Demais. — Cristo nos deu a todos o exemplo da humildade, segundo aquilo do Evangelho: Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração. Ora, sobretudo aos ricos é que se deve pregar a humildade, no dizer do Apóstolo: Manda os ricos deste mundo que não sejam altivos. Logo, parece que Cristo não devia levar uma vida pobre.
 
Mas, em contrário, o Evangelho: O Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça. Como se dissesse, segundo o explica Jerônimo: Desejais seguir-me por causa das riquezas e dos bens do século, a mim tão pobre que nem mesmo tenho um tugúrio e vivo sob o teto alheio? E aquilo do Evangelho - Para que os não escandalizemos, vai ao mar - diz Jerônimo: Entendidas essas palavras pelo que significam, são uma edificação para o ouvinte, advertindo-o ter sido tão grande a pobreza do Senhor a ponto de não ter com que pagasse o tributo por si e pelo Apóstolo.
 
SOLUÇÃO. — Convinha a Cristo viver neste mundo uma vida pobre. - Primeiro, por condizer com o ofício da pregação, por causa da qual disse ter vindo ao mundo: Vamos para as aldeias e cidades circunvizinhas, porque também quero lá pregar; que a isso é que vim. Pois, os pregadores da palavra de Deus hão de dar-se totalmente à pregação, desapegados completamente do cuidado das coisas seculares. O que não podem fazer os possuidores de riquezas. Por isso, o próprio Senhor, enviando os Apóstolos a pregar, disse-lhes: Não possuais ouro nem prata: E os próprios Apóstolos diziam: Não é justo que nós deixemos a palavra de Deus e que sirvamos às mesas. - Segundo, porque assim como sujeitou seu corpo à morte para nos conquistar a vida espiritual, assim sofreu a pobreza de bens materiais, para nos conquistar as riquezas espirituais, segunda aquilo do Apóstolo: Sabeis que graça não foi a de nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, se fez pobre por vosso amor, a fim de que vós fosseis ricos pela sua pobreza. - Terceiro, porque, se tivesse riquezas, podiam atribuir-lhe a pregação à cobiça. Por isso, diz Jerônimo, que se os discípulos tivessem riquezas, pareceria pregarem não com a vista na salvação dos homens. mas no ganho. - Quarto, para tanto mais manifestar a grandeza da sua divindade, quanto mais pobre a vida que levava. Por isso se diz no Concílio Efesino: Escolheu uma vida pobre e humilde, tudo o que constitui mediania e obscuridade para o maior número para que se visse que foi a divindade quem transformou a face da terra. Por isso, escolheu como sua mãe uma pobrezinha, uma pátria paupérrima e foi pobre de bens; e isso mesmo te mostra o seu presépio.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A superabundância das riquezas e a mendicidade, enquanto ocasiões de pecar, devem ser cortadas pelos que querem viver uma vida virtuosa. Pois, a abundância de riquezas é ocasião de soberba; a mendicidade, de roubo e de mentira ou ainda de perjúrio. Ora, como Cristo era isento de todo pecado, não devia evitar uma e outra causa pela mesma causa por que as evitava Salomão. Nem, além disso, qualquer mendicidade é ocasião de furto e de perjúrio, como no mesmo lugar o ensina Salomão, mas só a que nos contraria a vontade para evitar a qual o homem furta e perjura. Pois, a pobreza voluntária não tem esse perigo. E foi essa a escolhida por Cristo.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Alimentar-se e vestir-se ao modo ordinário qualquer o pode, não só possuindo riquezas, mas ainda recebendo dos ricos o necessário. O que também se deu com Cristo. Assim, como o Evangelho diz certas mulheres que seguiam a Cristo, que lhe assistiam de suas posses. Pois, como diz Jerônimo, era uso dos judeus e em nada colidia com o costume antigo desse povo, que as mulheres fornecessem de seus próprios bens o alimento e a roupa aos que as instruíam. Mas, como isso podia causar escândalo aos gentios, Paulo declarou que rejeitou tais auxílios. Assim, pois, comum subsistência podia existir sem os cuidados impedientes do dever da pregação; mas não a posse das riquezas.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. - No pobre por necessidade a humildade não é muito meritória. Mas no pobre voluntário, como Cristo, a própria pobreza é sinal de uma humildade máxima. 

Art. 2 — Se Cristo devia viver neste mundo uma vida austera.

 O segundo discute-se assim - Parece que Cristo devia levar uma vida austera neste mundo.

 
1. — Pois, Cristo muito mais que João pregou a perfeição da vida. Ora. João levou uma vida austera, para com o seu exemplo despertar nos homens o desejo de uma vida perfeita. Assim, diz Mateus: O mesmo João tinha um vestido de peles de camelo e uma cinta de couro em roda dos seus rins; e a sua comida eram gafanhotos e mel silvestre. Expondo o que diz Crisóstomo: Era admirável ver tão grande mortificação num corpo humano, o que mais lhe atraía os judeus. Logo, parece, com muito maior razão, que a Cristo convinha a austeridade de vida.
 
2. Demais. — A abstinência se ordena à continência; assim, diz a Escritura - Comerão e não ficarão fartos; eles se deram à fornicação
e não cuidaram de
se retirar dela. Ora, Cristo guardava continência e propunha a ser observada pelos outros, como lemos no Evangelho: Há uns castrados que a si mesmos se castraram por amor do reino dos céus. O que é capaz de compreender isto compreenda-o. Logo, parece
que tanto Cristo como os seus discípulos deviam levar uma vida de austeridades.
 
