Category: Santo Tomás de Aquino
O segundo discute-se assim. — Parece que não era possível outro modo da liberação humana que não fosse a paixão de Cristo.
1. — Pois, diz o Senhor: Se o grão de trigo que cai na terra não morrer fica ele só; mas se ele morrer produz muito fruto. E Agostinho explica, que ele se considerava como o grão. Se, portanto, não tivesse sofrido a morte, não teria de outro modo produzido da nossa liberação.
2. Demais. — Como lemos no Evangelho, o Senhor diz ao Pai: Pai meu, se este cálice não pode passar sem que eu o beba, faça-se a tua vontade. Ora, refere-se ao cálice da paixão. Logo, a paixão de Cristo não podia ser evitada. E por isso diz Hilário: Esse cálice não podia passar sem que ele o bebesse porque não podemos ser resgatados senão pela sua paixão.
3. Demais. — A justiça de Deus exigia que o homem fosse liberado do pecado, mediante a satisfação de Cristo, pela sua paixão. Ora, Cristo não podia evitar a paixão, como o diz o Apóstolo: Se não cremos, ele permanece fiel; não pode negar-se a si mesmo. Mas negar-se-ia a si mesmo, se negasse a sua justiça, pois ele é a própria justiça. Logo, parece que não era possível o homem ser liberado de outro modo senão pela paixão de Cristo.
4. Demais. — A fé é incompatível com todo e qualquer erro. Ora, os antigos Patriarcas acreditavam que Cristo haveria de sofrer. Logo, parece que era inevitável, que Cristo sofresse.
Mas, em contrário, diz Agostinho: Afirmamos que é bom e consentâneo com a dignidade divina o modo pelo qual o mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo, Deus, se dignou nos liberar. Contudo, mostremos também, que Deus dispunha ainda de outros modos possíveis, ao poder de quem todas as causas estão igualmente sujeitas.
SOLUÇÃO. — De dois modos podemos dizer que uma coisa é possível ou impossível. Primeiro, simples e absolutamente falando; de outro modo, por hipótese. - Ora, simples e absolutamente falando, era possível a Deus liberar o homem de outro modo que não pela paixão de Cristo; pois, como diz o Evangelho, a Deus nada é impossível. Mas, hipoteticamente falando, era. impossível. Pois, sendo impossível a presciência de Deus enganar-se e a sua vontade ou disposição anular-se, não era simultaneamente possível, suposta a presciência de Deus e a sua preordenação, relativamente à paixão de Cristo, este não sofrer e o homem ser liberado por outro modo do que pela sua paixão. E o mesmo devemos dizer de tudo o de que Deus tem presciência e que preordena, como na Primeira Parte ficou preestabelecido.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O Senhor nesse lugar, fala, suposta a presciência e a preordenação de Deus, pela qual fora ordenado que o fruto da salvação humana não resultaria senão da paixão de Cristo. E do mesmo modo devemos entender o texto citado na SEGUNDA OBJEÇÃO: Se este cálice não pode passar sem que eu o beba, isto é, porque tu assim o dispuseste. E por isso acrescenta: Faça-se a tua vontade.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Também a referida justiça depende da vontade divina, que exige do gênero humano uma satisfação pelo pecado. Mas, se quisesse, sem qualquer satisfação, liberar o homem do pecado, não agiria contra a justiça. Pois, o juiz que deve punir a culpa incorrida contra terceiros - por exemplo, contra outra pessoa, ou contra toda a república ou contra um chefe elevado em dignidade - não pode, por dever de justiça, demitir a culpa sem a pena. Mas, Deus não tem nenhum superior, sendo ele o bem supremo e comum de todo o universo. Logo, demitindo o pecado que por natureza é culposo, porque ofende a Deus, a ninguém lesa: assim como quem quer que perdoa uma ofensa contra si cometida, sem nenhuma satisfação, age misericordiosa e não injustamente. Por isso Davi, implorando misericórdia, dizia: Contra ti só pequei; como se dissesse: Podes me perdoar sem injustiça.
RESPOSTA À QUARTA. — A fé humana e também as divinas Escrituras, em que se funda a fé, apóiam-se na presciência e na ordenação divina. Por isso a necessidade procedente da suposição da fé humana e das divinas Escrituras, e a da presciência e vontade divinas, tem a mesma razão.
O primeiro discute-se assim. Parece que não era necessário Cristo sofrer pela liberação do gênero humano.
1. — Pois, só Deus podia liberar o gênero humano, segundo a Escritura: Porventura não sou eu o Senhor e não é assim que não há outro Deus senão eu? Deus justo e salvador não no há fora de mim. Ora, Deus não está sujeito a nenhuma necessidade, o que lhe repugnaria à onipotência. Logo, não era necessário que Cristo sofresse.
2. Demais. — O necessário se opõe ao voluntário. Ora, Cristo sofreu por vontade própria, como o diz a Escritura: Foi oferecido porque ele mesmo quis. Logo, não foi necessário que sofresse.
3. Demais. — Como diz a Escritura, todos os caminhos do Senhor são misericórdia e verdade. Ora, não era necessário que sofresse, por parte da misericórdia divina, a qual, assim como distribui os seus dons gratuitamente, assim também há de gratuitamente perdoar as dívidas sem satisfação. Nem por parte da justiça divina, pela qual o homem merecera a condenação eterna. Logo, parece que não era necessário ter Cristo sofrido pela liberação dos homens.
4. Demais. — A natureza angélica é mais excelente que a humana, como ensina Dionísio. Ora, Cristo não sofreu para reparar a natureza angélica, que tinha pecado. Logo, parece que não lhe fora também necessário sofrer pela salvação do gênero humano.
Mas, em contrário, o Evangelho: Como Moisés no deserto levantou a serpente, assim importa que seja levantado o Filho do homem, para que todo o que crê nele não pereça, mas tenha a vida eterna. O que se entende da exaItação na cruz. Logo, parece que Cristo devia ter sofrido.
SOLUÇÃO. — Como o ensina o Filósofo, a palavra necessária é susceptível de muitas acepções. — Numa, significa o que não pode por sua natureza, apresentar-se de modo diferente. E, nesse sentido, é claro que não foi necessário ter Cristo sofrido, nem da parte de Deus nem da do homem. — Noutra, o necessário o é em virtude de uma causa exterior. Se essa causa for eficiente ou motriz, produz a necessidade de coação; tal o caso de quem não pode andar por causa da violência do que o detém. Se porém essa causa exterior geratriz da necessidade for o fim, o necessário o será pela suposição do fim; isto é, quando o fim de nenhum modo pode ser atingido sem esse meio necessário, ou não o pode convenientemente, senão recorrendo a tal meio. Logo, que Cristo sofresse não era necessário por uma necessidade de coação: nem por parte de Deus, que o determinou a sofrer, nem por parte do próprio Cristo, que sofreu voluntariamente.
