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Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Art. 4 — Se a concepção de Cristo foi natural.

 O quarto discute-se assim. — Parece que a concepção de Cristo foi natural.

1. — Pois, pela concepção da carne é Cristo chamado Filho do homem. Ora, é verdadeiro e naturalmente filho do homem, como verdadeiro e naturalmente é Filho de Deus. Logo, a sua concepção foi natural.
 
2. Demais. — Nenhuma criatura é capaz de realizar um ato milagroso. Ora, a concepção de Cristo é atribuída à Santa Virgem, que é uma simples criatura; assim, diz-se que a Virgem concebeu a Cristo. Logo, a sua concepção não foi miraculosa, mas natural.
 
3. Demais. — Para uma transformação ser natural, basta que o seu princípio passivo o seja, como se estabeleceu. Ora, o princípio passivo, pelo lado da mãe, na concepção de Cristo, foi natural, como do sobredito se colhe. Logo, a concepção de Cristo. foi natural.
 
Mas, em contrário, diz Dionísio: Cristo praticou as ações humanas de um modo sobre-humano; e isso demonstra ter sido sobrenatural a concepção da Virgem.
 
SOLUÇÃO. — Como diz Ambrósio, neste mistérios descobrirás muitas causas naturais e muitas outras sobrenaturais. Assim, se atendermos à matéria da concepção, que a Mãe ministrou, tudo é natural. E se considerarmos a influência do principio ativo, tudo é milagroso. Ora, nós julgamos um ser, fundados antes na sua forma, que na sua matéria; e semelhantemente, antes, pelo seu princípio ativo que pelo passivo. Donde, a concepção de Cristo devemos considerá-la absolutamente milagrosa e sobrenatural; mas, de certo modo, natural.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Dizemos que Cristo é naturalmente filho do homem, por ter verdadeiramente a natureza humana, que o torna filho do homem embora por milagre a tivesse. Assim, um cego, que recobrou a vista, vê naturalmente pela potência visiva que milagrosamente recebeu.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — A concepção é atribuída à Santa Virgem, não como ao princípio ativo; mas por ter ministrado a matéria da concepção e por ter-se esta consumado no seu ventre.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — O principio passivo natural basta para uma transformação natural, quando for, do modo natural e costumado, movido pelo princípio ativo próprio. Mas, isto não tem lugar no caso vertente. Logo, a concepção de Cristo não pode ser considerada simplesmente natural. 

Art. 3 — Se a carne de Cristo foi primeiro concebida e depois assumida.

 O terceiro discute-se assim. — Parece que a carne de Cristo foi primeiro concebida e depois assumida.

1. — O que não existe não pode ser assumido. Ora, a carne de Cristo começou a existi na concepção. Logo, parece que foi assumida pelo Verbo de Deus depois de concebida.
 
2. Demais. — A carne de Cristo foi assumida pelo Verbo de Deus mediante a alma racional. Ora, a alma racional a recebeu no termo da sua concepção. Logo, no termo da concepção é que foi assumida. Ora, no termo da concepção já estava concebida de todo. Logo, foi primeiro concebida e depois assumida.
 
3. Demais. — Todo ser gerado foi imperfeito antes de ser perfeito, como está claro no Filósofo. Ora, o corpo de Cristo foi um corpo gerado. Portanto, não chegou logo, desde o primeiro instante da sua concepção, à perfeição última, consistente na união com o Verbo de Deus; mas, primeiro, foi a carne concebida e, depois, assumida.
 
Mas, em contrário, Agostinho (Fulgêncío) diz: Crê firmissimamente e de nenhum modo duvides, que a carne de Cristo não foi concebida no ventre da Virgem antes de assumida pelo Verbo.
 
SOLUÇÃO. — Como já mostramos, dizemos propriamente que Deus se fez homem, mas propriamente não dizemos, que o homem se fez Deus. Porque Deus assumiu para si a natureza humana; mas antes de assumida pelo Verbo a natureza humana não existia, por si mesma subsístente. Se, pois, a carne de Cristo tivesse sido concebida, antes de assumida pelo Verbo, teria tido, então, uma determinada hipóstase, além da hipóstase do Verbo de Deus. Ora, isto vai contra a natureza da Encarnação, pela qual o Verbo de Deus se uniu à natureza humana e a todas as suas partes, na unidade da hipóstase. Nem convinha que, pela sua assunção, o Verbo de Deus destruísse a hipóstase preexistente da natureza humana ou de alguma das suas partes. Por onde, é contra a fé dizer que a carne de Cristo foi primeiro concebida e depois concebida pelo Verbo de Deus.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Se a carne de Cristo não tivesse sido formada ou concebida num instante, mas na sucessão do tempo, resultaria necessariamente uma ou outra destas duas consequências: ou o Verbo assumiu o que ainda não era carne, ou a concepção da carne foi anterior à assunção. Ora, como provamos a concepção se realizou perfeitamente num instante; por consequência, a carne veio à existência e foi concebida simultaneamente. E assim, como diz Agostinho, afirmamos que que o Verbo de Deus foi concebido em razão da sua união com a carne, e a carne, por seu lado, foi concebida em razão da encarnação do Verbo.
 
Donde se deduz clara também A RESPOSTA À SEGUNDA OBJEÇÃO. — Pois, desde que a carne foi concebida, o foi perfeitamente e, desde logo, animada.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — No mistério da Encarnação não há nenhuma ascensão, como seria a de um ser preexistente que se fosse alcançado até a dignidade da união, como o pretendeu o herético Fotino. Mas, o que nele descobrimos é um descenço , consistente em ter o Verbo perfeito de Deus assumido a imperfeição da nossa natureza, conforme o dito do Evangelho: Desci do céu

Art. 2 — Se o corpo de Cristo foi animado no primeiro instante da sua concepção.

