Category: Santo Tomás de Aquino
O quarto discute-se assim. — Parece que os milagres que Cristo fez não eram suficientes a lhe manifestar a divindade.
1. — Pois, ser Deus e homem é propriedade de Cristo. Ora, os milagres que fez Cristo também outros o fizeram. Logo, parece que não eram suficientes a manifestar-lhe a divindade.
2. Demais. — Nenhum poder é maior que o da divindade. Ora, houve quem fizesse maiores milagres que Cristo; assim, diz o Evangelho: Aquele que crê em mim esse fará também as obras que eu faça e fará outras ainda maiores. Logo, parece que os milagres feitos por Cristo não eram suficientes a manifestar-lhe a divindade.
3. Demais. — O universal não se manifesta suficientemente pelo particular. Ora, cada um dos milagres de Cristo foi uma obra particular. Logo, por nenhum deles podia manifestar-se suficientemente a divindade de Cristo, que tem um poder universal sobre todas as coisas.
Mas, em contrário, o Senhor diz: As obras que meu Pai me deu que cumprisse, as mesmas obras que eu faço dão por mim testemunho.
SOLUÇÃO. —0s milagres que Cristo fez eram suficientes para manifestar-lhe a divindade, num tríplice ponto de vista. — Primeiro, pela mesma espécie dessas obras, que transcendiam todo poder de qualquer virtude criada; e portanto não podiam ser feitas senão por virtude divina. Por isso, o cego que recobrou a vista dizia: Desde que há mundo, nunca se ouviu que alguém abrisse os olhos a um cego de nascença. Se este não fosse Deus não podia ele obrar coisa alguma. — Segundo, pelo modo de fazer os milagres; pois, ele os fazia quase por poder próprio e não depois de ter orado, como os outros. Donde o dizer o Evangelho: Dele saía uma virtude que os curava a todos. O que demonstra, como nota Cirílo, que não dependia de nenhum poder alheio; mas, sendo naturalmente Deus, agia por virtude própria sobre os enfermos. E por isso também jazia inumeráveis milagres. Por isso, àquilo do Evangelho — Com sua palavra expelia os espíritos e curava todos os enfermos — diz Crisóstomo: Notai como os evangelistas reterem uma multidão de pessoas curadas, sem nomear nenhuma em particular, indicando apenas com uma palavra, a multidão inumerável de milagres. E assim mostrava uma virtude igual a de Deus Padre, conforme aquilo do Evangelho: Tudo o que fizer o Pai, o faz também semelhantemente o Filho. E ainda: Assim como o Pai. ressuscita os mortos e lhes dá vida, assim também dá o Filho vida aqueles que quer. — Terceiro, pela doutrina mesma em virtude da qual se afirmava Deus, a qual se não fosse verdadeira não fora confirmada por milagres feitos pelo seu poder divino. Por isso se diz no Evangelho: Que nova doutrina é esta? Porque ele põe preceito com império até aos espíritos imundos e obedecem-lhe.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Era essa uma objeção dos gentios. Donde o dizer Agostinho: Cristo, afirmam, não fez milagres que fossem sinais suficientes da sua tão grande majestade. Pois, aquela purificação figurada, pela qual expulsava os demônios, a cura de doentes, a vida restituída aos mortos e outras obras tais são pequenas para Deus. Ao que Agostinho responde assim: Também nós confessamos que os profetas fizeram coisas semelhantes. Mas Moisés e os outros profetas prenunciaram o Senhor Jesus e lhe deram grande glória. E essas mesmas obras também Cristo quis fazer, pois seria absurdo que não as fizesse ele depois de havê-las feito por meio dos profetas. Certas coisas porém fez, que só ele podia fazer: nascer de uma Virgem, ressurgir dos mortos e subir ao céu. E quem pensar que isso é pouco para Deus, ignoro o que mais espera. Por ventura, depois de assumida a humanidade, devia fazer outro mundo para acreditarmos que foi ele quem fez o mundo? Mas não podia ser feito um mundo nem maior nem igual ao das obras referidas; e então, se fizesse algo menor que elas, também isso seria tido em pouca conta.