Necessário, porém o foi pela necessidade de fim. O que podemos entender de três modos. — Primeiro, relativamente a nós, que fomos liberados pela sua paixão, segundo o Evangelho: Importa que seja levantado o Filho do homem, para que todo o que crê nele não pereça, mas tenha a vida eterna. — Segundo, relativamente ao próprio Cristo, que pelas humilhações da paixão mereceu a glória da exaltação. E a isso se refere o Evangelho quando pergunta: Porventura não importava que o Cristo sofresse estas coisas e que assim entrasse na sua glória? — Terceiro, relativamente a Deus, cuja determinação concernente à paixão de Cristo foi profetizada nas Escrituras e prefigurada, nas observâncias do Velho Testamento. E é o que diz o Evangelho: O Filho do homem vai segundo o que está decretado. E mais adiante: É o que queriam dizer as palavras que eu vos dizia quando ainda estava convosco, que era necessário que se cumprisse tudo o que de mim estava escrito na lei de Moisés e nos profetas e nos salmos. E ainda: Assim é que estava escrito que importava que o Cristo padecesse e que ressurgisse dos mortos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. - A objeção colhe, quanto à necessidade imposta pela coação, da parte de Deus.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A objeção colhe, quanto à necessidade imposta pela coação, da parte do homem Cristo.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Liberar o homem pela paixão de Cristo, convinha tanto à misericórdia como à justiça de Cristo. À justiça, porque com a sua paixão Cristo satisfez pelo pecado do gênero humano; e assim o homem foi liberado pela justiça de Cristo. À misericórdia, de seu lado, porque não podendo o homem por si mesmo satisfazer pelo pecado de toda a natureza humana, como se disse, Deus lhe deu o seu Filho único como reparador, segundo aquilo do Apóstolo: Tendo sido justificados gratuitamente por sua graça, pela redenção que tem em Jesus Cristo, ao qual propôs Deus para ser vítima de propiciação pela fé no seu sangue. O que implicava uma misericórdia mais abundante que se tivesse perdoado os pecados, sem satisfação. Donde o dizer o Apóstolo: Deus, que é rico em misericórdia, pela sua extremada caridade, com que nos amou, ainda quando estávamos mortos pelos pecados, nos deu vida juntamente em Cristo.
RESPOSTA À QUARTA. — O pecado do anjo não era reparável, como o era o do homem, como resulta do que foi dito na Primeira Parte.
O quarto discute-se assim. — Parece que se acrescentou inconvenientemente o testemunho da voz paterna que dizia: este é o meu filho dileto.
1. — Pois, como diz a Escritura, Deus fala uma vez e segunda vez não repete uma mesma causa. Ora, no batismo, isso mesmo o proclamara a voz paterna. Logo, não era conveniente que ainda fosse de novo proclamado na transfiguração.
2. Demais. — No batismo, simultaneamente com a voz paterna apareceu o Espírito Santo em forma de pomba. O que não se deu na transfiguração. Logo, parece não devia ter havido a proclamação do Pai.
3. Demais. — Cristo começou a ensinar depois do batismo. E contudo no batismo a voz do Pai não veio advertir os homens a ouví-Io. Logo, nem o devia ter feito na transfiguração.
4. Demais. — Não devemos dizer a outros o que não poderiam suportar, conforme aquilo do Evangelho: Eu tenho ainda muitas coisas, que vos dizer, mas vós não nas podeis suportar agora. Ora, os discípulos não podiam suportar a voz do Pai, pois, diz o Evangelho: Ouvindo isto, os discípulos caíram de braços e tiveram grande medo. Logo, a voz paterna não se lhes devia manifestar.
Mas, em contrário, a autoridade da Escritura Evangélica.
SOLUÇÃO. — A adoção de filhos de Deus supõe uma certa conformidade entre a imagem e quem é realmente Filho de Deus. O que de dois modos se dá. Primeiro, pela graça, conferida nesta vida; que é uma conformidade imperfeita. Segundo, pela glória da pátria, que será a conformidade perfeita, segundo aquilo do Evangelho: Agora somos filhos de Deus e não apareceu ainda o que havemos de ser. Sabemos que, quando ele aparecer, seremos semelhantes a ele; porquanto nos outros o teremos bem como ele é. Ora, como recebemos a graça pelo batismo, e a transfiguração foi um prenúncio do esplendor da glória futura, por isso, tanto no batismo como na transfiguração foi conveniente manifestar-se a filiação natural de Cristo, pelo testemunho do Pai. Por que só o Pai é perfeitamente cônscio dessa perfeita geração, simultaneamente com o Filho e o Espírito Santo.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O lugar citado deve ser referido à eterna locução de Deus, pela qual Deus Padre proferiu o Verbo, coeterno consigo. E contudo podemos dizer que Deus, com voz material, proferiu duas vezes o mesmo verbo, mas não com o mesmo fundamento; mas para mostrar o modo diverso pelo qual os homens podem participar da semelhança da filiação eterna.
RESPOSTA À SEGUNDA. — No batismo quando foi anunciado o mistério da primeira regeneração, manifestou-se a obra de toda a Trindade, porque aí se manifestou o Filho encarnado, apareceu o Espírito Santo em figura de pomba e o Pai se anunciou verbalmente. Assim também na transfiguração, que é o sacramento da segunda regeneração, toda a Trindade manifestou-se — o Pai, pela voz; o Filho, pela sua humanidade; o Espírito Santo, pela nuvem luminosa. Porque, assim como, no batismo dá a inocência, designada pela simplicidade da pomba, assim na ressurreição dará aos eleitos o esplendor da sua glória e a libertação de todo mal, simbolizados pela nuvem lúcida.
RESPOSTA ÀTERCEIRA — Cristo veio nos dar a graça atual, mas só prometer a glória, com a sua palavra. Por isso e convenientemente na transfiguração os homens são advertidos a ouvi-lo, não porem no batismo.
RESPOSTA À QUARTA. — Foi conveniente os discípulos se aterrorizarem com a voz do Pai e se prosternarem, a fim de ficar assim claro que a excelência dessa glória que então se manifestava, excede toda a compreensão e toda a capacidade dos mortais, segundo aquilo da Escritura: Nenhum homem me verá e depois viverá. E por isso diz Jerônimo, que a fragilidade humana não pode suportar o esplendor de uma tão grande glória. Mas Cristo nos cura dessa fragilidade, introduzindo-nos na glória. O que significam as, palavras que lhes disse: Levantai-vos e não temais.
O terceiro discute-se assim. — Parece que não foram escolhidas testemunhas convenientes da transfiguração.
1. — Pois, cada um só pode testemunhar o que conhece. Ora, no tempo da transfiguração de Cristo, ninguém, a não ser os anjos, conhecia por experiência o que fosse a glória futura. Logo, testemunhas da transfiguração deviam ter sido antes os anjos que os homens.
2. Demais. — Testemunhas da verdade só podem ser pessoas reais e não fictícias. Ora, na transfiguração Moisés e Elias não estiveram presentes senão ficticiamente. Assim, àquilo do Evangelho — Eis que ali estavam Moisés e Elias — diz uma Glosa: Devemos saber que Moisés e Elias não apareceram, nessa ocasião, em corpo e alma, mas com corpos formados numa criatura ocasional. E podemos crer também que isso foi feito por ministério angélico, de modo que os anjos lhes assumissem as pessoas. Logo, não foram testemunhas convenientes.
3. Demais. — A Escritura diz, que de Cristo dão testemunho todos os profetas. Logo, não somente Moisés e Elias deviam ter estado presentes como testemunhas, mas também todos os profetas.
4. Demais. — A glória de Cristo era prometida a todos os seus fiéis, nos quais quis acender, pela sua transfiguração, o desejo dessa glória. Logo, não devia ter assumido só Pedro, Tiago e João como testemunhas da sua transfiguração, mas todos os discípulos.
Mas, em contrário, a autoridade da Escritura Evangélica.
