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Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Art. 2 — Se era possível outro modo da liberação humana que não fosse a paixão de Cristo.

 O segundo discute-se assim. — Parece que não era possível outro modo da liberação humana que não fosse a paixão de Cristo. 

1. — Pois, diz o Senhor: Se o grão de trigo que cai na terra não morrer fica ele só; mas se ele morrer produz muito fruto. E Agostinho explica, que ele se considerava como o grão. Se, portanto, não tivesse sofrido a morte, não teria de outro modo produzido da nossa liberação.
 
2. Demais. — Como lemos no Evangelho, o Senhor diz ao Pai: Pai meu, se este cálice não pode passar sem que eu o beba, faça-se a tua vontade. Ora, refere-se ao cálice da paixão. Logo, a paixão de Cristo não podia ser evitada. E por isso diz Hilário: Esse cálice não podia passar sem que ele o bebesse porque não podemos ser resgatados senão pela sua paixão.
 
3. Demais. — A justiça de Deus exigia que o homem fosse liberado do pecado, mediante a satisfação de Cristo, pela sua paixão. Ora, Cristo não podia evitar a paixão, como o diz o Apóstolo: Se não cremos, ele permanece fiel; não pode negar-se a si mesmo. Mas negar-se-ia a si mesmo, se negasse a sua justiça, pois ele é a própria justiça. Logo, parece que não era possível o homem ser liberado de outro modo senão pela paixão de Cristo.
 
4. Demais. — A fé é incompatível com todo e qualquer erro. Ora, os antigos Patriarcas acreditavam que Cristo haveria de sofrer. Logo, parece que era inevitável, que Cristo sofresse.
 
Mas, em contrário, diz Agostinho: Afirmamos que é bom e consentâneo com a dignidade divina o modo pelo qual o mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo, Deus, se dignou nos liberar. Contudo, mostremos também, que Deus dispunha ainda de outros modos possíveis, ao poder de quem todas as causas estão igualmente sujeitas.
 
SOLUÇÃO. — De dois modos podemos dizer que uma coisa é possível ou impossível. Primeiro, simples e absolutamente falando; de outro modo, por hipótese. - Ora, simples e absolutamente falando, era possível a Deus liberar o homem de outro modo que não pela paixão de Cristo; pois, como diz o Evangelho, a Deus nada é impossível. Mas, hipoteticamente falando, era. impossível. Pois, sendo impossível a presciência de Deus enganar-se e a sua vontade ou disposição anular-se, não era simultaneamente possível, suposta a presciência de Deus e a sua preordenação, relativamente à paixão de Cristo, este não sofrer e o homem ser liberado por outro modo do que pela sua paixão. E o mesmo devemos dizer de tudo o de que Deus tem presciência e que preordena, como na Primeira Parte ficou preestabelecido.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. O Senhor nesse lugar, fala, suposta a presciência e a preordenação de Deus, pela qual fora ordenado que o fruto da salvação humana não resultaria senão da paixão de Cristo. E do mesmo modo devemos entender o texto citado na SEGUNDA OBJEÇÃO: Se este cálice não pode passar sem que eu o beba, isto é, porque tu assim o dispuseste. E por isso acrescenta: Faça-se a tua vontade.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Também a referida justiça depende da vontade divina, que exige do gênero humano uma satisfação pelo pecado. Mas, se quisesse, sem qualquer satisfação, liberar o homem do pecado, não agiria contra a justiça. Pois, o juiz que deve punir a culpa incorrida contra terceiros - por exemplo, contra outra pessoa, ou contra toda a república ou contra um chefe elevado em dignidade - não pode, por dever de justiça, demitir a culpa sem a pena. Mas, Deus não tem nenhum superior, sendo ele o bem supremo e comum de todo o universo. Logo, demitindo o pecado que por natureza é culposo, porque ofende a Deus, a ninguém lesa: assim como quem quer que perdoa uma ofensa contra si cometida, sem nenhuma satisfação, age misericordiosa e não injustamente. Por isso Davi, implorando misericórdia, dizia: Contra ti só pequei; como se dissesse: Podes me perdoar sem injustiça.
 
RESPOSTA À QUARTA. — A fé humana e também as divinas Escrituras, em que se funda a fé, apóiam-se na presciência e na ordenação divina. Por isso a necessidade procedente da suposição da fé humana e das divinas Escrituras, e a da presciência e vontade divinas, tem a mesma razão. 

Art. 1 — Se era necessário Cristo sofrer pela liberação do gênero humano.

 O primeiro discute-se assim. Parece que não era necessário Cristo sofrer pela liberação do gênero humano. 

1. — Pois, só Deus podia liberar o gênero humano, segundo a Escritura: Porventura não sou eu o Senhor e não é assim que não há outro Deus senão eu? Deus justo e salvador não no há fora de mim. Ora, Deus não está sujeito a nenhuma necessidade, o que lhe repugnaria à onipotência. Logo, não era necessário que Cristo sofresse.
 
2. Demais. — O necessário se opõe ao voluntário. Ora, Cristo sofreu por vontade própria, como o diz a Escritura: Foi oferecido porque ele mesmo quis. Logo, não foi necessário que sofresse.
 
3. Demais. — Como diz a Escritura, todos os caminhos do Senhor são misericórdia e verdade. Ora, não era necessário que sofresse, por parte da misericórdia divina, a qual, assim como distribui os seus dons gratuitamente, assim também há de gratuitamente perdoar as dívidas sem satisfação. Nem por parte da justiça divina, pela qual o homem merecera a condenação eterna. Logo, parece que não era necessário ter Cristo sofrido pela liberação dos homens.
 
4. Demais. — A natureza angélica é mais excelente que a humana, como ensina Dionísio. Ora, Cristo não sofreu para reparar a natureza angélica, que tinha pecado. Logo, parece que não lhe fora também necessário sofrer pela salvação do gênero humano.
 
Mas, em contrário, o Evangelho: Como Moisés no deserto levantou a serpente, assim importa que seja levantado o Filho do homem, para que todo o que crê nele não pereça, mas tenha a vida eterna. O que se entende da exaItação na cruz. Logo, parece que Cristo devia ter sofrido.
 
SOLUÇÃO. — Como o ensina o Filósofo, a palavra necessária é susceptível de muitas acepções.  Numa, significa o que não pode por sua natureza, apresentar-se de modo diferente. E, nesse sentido, é claro que não foi necessário ter Cristo sofrido, nem da parte de Deus nem da do homem.  Noutra, o necessário o é em virtude de uma causa exterior. Se essa causa for eficiente ou motriz, produz a necessidade de coação; tal o caso de quem não pode andar por causa da violência do que o detém. Se porém essa causa exterior geratriz da necessidade for o fim, o necessário o será pela suposição do fim; isto é, quando o fim de nenhum modo pode ser atingido sem esse meio necessário, ou não o pode convenientemente, senão recorrendo a tal meio. Logo, que Cristo sofresse não era necessário por uma necessidade de coação: nem por parte de Deus, que o determinou a sofrer, nem por parte do próprio Cristo, que sofreu voluntariamente.
 