 O segundo discute-se assim. — Parece que o corpo de Cristo não foi animado no primeiro instante da sua concepção.

1. — Pois, diz Leão Papa: A carne de Cristo não foi de uma natureza diferente da nossa; nem a sua alma proveio de um princípio diferente donde provêm as almas dos outros homens. Ora, nos outros homens a alma não é infundida no primeiro instante da sua concepção. Logo, nem no corpo de Cristo a alma devia ser infundida no primeiro instante da sua concepção.
 
2. Demais. — A alma, como qualquer forma natural, exige um certo desenvolvimento do corpo. Ora, no primeiro instante da sua concepção, o corpo de Cristo não tinha a mesma quantidade que tem os corpos dos outros homens, quando animados. Pois, do contrário, tendo crescido continuamente, ou teria nascido mais cedo, ou, ao nascer, seria mais desenvolvido que o corpo das demais crianças. Ora, a primeira hipótese vai contra Agostinho, quando prova que o corpo de Cristo esteve no ventre da Virgem durante o espaço de nove meses. A segunda, contra Leão Papa, quando diz: Encontraram o menino Jesus em nada dissemelhante da generalidade da infância humana. Logo, o corpo de Cristo não foi animado desde o primeiro instante da sua concepção.
 
3. Demais. — Onde há anterioridade e posterioridade há de necessariamente haver muitos instantes. Ora, segundo o Filósofo, a geração do homem implica anterioridade e posterioridade; assim, primeiro é vivo, depois animal e, enfim, homem. Logo, não podia Cristo ter recebido a alma desde o primeiro instante da sua concepção.
 
Mas, em contrário, diz Damasceno: Simultaneamente existiu a carne, o Verbo de Deus feito carne e a carne animada pela alma racional e intelectual.
 
SOLUÇÃO. — Para a concepção ser atribuída ao Filho de Deus, como confessamos no Símbolo. - Que foi concebido do Espírito Santo, devemos necessariamente admitir que o corpo de Cristo, ao ser concebido, foi assumido pelo Verbo de Deus. Ora, como já demonstramos, o Verbo de  Deus assumiu o corpo mediante a alma; e a alma, mediante o espírito, isto é, o intelecto. Por onde e necessariamente, desde o primeiro instante da sua concepção o corpo de Cristo foi animado da alma racional.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. - O princípio em virtude do qual a alma é infundida no corpo pode ser considerado a dupla luz. - Primeiro, relativamente à disposição do corpo. E assim, a alma não foi infundida no corpo de Cristo em virtude de um princípio diferente do por que o é no corpo dos outros homens. Pois, assim como a alma é infundida em nosso corpo desde que está formado, assim também o foi em Cristo. - Segundo, o referido princípio pode ser considerado só relativamente ao tempo. E assim, como o corpo de Cristo foi formado perfeitamente antes do tempo formal, também antes desse tempo foi animado.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — A alma supõe o corpo suficientemente desenvolvido em que é infundida; mas esse desenvolvimento tem uma certa latitude, pois, pode ser mais ou menos considerável. Em nós, o desenvolvimento do corpo, quando a alma acaba de ser nele infundida, é proporcionado ao tamanho normal que terá quando chegar ao seu desenvolvimento perfeito. De modo que indivíduos maiores terão já corpo mais desenvolvido, por ocasião de lhe ser a alma infundida. Ora, Cristo, na sua idade perfeita, tinha uma estatura normal e média, e a ela foi proporcionado o desenvolvimento do seu corpo no momento correspondente ao em que o corpo dos outros homens recebe a alma. Por onde, o seu volume físico foi menor no momento da sua concepção. Mas não foi menor a ponto de não poder nele subsistir a alma racional. Pois, a alma subsiste mesmo no pequeno volume do que será mais tarde o corpo de homens anões.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — O dito do Filósofo se refere à geração dos outros homens, porque o corpo deles é sucessivamente formado e disposto para receber a alma. Por isso, enquanto ainda tem uma disposição imperfeita, recebe uma alma imperfeita; e depois recebe uma alma perfeita, quando já perfeitamente disposto. Mas o corpo de Cristo, por causa do poder infinito do seu princípio ativo, foi perfeitamente disposto, num instante. E por isso, desde o primeiro instante da sua concepção, recebeu logo uma forma perfeita, isto é, a alma racional. 

Art. 1 — Se o corpo de Cristo foi formado desde o primeiro instante da sua concepção.

 O primeiro discute-se assim. — Parece que o corpo de Cristo não foi formado desde o primeiro instante da sua concepção. 

1. — Pois, diz o Evangelho: Em se edificar este templo gastaram-se quarenta e seis anos. Expondo o que diz Agostinho: Este número manifestamente convém à perfeição do corpo do Senhor. E em outro lugar: Não sem razão se diz que o Templo foi fabricado em quarenta e seis anos, o qual lhe significava o corpo; de modo que quantos anos se gastaram na fabricação do templo, outros tantos se empregaram na perfeição do corpo do Senhor. Logo, o corpo de Cristo não foi perfeitamente formado desde o primeiro instante da sua concepção.
 
2. Demais. — A formação do corpo de Cristo exigia o movimento local, que levasse o mais puro sangue do corpo da Virgem para o órgão próprio da geração. Ora, nenhum corpo pode mover-se local e instantaneamente, porque o tempo do movimento se divide pelas divisões do móvel, como Aristóteles o prova. Logo, o corpo de Cristo não foi formado num instante.
 