SOLUÇÃO. — Cristo quis transfigurar-se, para mostrar a sua glória aos homens e para despertar-lhes o desejo dela, como dissemos. Ora, à glória da eterna beatitude os homens são levados por Cristo, não só os que existiram antes, como também depois dele. Por isso, quando caminhava para a sua paixão, tanto as gentes que iam adiante, como as que iam atrás, gritavam dizendo — Hosana, como esperando dele a salvação. Por isso era conveniente que, dentre os que o precederam, estivessem como testemunhas Moisés e Elias; e dos que existiram depois, Pedro, Tiago e João, para que por boca de duas ou três testemunhas ficasse confirmada essa palavra.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Isto, pela sua transfiguração, manifestou aos discípulos a glória do seu corpo, que só aos homens respeita. Por isso e convenientemente, foram trazidos como testemunhas dela, não anjos, mas homens.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Essa glosa considera-se como extraída do livro intitulado - Dos milagres da Sagrada Escritura, que não é um livro autêntico, mas falsamente atribuído o Agostinho. Por isso não devemos nos apoiar nela. Pois, Jerônimo diz expressamente: Devemos notar que aos escribas e aos fariseus, que lhe pediam um sinal do céu, Cristo não lhes quis dar; mas, na sua transfiguração, para aumentar a fé dos discípulos, dá-lhes um sinal do céu, a saber, o descenço de Elias, do lugar para onde ascendera; e a ressurreição de Moisés, dos mortos. Mas não o devemos entender como significando que a. alma de Moisés retomasse o seu corpo; mas que a sua alma se manifestou, como o fazem os anjos, por um corpo assumido. Mas Elias apareceu com o seu próprio corpo, não vindo do céu empíreo, mas de um lugar elevado, para o qual foi arrebatado num carro de fogo.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz Crisóstomo, Moisés e Elias foram trazidos como testemunhas, por muitas razões. — A primeira é a seguinte: Porque como as turbas consideravam-no como Elias ou Jeremias, ou um dos profetas, fezaparecerem os principais dos profetas, para ao menos assim manifestar a diferença entre os servos e o Senhor. — A segunda razão é, porque Moisés deu a lei e Elias foi o zelador da glória do Senhor. Assim, aparecendo simultaneamente com Cristo, ficava aniquilada a calúnia dos judeus, que acusavam a Cristo de transgressor da lei, e de blasfemo por usurpar para si a glória de Deus. — A terceira razão é: mostrar que tinha poder sobre a vida e a morte, que era o juiz dos mortos e dos vivos, por ter tido ao seu lado Moisés, que já morrera, e Elias, ainda vivo. — A quarta razão é que: como diz o Evangelho falavam da sua saída deste mundo que havia de cumprir em Jerusalém, isto é, da sua paixão e da sua morte. E assim, para fortalecer, nesse ponto, a alma dos discípulos, fá-Ios se apresentarem em sua companhia os que se expuseram à morte por Deus; pois, Moisés, com perigo de morte, se apresentou perante o Faraó e Elias, perante Acab. — A quinta razão é porque queria que os seus discípulos fossem imitadores da mansidão de Moisés e do zelo de Elias. — A sexta razão, acrescentada por Hilário, era mostrar que foi anunciado pela lei de Moisés e pelos profetas, entre os quais era Elias o principal.
RESPOSTA À QUARTA. — Mistérios sublimes não devem ser revelados a todos imediatamente mas devem oportunamente chegar aos outros homens por meio dos chefes. Por isso, como diz Crisóstomo, Cristo levou consigo os três discípulos mais principais: Pois, Pedro foi executado pelo amor, que teve para com Cristo e também pelo poder que lhe foi cometido; João, pelo privilégio do amor com que, por causa da sua virgindade, era amado de Cristo, e também pela prerrogativa de ter pregado a doutrina Evangélica: e Tiago enfim, pela prerrogativa do martírio. E contudo Cristo não quis que esses mesmo anunciassem, o que viram antes da sua ressurreição. A fim de como explica Jerônimo. fato de tão grande magnitude não ser tido como incrível; nem viesse, depois de tão grande glória, a causar escândalo, entre almas rudes, a cruz, que lhe havia de suceder; ou também a fim de o povo não se lhe opor invencivelmente; e para que, quando estivessem cheios do Espírito Santo, então fossem testemunhas desses fatos espirituais.
O segundo discute-se assim. — Parece que a referida luminosidade não era gloriosa.
1. — Pois, diz uma Glosa de Beda àquilo do Evangelho — Transfigurou-se na presença deles: No seu corpo mortal, diz, mostra, não a imortalidade, mas a luminosidade semelhante à imortalidade futura. Ora, a luminosidade da glória é a luminosidade da imortalidade. Logo, aquela luminosidade, que Cristo manifestou aos discípulos, era a luminosidade da glória.
2. Demais. — Aquilo do Evangelho — Não hão de gostar a morte até não verem o reino de Deus — diz a Glosa de Beda: isto é, a glorificação do corpo, numa representação imaginária da beatitude futura. Ora, a imagem de uma coisa não se confunde com esta. Logo, a referida luminosidade o era a da beatitude.
3. Demais. — Da luminosidade da gloria só é susceptível o corpo humano. Ora, a luminosidade da transfiguração se manifestou não só no corpo de Cristo, mas também nas suas vestes e na nuvem lúcida que obumbrou os discípulos. Logo, parece que essa luminosidade não era a da glória.
Mas, em contrário, àquilo de Mateus. — Transfigurou-se perante eles, diz Jerônimo: Tal como há de aparecer no dia do juízo, assim apareceu aos Apóstolos. E àquele outro lugar do mesmo evangelista — até que vejam o Filho do homem vir na gloria do seu reino — diz Crisóstomo: Querendo mostrar aquela glória, com a qual virá mais tarde, manifestou-se-lhes na vida presente, como podiam eles suportar, de modo que não viessem a se condoer com a morte do Senhor.
SOLUÇÃO. — A luminosidade de que Cristo se revestiu na transfiguração foi a da glória, quanto ao modo de ser. Pois, a luminosidade do corpo glorioso deriva da luminosidade da alma, como diz Agostinho. E semelhantemente a claridade do corpo de Cristo na transfiguração deriva da sua divindade, como diz Damasceno, e da glória da sua alma. E só por uma dispensa divina é que a glória da alma, que Cristo teve desde o princípio da sua concepção, não redundou no corpo, a fim de que consumasse num corpo passive os mistérios da nessa redenção, como dissemos. Mas isso não privou Cristo do poder de derivar a glória da alma para o corpo. E isso o fez quanto à luminosidade, na transfiguração. Mas de modo diferente que no corpo glorificado. Pois, no corpo glorificado redunda a luminosidade da alma, como uma qualidade permanente que afeta o corpo; por isso, o refulgir corporalmente o corpo glorioso não é nenhum milagre. Mas, para o corpo de Cristo, na transfiguração, derivou-lhe a luminosidade da sua divindade e da sua alma, não a modo de uma qualidade imanente e afectante do corpo em si mesmo, mas antes a modo de paixão transeunte, como quando o ar é iluminado pelo sol. Por isso, aquele fulgor de que então se revestiu o corpo de Cristo, foi miraculoso, como também o foi o fato de ter andado sobre as ondas do mar. Donde o dizer Dionísio: Cristo pratica, com um poder sobre humano, atos que o homem pode praticar; como o demonstra o fato de ter a Virgem concebido sobrenaturalmente e o de ter a mobilidade da água sustentado o peso dos seus pés materiais e terrenos. — E por isso não devemos admitir, como o ensina Hugo de S. Vitor, que Cristo assumiu o dote da luminosidade, na transfiguração; o da agilidade, quando andou sobre o mar; o da subtileza, quando nasceu do Ventre Virginal de Maria. Porque dote nomeia uma certa qualidade imanente do corpo glorioso. Cristo, porém, teve milagrosamente tudo o referente aos dotes. E o mesmo, se deu, quanto à alma, relativamente à visão pela qual Paulo viu a Deus num rapto, como dissemos na Segunda Parte.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Das palavras citadas não se conclui que a luminosidade de Cristo não fosse a luminosidade da glória; mas, que irão foi a do Corpo glorioso, porque o corpo de Cristo ainda não era imortal. Pois, como por permissão divina a glória da alma de Cristo não lhe redundou para o corpo, assim, pela mesma dispensação, pode redundar-lhe quanto ao dote da claridade, e não quanto ao da impassibilidade.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Diz-se que a referida claridade ora imaginária, não por não ser a verdadeira claridade da glória, mas por ser uma imagem representativa da perfeição da glória, que tornará glorioso o corpo.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Assim como a claridade do corpo de Cristo, na transfiguração, representava a claridade futura desse mesmo corpo, assim a claridade das suas vestes designava a futura claridade dos santos, que será superada pela de Cristo, como o candor da neve o é pelo do sol. Por isso diz Gregório, que as vestes de Cristo se tornaram refulgentes, porque na culminância da claridade superna, todos os santos unir-se-lhe-ão na refulgência da luz da justiça. E quanto às vestes, elas designam os justos que ele unirá a si, segundo aquilo da Escritura. — Quanto à nuvem lúcida, ela significa a glória do Espírito Santo, ou a virtude paterna, como diz Orígenes, pela qual os santos serão garantidos na sua glória futura. — Embora também com propriedade possa significar a claridade do mundo renovado, que será o tabernáculo dos santos. Por isso, quando Pedro se dispor a fazer os tabernáculos, a nuvem lúcida obumbrou os discípulos.