Necessário, porém o foi pela necessidade de fim. O que podemos entender de três modos.  Primeiro, relativamente a nós, que fomos liberados pela sua paixão, segundo o Evangelho: Importa que seja levantado o Filho do homem, para que todo o que crê nele não pereça, mas tenha a vida eterna.  Segundo, relativamente ao próprio Cristo, que pelas humilhações da paixão mereceu a glória da exaltação. E a isso se refere o Evangelho quando pergunta: Porventura não importava que o Cristo sofresse estas coisas e que assim entrasse na sua glória?  Terceiro, relativamente a Deus, cuja determinação concernente à paixão de Cristo foi profetizada nas Escrituras e prefigurada, nas observâncias do Velho Testamento. E é o que diz o Evangelho: O Filho do homem vai segundo o que está decretado. E mais adiante: É o que queriam dizer as palavras que eu vos dizia quando ainda estava convosco, que era necessário que se cumprisse tudo o que de mim estava escrito na lei de Moisés e nos profetas e nos salmos. E ainda: Assim é que estava escrito que importava que o Cristo padecesse e que ressurgisse dos mortos.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. - A objeção colhe, quanto à necessidade imposta pela coação, da parte de Deus.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — A objeção colhe, quanto à necessidade imposta pela coação, da parte do homem Cristo.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Liberar o homem pela paixão de Cristo, convinha tanto à misericórdia como à justiça de Cristo. À justiça, porque com a sua paixão Cristo satisfez pelo pecado do gênero humano; e assim o homem foi liberado pela justiça de Cristo. À misericórdia, de seu lado, porque não podendo o homem por si mesmo satisfazer pelo pecado de toda a natureza humana, como se disse, Deus lhe deu o seu Filho único como reparador, segundo aquilo do Apóstolo: Tendo sido justificados gratuitamente por sua graça, pela redenção que tem em Jesus Cristo, ao qual propôs Deus para ser vítima de propiciação pela fé no seu sangue. O que implicava uma misericórdia mais abundante que se tivesse perdoado os pecados, sem satisfação. Donde o dizer o Apóstolo: Deus, que é rico em misericórdia, pela sua extremada caridade, com que nos amou, ainda quando estávamos mortos pelos pecados, nos deu vida juntamente em Cristo.
 
RESPOSTA À QUARTA. — O pecado do anjo não era reparável, como o era o do homem, como resulta do que foi dito na Primeira Parte. 

Art. 4 — Se convenientemente se acrescentou o testemunho da voz paterna que dizia: Este é o meu filho dileto.

 O quarto discute-se assim. — Parece que se acrescentou inconvenientemente o testemunho da voz paterna que dizia: este é o meu filho dileto.

1. — Pois, como diz a Escritura, Deus fala uma vez e segunda vez não repete uma mesma causa. Ora, no batismo, isso mesmo o proclamara a voz paterna. Logo, não era conveniente que ainda fosse de novo proclamado na transfiguração.
 
2. Demais. — No batismo, simultaneamente com a voz paterna apareceu o Espírito Santo em forma de pomba. O que não se deu na transfiguração. Logo, parece não devia ter havido a proclamação do Pai.
 
3. Demais. — Cristo começou a ensinar depois do batismo. E contudo no batismo a voz do Pai não veio advertir os homens a ouví-Io. Logo, nem o devia ter feito na transfiguração.
 
4. Demais. — Não devemos dizer a outros o que não poderiam suportar, conforme aquilo do Evangelho: Eu tenho ainda muitas coisas, que vos dizer, mas vós não nas podeis suportar agora. Ora, os discípulos não podiam suportar a voz do Pai, pois, diz o Evangelho: Ouvindo isto, os discípulos caíram de braços e tiveram grande medo. Logo, a voz paterna não se lhes devia manifestar.
 
Mas, em contrário, a autoridade da Escritura Evangélica.
 
SOLUÇÃO. — A adoção de filhos de Deus supõe uma certa conformidade entre a imagem e quem é realmente Filho de Deus. O que de dois modos se dá. Primeiro, pela graça, conferida nesta vida; que é uma conformidade imperfeita. Segundo, pela glória da pátria, que será a conformidade perfeita, segundo aquilo do Evangelho: Agora somos filhos de Deus e não apareceu ainda o que havemos de ser. Sabemos que, quando ele aparecer, seremos semelhantes a ele; porquanto nos outros o teremos bem como ele é. Ora, como recebemos a graça pelo batismo, e a transfiguração foi um prenúncio do esplendor da glória futura, por isso, tanto no batismo como na transfiguração foi conveniente manifestar-se a filiação natural de Cristo, pelo testemunho do Pai. Por que só o Pai é perfeitamente cônscio dessa perfeita geração, simultaneamente com o Filho e o Espírito Santo.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O lugar citado deve ser referido à eterna locução de Deus, pela qual Deus Padre proferiu o Verbo, coeterno consigo. E contudo podemos dizer que Deus, com voz material, proferiu duas vezes o mesmo verbo, mas não com o mesmo fundamento; mas para mostrar o modo diverso pelo qual os homens podem participar da semelhança da filiação eterna.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — No batismo quando foi anunciado o mistério da primeira regeneração, manifestou-se a obra de toda a Trindade, porque aí se manifestou o Filho encarnado, apareceu o Espírito Santo em figura de pomba e o Pai se anunciou verbalmente. Assim também na transfiguração, que é o sacramento da segunda regeneração, toda a Trindade manifestou-se  o Pai, pela voz; o Filho, pela sua humanidade; o Espírito Santo, pela nuvem luminosa. Porque, assim como, no batismo dá a inocência, designada pela simplicidade da pomba, assim na ressurreição dará aos eleitos o esplendor da sua glória e a libertação de todo mal, simbolizados pela nuvem lúcida.
 
RESPOSTA ÀTERCEIRA  Cristo veio nos dar a graça atual, mas só prometer a glória, com a sua palavra. Por isso e convenientemente na transfiguração os homens são advertidos a ouvi-lo, não porem no batismo.
 
RESPOSTA À QUARTA. — Foi conveniente os discípulos se aterrorizarem com a voz do Pai e se prosternarem, a fim de ficar assim claro que a excelência dessa glória que então se manifestava, excede toda a compreensão e toda a capacidade dos mortais, segundo aquilo da Escritura: Nenhum homem me verá e depois viverá. E por isso diz Jerônimo, que a fragilidade humana não pode suportar o esplendor de uma tão grande glória. Mas Cristo nos cura dessa fragilidade, introduzindo-nos na glória. O que significam as, palavras que lhes disse: Levantai-vos e não temais. 

Art. 3 — Se foram escolhidas testemunhas convenientes da transfiguração.

 O terceiro discute-se assim. — Parece que não foram escolhidas testemunhas convenientes da transfiguração.

1. — Pois, cada um só pode testemunhar o que conhece. Ora, no tempo da transfiguração de Cristo, ninguém, a não ser os anjos, conhecia por experiência o que fosse a glória futura. Logo, testemunhas da transfiguração deviam ter sido antes os anjos que os homens.
 
2. Demais. — Testemunhas da verdade só podem ser pessoas reais e não fictícias. Ora, na transfiguração Moisés e Elias não estiveram presentes senão ficticiamente. Assim, àquilo do Evangelho  Eis que ali estavam Moisés e Elias  diz uma Glosa: Devemos saber que Moisés e Elias não apareceram, nessa ocasião, em corpo e alma, mas com corpos formados numa criatura ocasional. E podemos crer também que isso foi feito por ministério angélico, de modo que os anjos lhes assumissem as pessoas. Logo, não foram testemunhas convenientes.
 
3. Demais. — A Escritura diz, que de Cristo dão testemunho todos os profetas. Logo, não somente Moisés e Elias deviam ter estado presentes como testemunhas, mas também todos os profetas.
 
4. Demais. — A glória de Cristo era prometida a todos os seus fiéis, nos quais quis acender, pela sua transfiguração, o desejo dessa glória. Logo, não devia ter assumido só Pedro, Tiago e João como testemunhas da sua transfiguração, mas todos os discípulos.
 
Mas, em contrário, a autoridade da Escritura Evangélica.
 