3. Demais. — O corpo de Cristo foi formado do sangue mais puro da Virgem, como se estabeleceu. Ora, essa matéria não podia ser no mesmo instante sangue e carne, porque teria tido então duas formas ao mesmo tempo. Logo, houve um instante em que foi ultimamente sangue, e outro em que primeiro a carne começou a ser formada. Mas, entre dois instantes quaisquer há um tempo intermédio. Logo, o corpo de Cristo não foi formado num instante, mas num determinado tempo.
 
4. Demais. — Assim como a potência aumentativa exige para o seu ato um tempo determinado, assim também a virtude geratriz; pois, ambas são potências naturais pertencentes à alma vegetativa. Ora, o corpo de Cristo cresceu num tempo determinado, como os corpos dos outros homens; assim, diz o Evangelho, que progredia em sabedoria e em idade. Logo, parece que pela mesma razão, a formação do seu corpo, que pertence à potência geratriz, não se realizou num instante, mas no tempo determinado em que se formam os corpos dos outros homens.
 
Mas, em contrário, Gregório diz: Depois da anunciação do Anjo e da descida do Espírito Santo, desde o momento em que o Verbo existiu no ventre da Virgem, tornou-se carne.
 
SOLUÇÃO. - Na concepção do corpo de Cristo três fases devemos considerar. Primeira, o  movimento local do sangue para o órgão da geração; segunda, a formação do corpo, de tal matéria; e terceira, o crescimento pelo qual chegou ao seu perfeito desenvolvimento. E dessas, é a segunda que constitui a essência mesma da concepção, da qual a primeira é o preâmbulo e a terceira, a consequência. - Ora, a primeira não pode dar-se instantaneamente, porque iria contra a natureza mesma do movimento local de qualquer corpo, cujas partes ocupam sucessivamente um lugar determinado. Semelhantemente, também a terceira deve ser sucessiva, quer por não haver aumento sem movimento local, quer por proceder da virtude da alma, que obra num corpo já formado, o qual para agir supõe o tempo.
 
Mas, a formação do corpo, que constitui a essência mesma da concepção, foi instantânea, por duas razões. - Primeiro, pela virtude infinita do agente, isto é, do Espírito Santo, pelo qual foi formado o corpo de Cristo, como dissemos. Pois, tanto mais prontamente pode um agente dispor a matéria, quanto maior for a virtude dele. Por onde, um agente de virtude infinita pode dispor num instante a matéria, para receber a forma devida. - Segundo, quanto à pessoa do Filho, cujo era formado o corpo. Pois, não lhe fora conveniente assumir um corpo humano senão formado. Se, pois, à formação perfeita tivesse precedido algum tempo, da concepção, esta não poderia ser totalmente atribuída ao Filho de Deus, pois não se lhe atribui senão em razão da assunção. Por isso, no primeiro instante em que a matéria preparada chegou ao órgão da geração, nesse mesmo momento foi perfeitamente formado e assumido o corpo de Cristo. E por isso dizemos, que o concebido foi o Filho de Deus mesmo, o que, de outro modo, não poderia dizer-se.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — As palavras citadas de Agostinho não se referem a só formação do corpo de Cristo; mas simultaneamente à formação e ao crescimento correspondente até ao tempo do parto. E por isso, diz ele que o referido número representa o tempo completo de nove meses, durante o qual Cristo esteve no ventre da Virgem.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Esse movimento local não está incluído na concepção mesmo, mas é um preâmbulo para ela.
 
"RESPOSTA À TERCEIRA. — Não é possível determinar o último instante em que a matéria referida tornou-se sangue, mas podemos determinar o tempo último, continuado, sem nenhum intervalo, até o primeiro instante em que foi formada a carne de Cristo. E esse instante foi o termo do tempo do movimento local da matéria, para o órgão da geração.
 
RESPOSTA À QUARTA. — O crescimento se faz pela potência aumentativa do ser mesmo que cresce; ao passo que a formação do corpo é obra da potência geratriz, não do ser gerado, mas do pai gerador, pelo sêmen, por obra da virtude formativa, derivada da alma do pai. O corpo de Cristo, porém, não foi formado do sêmen masculino, como se disse, mas por obra do Espírito Santo. Por onde, a formação devia ser tal, que conviesse ao Espírito Santo. Mas, o crescimento do corpo de Cristo se realizou pela potência aumentativa da sua alma; que, sendo especificamente da mesma forma que a nossa, o seu corpo devia crescer do mesmo modo por que crescem os corpos dos outros homens, para ficar assim demonstrada que a sua natureza era verdadeiramente humana. 

Art. 4 — Se a Santa Virgem foi de algum modo, princípio ativo na concepção do corpo de Cristo.

 O quarto discute-se assim. — Parece que a Santa Virgem foi de algum modo princípio ativo na concepção do corpo de Cristo. 

1. — Pois, como diz Damasceno, o Espírito Santo desceu sobre a Virgem para purificá-la e dar-lhe a virtude de receber o Verbo de Deus e simultaneamente a de gerar. Ora, a virtude geratriz passiva já ela a tinha da natureza, como qualquer outra mulher. Logo, deu-lhe a virtude geratriz ativa. E assim foi, de algum modo, princípio ativo na concepção de Cristo.
 
2. Demais. — Todas as potências da alma vegetativa são virtudes ativas, como diz o Comentador. Ora, a potência geradora tanto na mãe como no pai, pertence à alma vegetativa. Logo, tanto o pai como a mãe cooperam ativamente na concepção da prole.
 