O primeiro discute-se assim. — Parece que não devia Cristo transfigurar-se.
1. — Pois, não pode um corpo verdadeiro, mas só um corpo fantástico, transformar-se em figuras diversas. Ora, o corpo de Cristo não era fantástico, mas verdadeiro, como se disse. Logo, parece que não devia transfigurar-se.
2. Demais. — A figura é a quarta espécie de qualidade; e a glória, sendo uma qualidade sensível, é a terceira. Logo, o ter-se tornado Cristo glorioso não pode ler considerado transfiguração.
3. Demais. — Os corpos gloriosos têm os quatro dotes seguintes, como mais adiante se dará: a impassibilidade, a agilidade, a subtileza e a luminosidade. Logo, não devia transfigurar-se tornando-se, antes, glorioso, que revestindo-se dos outros dotes.
Mas, em contrário, o Evangelho: E transfigurou-se diante dos seus três discípulos.
SOLUÇÃO. — O Senhor, depois de haver anunciado a sua paixão aos discípulos, convidou-os a que lhe imitassem o exemplo. Ora, é necessário, para trilharmos bem um caminho, termos um conhecimento prévio do fim. Assim, o sagitário não lança com acerto a seta, senão mirando primeiro o alvo que deve alcançar. Por isso perguntou Tomé, no Evangelho: Senhor, não sabemos para onde vais; e como podemos nós saber o caminho? E isso, sobretudo é necessário quando o caminho é difícil e áspero, a jornada laboriosa, mas belo o fim. Ora, o fim de Cristo, na sua paixão, era alcançar não somente a glória da alma que, tinha desde o princípio da sua concepção; mas também a do corpo, segundo aquilo do Evangelho — Importava que o Cristo sofresse estas causas e assim entrar na sua glória. E a essa glória também conduz os que lhe imitam o exemplo da paixão, segundo a Escritura: Por muitas tribulações nos é necessário entrar no reino de Deus. Por isso era conveniente que manifestasse aos seus discípulos a sua claridade luminosa; e tal é a transfiguração, que também concederá aos seus, segundo aquilo do Apóstolo: Reformará o nosso corpo abatido para o fazer conforme ao seu corpo glorioso. Donde o dizer Beda: Foi consequência de uma pia providência que, tendo gozado por breve tempo da contemplação da felicidade eterna, tolerassem mais fortemente as adversidades.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Diz Jerônimo, comentando o Evangelho: Ninguém pense que Cristo, por dizer o Evangelho que se transfigurou, tivesse perdido a sua forma e figura natural, ou que lhe fosse substituído o corpo verdadeiro por outro, espiritual e aéreo. Mas o próprio evangelista explica a sua transfiguração, quando diz: O seu rosto ficou refulgente como o sol e as suas vestiduras se fizeram brancas como a neve. Com o que lhe manifesta o esplendor das faces e os luminosos das vestes; assim a substância do seu corpo não desapareceu, mas somente transformou-se pela glória.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A figura depende da extremidade dos corpos; pois, está compreendida no termo ou nos termos. Por onde, tudo o considerado em dependência das extremidades de um corpo de certo modo constituiu a figura. Ora, como a cor, também a luminosidade do corpo não transparente depende-lhe da superfície. Por isso, dizemos que está transfigurando o corpo revestido de luminosidade.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Dentre os quatro dotes referidos, só a luminosidade é uma qualidade da pessoa em si mesma; quanto aos outros três dotes, eles não são percebidos senão mediante um ato, movimento ou paixão. Ora, Cristo manifestou na sua pessoa certos sinais de ter os três dotes referidos: o da agilidade, quando andou sobre as ondas; o da subtileza, quando nasceu do ventre virginal de Maria; o da impassibilidade, quando saiu ileso das mãos dos Judeus, que o queriam precipitar ou lapidar. Mas nem por isso diz o Evangelho que se transfigurasse, senão só quando se tornou luminoso, o que lhe respeita ao aspecto da pessoa.
O quarto discute-se assim. — Parece que Cristo não fez convenientemente milagres atinentes às criaturas irracionais.
1. — Pois, os brutos são superiores às plantas. Ora, Cristo fez milagres relativos as plantas; assim, a sua palavra fez secar uma figueira, como lemos no Evangelho. Logo, parece que também devia ter feito milagres relativos aos brutos.
2. Demais. — A pena só por uma culpa éque é justamente aplicada. Ora, a figueira não tinha culpa de Cristo não a ter encontrado com frutos, pois, deles não era tempo. Logo, parece que não devia tê-la feito secar.
3. Demais. — A água e o ar estão entre o céu e a terra. Ora, Cristo fez certos milagres no céu, como se disse. E também na terra, quando esta tremeu, por ocasião da paixão. Logo, parece que também devia ter feito como objeto de seus milagres O ar e a água; e assim, dividir o mar, como o fez Moisés; ou ainda um rio, como o fizeram Josué e Elias; e também causar trovões no ar, como se deu no monte Sinai, quando foi dada a lei, e como o fez Elias.
4. Demais. — A divina Providêncía se serve das obras milagrosas para governar o mundo. Ora, essas obras pressupõem a criação. Logo, Cristo não devia, nos seus milagres, recorrer à criação, como quando, por exemplo, multiplicou os pães. Logo, parece que não houve conveniêncía nos seus milagres, relativos às criaturas irracionais.
Mas, em contrário, Cristo é a sabedoria de Deus, da qual diz a Escritura: Dispõe todas as causas com suavidade.