3. Demais. — É risível começar alguém uma vida austera para depois passar a vive-Ia às soltas; contra esse poderíamos aplicar o lugar do Evangelho, este homem começou a praticar e não no pode acabar. Ora, Cristo viveu uma vida rigorosíssima, depois do batismo, permanecendo no deserto e jejuando quarenta dias e quarenta noites. Logo, não era admissível que depois de tão grandes austeridades passasse a viver uma vida comum.
 
Mas, em contrário, o Evangelho: Veio o Filho do homem, que come e bebe.
 
SOLUÇÃO. — Como dissemos, convinha aos fins da Encarnação que Cristo não vivesse uma vida solitária, mas participasse da sociedade humana. Ora, quem convive com outros é convenientíssimo que se conforme com o gênero de vida deles, segundo o Apóstolo: Fiz-me tudo para todos. Por isso, foi convenientíssimo que Cristo tomasse comida e bebida como os homens comumente o fazem. Donde o dizer Agostinho. O Evangelho refere que João não comia nem bebia, porque não tomava aquela alimentação de que os judeus se serviam. E se o Senhor não usasse de alimentos, o Evangelho não diria que, comparado com João, ele comia e bebia.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O Senhor, no gênero de vida que abraçou, deu exemplo de perfeição em tudo o que respeita à salvação de maneira essencial. Ora, a abstinência da comida e da bebida não é de necessidade essencial para a salvação, segundo aquilo do Apóstolo: O reino de Deus não é comida nem bebida. E expondo o lugar do Evangelho - a sabedoria foi justificada por seus filhos - diz Agostinho: Porque os santos Apóstolos entendem que o reino de Deus não consiste em comida nem bebida, mas em sofrer com equanimidade, de modo que nem a abundância os ensoberbeça nem os deprima a pobreza. E acrescenta, que não é o uso de tais causas, mas a sensualidade com que é feito, que constitui culpa. Pois, tanto uma como outra vida são lícitas e louváveis: guardarmos a abstinência, separados da convivência habitual com os homens; e vivermos a vida comum na sociedade dos outros. Por isso o Senhor quis nos dar o exemplo de ambos esses gêneros de vida. Ao passo que João, como diz Crisóstomo, não tinha por si mais que a sua vida e a sua santidade, Cristo tinha o testemunho dos seus milagres. Deixando, pois, a João os rigores do jejum escolheu um caminho contrário, sentando-se à mesa dos publicanos, a comer e beber com eles.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Assim como os outros homens alcançam, pela abstinência, a virtude da continência, assim Cristo, em si e nos seus discípulos, continha a carne pela virtude da sua divindade. Donde o dizer o Evangelho: Os fariseus e os discípulos de João jejuavam, mas não os discípulos de Cristo. Explicando o que Beda diz, que João não bebia vinho nem outra alguma bebida que pudesse embriagar; assim, não dispondo de nenhum poder superior à natureza, ganha um aumento de mérito na abstinência. Ao passo que o Senhor, tendo por natureza o poder de perdoar os pecados, porque havia de afastar-se dos homens que podia tornar mais puros do que os entregues à abstinência?
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz Crisóstomo, para aprenderes quão grande éo bem do jejum, e que escudo é contra o diabo e o quanto, depois do batismo, devemos nos dar ao jejum e fugir a sensualidade, Cristo jejuou, não por precisar, mas para nos instruir. Mas não ultrapassou os limites do jejum marcados pelos exemplos de Moisés e de Elias, para não inspirar nenhuma dúvida sobre a realidade da carne que assumiu. - No sentido místico, porém, Gregório explica, que o número quarenta é observado, no jejum, ao exemplo de Cristo, porque a virtude do decálogo se exerce nos quatro livros do santo Evangelho; e o número dez, quatro vezes repetidos, produz o de quarenta. Ou porque o nosso corpo mortal consta de quatro elementos, e pelos prazeres sensíveis resistimos aos preceitos do Senhor, que nos foram transmitidos pelo Decálogo. - Ou, segundo Agostinho: Todas as regras da sabedoria se reduzem a conhecer o Criador e a Criatura. O Criador é a Trindade, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Quanto à criatura, uma parte dela, a alma, é invisível, a qual é atribuído o número ternário; pois, o mandamento nos ordena amar a Deus de três modos - de todo o coração, de todo a alma e de todo o entendimento; a outra parte - o corpo, é visível, e se lhe atribui o número quaternário, por causa do calor, da humildade, da frigidez e da secura. Por onde, o número dez, que resume toda a disciplina, multiplicado por quatro, isto é, pelo número atribuído ao corpo - pois, por meio do corpo é que a alma governa - forma o número quarenta. Por isso, o tempo durante o qual gememos e sofremos é designado pelo número quarenta. - Nem por isso houve inconveniente em Cristo, depois do jejum no deserto, voltar à vida comum. Pois esse é o gênero de vida conveniente aquele que deve transmitir aos outros o fruto da contemplação; e tal foi a vida que Cristo assumiu: primeiro, vacar à contemplação, para depois descer a agir em público, convivendo com os outros. Por isso diz Beda: Cristo jejuou, para não transgredir o preceito: comeu com os pecadores a fim de sentindo os efeitos da sua graça, tu lhe reconheças o poder. 
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