3. Demais. — A mãe ministra a matéria da concepção, da qual naturalmente se forma o corpo do filho. Ora, a natureza é um princípio intrínseco de movimento. Logo, parece que na matéria mesma, que a Santa Virgem ministrou para a concepção de Cristo, houve um princípio ativo.
 
Mas, em contrário, o princípio ativo na geração é o chamado germen seminal. Ora, como diz Agostinho, o corpo de Cristo só assumiu da Virgem a matéria corpórea, por virtude de uma concepção e formação divina; logo, não por nenhum germen seminal humano. Logo, a Santa Virgem não exerceu nenhum papel ativo na concepção do corpo de Cristo.
 
SOLUÇÃO. — Certos dizem que a Santa Virgem foi, de certo modo princípio ativo na concepção de Cristo, por virtude natural e sobrenatural.  Por virtude natural, por dizerem que em toda matéria há um princípio ativo; pois do contrário, como pensam, não haveria nenhuma transmutação natural. E nisso se enganam. Porquanto o que produz as transmutações naturais é um princípio intrínseco, não só ativo, mas também passivo. Assim, como expressamente o diz o Filósofo, nos corpos graves e leves há um princípio passivo do movimento natural, e não ativo. Nem é possível a matéria contribuir para a sua formação, porque não é atual. Também não é possível um corpo mover-se a si mesmo, sem se dividir em duas partes - uma a motora e outra a movida, o que só se dá com os seres animados, como Aristóteles o demonstra.  Por virtude sobrenatural, por ensinarem que a mãe não  somente deve ministrar a matéria, que é o sangue menstrual, mas também o sêmen, que misturado com o sêmen masculino tem uma virtude ativa na geração. E como na Santa Virgem não houve nenhuma resolução do sêmen, por causa da sua integérrima virgindade, dizem que o Espírito Santo lhe atribuiu uma virtude sobrenatural ativa na concepção do corpo de Cristo, virtude que as outras mães tem pelo sêmen emitido.  Mas isto é inadmissível. Porque, existindo todo ser em vista da sua operação como diz Aristóteles, a natureza não distinguiria, na obra da geração, o sexo masculino do feminino, se não houvesse distinção entre a obra do pai e a da mãe. Ora, na geração distingue-se a obra do agente da do paciente. Donde se conclui, que a virtude ativa pertence toda ao pai; e a passiva, à mãe. Por isso, nas plantas, em que essas duas virtudes coexistem juntas, não há distinção entre macho e fêmea. Como, pois, não foi concedido à Santa Virgem ser o pai, mas a mãe de Cristo, resulta consequentemente que não recebeu nenhuma função ativa, na concepção de Cristo. Em nenhuma hipótese; pois, se tivesse agido ativamente, teria sido o pai de Cristo; e se, como certos afirmam, não tivesse exercido o poder divino, que lhe foi conferido, tê-lo-ía recebido em vão.  Donde devemos concluir, que na concepção de Cristo, a Santa Virgem nada obrou ativamente, mas só ministrou a matéria. Mas, exerceu de algum modo, antes da concepção, uma função ativa, preparando a matéria para que fosse apta à concepção.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO.  A referida concepção teve três privilégios: ter sido isenta do pecado original, não ter sido obra só do homem, mas de Deus e do homem e, enfim, ter sido a concepção de uma virgem. E esses três privilégios a Virgem os teve do Espírito Santo. Por isso, diz Damasceno, quanto ao primeiro, que o Espírito Santo desceu sobre a Virgem, para purificá-la, isto é, preservá-la de conceber com pecado original. Quanto ao segundo, diz: e dar-lhe a virtude de receber o Verbo de Deus, isto é, de conceber o Verbo de Deus. Quanto ao terceiro: e simultaneamente a de gerar, de modo que, pudesse gerar sem deixar de ser virgem  não, certo, ativamente, mas, passivamente, como as outras mães o conseguem pelo sêmen masculino.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — A potência gera triz da mulher é imperfeita em relação à do homem. Por isso, assim como nas artes, a arte inferior dispõe a matéria na qual a superior infunde a forma, como diz Aristóteles, assim também a virtude geratriz feminina prepara a matéria, enquanto que a masculina informa a matéria preparada.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Para uma transmutação ser natural, não é preciso que exista na matéria um principio ativo, mas apenas passivo, como se disse. 

 

Art. 3 — Se o Espírito Santo deve ser considerado pai de Cristo segundo a humanidade.

 O terceiro discute-se assim. — Parece que o Espírito Santo deve ser considerado pai de Cristo segundo a humanidade.

1. — Pois, segundo o Filósofo, o pai dá o princípio ativo na geração e a mãe ministra a matéria. Ora, a Santa Virgem é considerada mãe de Cristo, por causa da matéria que ministrou na sua concepção. Logo, parece que também o Espírito Santo pode ser considerado pai de Cristo, por ter sido o princípio ativo na sua concepção.
 
2. Demais. — Assim como o coração dos outros santos foi formado pelo Espírito Santo, assim também o foi o corpo de Cristo. Ora, por causa dessa formação, os outros são considerados filhos de toda a Trindade; e por consequência, do Espírito Santo. Logo, parece que Cristo deve ser considerado filho do Espírito Santo.
 
3. Demais. — Deus é considerado nosso pai por nos ter feito, segundo a Escritura: Não é ele teu pai, que te possuiu, e te fez e te criou? Ora, o Espírito Santo fez o corpo de Cristo, como se disse. Logo, o Espírito Santo deve ser considerado corpo de Cristo, por causa do corpo que formou.
 
Mas, em contrário, Agostinho diz: Cristo não nasceu como filho do Espírito Santo, mas sim, como filho de Maria Virgem.
 