SOLUÇÃO. — Como dissemos, os milagres de Cristo se ordenavam a manifestar-lhe o poder divino, para a salvação dos homens. Ora, por natureza ao poder divino hão de lhe estar sujeitas todas as criaturas. Logo, devia ele ter feito milagres em relação a todo gênero de criaturas; e assim, não só em relação aos homens, mas também em relação às criaturas irracionais.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Os brutos são genericamente próximos ao homem, sendo por isso feitos no mesmo dia que ele. E como Cristo fez muitos milagres atinentes ao corpo humano, não estava obrigado a fazer nenhuns relativos ao corpo dos brutos. Sobretudo porque, quanto à natureza sensível e corpórea, o homem tem a mesma natureza que os outros animais, sobretudo terrestres. Os peixes, porém, vivendo na água, diferem mais da natureza dos homens, e por isso foram feitos em outro dia. E em relação a eles Cristo fez o milagre da copiosa pesca, que refere oEvangelho; e também o do peixe que Pedro pescou e no qual achou um estater. — Quanto ao fato dos porcos precipitados no mal, não foi essa uma obra milagrosa de Deus, mas ato dos demônios, por permissão divina.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz Crisóstomo, quando o Senhor opera obras tais sobre os plantas ou os brutos, não indagues se houve justiça no fazer secar-se a figueira, por não ter frutos, apesar de não ser tempo deles; pois, essa indagação seria grande demência, porque tais seres não são susceptíveis de culpa nem de pena; mas antes, atende ao milagre e admira-lhe o autor. Nem faz o Criador nenhuma injustiça a quem possui, quando usa da criatura, a seu talante, para a salvação dos homens. Ao contrário, como nota Hilário, nisso descobrimos um argumento da bondade divina. Pois, quando quis dar um exemplo da salvação, que veio trazer, exerceu a força do seu poder sobre corpos humanos; quando porém aplicou a sua severidade contra os contumazes, indicou o que havia de acontecer, amaldiçoando a figura. E sobretudo como diz Crisóstomo, a figura, que é humudíssima, manifesta um maior milagre.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Cristo também fez milagres, que convinha fazer, em relação à água e ao ar; assim, quando, segundo lemos no Evangelho, pôs preceito ao mar e aos ventos e logo se seguiu uma grande bonança. Não era conveniente, porém, a quem vinha repor tudo no estado de paz e de tranquilidade causar qualquer perturbação no ar ou divisão nas águas. Donde o dizer o Apóstolo: Não vos haveis ainda chegado ao monte palpável e ao fogo incendido e ao turbilhão e à obscuridade e à tempestade. Na sua paixão, porém, rasgou-se o véu do templo, em duas partes, para mostrar a revelação dos mistérios da lei; abriram-se as sepulturas, para mostrar que pela sua morte seria dada aos mortos a vida; tremeu a terra e partiram-se as pedras, a fim de mostrar que os corações empedernidos dos homens se abrandariam com a sua paixão e que todo o mundo, por virtude dessa paixão, se mudaria para melhor.
RESPOSTA À QUARTA. — A multiplicação dos pães não se fez a modo de criação, mas pelo acrescentamento de uma certa matéria estranha, convertida em pães. Donde o dizer Agostinho: Do mesmo modo que com poucos grãos multiplica as sementeiras, assim nas suas mãos multiplicou os cinco pães. Ora, é manifesto que, por conversão de matéria, os grãos produzem colheitas abundantes.
O terceiro discute-se assim. — Parece que Cristo não fez com conveniência milagres em relação aos homens.
1. — Pois, no homem a alma é superior ao corpo. Ora, Cristo fez muitos milagres em relação aos corpos; mas não lemos que fizesse nenhuns sobre as almas. Pois, nem converteu miraculosamente nenhuns incrédulos a fé, mas advertindo-os e mostrando-lhes os milagres exteriores; nem referem os Evangelhos que desse sabedoria a nenhuns fatuos. Logo, parece que não obrou com conveniência milagres em relação aos homens.
2. Demais. — Como se disse, Cristo fazia milagres pelo seu poder divino, ao qual é próprio obrar súbita e perfeitamente e sem o auxílio de ninguém. Ora, Cristo nem sempre curava subitamente o corpo humano. Assim, refere o Evangelho, que tomando o cego pela mão, o tirou para fora da aldeia; e cuspindo-lhe nos olhos, tendo-lhe imposto as suas mãos, lhe perguntou se via alguma coisa. E levantando ele os olhos disse: Vejo os homens como árvores que andam. Depois tornou-lhe Jesus a pôr as mãos sobre os olhos, e começou ele a ver e ficou de todo curado, de sorte que via distintamente todos os objetos. Por onde é claro que não o curou subitamente, mas, primeiro de um modo imperfeito, cuspindo-lhe nos olhos. Logo, parece que não fez com conveniência milagres em relação aos homens.
3. Demais. — Não é necessário eliminarem-se simultaneamente coisas que não resultam uma da outra. Ora, as doenças do corpo nem sempre são causadas pelo pecado, como é claro pelas palavras do Senhor: Não nasceu cego por pecado que ele fizesse, nem seus pais. Logo, não devia perdoar os pecados a quem só lhe vinha pedir a cura do corpo, como lemos no Evangelho que fez com o paralítico. Sobretudo que, sendo a restituição da saúde do corpo menor bem que a remissão dos pecados, não constituía prova suficiente do seu poder de perdoar os pecados.
4. Demais. — Os milagres de Cristo foram feitos em confirmação da sua doutrina e do testemunho da sua divindade, como se disse. Ora, ninguém deve opor obstáculo ao fim da sua própria obra. Logo, parece que Cristo não devia ter ordenado a certos curados milagrosamente não publicarem os milagres de que foram objeto. Assim, sobretudo que a certos outros mandou proclamarem os milagres que lhes fez; assim, como lemos no Evangelho, disse aquele a quem livraria dos demônios: Vai para a tua casa, para os teus, e anuncia-lhes quão grandes coisas o Senhor te fez.
Mas, em contrário, o Evangelho: Ele tudo tem bem jeito; fez não só que ouvissem os surdos, mas que falassem os mudos.
SOLUÇÃO. — Os meios conducentes a um fim devem ser-lhe proporcionados. Ora, Cristo veio ao mundo ensinar, para salvar os homens, segundo aquilo do Evangelho: Deus não enviou seu filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele. Logo, era conveniente que, em particular, curando milagrosamente os homens, se mostrasse o Salvador universal e espiritual deles.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Os meios conducentes a um fim são destes distintos. Ora, os milagres feitos por Cristo ordenavam-se, como ao fim, à salvação da parte racional, consistente na iluminação da sabedoria e na justificação dos homens. E desses fins o primeiro pressupõe o segundo; pois, como diz a Escritura, na alma que é maligna não entrará a sabedoria nem habitará no corpo sujeito a pecados. Ora, justificar os homens não era possível sem a cooperação da vontade deles; o contrário se oporia à justiça, que por essência implica a retidão da vontade, e também à essência da natureza humana, que deve ser conduzida ao bem pelo livre arbítrio e não pela coação. Ora, Cristo pelo seu poder divino justificava os homens interiormente, mas não contra a vontade deles. Nem isso constituía a essência, mas o fim dos milagres. Semelhantemente, também pelo seu poder divino, infundiu a sabedoria divina em homens simples como eram os discípulos; donde o dizer-lhes: Eu vos darei uma boca e uma sabedoria à qual não poderão resistir nem contradizer todos os vossos inimigos. O que, quanto à iluminação interior, não se enumera entre os milagres visíveis; mas só quanto ao ato exterior, pois viram falar tão sábia e constantemente homens os que eram iletrados e simples. Por isso diz a Escritura: Vendo os judeus a firmeza de Pedro e de João, depois de saberem que eram homens sem letras e idiotas, se admiravam. — E contudo esses efeitos espirituais; embora distintos