SOLUÇÃO. Cristo quis transfigurar-se, para mostrar a sua glória aos homens e para despertar-lhes o desejo dela, como dissemos. Ora, à glória da eterna beatitude os homens são levados por Cristo, não só os que existiram antes, como também depois dele. Por isso, quando caminhava para a sua paixão, tanto as gentes que iam adiante, como as que iam atrás, gritavam dizendo  Hosana, como esperando dele a salvação. Por isso era conveniente que, dentre os que o precederam, estivessem como testemunhas Moisés e Elias; e dos que existiram depois, Pedro, Tiago e João, para que por boca de duas ou três testemunhas ficasse confirmada essa palavra.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Isto, pela sua transfiguração, manifestou aos discípulos a glória do seu corpo, que só aos homens respeita. Por isso e convenientemente, foram trazidos como testemunhas dela, não anjos, mas homens.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Essa glosa considera-se como extraída do livro intitulado - Dos milagres da Sagrada Escritura, que não é um livro autêntico, mas falsamente atribuído o Agostinho. Por isso não devemos nos apoiar nela. Pois, Jerônimo diz expressamente: Devemos notar que aos escribas e aos fariseus, que lhe pediam um sinal do céu, Cristo não lhes quis dar; mas, na sua transfiguração, para aumentar a fé dos discípulos, dá-lhes um sinal do céu, a saber, o descenço de Elias, do lugar para onde ascendera; e a ressurreição de Moisés, dos mortos. Mas não o devemos entender como significando que a. alma de Moisés retomasse o seu corpo; mas que a sua alma se manifestou, como o fazem os anjos, por um corpo assumido. Mas Elias apareceu com o seu próprio corpo, não vindo do céu empíreo, mas de um lugar elevado, para o qual foi arrebatado num carro de fogo.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz Crisóstomo, Moisés e Elias foram trazidos como testemunhas, por muitas razões.  A primeira é a seguinte: Porque como as turbas consideravam-no como Elias ou Jeremias, ou um dos profetas, fezaparecerem os principais dos profetas, para ao menos assim manifestar a diferença entre os servos e o Senhor.  A segunda razão é, porque Moisés deu a lei e Elias foi o zelador da glória do Senhor. Assim, aparecendo simultaneamente com Cristo, ficava aniquilada a calúnia dos judeus, que acusavam a Cristo de transgressor da lei, e de blasfemo por usurpar para si a glória de Deus.  A terceira razão é: mostrar que tinha poder sobre a vida e a morte, que era o juiz dos mortos e dos vivos, por ter tido ao seu lado Moisés, que já morrera, e Elias, ainda vivo.  A quarta razão é que: como diz o Evangelho falavam da sua saída deste mundo que havia de cumprir em Jerusalém, isto é, da sua paixão e da sua morte. E assim, para fortalecer, nesse ponto, a alma dos discípulos, fá-Ios se apresentarem em sua companhia os que se expuseram à morte por Deus; pois, Moisés, com perigo de morte, se apresentou perante o Faraó e Elias, perante Acab.  A quinta razão é porque queria que os seus discípulos fossem imitadores da mansidão de Moisés e do zelo de Elias.  A sexta razão, acrescentada por Hilário, era mostrar que foi anunciado pela lei de Moisés e pelos profetas, entre os quais era Elias o principal.
 
RESPOSTA À QUARTA. — Mistérios sublimes não devem ser revelados a todos imediatamente mas devem oportunamente chegar aos outros homens por meio dos chefes. Por isso, como diz Crisóstomo, Cristo levou consigo os três discípulos mais principais: Pois, Pedro foi executado pelo amor, que teve para com Cristo e também pelo poder que lhe foi cometido; João, pelo privilégio do amor com que, por causa da sua virgindade, era amado de Cristo, e também pela prerrogativa de ter pregado a doutrina Evangélica: e Tiago enfim, pela prerrogativa do martírio. E contudo Cristo não quis que esses mesmo anunciassem, o que viram antes da sua ressurreição. A fim de como explica Jerônimo. fato de tão grande magnitude não ser tido como incrível; nem viesse, depois de tão grande glória, a causar escândalo, entre almas rudes, a cruz, que lhe havia de suceder; ou também a fim de o povo não se lhe opor invencivelmente; e para que, quando estivessem cheios do Espírito Santo, então fossem testemunhas desses fatos espirituais. 

 

Art. 2 — Se a referida luminosidade era gloriosa.

 O segundo discute-se assim. — Parece que a referida luminosidade não era gloriosa. 

1.  Pois, diz uma Glosa de Beda àquilo do Evangelho  Transfigurou-se na presença deles: No seu corpo mortal, diz, mostra, não a imortalidade, mas a luminosidade semelhante à imortalidade futura. Ora, a luminosidade da glória é a luminosidade da imortalidade. Logo, aquela luminosidade, que Cristo manifestou aos discípulos, era a luminosidade da glória.
 
2. Demais. — Aquilo do Evangelho  Não hão de gostar a morte até não verem o reino de Deus  diz a Glosa de Beda: isto é, a glorificação do corpo, numa representação imaginária da beatitude futura. Ora, a imagem de uma coisa não se confunde com esta. Logo, a referida luminosidade o era a da beatitude.
 
3. Demais. — Da luminosidade da gloria só é susceptível o corpo humano. Ora, a luminosidade da transfiguração se manifestou não só no corpo de Cristo, mas também nas suas vestes e na nuvem lúcida   que obumbrou os discípulos. Logo, parece que essa luminosidade não era a da glória.
 
Mas, em contrário, àquilo de Mateus.  Transfigurou-se perante eles, diz Jerônimo: Tal como há de aparecer no dia do juízo, assim apareceu aos Apóstolos. E àquele outro lugar do mesmo evangelista  até que vejam o Filho do homem vir na gloria do seu reino  diz Crisóstomo: Querendo mostrar aquela glória, com a qual virá mais tarde, manifestou-se-lhes na vida presente, como podiam eles suportar, de modo que não viessem a se condoer com a morte do Senhor.
 
SOLUÇÃO. — A luminosidade de que Cristo se revestiu na transfiguração foi a da glória, quanto ao modo de ser. Pois, a luminosidade do corpo glorioso deriva da luminosidade da alma, como diz Agostinho. E semelhantemente a claridade do corpo de Cristo na transfiguração deriva da sua divindade, como diz Damasceno, e da glória da sua alma. E só por uma dispensa divina é que a glória da alma, que Cristo teve desde o princípio da sua concepção, não redundou no corpo, a fim de que consumasse num corpo passive os mistérios da nessa redenção, como dissemos. Mas isso não privou Cristo do poder de derivar a glória da alma para o corpo. E isso o fez quanto à luminosidade, na transfiguração. Mas de modo diferente que no corpo glorificado. Pois, no corpo glorificado redunda a luminosidade da alma, como uma qualidade permanente que afeta o corpo; por isso, o refulgir corporalmente o corpo glorioso não é nenhum milagre. Mas, para o corpo de Cristo, na transfiguração, derivou-lhe a luminosidade da sua divindade e da sua alma, não a modo de uma qualidade imanente e afectante do corpo em si mesmo, mas antes a modo de paixão transeunte, como quando o ar é iluminado pelo sol. Por isso, aquele fulgor de que então se revestiu o corpo de Cristo, foi miraculoso, como também o foi o fato de ter andado sobre as ondas do mar. Donde o dizer Dionísio: Cristo pratica, com um poder sobre humano, atos que o homem pode praticar; como o demonstra o fato de ter a Virgem concebido sobrenaturalmente e o de ter a mobilidade da água sustentado o peso dos seus pés materiais e terrenos.  E por isso não devemos admitir, como o ensina Hugo de S. Vitor, que Cristo assumiu o dote da luminosidade, na transfiguração; o da agilidade, quando andou sobre o mar; o da subtileza, quando nasceu do Ventre Virginal de Maria. Porque dote nomeia uma certa qualidade imanente do corpo glorioso. Cristo, porém, teve milagrosamente tudo o referente aos dotes. E o mesmo, se deu, quanto à alma, relativamente à visão pela qual Paulo viu a Deus num rapto, como dissemos na Segunda Parte.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Das palavras citadas não se conclui que a luminosidade de Cristo não fosse a luminosidade da glória; mas, que irão foi a do Corpo glorioso, porque o corpo de Cristo ainda não era imortal. Pois, como por permissão divina a glória da alma de Cristo não lhe redundou para o corpo, assim, pela mesma dispensação, pode redundar-lhe quanto ao dote da claridade, e não quanto ao da impassibilidade.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Diz-se que a referida claridade ora imaginária, não por não ser a verdadeira claridade da glória, mas por ser uma imagem representativa da perfeição da glória, que tornará glorioso o corpo.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Assim como a claridade do corpo de Cristo, na transfiguração, representava a claridade futura desse mesmo corpo, assim a claridade das suas vestes designava a futura claridade dos santos, que será superada pela de Cristo, como o candor da neve o é pelo do sol. Por isso diz Gregório, que as vestes de Cristo se tornaram refulgentes, porque na culminância da claridade superna, todos os santos unir-se-lhe-ão na refulgência da luz da justiça. E quanto às vestes, elas designam os justos que ele unirá a si, segundo aquilo da Escritura.  Quanto à nuvem lúcida, ela significa a glória do Espírito Santo, ou a virtude paterna, como diz Orígenes, pela qual os santos serão garantidos na sua glória futura.  Embora também com propriedade possa significar a claridade do mundo renovado, que será o tabernáculo dos santos. Por isso, quando Pedro se dispor a fazer os tabernáculos, a nuvem lúcida obumbrou os discípulos. 