SOLUÇÃO. — As qualidades de paternidade, de maternidade e de filiação resultam da geração; não de qualquer, mas propriamente, da geração dos seres vivos e sobretudo dos animais. Assim, não dizemos que há um fogo gerado por outro, gerador, senão só metafóricamente. Mas assim o dizemos dos animais, cuja geração é mais perfeita. Contudo, nem tudo o gerado nos animais recebe o nome de filiação, mas só o gerado semelhante ao gerador, Por isso, como adverte Agostinho, não dizemos que o cabelo nascido no homem é filho do homem; nem, que um recém-nascido é filho do sêmen. Pois, nem o cabelo tem a semelhança do homem, nem o recém-nascido a semelhança do sêmen, mas, do homem gerador. E se essa semelhança for perfeita, perfeita será a filiação, tanto na ordem divina como na humana. Mas se a semelhança for imperfeita, imperfeita será também a filiação. Assim, o homem é uma semelhança imperfeita de Deus, por ter sido criado à imagem de Deus e por ter sido criado uma segunda vez pela semelhança da graça. Por onde, de um e outro modo, o homem pode ser considerado filho de Deus, tanto por ter sido criado à sua imagem, como por se lhe ter assemelhado pela graça. Devemos porém notar, que o nome atribuído perfeitamente a um ser, não se lhe deve atribuir de um modo imperfeito. Assim, por ser Sócrates considerado homem, no sentido próprio desta expressão, nunca lhe chamaremos homem no sentido em que consideramos homem o que só em pintura o é, embora Sócrates se assemelhasse a outro homem.
Ora, Cristo é o Filho de Deus na acepção perfeita da palavra filiação. Por isso, embora pela sua natureza humana fosse criado e justificado. não deve ser chamado Filho de Deus, nem em razão da criação, nem em razão da justificação. Mas só em razão da geração eterna, pela qual é o Filho só do Pai. Portanto, de nenhum modo deve Cristo ser considerado filho do Espírito Santo, nem também de toda a Trindade.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Na concepção de Cristo, de Maria Virgem, esta ministrou a matéria com semelhança específica. Por isso dizemos que Cristo é seu filho. Mas Cristo, enquanto homem, foi concebido do Espírito Santo como do princípio ativo: mas não pela semelhança específica como dizemos que um filho nasce de seu pai. Por isso não dizemos que Cristo é filho do Espírito Santo.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Os homens, formados espiritualmente pelo Espírito Santo, não podem chamar-se filhos de Deus, na acepção perfeita da palavra filiação. Por isso, chamam-se filhos de Deus por uma filiação imperfeita, fundada na semelhança da graça, que procede de toda a Trindade. Mas, isso não se dá com Cristo, como dissemos.
 
E o mesmo devemos RESPONDER À TERCEIRA OBJEÇÃO. 

Art. 2 — Se Cristo deve ser considerado como concebido do Espírito Santo.

 O segundo discute-se assim. — Parece que Cristo não deve ser considerado como concebido do Espírito Santo.

 Pois, àquilo do Apóstolo: Dele e por ele e nele existem todas as coisas, diz a Glosa de Agostinho: Atendamos a que não diz  de ipso, mas  ex ipso; porque dele (ex ipso) se originou o céu e a terra, pelos ter feito; mas não dele (de ipso), como se o céu e a terra fossem substância sua. Ora, o Espírito Santo não formou o corpo de Cristo da sua substância. Logo, não devemos considerar Cristo como concebido do Espírito Santo.
 
2. Demais. — O principio ativo na concepção de um ser se comporta como o sêmen na geração. Ora, o Espírito Santo não exerceu nenhuma função seminal na geração de Cristo. Assim, diz Jerônimo: Nós não dizemos, como certos impissimamente o pretenderam, que o Espírito Santo desempenhou uma função seminal; mas dizemos que o corpo de Cristo foi feito, isto é, formado pelo poder e pela virtude do Criador. Logo, não podemos considerar Cristo como concebido do Espírito Santo.
 
3. Demais. — Um mesmo corpo não pode ser formado de dois outros sem que estes de certo modo se misturem. Ora, o corpo de Cristo foi formado da Virgem Maria. Se, pois, dissermos que Cristo foi concebido do Espírito Santo, parece que houve uma mistura entre o Espírito Santo e a matéria que a Virgem ministrou: O que é claramente falso. Logo, Cristo não deve ser considerado como concebido do Espírito Santo.
 
Mas, em contrário, o Evangelho: Antes de coabitarem, se achou ter ela concebido por obra do Espírito Santo.
 