dos milagres visíveis, são todavia uns testemunhos da doutrina e do poder de Cristo, segundo aquilo do Apóstolo: Confirmando-o com maravilhas e sinais e com virtudes diversas e com dons do Espírito Santo. Cristo, porém fez certos milagres sobre as almas dos homens, sobretudo atinentes a transformações nas potências inferiores delas. Por isso, àquilo doEvangelho. — Levantando-se ele, a seguiu — diz Jerônimo: O próprio resplendor e a majestade da divindade oculta que lhe iluminava mesmo a face humana, podia desde logo atrair para si os que uma vez o contemplavam. E aquele outro lugar doEvangelho — Os príncipes dos sacerdotes, etc., diz o mesmo Jerônimo: Dentre todos os milagres que fez o Senhor parece-me o mais admirável o ter podido ele só, como homem, e desprezível nesse tempo, expulsar uma tão grande multidão aos golpes de um chicote. Os olhos resplendiam-lhe como com raios ígneos de sol e a majestade divina iluminava-lhe a face. E Origines considera esse, maior milagre que o da conversão da água em vinha; pois, neste a matéria subsistia inanimada, ao passo que no primeiro o seu engenho dominou tantos milhares de homens. — E sobre aquele dito do evangelista — Recuaram para trás e caíram por terra - diz Agostinho: Com uma palavra, sem nenhuma arma abateu, repeliu e dispersou uma turba tão feroz pelo ódio quão terrível pelas armas: é que Deus animava aquele corpo. — E a isto também respeita aquele outro passo, que Jesus passando pelo meio deles, se retirou; à cerca do qual diz Crisóstomo, que o estar no meio dos que o buscavam para prender, e não ser preso mostrava a eminência da sua divindade. E ainda há outro passo - Jesus escondeu-se e saiu do templo - que Agostinho explica assim: Não se escondeu num canto do Templo nem se ocultou atrás de uma parede ou de uma coluna, como quem teme, mas tornando-se invisível, por um poder celeste, aos que o buscavam, saiu passando pelo meio deles. — E tudo isso mostra que Cristo, pelo seu poder divina, causou mudanças nas almas doshomens, quando o quis, não só justificando e infundindo a sabedoria — a que constitui a fim dos milagres, mas também exteriormente aliciando, aterrorizando ou estupefazendo - o que constitui a essência mesma dos milagres.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Cristo veio salvar o mundo, não só pela seu poder divino, mas também pelo mistério da sua Encarnação. Por isso frequentemente, ao curar os enfermas, não somente usava esse, fazendo-os sarar por uma simples ordem, mas ainda fazia contribuir para tal a sua humanidade. Por isso, aquilo doEvangelho — Pondo as mãos sobre cada um deles, os sarava — diz Cirílo: Embora, como Deus, pudesse curar com uma palavra todas as doenças, contudo toca os doentes, mostrando assim ser o seu próprio corpo capaz de contribuir como um remédio eficaz. E aquele outra lugar — Cuspindo-lhe nos olhos, tendo lhe imposto as mãos, etc. diz Crisóstomo. (Vítor Antíoqueno): Cuspiu-lhe nos olhos e impôs as mãos ao cego, a fim de mostrar que a palavra divina, acompanhada do ato, perfazia os milagres; pois, a mão indica o ato; o cuspir, a palavra proferida pela boca. — E a propósito do outro passo evangélico - Cuspiu no chão e fez lodo do cuspe e untou com o lodo os olhos do cego, diz Agostinho: Com a sua saliva fez o lodo, porque o Verbo se fez carne. Ou também para significar que foi ele quem formou o homem do limo da terra, como diz Crisóstomo.
Também devemos considerar, sobre os milagres de Cristo, que comumente as suas obras eram perfeitíssimas. Por isso, àquilo do Evangelho - Todo homem põe primeiro o bom vinho — diz Crisóstomo: Os milagres de Cristo são tais que em muito soprepujando em utilidade e beleza quanto a natureza pode produzir. — E semelhantemente, num instante restituía aos enfermos a saúde perfeita. Por isso, ao lugar do Evangelho — Tendo chegado Jesus, diz Jerônimo: O Senhor restituía a saúde, total e simultâneamente.
Especialmente, porém, no caso do cego, deu-se o contrário, por causa da infidelidade dele, como diz Crisóstomo (Vítor Antroqueno) Ou, como diz Beda, aquele a quem podia curar total e simultaneamente, a esse o cura aos poucos para mostrar a magnitude da cegueira humana, que aos poucos e como gradualmente é que pode iluminar-se; a fim de nos chamar a atenção sobre a sua graça, com a qual auxilia cada progresso na perfeição.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como dissemos Cristo fazia milagres pelo seu poder divino. Ora, as obras de Deus são perfeitas, como diz a Escritura. Mas, só é perfeito o que atinge o seu fim. E o fim da cura do corpo, operada por Cristo, era a cura da alma. Por isso, não devia Cristo curar o corpo de ninguém, sem lhe curar a alma. Por onde, aquilo do Evangelho — Em dia de sábado curei a todo um homem — diz Agostinho: Por ter sido curado, para ter a saúde do corpo, também acreditou, para que tivesse a saúde da alma. — Mas especialmente disse ao paralítico — São te perdoados os pecados: porque, como diz Jerônimo, nos der assim a entender que os pecados causam em nosso corpo muitas enfermidades, e foi essa talvez a razão de Cristo perdoar primeiro os pecados a fim de eliminadas as causas da doença, ser restituída a saúde. Por isso diz o Evangelho: Não peques mais, para que te não suceda alguma coisa pior. O que Crisóstomo explica dizendo: Ficamos assim informados que do pecado é que lhe nasceu a doença. — Embora também, como diz Crisóstomo, quanto mais principal é a alma, que o corpo, tanto mais importante é perdoar os pecados, que restituir a saúde do corpo; mas, como esse perdão não se manifesta exteriormente, Cristo obra o menos importante, mas mais manifesto, para dar a conhecer o mais importante, embora não manifesto.
RESPOSTA À QUARTA. — Aquilo do Evangelho — Vede lá que o não saiba alguém — diz Crisóstomo: O que aqui diz não é contrário ao que tinha dito ao outro: Vai e anuncia a glória de Deus. Pois, assim nos adverte a impedir de nos louvarem os que o fazem, tendo em vista a nossa pessoa como tal. Mas, se o louvor que nos tributam se referir à glória de Deus, não devemos impedi-los, mas ao contrário, desejar que o façam.
O segundo discute-se assim. — Parece que Cristo não fez convenientemente milagres em relação aos corpos celestes.
1. — Pois, como diz Dionísio, não é próprio da divina providência destruir, mas conservar. Ora, os corpos celestes são de natureza incorruptível e inalterável, como o prova Aristóteles. Logo, não devia Cristo fazer nenhuma mudança na ordem dos corpos celestes.
2. Demais. — Pelo movimento dos corpos celestes é que se demarca o curso dos tempos, segunda a Escritura: Façam-se uns luzeiros no firmamento do céu e sirvam de sinais para mostrar os tempos, os dias e os anos. Assim, pois, mudado o curso dos corpos celestes, muda-se também a distinção e a ordem dos tempos. Ora, não há notícia que essa mudança fosse percebida pelos astrólogos, que contemplavam os astros e contavam os meses, no dizer da Escritura. Logo, parece que Cristo não fez nenhuma mudança relativamente ao curso dos corpos celestes.
3. Demais. — Era mais curial que Cristo fizesse milagres, quando vivia e ensinava, que na sua morte. Ou porque, como diz o Apóstolo. Foi crucificado por enfermidade, mas vive pelo poder de Deus, pelo qual fazia milagres; e quer também por lhe serem os milagres a confirmação da doutrina. Ora, não nos diz o Evangelho, que durante a sua vida Cristo fizesse algum milagre relativo aos corpos celestes; ao contrário, aos f'ariseus que lhe pediam um sinal do céu, recusou dar-lhes, como lemos no Evangelho. Logo, parece que na ocasião da sua morte também não devia fazer nenhum milagre relativamente aos corpos celestes.
Mas, em contrário, o Evangelho: Toda a terra ficou coberta de trevas até a hora nona e escureceu-se também o sol.