Art. 1 — Se devia Cristo transfigurar-se.

O primeiro discute-se assim. — Parece que não devia Cristo transfigurar-se.
 
1. — Pois, não pode um corpo verdadeiro, mas só um corpo fantástico, transformar-se em figuras diversas. Ora, o corpo de Cristo não era fantástico, mas verdadeiro, como se disse. Logo, parece que não devia transfigurar-se.
 
2. Demais. — A figura é a quarta espécie de qualidade; e a glória, sendo uma qualidade sensível, é a terceira. Logo, o ter-se tornado Cristo glorioso não pode ler considerado transfiguração.
 
3. Demais. — Os corpos gloriosos têm os quatro dotes seguintes, como mais adiante se dará: a impassibilidade, a agilidade, a subtileza e a luminosidade. Logo, não devia transfigurar-se tornando-se, antes, glorioso, que revestindo-se dos outros dotes.
 
Mas, em contrário, o Evangelho: E transfigurou-se diante dos seus três discípulos.
 
SOLUÇÃO. — O Senhor, depois de haver anunciado a sua paixão aos discípulos, convidou-os a que lhe imitassem o exemplo. Ora, é necessário, para trilharmos bem um caminho, termos um conhecimento prévio do fim. Assim, o sagitário não lança com acerto a seta, senão mirando primeiro o alvo que deve alcançar. Por isso perguntou Tomé, no Evangelho: Senhor, não sabemos para onde vais; e como podemos nós saber o caminho? E isso, sobretudo é necessário quando o caminho é difícil e áspero, a jornada laboriosa, mas belo o fim. Ora, o fim de Cristo, na sua paixão, era alcançar não somente a glória da alma que, tinha desde o princípio da sua concepção; mas também a do corpo, segundo aquilo do Evangelho  Importava que o Cristo sofresse estas causas e assim entrar na sua glória. E a essa glória também conduz os que lhe imitam o exemplo da paixão, segundo a Escritura: Por muitas tribulações nos é necessário entrar no reino de Deus. Por isso era conveniente que manifestasse aos seus discípulos a sua claridade luminosa; e tal é a transfiguração, que também concederá aos seus, segundo aquilo do Apóstolo: Reformará o nosso corpo abatido para o fazer conforme ao seu corpo glorioso. Donde o dizer Beda: Foi consequência de uma pia providência que, tendo gozado por breve tempo da contemplação da felicidade eterna, tolerassem mais fortemente as adversidades.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Diz Jerônimo, comentando o Evangelho: Ninguém pense que Cristo, por dizer o Evangelho que se transfigurou, tivesse perdido a sua forma e figura natural, ou que lhe fosse substituído o corpo verdadeiro por outro, espiritual e aéreo. Mas o próprio evangelista explica a sua transfiguração, quando diz: O seu rosto ficou refulgente como o sol e as suas vestiduras se fizeram brancas como a neve. Com o que lhe manifesta o esplendor das faces e os luminosos das vestes; assim a substância do seu corpo não desapareceu, mas somente transformou-se pela glória.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — A figura depende da extremidade dos corpos; pois, está compreendida no termo ou nos termos. Por onde, tudo o considerado em dependência das extremidades de um corpo de certo modo constituiu a figura. Ora, como a cor, também a luminosidade do corpo não transparente depende-lhe da superfície. Por isso, dizemos que está transfigurando o corpo revestido de luminosidade.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Dentre os quatro dotes referidos, só a luminosidade é uma qualidade da pessoa em si mesma; quanto aos outros três dotes, eles não são percebidos senão mediante um ato, movimento ou paixão. Ora, Cristo manifestou na sua pessoa certos sinais de ter os três dotes referidos: o da agilidade, quando andou sobre as ondas; o da subtileza, quando nasceu do ventre virginal de Maria; o da impassibilidade, quando saiu ileso das mãos dos Judeus, que o queriam precipitar ou lapidar. Mas nem por isso diz o Evangelho que se transfigurasse, senão só quando se tornou luminoso, o que lhe respeita ao aspecto da pessoa. 

Art. 4 — Se Cristo fez convenientemente milagres atinentes às criaturas irracionais.

 O quarto discute-se assim. — Parece que Cristo não fez convenientemente milagres atinentes às criaturas irracionais. 

1. — Pois, os brutos são superiores às plantas. Ora, Cristo fez milagres relativos as plantas; assim, a sua palavra fez secar uma figueira, como lemos no Evangelho. Logo, parece que também devia ter feito milagres relativos aos brutos.
 
2. Demais. — A pena só por uma culpa éque é justamente aplicada. Ora, a figueira não tinha culpa de Cristo não a ter encontrado com frutos, pois, deles não era tempo. Logo, parece que não devia tê-la feito secar.
 
3. Demais. — A água e o ar estão entre o céu e a terra. Ora, Cristo fez certos milagres no céu, como se disse. E também na terra, quando esta tremeu, por ocasião da paixão. Logo, parece que também devia ter feito como objeto de seus milagres O ar e a água; e assim, dividir o mar, como o fez Moisés; ou ainda um rio, como o fizeram Josué e Elias; e também causar trovões no ar, como se deu no monte Sinai, quando foi dada a lei, e como o fez Elias.
 
4. Demais. — A divina Providêncía se serve das obras milagrosas para governar o mundo. Ora, essas obras pressupõem a criação. Logo, Cristo não devia, nos seus milagres, recorrer à criação, como quando, por exemplo, multiplicou os pães. Logo, parece que não houve conveniêncía nos seus milagres, relativos às criaturas irracionais.
 
Mas, em contrário, Cristo é a sabedoria de Deus, da qual diz a Escritura: Dispõe todas as causas com suavidade.
 