SOLUÇÃO. — Não dizemos que só o corpo de Cristo foi concebido mas também que o foi o próprio Cristo, em razão do seu corpo. Ora, descobrimos no Espírito Santo uma dupla relação com Cristo. Assim, com o Filho mesmo de Deus, que consideramos como concebido, tem a relação de consubstancialidade; e com o corpo de Cristo tem a relação de causa eficiente. Ora, a preposição de designa ambas essas relações; assim, como quando dizemos, que um certo homem nasceu de seu pai. Por onde, podemos convenientemente dizer que Cristo foi concebido do Espírito Santo, para significar que a eficiência do Espírito Santo se refere ao corpo assumido, e a consubstancialidade, à pessoa assumente.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O corpo de Cristo, por não ser consubstancial com o Espírito Santo, não pode ser propriamente considerado como concebido do Espírito Santo, mas antes, em virtude (ex) do Espirito Santo. Por isso diz Ambrósio: O que procede de alguém (ex), ou procede da sua substância ou do seu poder; da substância, como o Filho, que procede da substância do Pai; do poder, como de Deus procede tudo, sendo também a esse modo que Maria concebeu no seu ventre, do Espírito Santo.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Neste ponto há divergência entre Jerônimo e certos outros doutores, que afirmam ter o Espírito Santo, na concepção de Cristo, exercido uma função seminal. Assim, diz Crísostomo: O Espírito Santo precedeu o Unigênito de Deus, que a Virgem ia conceber, de modo que a divindade, exercendo a função do sêmen, o Cristo nascesse, segundo o corpo, na santidade. E Damasceno diz: A Sabedoria e a Virtude de Deus, desempenhando o papel do sêmen, cobriram-na com a sua sombra.  Mas esta divergência facilmente se resolve. Porque entendendo-se por sêmen uma virtude ativa, então Crisóstomo e Damasceno comparam o Espírito Santo, ou também o Filho, que é a Virtude do Altíssimo, ao sêmen. Mas, se se entende por sêmen a substância corporal, transmutada na concepção, nesse caso Jerônimo nega, que o Espírito Santo tivesse exercido a função de sêmen.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz Agostinho, não é, no mesmo sentido que se diz ter sido Cristo concebido ou nascido do Espírito Santo e da Santa Virgem. Pois de Maria Virgem nasceu materialmente; mas, do Espírito Santo, como do princípio ativo. Por isso, não houve aí nenhuma mistura. 

Art. 1 — Se a obra da concepção de Cristo deve ser atribuída ao Espírito Santo.

 O primeiro discute-se assim. — Parece que a obra da concepção de Cristo não deve ser atribuída ao Espírito Santo.

1. — Pois, conforme diz Agostinho, são indivisas as obras da Trindade, como indivisa é a essência da Trindade. Ora, a obra da concepção de Cristo é uma obra divina. Logo, parece que não devê ser atribuída, antes, ao Espírito Santo, que ao Pai ou ao Filho.
 
2. Demais. — O Apóstolo diz: Quando veio o cumprimento enviou Deus a seu Filho, feito de mulher. Expondo o que, diz Agostinho: Foi certamente mandado por quem o fez nascer de uma mulher. Ora, a missão do Filho é atribuída principalmente ao Pai, como se estabeleceu na Primeira Parte. Logo, também a concepção, enquanto foi feito de mulher, deve ser principalmente atribuída ao Pai.
 
3. Demais. — A Escritura diz: A Sabedoria edificou para si uma casa. Ora, Cristo é a Sabedoria de Deus, segundo o Apóstolo: Cristo, Virtude de Deus e Sabedoria de Deus. Ora, a casa dessa Sabedoria é o corpo de Cristo, também chamado o seu templo, segundo o Evangelho: Mas ele falava do templo do seu corpo. Logo, parece que a obra da concepção do corpo de Cristo deve ser atribuída principalmente ao Filho. Portanto, não ao Espírito Santo.
 
Mas, em contrário, o Evangelho: O Espírito Santo descerá sobre ti, etc.
 
SOLUÇÃO. — A obra da concepção do corpo de Cristo foi realizada por toda a Trindade. Mas é atribuída ao Espírito Santo, por três razões.  Primeiro, porque isso convinha à causa da Encarnação, considerada relativamente a Deus. Pois, o Espírito Santo é o amor do Pai e do Filho, como estabelecemos na Primeira Parte. Ora, é uma prova máxima do amor de Deus que o Filho de Deus tivesse assumido a carne no ventre virginal; donde o dizer o Evangelho: Assim amou Deus ao mundo, que lhe deu a seu Filho unigênito. — Segundo, porque isso convinha à causa da Encarnação, relativamente à natureza assumida. Pois, por aí entendemos que a natureza humana foi assumida pelo Filho de Deus na unidade de pessoa, não por causa de nenhum mérito, senão só pela graça. E esta é atribuída ao Espírito Santo, segundo o Apóstolo: Há repartição de graça, mas um mesmo é o Espírito. Donde o dizer Agostinho: O modo pelo qual Cristo nasceu do Espírito Santo nos insinua a graça de Deus; pois, o homem, no momento mesmo em que a sua natureza começou a existir, e sem nenhum mérito anterior, foi tão perfeitamente unido ao Verbo de Deus na unidade de pessoa, que o Filho do homem foi o mesmo que o Filho de Deus.  Terceiro, porque convinha ao termo da Encarnação. Pois, o fim da Encarnação foi fazer com que o homem Cristo concebido fosse santo e Filho de Deus. Ora, ambos esses efeitos se atribuem ao Espírito Santo. Pois, por ele os homens se tornam filhos de Deus, segundo o Apóstolo: Porque vós sois filhos de Deus, mandou Deus aos vossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Pai, Pai. E ele é também o Espírito de santificação, no dizer ainda do Apóstolo. Ora, assim como os outros homens são santificados espiritualmente para serem os filhos adotivos de Deus, assim Cristo foi concebido na santidade, pelo Espírito Santo, para que fosse naturalmente o Filho de Deus. Donde, conforme uma glosa, a palavra do Apóstolo  Que foi predestinado Filho de Deus com poder  é explicada pelo que imediatamente se lhe segue - segundo o Espírito de santificação, isto é, por ter sido concebido do Espírito Santo. E o próprio Anjo, anunciando pelas palavras que primeiro pronunciou  O Espírito Santo descerá sobre ti — conclui: E por isso mesmo o santo que há de nascer de ti será chamado Filho de Deus.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A obra da concepção é por certo comum a toda a Trindade; mas de um certo modo é atribuída a cada uma das Pessoas. Assim, ao Pai é atribuída a autoridade sobre a pessoa do Filho, que por essa concepção assumiu para si a carne. Ao Filho é atribuída a assunção mesma da carne. Mas ao Espírito Santo é atribuída a formação do corpo assumido pelo Filho. Pois, o Espírito Santo é o Espírito do Filho, segundo o Apóstolo: Mandou Deus o Espírito de seu Filho. Porque, assim como a virtude da alma, existente no sêmen, pelo espírito que o sêmen contém, forma o corpo, na geração dos outros homens, assim a Virtude de Deus, que é o Filho mesmo, segundo aquilo do Apóstolo - Cristo, virtude de Deus, formou, mediante o Espírito Santo. o corpo que assumiu. E isso mesmo o significam as palavras do anjo quando declarou: O Espírito Santo descerá sobre ti, como para preparar e formar a matéria do corpo de Cristo; é a Virtude do Altíssimo, isto é, Cristo, te cobrirá da sua sombra, isto é, como ensina Gregório, o teu corpo humano receberá a luz incorpórea da Divindade; pois, a sombra supõe a luz e um corpo. E a expressão - Altíssimo, significa o Pai, cuja virtude é o Filho.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — A missão se refere à pessoa assumente, enviada pelo Pai; enquanto que a concepção se refere ao corpo assumido, formado por obra do Espírito Santo. E assim, embora a missão e a concepção tivessem o mesmo sujeito, diferindo porém pelas suas noções respectivas, a missão se atribui ao Pai; a obra da concepção, porém, ao Espírito Santo; e enfim, o assumir a carne, ao Filho.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Diz Agostinho: A questão vertente pode ser entendida em dois sentidos. Num primeiro sentido, a casa de Cristo é a Igreja, que edificou com o seu sangue. Depois, também podemos chamar casa ao seu corpo, assim como foi chamado o seu templo. Quanto ao feito do Espírito Santo, foi obra do Filho de Deus, por causa da unidade de natureza e de vontade. 