Quanto ao que outros fizeram, Cristo o fez mais excelentemente. Por isso, aquilo do Evangelho — Se eu não tivesse feito entre elestais obras quais não fezoutro algum, etc., diz Agostinho: Nenhuma obra de Cristo é maior que a ressurreição de um morto, da qual sabemos que também os profetas a fizeram. Mas Cristo operou milagres que ninguém mais obrou. Responder-nos-ão, porém, que outros fizeram o que nem ele nem ninguém jamais fez. Contudo, não há nenhuma prova que algum dos antigos fizesse o que ele fez curar tão numerosos vícios, tantas doenças perigosas e tantas vexações dos mortais, com tão grande poder. Pois, não podendo dar o nome de cada um dos que curou com a sua palavra, a medida que se lhe apresentavam, Marcos diz: E aonde quer que ele entrava, fosse nas aldeias, ou nos casais, ou nas cidades, punham os enfermos no meio das praças e pediam-lhe que os deixasse tocar ao menos a orla do seu vestido; e todos os que o tocavam ficavam sãos. Ora, essas obras ninguém mais as fez neles senão Cristo. E nesse sentido devemos entender a expressão do Evangelho, que é — neles — e não entre eles — ou — na presença deles; mas exatamente — neles — porque os curou. E quem quer que tivesse feito neles essas curas, não as fez tais quais; pois, quem quer que as tivesse feito algumas delas, tê-Ias-ia feito por autoria de Cristo; ao passo que Cristo as realizou por si mesmo e não por autoria de outros
RESPOSTA À SEGUNDA. — Agostinho, interpretando essas palavras de João, indaga quais fossem essas obras maiores, que haviam de fazer os crentes em Cristo. Seriam porventura as de curar os doentes a simples sombra delesao passarem? Pois, maior obra é curá-las com a sombra do que Cristo com a fímbria da sua túnica. Contudo, quando assim falava, queria fazer ver os efeitos e as obras da sua palavra. Pois, quando dizia — O Pai que está em mim esse é o que faz as obras — a que obras se referia senão às palavras que proferia? E o fruto dessas mesmas palavras era a fé dos discípulos. Contudo pela evangelização dos discípulos, não foram tão poucos esses que nele creram, pois também os gentios vieram a ser crentes. Assim, não se partiu triste da presença a ele aquele rico que pedia conselhos de vida eterna? E todavia o conselho que ele ouviu e não praticou, muitos o praticaram quando Cristo o pregava por meio dos discípulos. Eis porque as obras que realizou, pregadas pelos que nele criam, eram maiores que as que ensinou aos seus ouvintes. Mas ainda mais nos move o fato de ter operado essas obras maiores por meio dos Apóstolos. Assim, referindo-se a eles não disse somente: Quem crer em mim. Mas, ouvi o que disse: Quem crer em mim, esse fará também as obras que eu faço. Primeiro as farei eu — diz — depois as fará os que crerem em mim, porque eu o farei fazê-las. E essas obras em que consistem, senão em fazer do ímpio um justo? O que Cristo opera em nós mas não sem nós. E isso eu até mesmo direi que é mais do que criar o céu e a terra. Pois, o céu e a terra passarão; ao passo que a salvação e a justificação dos predestinados permanecerá. — Mas no céu os anjos são as obras de Deus. Porventura também fará maiores obras que essa quem coopera com Cristo na sua justificação própria? Julgue quem puder, se é mais criar os justos, que justificar os ímpios. Por certo, se ambas essas obras supõem o mesmo poder, esta última necessita de maior misericórdia. Mas nenhuma necessidade nos obriga a compreender todas as obras de Cristo, implicadas no seu dito - Fará obras maiores que estas. Pois, talvez dissesse isso das obras que nesse momento fazia; porque então procurava infundir a fé. E por certo, é menos pregar verbalmente a justiça, o que fez por nosso amor; do que justificar os ímpios, o que realiza em nós para também nós o fazermos.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Quando uma obra determinada é uma obra própria de um certo agente, então dessa obra determinada se deduz a virtude total do agente. Assim, raciocinar, sendo uma atividade própria do homem, mostra que é homem quem raciocina qualquer propósito deliberado que tome. E semelhantemente, como só Deus pode fazer milagres por virtude própria, fica suficientemente provado que Cristo é Deus por qualquer dos milagres que fez por virtude própria.
O terceiro discute-se assim. — Parece que Cristo não começou a fazer milagres por ocasião das bodas de Caná, mudando água em vinho.
1. — Pois, um autor diz que Cristo, na sua puerícia, fez muitos milagres. Ora, o milagre da conversão da água em vinho ele o fez nas bodas de Caná, no trigésimo ou no trigésimo primeiro ano da sua idade. Logo, parece que não foi então que começou a fazer milagres.
2. Demais. — Cristo fazia milagres pelo seu poder divino. Ora, esse poder divino ele o teve desde o princípio da sua concepção: pois, desde então era Deus e homem. Logo, parece que desde o princípio fez milagres.
3. Demais. — Cristo, depois do batismo e da tentação começou a congregar os discípulos, com se lê no Evangelho. Ora, foram sobretudo os seus milagres que o levaram a angariar discípulos; assim, como refere o Evangelho, chamou a Pedro, estupefato pelo milagre que fizera, na captura dos peixes. Logo, parece que antes do milagre das bodas de Caná, fez outros.
Mas, em contrário, o Evangelho: Por este milagre deu Jesus princípio aos seus, em Caná de Galiléia.