SOLUÇÃO. — Como dissemos, os milagres de Cristo se ordenavam a manifestar-lhe o poder divino, para a salvação dos homens. Ora, por natureza ao poder divino hão de lhe estar sujeitas todas as criaturas. Logo, devia ele ter feito milagres em relação a todo gênero de criaturas; e assim, não só em relação aos homens, mas também em relação às criaturas irracionais.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Os brutos são genericamente próximos ao homem, sendo por isso feitos no mesmo dia que ele. E como Cristo fez muitos milagres atinentes ao corpo humano, não estava obrigado a fazer nenhuns relativos ao corpo dos brutos. Sobretudo porque, quanto à natureza sensível e corpórea, o homem tem a mesma natureza que os outros animais, sobretudo terrestres. Os peixes, porém, vivendo na água, diferem mais da natureza dos homens, e por isso foram feitos em outro dia. E em relação a eles Cristo fez o milagre da copiosa pesca, que refere oEvangelho; e também o do peixe que Pedro pescou e no qual achou um estater.  Quanto ao fato dos porcos precipitados no mal, não foi essa uma obra milagrosa de Deus, mas ato dos demônios, por permissão divina.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz Crisóstomo, quando o Senhor opera obras tais sobre os plantas ou os brutos, não indagues se houve justiça no fazer secar-se a figueira, por não ter frutos, apesar de não ser tempo deles; pois, essa indagação seria grande demência, porque tais seres não são susceptíveis de culpa nem de pena; mas antes, atende ao milagre e admira-lhe o autor. Nem faz o Criador nenhuma injustiça a quem possui, quando usa da criatura, a seu talante, para a salvação dos homens. Ao contrário, como nota Hilário, nisso descobrimos um argumento da bondade divina. Pois, quando quis dar um exemplo da salvação, que veio trazer, exerceu a força do seu poder sobre corpos humanos; quando porém aplicou a sua severidade contra os contumazes, indicou o que havia de acontecer, amaldiçoando a figura. E sobretudo como diz Crisóstomo, a figura, que é humudíssima, manifesta um maior milagre.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Cristo também fez milagres, que convinha fazer, em relação à água e ao ar; assim, quando, segundo lemos no Evangelho, pôs preceito ao mar e aos ventos e logo se seguiu uma grande bonança. Não era conveniente, porém, a quem vinha repor tudo no estado de paz e de tranquilidade causar qualquer perturbação no ar ou divisão nas águas. Donde o dizer o Apóstolo: Não vos haveis ainda chegado ao monte palpável e ao fogo incendido e ao turbilhão e à obscuridade e à tempestade. Na sua paixão, porém, rasgou-se o véu do templo, em duas partes, para mostrar a revelação dos mistérios da lei; abriram-se as sepulturas, para mostrar que pela sua morte seria dada aos mortos a vida; tremeu a terra e partiram-se as pedras, a fim de mostrar que os corações empedernidos dos homens se abrandariam com a sua paixão e que todo o mundo, por virtude dessa paixão, se mudaria para melhor.
 
RESPOSTA À QUARTA. — A multiplicação dos pães não se fez a modo de criação, mas pelo acrescentamento de uma certa matéria estranha, convertida em pães. Donde o dizer Agostinho: Do mesmo modo que com poucos grãos multiplica as sementeiras, assim nas suas mãos multiplicou os cinco pães. Ora, é manifesto que, por conversão de matéria, os grãos produzem colheitas abundantes. 

Art. 3 — Se Cristo fez com conveniência milagres em relação aos homens.

 O terceiro discute-se assim. — Parece que Cristo não fez com conveniência milagres em relação aos homens.

1. — Pois, no homem a alma é superior ao corpo. Ora, Cristo fez muitos milagres em relação aos corpos; mas não lemos que fizesse nenhuns sobre as almas. Pois, nem converteu miraculosamente nenhuns incrédulos a fé, mas advertindo-os e mostrando-lhes os milagres exteriores; nem referem os Evangelhos que desse sabedoria a nenhuns fatuos. Logo, parece que não obrou com conveniência milagres em relação aos homens.
 
2. Demais. — Como se disse, Cristo fazia milagres pelo seu poder divino, ao qual é próprio obrar súbita e perfeitamente e sem o auxílio de ninguém. Ora, Cristo nem sempre curava subitamente o corpo humano. Assim, refere o Evangelho, que tomando o cego pela mão, o tirou para fora da aldeia; e cuspindo-lhe nos olhos, tendo-lhe imposto as suas mãos, lhe perguntou se via alguma coisa. E levantando ele os olhos disse: Vejo os homens como árvores que andam. Depois tornou-lhe Jesus a pôr as mãos sobre os olhos, e começou ele a ver e ficou de todo curado, de sorte que via distintamente todos os objetos. Por onde é claro que não o curou subitamente, mas, primeiro de um modo imperfeito, cuspindo-lhe nos olhos. Logo, parece que não fez com conveniência milagres em relação aos homens.
 
3. Demais. — Não é necessário eliminarem-se simultaneamente coisas que não resultam uma da outra. Ora, as doenças do corpo nem sempre são causadas pelo pecado, como é claro pelas palavras do Senhor: Não nasceu cego por pecado que ele fizesse, nem seus pais. Logo, não devia perdoar os pecados a quem só lhe vinha pedir a cura do corpo, como lemos no Evangelho que fez com o paralítico. Sobretudo que, sendo a restituição da saúde do corpo menor bem que a remissão dos pecados, não constituía prova suficiente do seu poder de perdoar os pecados.
 
4. Demais. — Os milagres de Cristo foram feitos em confirmação da sua doutrina e do testemunho da sua divindade, como se disse. Ora, ninguém deve opor obstáculo ao fim da sua própria obra. Logo, parece que Cristo não devia ter ordenado a certos curados milagrosamente não publicarem os milagres de que foram objeto. Assim, sobretudo que a certos outros mandou proclamarem os milagres que lhes fez; assim, como lemos no Evangelho, disse aquele a quem livraria dos demônios: Vai para a tua casa, para os teus, e anuncia-lhes quão grandes coisas o Senhor te fez.
 
Mas, em contrário, o Evangelho: Ele tudo tem bem jeito; fez não só que ouvissem os surdos, mas que falassem os mudos.
 