Art. 8 — Se Cristo foi dizimado na pessoa de Abraão.

 O oitavo discute-se assim. — Parece que Cristo foi dizimado, na pessoa de Abraão.

1. — Pois diz o Apóstolo, que Levi, bisneto de Abraão, foi dizimado em Abraão, porque quando este  pagou dízimos a Melquisedeque, ainda Levi estava nos lombos de seu pai. Ora, semelhantemente, Cristo estava nos lombos de Abraão, quando pagou dízimos. Logo, também Cristo pagou dízimos na pessoa de Abraão.
 
2. Demais. — Cristo é da raça de Abraão, pela carne que recebeu de sua mãe. Ora, sua mãe pagou dízimos na pessoa de Abraão. Logo, pela mesma razão, Cristo.
 
3. Demais. — Pagou dízimos em Abraão tudo o que tinha necessidade de cura, como diz Agostinho. Ora, toda carne sujeita ao pecado tem necessidade de cura. Como, pois, a carne de Cristo estava sujeita ao pecado, como se disse, resulta que a carne de Cristo pagou dízimos em Abraão.
 
4. Demais. — Isto não encontra de nenhum modo à dignidade de Cristo. Pois, nada impede que um pontífice, cujo pai pagou o dizimo a um simples sacerdote, o sobrepuje a este em dignidade. Embora, pois, se diga que Cristo pagou dízimos, quando Abraão os pagou a Melquisedeque, nem por isso fica excluído que Cristo fosse maior que Melquisedeque.
 
Mas, em contrário, Agostinho diz, que Cristo não pagou dízimos em Abraão, porque a sua carne não tirou daí a virulência de um ferimento, mas a matéria de um remédio.
 
SOLUÇÃO. — Segundo a intenção do Apóstolo, devemos dizer que Cristo não foi dizimado nos lombos de Abraão. Pois, como o mesmo Apóstolo o prova, o sacerdócio segundo a ordem de Melquisedeque era maior que o sacerdócio levítico, pelo qual Abraão pagou dízimos a Melquisedeque, quando ainda Levi existia nos lombos dele, Abraão, a quem pertencia o sacerdócio legal. Se, pois, Cristo fosse dizimado em Abraão, o seu sacerdócio não seria segundo a ordem de Melquisedeque, mas seria menor que este sacerdócio. Donde devemos concluir, que Cristo não foi, como Levi, dizimado nos lombos de Abraão. Pois, como aquele que pagava os dízimos, retinha nove partes para si e entregava a décima a outrem, o que é sinal de perfeição, por ser de certo modo o número dez o termo de todos os números, que chegam até dez, daí vinha que quem pagava os dízimos proclamava-se imperfeito e atribuía a outrem a perfeição. Ora, a imperfeição do gênero humano resulta do pecado, que por isso precisa da perfeição de quem o cure. Mas, se Cristo pode curar do recado, pois, é o Cordeiro, que tira o pecado do mundo, como diz o Evangelho. Ora, figura de Cristo foi Melquisedeque, segundo o prova o Apóstolo. Por onde, quando Abraão pagou dízimos a Melquisedeque, confessou em figura que foi concebido no pecado e que todos os que dele houvessem de descender, por terem contraído o pecado original, precisavam da cura, que Cristo havia de trazer. Quanto a Isaac, a Jacó e a Levi e todos os outros, esses existiram em Abraão, de modo que dele derivaram não só pela substância corpórea, mas ainda por via seminal, pela qual se contrai o pecado original. Por isso, todos foram dizimados em Abraão, isto é, prefiguravam a necessidade da cura, que viria de Cristo. Mas só Cristo existiu em Abraão de modo que dele procedesse não por via seminal, mas pela substância corpórea. Por isso, não existiu em Abraão como os que precisavam de cura, mas antes, como o remédio dos ferimentos. Logo, não foi dizimado nos lombos de Abraão.
 