SOLUÇÃO. — Como dissemos os milagres de Cristo deviam ser tais que lhe patenteassem suficientemente a divindade. Ora, não a manifestam evidentemente as transmutações dos corpos inferiores, que também podem ser alterados por outras causas, como pela transmutação do curso dos corpos celestes, o qual só por Deus foi ordenado de maneira imutável. E é o que diz Dionísio: Devemos saber que se alguma mudança pode houver na ordem e no movimento dos céus, só o poderá ser pela causa que fez e muda todas as causas por uma simples palavra. Por isso houve conveniência em Cristo fazer milagres mesmo em relação aos corpos celestes.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Assim como é natural aos corpos inferiores serem movidos pelos corpos celestes, que lhes são superiores na ordem da natureza, assim também é natural a qualquer criatura ser mudada por Deus conforme os decretos da sua vontade. Por isso diz Agostinho, e também se lê na Glosa àquilo do Apóstolo — Contra a natureza foste enxertado etc. Deus, Criador e Autor de todas as naturezas, nada faz contra a natureza, pois a natureza de cada ser tem nele a sua fonte. Por isso, não se corrompe a natureza dos campos celestes quando Deus lhes altera o curso; corromper-se-ia porém se fosse alterado por alguma outra causa.
RESPOSTA À SEGUNDA. — O milagre feito por Cristo não perverteu a ordem dos tempos. Pois, segundo certos, essas trevas ou obscurecimento do sol, que se verificaram na paixão de Cristo, tiveram a sua causa na retração dos raios solares, sem nenhuma mudança causada no movimento dos corpos celestes, pelo qual se medem ostempos. Donde o dizer Jerônimo: O Campadário maior retraiu os seus raios ou para que não visse o Senhor pendente da cruz, ou para que não lhe gozassem dos raios ou ímpios blasfemadores. — Essa retração dos raios porém não deve entender-se como significando que o sol tenha o poder de emitir ou retrair raios, pois, ele os emite não por eleição, mas por natureza, como diz Dionísio. Mas se diz que o sol retraiu os raios por não terem eles, por virtude do poder divino, chegado até a terra. Orígenes, porém explica esse fato pela interposição das nuvens. Devemos por consequência entender, diz, que muitas e grandes nuvens tenebrosissímas se acumulavam sobre o céu de Jerusalém, terra da Judéia donde resultaram as trevas profundas desde a sexta até a nona hora. Penso, pois, que assim como o ter-se cindido o véu do templo, o tremor da terra e outros fenômenos que se verificaram durante a paixão, só se deram em Jerusalém, assim também no caso vertente. Podemos, porém, tomando o texto - Toda a terra ficou coberta de trevas num sentido mais lato, aplicá-lo a toda a terra de Judéia pois, em tal sentido a elo se aplica, como quando, conforme lemos na Escritura, disse Abdias a Elias — Viva o Senhor teu Deus, que não há nação nem reino onde meu amo te não tenha mandado buscar — mostrando que o buscara entre as gentes que habitavam perto da Judéia.
Mas, nesta matéria, devemos seguir antes a Dionísio, que, como testemunha ocular, compreendeu que tal fato foi possível pela interposição da lua entre nós e o sol. Assim, diz: Vimos — estava então no Egito — inopinadamente a lua ocultar o sol. E descobre aí quatro milagres. — O primeiro é que naturalmente o eclipse do sol, por interposição da lua, nunca se dá senão quando esses astros estão em conjunção. Ora, então a lua estava em oposição com o sol, pois era o décimo quinto dia, depois da lua nova, quando se celebrou a Páscoa dos Judeus. Por isso: Pois, não era o tempo oportuno. — O segundo milagre consistiu em ter a lua sido vista simultaneamente com o sol, no meio do céu, cerca da hora sexta; e de tarde apareceu no seu lugar, isto é, no oriente, oposta ao sol. Por isso diz: E de novo a vimos, isto é, a lua, desde a hora nona, quando se afastou do sol e cessaram as trevas, até a tarde, imposta por uma ação sobrenatural na linha dia me trai do sol, isto é, diametralmente oposta do sol. Donde se concluiu que não foi perturbado o curso habitual dos tempos, pois o poder divino fez com que a lua, sobrenaturalmente, se aproximasse do sol no tempo oportuno, e depois, afastando-se do sol, no tempo devido se colocasse de modo no seu lugar próprio. — O terceiro milagre esteve no seguinte. Uma eclipse natural sempre com cada parte ocidental do sol para acabar na parte oriental; porque a lua tem o seu movimento próprio, do ocidente para o oriente, mais veloz que o movimento próprio do sol; por isso, vindo do ocidente, alcança o sol e o ultrapassa, tendendo para o oriente. Mas, no caso vertente, a lua já tinha ultrapassado o sol e distava dele a metade do círculo, estando-lhe em oposição. Por onde havia necessàriamente de voltar para o oriente em direção ao sol e alcançá-lo primeiro pela parte oriental, dirigindo-se para o ocidente. E é o que diz Dionísio: Também vimos a eclipse, começando da parte oriental, chegar ao termo do sol, porque eclipsou-o todo, e depois retroceder. — O quarto milagre consistiu no seguinte. No eclipse natural o sol começa a reaparecer pela parte que principiou primeiro a obscurecer-se: porque a lua, pondo-se na frente do sol, pelo seu movimento natural o ultrapassa em direção ao oriente; e assim, a parte ocidental do sol, que primeiro ocupou, é também a que primeiro abandona. Mas, no caso em discussão, a lua, voltando milagrosamente do oriente para o ocidente, não ultrapassou o sol, de modo a ficar mais ao ocidente, que ele. Mas, depois de ter chegado ao termo do sol, voltou para a parte oriental; e assim, a parte do sol, que por último ocupou, foi também a que primeiro abandonou. Por onde, o eclipse começou pela parte oriental, mas a claridade começou primeiro a manifestar-se pela parte ocidental. E é o que diz Dionísio: E de novo vimos, não do mesmo lugar, isto é, não da mesma parte do sol, mas ao contrário no sentido do diâmetro, começar o eclipse e acabar. — Crisóstomo acrescenta ainda um quinto milagre dizendo, que as trevas duraram três horas, apesar do eclipse solar ter se consumado num instante; pois, não foi demorado, como o sabem os que o observaram. Pelo que dá a entender que a lua parou diante do sol. A não ser que preferíssemos dizer que o tempo das trevas deve ser contado desde o instante em que o sol começou a obscurecer-se até o momento em que ficou de novo totalmente livre. Mas, diz Orígenes, os filhos deste século objetam contra um tal prodígio, perguntando: — Como é que um fato tão admirável nenhum dos gregos nem dos bárbaros o descreveu? E refere que um certo Flegonte escreveu, nas suas Crônicas, que esse fato se deu no principado de Tibério César; mas não especificou que foi por ocasião de uma lua cheia. E isso podia ter acontecido, porque os astrólogos de todas as terras, que viviam nesse tempo, não se preocupavam em observar nenhum eclipse por não ser então ocasião de nenhum; de modo que atribuíram as trevas que presenciavam, a algum fenômeno atmosférico. Mas no Egito, onde raramente aparecem nuvens, por causa da serenidade do ar, Dionísio e os seus companheiros foram levados a observar o eclipse referido, causa da obscuridade.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Cristo devia, sobretudo, manifestar por milagres a sua divindade, quando mais se lhe faziam sentir as necessidades da natureza humana. Por isso, na sua natividade apareceu uma nova estrela no céu. Donde o dizer Máximo: Se desprezas o presépio, levanta um pouco os olhos e contempla a nova estrela do céu, anunciando ao mundo a natividade do Senhor. — Mas na paixão a humanidade de Cristo foi sujeita a uma miséria ainda maior. Por isso era necessário que maiores milagres se realizassem no tocante aos principais Iuzeiros do mundo. E, como diz Crisóstomo, esse foi o sinal prometido aos que o pediam, quando disse, aludindo à sua cruz e ressurreição: Esta geração pervessa e adúltera pede um prodígio e não lhe será dado outro prodígio senão o prodígio do profeta Jonas. Pois, isso era muito mais admirável que o fizesse, quando crucificado, do que quando andava na terra.