SOLUÇÃO. — Os meios conducentes a um fim devem ser-lhe proporcionados. Ora, Cristo veio ao mundo ensinar, para salvar os homens, segundo aquilo do Evangelho: Deus não enviou seu filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele. Logo, era conveniente que, em particular, curando milagrosamente os homens, se mostrasse o Salvador universal e espiritual deles.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Os meios conducentes a um fim são destes distintos. Ora, os milagres feitos por Cristo ordenavam-se, como ao fim, à salvação da parte racional, consistente na iluminação da sabedoria e na justificação dos homens. E desses fins o primeiro pressupõe o segundo; pois, como diz a Escritura, na alma que é maligna não entrará a sabedoria nem habitará no corpo sujeito a pecados. Ora, justificar os homens não era possível sem a cooperação da vontade deles; o contrário se oporia à justiça, que por essência implica a retidão da vontade, e também à essência da natureza humana, que deve ser conduzida ao bem pelo livre arbítrio e não pela coação. Ora, Cristo pelo seu poder divino justificava os homens interiormente, mas não contra a vontade deles. Nem isso constituía a essência, mas o fim dos milagres. Semelhantemente, também pelo seu poder divino, infundiu a sabedoria divina em homens simples como eram os discípulos; donde o dizer-lhes: Eu vos darei uma boca e uma sabedoria à qual não poderão resistir nem contradizer todos os vossos inimigos. O que, quanto à iluminação interior, não se enumera entre os milagres visíveis; mas só quanto ao ato exterior, pois viram falar tão sábia e constantemente homens os que eram iletrados e simples. Por isso diz a Escritura: Vendo os judeus a firmeza de Pedro e de João, depois de saberem que eram homens sem letras e idiotas, se admiravam.  E contudo esses efeitos espirituais; embora distintos dos milagres visíveis, são todavia uns testemunhos da doutrina e do poder de Cristo, segundo aquilo do Apóstolo: Confirmando-o com maravilhas e sinais e com virtudes diversas e com dons do Espírito Santo. Cristo, porém fez certos milagres sobre as almas dos homens, sobretudo atinentes a transformações nas potências inferiores delas. Por isso, àquilo doEvangelho.  Levantando-se ele, a seguiu — diz Jerônimo: O próprio resplendor e a majestade da divindade oculta que lhe iluminava mesmo a face humana, podia desde logo atrair para si os que uma vez o contemplavam. E aquele outro lugar doEvangelho  Os príncipes dos sacerdotes, etc., diz o mesmo Jerônimo: Dentre todos os milagres que fez o Senhor parece-me o mais admirável o ter podido ele só, como homem, e desprezível nesse tempo, expulsar uma tão grande multidão aos golpes de um chicote. Os olhos resplendiam-lhe como com raios ígneos de sol e a majestade divina iluminava-lhe a face. E Origines considera esse, maior milagre que o da conversão da água em vinha; pois, neste a matéria subsistia inanimada, ao passo que no primeiro o seu engenho dominou tantos milhares de homens.  E sobre aquele dito do evangelista  Recuaram para trás e caíram por terra - diz Agostinho: Com uma palavra, sem nenhuma arma abateu, repeliu e dispersou uma turba tão feroz pelo ódio quão terrível pelas armas: é que Deus animava aquele corpo.  E a isto também respeita aquele outro passo, que Jesus passando pelo meio deles, se retirou; à cerca do qual diz Crisóstomo, que o estar no meio dos que o buscavam para prender, e não ser preso mostrava a eminência da sua divindade. E ainda há outro passo - Jesus escondeu-se e saiu do templo - que Agostinho explica assim: Não se escondeu num canto do Templo nem se ocultou atrás de uma parede ou de uma coluna, como quem teme, mas tornando-se invisível, por um poder celeste, aos que o buscavam, saiu passando pelo meio deles.  E tudo isso mostra que Cristo, pelo seu poder divina, causou mudanças nas almas doshomens, quando o quis, não só justificando e infundindo a sabedoria  a que constitui a fim dos milagres, mas também exteriormente aliciando, aterrorizando ou estupefazendo - o que constitui a essência mesma dos milagres.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Cristo veio salvar o mundo, não só pela seu poder divino, mas também pelo mistério da sua Encarnação. Por isso frequentemente, ao curar os enfermas, não somente usava esse, fazendo-os sarar por uma simples ordem, mas ainda fazia contribuir para tal a sua humanidade. Por isso, aquilo doEvangelho  Pondo as mãos sobre cada um deles, os sarava  diz Cirílo: Embora, como Deus, pudesse curar com uma palavra todas as doenças, contudo toca os doentes, mostrando assim ser o seu próprio corpo capaz de contribuir como um remédio eficaz. E aquele outra lugar  Cuspindo-lhe nos olhos, tendo lhe imposto as mãos, etc. diz Crisóstomo. (Vítor Antíoqueno): Cuspiu-lhe nos olhos e impôs as mãos ao cego, a fim de mostrar que a palavra divina, acompanhada do ato, perfazia os milagres; pois, a mão indica o ato; o cuspir, a palavra proferida pela boca.  E a propósito do outro passo evangélico - Cuspiu no chão e fez lodo do cuspe e untou com o lodo os olhos do cego, diz Agostinho: Com a sua saliva fez o lodo, porque o Verbo se fez carne. Ou também para significar que foi ele quem formou o homem do limo da terra, como diz Crisóstomo.
 
Também devemos considerar, sobre os milagres de Cristo, que comumente as suas obras eram perfeitíssimas. Por isso, àquilo do Evangelho - Todo homem põe primeiro o bom vinho  diz Crisóstomo: Os milagres de Cristo são tais que em muito soprepujando em utilidade e beleza quanto a natureza pode produzir.  E semelhantemente, num instante restituía aos enfermos a saúde perfeita. Por isso, ao lugar do Evangelho  Tendo chegado Jesus, diz Jerônimo: O Senhor restituía a saúde, total e simultâneamente.
 
Especialmente, porém, no caso do cego, deu-se o contrário, por causa da infidelidade dele, como diz Crisóstomo (Vítor Antroqueno)  Ou, como diz Beda, aquele a quem podia curar total e simultaneamente, a esse o cura aos poucos para mostrar a magnitude da cegueira humana, que aos poucos e como gradualmente é que pode iluminar-se; a fim de nos chamar a atenção sobre a sua graça, com a qual auxilia cada progresso na perfeição.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como dissemos Cristo fazia milagres pelo seu poder divino. Ora, as obras de Deus são perfeitas, como diz a Escritura. Mas, só é perfeito o que atinge o seu fim. E o fim da cura do corpo, operada por Cristo, era a cura da alma. Por isso, não devia Cristo curar o corpo de ninguém, sem lhe curar a alma. Por onde, aquilo do Evangelho  Em dia de sábado curei a todo um homem  diz Agostinho: Por ter sido curado, para ter a saúde do corpo, também acreditou, para que tivesse a saúde da alma.  Mas especialmente disse ao paralítico  São te perdoados os pecados: porque, como diz Jerônimo, nos der assim a entender que os pecados causam em nosso corpo muitas enfermidades, e foi essa talvez a razão de Cristo perdoar primeiro os pecados a fim de eliminadas as causas da doença, ser restituída a saúde. Por isso diz o Evangelho: Não peques mais, para que te não suceda alguma coisa pior. O que Crisóstomo explica dizendo: Ficamos assim informados que do pecado é que lhe nasceu a doença.  Embora também, como diz Crisóstomo, quanto mais principal é a alma, que o corpo, tanto mais importante é perdoar os pecados, que restituir a saúde do corpo; mas, como esse perdão não se manifesta exteriormente, Cristo obra o menos importante, mas mais manifesto, para dar a conhecer o mais importante, embora não manifesto.
 
RESPOSTA À QUARTA. — Aquilo do Evangelho  Vede lá que o não saiba alguém  diz Crisóstomo: O que aqui diz não é contrário ao que tinha dito ao outro: Vai e anuncia a glória de Deus. Pois, assim nos adverte a impedir de nos louvarem os que o fazem, tendo em vista a nossa pessoa como tal. Mas, se o louvor que nos tributam se referir à glória de Deus, não devemos impedi-los, mas ao contrário, desejar que o façam. 

 

Art. 2 — Se Cristo fez convenientemente milagres em relação aos corpos celestes.

 O segundo discute-se assim. — Parece que Cristo não fez convenientemente milagres em relação aos corpos celestes.

1. — Pois, como diz Dionísio, não é próprio da divina providência destruir, mas conservar. Ora, os corpos celestes são de natureza incorruptível e inalterável, como o prova Aristóteles. Logo, não devia Cristo fazer nenhuma mudança na ordem dos corpos celestes.
 
2. Demais. — Pelo movimento dos corpos celestes é que se demarca o curso dos tempos, segunda a Escritura: Façam-se uns luzeiros no firmamento do céu e sirvam de sinais para mostrar os tempos, os dias e os anos. Assim, pois, mudado o curso dos corpos celestes, muda-se também a distinção e a ordem dos tempos. Ora, não há notícia que essa mudança fosse percebida pelos astrólogos, que contemplavam os astros e contavam os meses, no dizer da Escritura. Logo, parece que Cristo não fez nenhuma mudança relativamente ao curso dos corpos celestes.
 
3. Demais. — Era mais curial que Cristo fizesse milagres, quando vivia e ensinava, que na sua morte. Ou porque, como diz o Apóstolo. Foi crucificado por enfermidade, mas vive pelo poder de Deus, pelo qual fazia milagres; e quer também por lhe serem os milagres a confirmação da doutrina. Ora, não nos diz o Evangelho, que durante a sua vida Cristo fizesse algum milagre relativo aos corpos celestes; ao contrário, aos f'ariseus que lhe pediam um sinal do céu, recusou dar-lhes, como lemos no Evangelho. Logo, parece que na ocasião da sua morte também não devia fazer nenhum milagre relativamente aos corpos celestes.
 
Mas, em contrário, o Evangelho: Toda a terra ficou coberta de trevas até a hora nona e escureceu-se também o sol.
 