Donde se deduz clara a RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — A Santa Virgem foi concebida no pecado original e por isso existiu em Abraão como quem precisava de cura. Por isso foi dizimada nele, como nele descendente por via seminal. Mas tal não se deu com o corpo de Cristo, como dissemos.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Diz-se que a carne de Cristo foi contaminada do pecado, nos antigos patriarcas, pela qualidade que tinha nesses patriarcas, que foram dizimados, Mas não pela qualidade que tem em Cristo, atualmente nele existente, pois assim não foi dizimado.
 
RESPOSTA À QUARTA. — O sacerdócio Levítico tinha uma origem carnal. Por isso, não existiu menos em Abraão que em Levi. Por onde, o fato de ter Abraão pago dízimos a Melquisedeque, como seu maior, mostra que o sacerdócio de Melquisedeque, como simbolizando a figura de Cristo, é maior que o sacerdócio levítico. Mas o sacerdócio de Cristo não teve uma origem carnal, mas se transmite pela graça espiritual. E assim podia dar-se que o pai pagasse dízimos a um sacerdote, como o maior o paga ao menor; e contudo o filho, sendo pontífice, fosse maior que esse sacerdote, não pela origem carnal, mas pela graça espiritual, que recebeu de Cristo. 

Art. 7 — Se a carne de Cristo foi contaminada do pecado, nos antigos patriarcas.

 O sétimo discute-se assim. — Parece que a carne de Cristo não foi contaminada pelo pecado, nos antigos patriarcas. 

1. — Pois, diz a Escritura que na divina sabedoria nada de manchado caiu. Ora, Cristo é a sabedoria de Deus, no dizer do Apóstolo. Logo, a sua carne não foi nunca manchada do pecado.
 
2. Demais. — Damasceno diz que Cristo assumiu as primícias da nossa natureza. Ora, no seu primeiro estado, a carne humana não foi manchada do pecado. Logo, a carne de Cristo não foi contaminada do pecado, nem em Adão nem nos outros patriarcas.
 
3. Demais. — Agostinho diz, que a natureza humana sempre teve para os seus ferimentos, os remédios apropriados. Ora, o que foi contaminado não pode, por isso mesmo, ser remédio de nenhum ferimento; antes, precisa de remédio. Logo, sempre teve a natureza humana uma parte não contaminada, da qual foi depois formado o corpo de Cristo.
 
Mas, em contrário, o corpo de Cristo não se reporta a Adão e aos outros patriarcas senão mediante o corpo da Santa Virgem, da qual assumiu a carne. Ora, o corpo da Santa Virgem foi totalmente concebido no pecado original, como se disse; e assim, mesmo enquanto existente nos patriarcas foi contaminado pelo pecado. Logo, a carne de Cristo, enquanto existente nos patriarcas, foi contaminada pelo pecado.
 
SOLUÇÃO. — Quando dizemos que Cristo ou a sua carne existiu em Adão e nos outros patriarcas, comparamos a ele ou a sua carne com Adão e com os demais patriarcas. Ora, é manifesto, que uma era a condição dos patriarcas e outra a de Cristo; pois, ao passo que os patriarcas estavam sob o jugo do pecado, Cristo foi absolutamente isento dele. Por onde, de dois modos pode haver erro nessa comparação.  Primeiro, se atribuirmos a Cristo ou à sua carne a condição dos patriarcas; por exemplo, se dissermos que Cristo pecou em Adão, porque de certo modo existiu nele. O que é falso, porque nele não existiu, de modo que o pecado de Adão o contaminasse, porque não penetrou nele pela lei da concupiscência, nem por via seminal, como dissemos.  De outro modo podemos errar se atribuirmos ao que existiu atualmente nos patriarcas, a condição de Cristo ou da sua carne. De modo que, por não ter sido a carne de Cristo, tal como Cristo a teve, contaminada pelo pecado, por isso em Adão e nos outros patriarcas existiu uma parte do seu corpo isenta de pecado, da qual foi depois formado o corpo de Cristo, como certos pensaram. O que não pode ser. Primeiro, porque a carne de Cristo não existiu em Adão e nos outros patriarcas com nenhuma determinada matéria, que pudesse ser distinta da mais carne sua como o puro se distingue do impuro, conforme já dissemos. Segundo, porque, sendo a carne humana contaminada pelo pecado, porque é concebida na concupiscência, assim como toda carne de todos os homens é concebida pela concupiscência, assim também é totalmente contaminada pelo pecado. Donde devemos concluir, que a carne dos antigos patriarcas foi totalmente contaminada pelo pecado; nem houve neles nada isento do pecado do que depois fosse formado o corpo de Cristo.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO.  Cristo não assumiu a carne do gênero humano sujeita ao pecado, mas pura de toda contaminação pecaminosa. Por isso, na sabedoria de Deus nada de manchado cai.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Diremos que Cristo assumiu as primícias da nossa natureza, quanto à semelhança de condição; porque assumiu a carne não contaminada pelo pecado, como o era a carne antes do pecado. Mas essa expressão não se entende quanto à continuidade da pureza, de modo que a carne do primeiro homem fosse conservada imune do pecado, até a formação do corpo de Cristo.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Antes de Cristo, a natureza humana estava ferida, isto é, contaminada pelo pecado original em ato. Mas, o remédio a esse ferimento não existia nela em ato, mas só pela virtude da origem, enquanto desses patriarcas nasceria no tempo a carne de Cristo.
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