O primeiro discute-se assim. — Parece que não houve conveniência nos milagres que Cristo fez em relação a substâncias espirituais.
1. — Pois, entre as substâncias espirituais; os santos anjos governam os demônios; porque, como diz Agostinho, o espírito pecador divorciado da vida racional, é governado pelo espírito de vida racional, pio e justo. Ora, não lemos nos Evangelhos que Cristo tivesse feito nenhum milagre relativamente aos anjos bons. Logo, também não devia ter feito nenhum relativamente aos demônios.
2. Demais. — Os milagres de Cristo tinham por fim manifestar-lhe a divindade. Ora, a divindade de Cristo não devia ser manifestada aos demônios, o que viria impedir o mistério da sua paixão, segundo o Apóstolo: Se eles a conheceram, nunca crucificariam ao Senhor da glória. Logo, nenhum milagre devia Cristo fazer relativamente aos demônios.
3. Demais. — Os milagres de Cristo se ordenavam à glória de Deus; por isso diz o Evangelho, que as turbas, vendo um paralítico curado por Cristo, temeram e glorificaram a Deus porque deu tal poder aos homens. Ora, não é próprio dos demônios glorificar a Deus, porque o louvor não tem beleza na boca do pecador, no dizer da Escritura. Por onde, como dizem Marcos e Lucas, Cristo não permitia aos demônios proclamarem nada do atinente à sua glória. Logo, parece não era conveniente que fizesse nenhum milagre relativamente a eles.
4. Demais. — Os milagres feitos por Cristo se ordenam à salvação dos homens. Ora, certos demônios foram expulsos de certos homens, em detrimento deles. Às vezes corporal; assim; refere o Evangelho, que o demônio, por ordem de Cristo, dando grandes gritos e maltratando muito o homem, saiu dele; e ficou como morto, de sorte que muitos diziam — está morto. Outras vezes também em detrimento das coisas, como quando se fez os demônios se introduzirem em porcos, que se precipitaram no mar; sendo por isso Cristo rogado pelos habitantes da região a sair do país deles, como lemos no Evangelho. Logo, parece que esses milagres eram inconvenientes.
Mas, em contrário, a Escritura o prenunciou, quando disse: Exterminarei da terra o espírito imundo.
SOLUÇÃO. — Os milagres que Cristo fez serviam de argumentos em favor da fé que pregava. Pois, haveriam de vir homens crentes nele que, por virtude da sua divindade, suplantassem o poder dos demônios, conforme lemos no Evangelho: Agora será lançado fora o príncipe deste mundo. Por isso, foi conveniente que, entre outros milagres, também livrasse os obsessos dos demônios.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Assim como os homens deviam ser livrados por Cristo do poder dos demônios, assim também deviam ser por ele associados aos anjos, segundo aquilo do Apóstolo: Pacificando pelo sangue da sua cruz tanto o que está na terra como o que está no céu. Por isso, o único milagre que convinha fazer, relativamente aos anjos, é que estes aparecessem aos homens; e isso se deu na natividade, a ressurreição e a ascensão.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz Agostinho, Cristo deu-se a conhecer aos demônios na medida em que lh'o aprouve; e tanto lhe aprouve quanto era necessário. Mas deu-se-lhes a conhecer não como aos santos anjos, pelas causas da vida eterna, mas por certos efeitos temporais do seu poder. Assim, primeiro, vendo Cristo ter fome depois do jejum, não o tiveram por Filho de Deus. Por isso, àquilo do Evangelho — Se és o Filho de Deus — diz Ambrósio: Que quer o demônio significar, começando com essa pergunta, senão que sabe que o Filho de Deus havia de vir, mas não o julgava sujeito às necessidades do corpo? Mas depois, à vista dos milagres, conjeturou, por suspeitas, que fosse o Filho de Deus. Por isso, aquilo do Evangelho — Bem sei quem és: que és o Santo de Deus — diz Crisóstomo, que não tinha um conhecimento certo ou firme do advento de Deus. Sabia, porém que Cristo tinha sido prometido pela lei, sendo por isso que diz o Evangelho: Sabiam que ele mesmo era o Cristo. E quanto ao terem-no confessado Filho de Deus, o fizeram mais por suspeita que por certeza. Por isso Beda diz: Os demônios confessam o Filho de Deus; e como a seguir se refere: Sabiam que ele era o Cristo. Porque, vendo-o o diabo exausto pelo jejum, tomou-o como um verdadeiro homem; mas, pelo não ter vencido com a tentação, entrou a duvidar se não seria o Filho de Deus. Mas quando deu provas do seu poder, pelos milagres, ou compreendeu, ou antes, suspeitou que fosse o Filho de Deus. E se persuadiu aos judeus que o crucificassem, não foi pelo não reputar Filho de Deus, mas por não prever que seria vencido pela morte dele. Assim, desse mistério recôndito aos séculos, diz o Apóstolo, que ninguém, dos príncipes deste mundo, o conheceu; pois, se o tivessem conhecido nunca teriam crucificado o Senhor da glória.
RESPOSTA À TERCEIRA. — O milagre da expulsão dos demônios Cristo não o fez para utilidade deles, mas para a dos homens, a fim de que o glorificassem. E por isso proibiu-os proclamarem-lhe o louvor. — Primeiro, para exemplo. Pois, como diz Atanásio, impedia o demônio de falar, embora fosse para proclamar a verdade, para também nós nos acostumarmos a desprezar tais ditos, mesmo pareçam traduzir a verdade. Pois, é pecaminoso deixarmo-nos instruir pelo diabo, quando temos à nossa disposição a Escritura divina; o contrário seria perigoso, porque os demônios frequentemente misturam a mentira com a verdade. — Segundo, porque, como diz Crisóstomo (Cirilo Alexandrín.) não deviam eles arrebatar a glória do ofício apostólico. Nem convinha que uma boca impura fosse a que publicasse o mistério de Cristo, porque o louvor não tem beleza na boca do pecador. — Terceiro, porque, como diz Beda (Teofílacto), não queria desse modo despertar a inveja dos Judeus. Por isso também os próprios Apóstolos foram mandados calar a respeito dele, a fim de não diferirem o mistério da paixão com a proclamação da divina majestade.
RESPOSTA À QUARTA. — Cristo veio especialmente ensinar e fazer milagres para utilidade dos homens, sobretudo quanto à salvação da alma. Por isso permitiu aos diabos, que expulsava, causar certos danos aos homens, quer na pessoa quer nos bens deles, para a salvação da alma humana, por meio da instrução deles. Por isso diz Crisóstomo, que Cristo permitiu aos demônios introduzirem-se nos porcos. Não que disso o persuadissem aqueles; mas, primeiro, para nos mostrar a grandeza do dano que causam aos homens as insídias dos demônios. Segundo, para que todos compreendessem que nem contra porcos ousam fazer nada, sem o consentimento dele, Cristo. Terceiro, para mostrar que causariam maiores danos aqueles homens, que aos referidos porcos, se os homens não fossem ajudados da providência divina. E também por essas mesmas causas permitiu que o libertado dos demônios fosse na mesma hora afligido mais gravemente, de cuja aflição porém logo o livrou. O que também mostra, como diz Beda, que muitas vezes, quando nos esforçamos por nos converter a Deus, depois dos pecados, o nosso antigo inimigo nos arma maiores e novas insídias. E isso faz ou para nos incutir o ódio da virtude ou para vingar-se da injúria sua expulsão. E enfim, o homem curado tornou-se como morto, porque, explica Jerônimo, aos curados foi dito: Já estais mortos e a vossa vida está escondida com' Cristo em Deus.