SOLUÇÃO. — Como dissemos os milagres de Cristo deviam ser tais que lhe patenteassem suficientemente a divindade. Ora, não a manifestam evidentemente as transmutações dos corpos inferiores, que também podem ser alterados por outras causas, como pela transmutação do curso dos corpos celestes, o qual só por Deus foi ordenado de maneira imutável. E é o que diz Dionísio: Devemos saber que se alguma mudança pode houver na ordem e no movimento dos céus, só o poderá ser pela causa que fez e muda todas as causas por uma simples palavra. Por isso houve conveniência em Cristo fazer milagres mesmo em relação aos corpos celestes.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Assim como é natural aos corpos inferiores serem movidos pelos corpos celestes, que lhes são superiores na ordem da natureza, assim também é natural a qualquer criatura ser mudada por Deus conforme os decretos da sua vontade. Por isso diz Agostinho, e também se lê na Glosa àquilo do Apóstolo  Contra a natureza foste enxertado etc. Deus, Criador e Autor de todas as naturezas, nada faz contra a natureza, pois a natureza de cada ser tem nele a sua fonte. Por isso, não se corrompe a natureza dos campos celestes quando Deus lhes altera o curso; corromper-se-ia porém se fosse alterado por alguma outra causa.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — O milagre feito por Cristo não perverteu a ordem dos tempos. Pois, segundo certos, essas trevas ou obscurecimento do sol, que se verificaram na paixão de Cristo, tiveram a sua causa na retração dos raios solares, sem nenhuma mudança causada no movimento dos corpos celestes, pelo qual se medem ostempos. Donde o dizer Jerônimo: O Campadário maior retraiu os seus raios ou para que não visse o Senhor pendente da cruz, ou para que não lhe gozassem dos raios ou ímpios blasfemadores.  Essa retração dos raios porém não deve entender-se como significando que o sol tenha o poder de emitir ou retrair raios, pois, ele os emite não por eleição, mas por natureza, como diz Dionísio. Mas se diz que o sol retraiu os raios por não terem eles, por virtude do poder divino, chegado até a terra. Orígenes, porém explica esse fato pela interposição das nuvens. Devemos por consequência entender, diz, que muitas e grandes nuvens tenebrosissímas se acumulavam sobre o céu de Jerusalém, terra da Judéia donde resultaram as trevas profundas desde a sexta até a nona hora. Penso, pois, que assim como o ter-se cindido o véu do templo, o tremor da terra e outros fenômenos que se verificaram durante a paixão, só se deram em Jerusalém, assim também no caso vertente. Podemos, porém, tomando o texto - Toda a terra ficou coberta de trevas num sentido mais lato, aplicá-lo a toda a terra de Judéia pois, em tal sentido a elo se aplica, como quando, conforme lemos na Escritura, disse Abdias a Elias  Viva o Senhor teu Deus, que não há nação nem reino onde meu amo te não tenha mandado buscar  mostrando que o buscara entre as gentes que habitavam perto da Judéia.
 
Mas, nesta matéria, devemos seguir antes a Dionísio, que, como testemunha ocular, compreendeu que tal fato foi possível pela interposição da lua entre nós e o sol. Assim, diz: Vimos  estava então no Egito — inopinadamente a lua ocultar o sol. E descobre aí quatro milagres.  O primeiro é que naturalmente o eclipse do sol, por interposição da lua, nunca se dá senão quando esses astros estão em conjunção. Ora, então a lua estava em oposição com o sol, pois era o décimo quinto dia, depois da lua nova, quando se celebrou a Páscoa dos Judeus. Por isso: Pois, não era o tempo oportuno.  O segundo milagre consistiu em ter a lua sido vista simultaneamente com o sol, no meio do céu, cerca da hora sexta; e de tarde apareceu no seu lugar, isto é, no oriente, oposta ao sol. Por isso diz: E de novo a vimos, isto é, a lua, desde a hora nona, quando se afastou do sol e cessaram as trevas, até a tarde, imposta por uma ação sobrenatural na linha dia me trai do sol, isto é, diametralmente oposta do sol. Donde se concluiu que não foi perturbado o curso habitual dos tempos, pois o poder divino fez com que a lua, sobrenaturalmente, se aproximasse do sol no tempo oportuno, e depois, afastando-se do sol, no tempo devido se colocasse de modo no seu lugar próprio. — O terceiro milagre esteve no seguinte. Uma eclipse natural sempre com cada parte ocidental do sol para acabar na parte  oriental; porque a lua tem o seu movimento próprio, do ocidente para o oriente, mais veloz que o movimento próprio do sol; por isso, vindo do ocidente, alcança o sol e o ultrapassa, tendendo para o oriente. Mas, no caso vertente, a lua já tinha ultrapassado o sol e distava dele a metade do círculo, estando-lhe em oposição. Por onde havia necessàriamente de voltar para o oriente em direção ao sol e alcançá-lo primeiro pela parte oriental, dirigindo-se para o ocidente. E é o que diz Dionísio: Também vimos a eclipse, começando da parte oriental, chegar ao termo do sol, porque eclipsou-o todo, e depois retroceder.  O quarto milagre consistiu no seguinte. No eclipse natural o sol começa a reaparecer pela parte que principiou primeiro a obscurecer-se: porque a lua, pondo-se na frente do sol, pelo seu movimento natural o ultrapassa em direção ao oriente; e assim, a parte ocidental do sol, que primeiro ocupou, é também a que primeiro abandona. Mas, no caso em discussão, a lua, voltando milagrosamente do oriente para o ocidente, não ultrapassou o sol, de modo a ficar mais ao ocidente, que ele. Mas, depois de ter chegado ao termo do sol, voltou para a parte oriental; e assim, a parte do sol, que por último ocupou, foi também a que primeiro abandonou. Por onde, o eclipse começou pela parte oriental, mas a claridade começou primeiro a manifestar-se pela parte ocidental. E é o que diz Dionísio: E de novo vimos, não do mesmo lugar, isto é, não da mesma parte do sol, mas ao contrário no sentido do diâmetro, começar o eclipse e acabar.  Crisóstomo acrescenta ainda um quinto milagre dizendo, que as trevas duraram três horas, apesar do eclipse solar ter se consumado num instante; pois, não foi demorado, como o sabem os que o observaram. Pelo que dá a entender que a lua parou diante do sol. A não ser que preferíssemos dizer que o tempo das trevas deve ser contado desde o instante em que o sol começou a obscurecer-se até o momento em que ficou de novo totalmente livre. Mas, diz Orígenes, os filhos deste século objetam contra um tal prodígio, perguntando:  Como é que um fato tão admirável nenhum dos gregos nem dos bárbaros o descreveu? E refere que um certo Flegonte escreveu, nas suas Crônicas, que esse fato se deu no principado de Tibério César; mas não especificou que foi por ocasião de uma lua cheia. E isso podia ter acontecido, porque os astrólogos de todas as terras, que viviam nesse tempo, não se preocupavam em observar nenhum eclipse por não ser então ocasião de nenhum; de modo que atribuíram as trevas que presenciavam, a algum fenômeno atmosférico. Mas no Egito, onde raramente aparecem nuvens, por causa da serenidade do ar, Dionísio e os seus companheiros foram levados a observar o eclipse referido, causa da obscuridade.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Cristo devia, sobretudo, manifestar por milagres a sua divindade, quando mais se lhe faziam sentir as necessidades da natureza humana. Por isso, na sua natividade apareceu uma nova estrela no céu. Donde o dizer Máximo: Se desprezas o presépio, levanta um pouco os olhos e contempla a nova estrela do céu, anunciando ao mundo a natividade do Senhor.  Mas na paixão a humanidade de Cristo foi sujeita a uma miséria ainda maior. Por isso era necessário que maiores milagres se realizassem no tocante aos principais Iuzeiros do mundo. E, como diz Crisóstomo, esse foi o sinal prometido aos que o pediam, quando disse, aludindo à sua cruz e ressurreição: Esta geração pervessa e adúltera pede um prodígio e não lhe será dado outro prodígio senão o prodígio do profeta Jonas. Pois, isso era muito mais admirável que o fizesse, quando crucificado, do que quando andava na terra. 

Art. 1 — Se houve conveniência nos milagres que Cristo fez em relação a substâncias espirituais.

 O primeiro discute-se assim. — Parece que não houve conveniência nos milagres que Cristo fez em relação a substâncias espirituais.

1. — Pois, entre as substâncias espirituais; os santos anjos governam os demônios; porque, como diz Agostinho, o espírito pecador divorciado da vida racional, é governado pelo espírito de vida racional, pio e justo. Ora, não lemos nos Evangelhos que Cristo tivesse feito nenhum milagre relativamente aos anjos bons. Logo, também não devia ter feito nenhum relativamente aos demônios.
 
2. Demais. — Os milagres de Cristo tinham por fim manifestar-lhe a divindade. Ora, a divindade de Cristo não devia ser manifestada aos demônios, o que viria impedir o mistério da sua paixão, segundo o Apóstolo: Se eles a conheceram, nunca crucificariam ao Senhor da glória. Logo, nenhum milagre devia Cristo fazer relativamente aos demônios.
 
3. Demais. — Os milagres de Cristo se ordenavam à glória de Deus; por isso diz o Evangelho, que as turbas, vendo um paralítico curado por Cristo, temeram e glorificaram a Deus porque deu tal poder aos homens. Ora, não é próprio dos demônios glorificar a Deus, porque o louvor não tem beleza na boca do pecador, no dizer da Escritura. Por onde, como dizem Marcos e Lucas, Cristo não permitia aos demônios proclamarem nada do atinente à sua glória. Logo, parece não era conveniente que fizesse nenhum milagre relativamente a eles.
 
4. Demais. — Os milagres feitos por Cristo se ordenam à salvação dos homens. Ora, certos demônios foram expulsos de certos homens, em detrimento deles. Às vezes corporal; assim; refere o Evangelho, que o demônio, por ordem de Cristo, dando grandes gritos e maltratando muito o homem, saiu dele; e ficou como morto, de sorte que muitos diziam  está morto. Outras vezes também em detrimento das coisas, como quando se fez os demônios se introduzirem em porcos, que se precipitaram no mar; sendo por isso Cristo rogado pelos habitantes da região a sair do país deles, como lemos no Evangelho. Logo, parece que esses milagres eram inconvenientes.
 
Mas, em contrário, a Escritura o prenunciou, quando disse: Exterminarei da terra o espírito imundo.
 
SOLUÇÃO. — Os milagres que Cristo fez serviam de argumentos em favor da fé que pregava. Pois, haveriam de vir homens crentes nele que, por virtude da sua divindade, suplantassem o poder dos demônios, conforme lemos no Evangelho: Agora será lançado fora o príncipe deste mundo. Por isso, foi conveniente que, entre outros milagres, também livrasse os obsessos dos demônios.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Assim como os homens deviam ser livrados por Cristo do poder dos demônios, assim também deviam ser por ele associados aos anjos, segundo aquilo do Apóstolo: Pacificando pelo sangue da sua cruz tanto o que está na terra como o que está no céu. Por isso, o único milagre que convinha fazer, relativamente aos anjos, é que estes aparecessem aos homens; e isso se deu na natividade, a ressurreição e a ascensão.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz Agostinho, Cristo deu-se a conhecer aos demônios na medida em que lh'o aprouve; e tanto lhe aprouve quanto era necessário. Mas deu-se-lhes a conhecer não como aos santos anjos, pelas causas da vida eterna, mas por certos efeitos temporais do seu poder. Assim, primeiro, vendo Cristo ter fome depois do jejum, não o tiveram por Filho de Deus. Por isso, àquilo do Evangelho  Se és o Filho de Deus  diz Ambrósio: Que quer o demônio significar, começando com essa pergunta, senão que sabe que o Filho de Deus havia de vir, mas não o julgava sujeito às necessidades do corpo? Mas depois, à vista dos milagres, conjeturou, por suspeitas, que fosse o Filho de Deus. Por isso, aquilo do Evangelho  Bem sei quem és: que és o Santo de Deus  diz Crisóstomo, que não tinha um conhecimento certo ou firme do advento de Deus. Sabia, porém que Cristo tinha sido prometido pela lei, sendo por isso que diz o Evangelho: Sabiam que ele mesmo era o Cristo. E quanto ao terem-no confessado Filho de Deus, o fizeram mais por suspeita que por certeza. Por isso Beda diz: Os demônios confessam o Filho de Deus; e como a seguir se refere: Sabiam que ele era o Cristo. Porque, vendo-o o diabo exausto pelo jejum, tomou-o como um verdadeiro homem; mas, pelo não ter vencido com a tentação, entrou a duvidar se não seria o Filho de Deus. Mas quando deu provas do seu poder, pelos milagres, ou compreendeu, ou antes, suspeitou que fosse o Filho de Deus. E se persuadiu aos judeus que o crucificassem, não foi pelo não reputar Filho de Deus, mas por não prever que seria vencido pela morte dele. Assim, desse mistério recôndito aos séculos, diz o Apóstolo, que ninguém, dos príncipes deste mundo, o conheceu; pois, se o tivessem conhecido nunca teriam crucificado o Senhor da glória.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — O milagre da expulsão dos demônios Cristo não o fez para utilidade deles, mas para a dos homens, a fim de que o glorificassem. E por isso proibiu-os proclamarem-lhe o louvor.  Primeiro, para exemplo. Pois, como diz Atanásio, impedia o demônio de falar, embora fosse para proclamar a verdade, para também nós nos acostumarmos a desprezar tais ditos, mesmo pareçam traduzir a verdade. Pois, é pecaminoso deixarmo-nos instruir pelo diabo, quando temos à nossa disposição a Escritura divina; o contrário seria perigoso, porque os demônios frequentemente misturam a mentira com a verdade.  Segundo, porque, como diz Crisóstomo (Cirilo Alexandrín.) não deviam eles arrebatar a glória do ofício apostólico. Nem convinha que uma boca impura fosse a que publicasse o mistério de Cristo, porque o louvor não tem beleza na boca do pecador.  Terceiro, porque, como diz Beda (Teofílacto), não queria desse modo despertar a inveja dos Judeus. Por isso também os próprios Apóstolos foram mandados calar a respeito dele, a fim de não diferirem o mistério da paixão com a proclamação da divina majestade.
 
RESPOSTA À QUARTA. — Cristo veio especialmente ensinar e fazer milagres para utilidade dos homens, sobretudo quanto à salvação da alma. Por isso permitiu aos diabos, que expulsava, causar certos danos aos homens, quer na pessoa quer nos bens deles, para a salvação da alma humana, por meio da instrução deles. Por isso diz Crisóstomo, que Cristo permitiu aos demônios introduzirem-se nos porcos. Não que disso o persuadissem aqueles; mas, primeiro, para nos mostrar a grandeza do dano que causam aos homens as insídias dos demônios. Segundo, para que todos compreendessem que nem contra porcos ousam fazer nada, sem o consentimento dele, Cristo. Terceiro, para mostrar que causariam maiores danos aqueles homens, que aos referidos porcos, se os homens não fossem ajudados da providência divina. E também por essas mesmas causas permitiu que o libertado dos demônios fosse na mesma hora afligido mais gravemente, de cuja aflição porém logo o livrou. O que também mostra, como diz Beda, que muitas vezes, quando nos esforçamos por nos converter a Deus, depois dos pecados, o nosso antigo inimigo nos arma maiores e novas insídias. E isso faz ou para nos incutir o ódio da virtude ou para vingar-se da injúria sua expulsão. E enfim, o homem curado tornou-se como morto, porque, explica Jerônimo, aos curados foi dito: Já estais mortos e a vossa vida está escondida com' Cristo em Deus. 
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