SOLUÇÃO. — Cristo fez milagres para confirmar a sua doutrina e para manifestar o seu poder divino. — Por isso, quanto à confirmação, não devia fazer milagres antes de começar a ensinar. E não devia começar a ensinar antes de atingir à idade perfeita, como dissemos, quando tratamos do batismo. — Quanto àmanifestação do seu poder, devia mostrar a sua divindade pelos seus milagres; de modo que acreditassem na sua humanidade verdadeira. Por isso, como diz Crisóstomo, fez bem não começando fazer milagres desde a sua primeira idade; do contrário, pensariam que a sua Encarnação era fantástica, e antes do tempo oportuno tê-lo-iam crucificado.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Como diz Crisóstomo, pelas palavras de João Batista, quando diz - Eu vim batizar em água, para ele ser conhecido em Israel — é manifesto que esses milagres, que certos consideram como feitos por Cristo na sua puerícia, são mentiras e ficções. Pois, se na sua primeira idade Cristo tivesse feito milagres, nem João os teria ignorado nem a restante multidão teria necessidade do mestre para manifestá-lo.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Cristo obrava pelo seu poder divino quando era necessário para a salvação humana, por causa da qual se encarnava. Por isso, fez milagres com o seu poder divino, de modo que não prejudicasse à verdade da sua encarnação.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Os discípulos merecem louvor por terem seguido a Cristo, apesar de não o verem fazer nenhum milagre, como diz Gregório numa homilia. E, como diz Crisóstomo, era necessário fazer milagres, sobretudo quando os discípulos já estavam reunidos e devotados a Cristo e atentos às suas obras. Por isso, o evangelista acrescenta: E acreditaram nele os seus discípulos. Não que então começassem a crer; mas, que então acreditaram mais diligente e perfeitamente. - Ou que chama discípulos aos que haveriam de sê-lo, como expõe Agostinho.
O segundo discute-se assim. — Parece que Cristo não fez milagres por poder divino.
1. — Pois, a virtude divina é onipotente. Ora, parece que Cristo não foi onipotente nos seus milagres; assim, como diz o Evangelho, não podia ali, istoé, na sua pátria, fazer milagre algum. Logo, parece que não fez milagres por poder divino.
2. Demais. — Não é próprio de Deus orar. Ora, Cristo às vezes orou na ocasião de fazer milagres, como o demonstra a ressurreição de Lázaro e a multiplicação dos pães. Logo, parece que não fez milagres por poder divino.
3. Demais. — O que o poder divino faz não o pode o de nenhuma criatura. Ora, o que Cristo fazia também qualquer criatura podia fazer; por isso os fariseus diziam, que expelia os demônios em virtude de Belzebu, príncipe dos demônios. Logo, parece que Cristo não fez milagres por poder divino.
Mas, em contrário, diz o Senhor: O Pai, que está em mim, esse é o que faz as obras.
SOLUÇÃO. — Como estabelecemos na Primeira Parte, verdadeiros milagres só o poder divino pode fazê-las; pois, só Deus pode mudar a ordem da natureza, o que constitui o milagre. Por isso Leão Papa diz, que tendo Cristo duas naturezas, uma delas — a divina, refulge pelos seus milagres; a outra — a humana, é a que sucumbe ao sofrimento. E, contudo uma delas age pela comunicação da outra, isto é, enquanto a natureza humana é instrumento da ação divina, e a ação humana recebe a sua virtude da natureza divina, como estabelecemos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O dito do Evangelho — não podia ali jazer milagre algum — não se refere ao poder absoluto, mas ao que Cristo fazia por conveniência. Assim, não era conveniente operasse milagres entre incrédulos; por isso o evangelista acrescenta: E se admirava da incredulidade deles. E neste sentido a Escritura diz: Acaso poderei eu ocultar a Abraão o que estou para fazer? E ainda: Não poderei fazer nada enquanto tu lá não tiveres entrado.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Comentando aquele lugar do Evangelho — Tomando os cinco pães e os dois peixes, com os olhos no céu abençoou e partiu os pães — diz Crisóstomo: Era necessário crer que Cristo vinha do Pai, de quem era o igual. Por isso, a fim de manifestar uma e outra causa, ora faz milagres pelo seu próprio poder, outras vezes depois de ter orado. Assim, quando se trata de milagres menores, como a da multiplicação dos pães, levanta os olhos para o céu; mas, em se tratando dos milagres maiores, como o de perdoar os pecados ou ressuscitar os mortos, que só Deus pode fazer, então age por poder próprio. — Quanto ao dito do Evangelho, que na ressurreição de Lázaro, levantou os olhos ao céu, não para implorar um socorro celeste, mas para dar exemplo, assim procedeu. Por isso diz: Falei assim por atender a este povo, que está à roda de mim, para que eles creiam que tu me enviaste.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Cristo expelia os demônios por uma virtude diferente da com que os demônios o fazem. Pois, pelo poder dos demônios superiores os demônios são expulsos do corpo humano, continuando porém a ter domínio sobre a alma; porque o diabo não age contra o seu próprio reino. Ao passo que Cristo expulsava os demônios não só do corpo, mas sobretudo da alma. Por isso o Senhor reprovou a blasfêmia dos fariseus que diziam expulsar ele os demônios com o poder destes, E reprovou, primeiro, porque Satanás não entra em divisão consigo mesmo; segundo, para exemplo dos outros, que expulsavam os demônios pelo Espírito de Deus; terceiro, porque não poderia expulsar o demônio se não o tivesse vencido pelo seu poder divino; quarto, porque nada de comum tinha com Satanás, nem pelas suas obras nem pelo efeito delas; pois, Satanás procurava dispersar aqueles que Cristo unia.
O primeiro discute-se assim. — Parece que Cristo não devia fazer milagres.
1. — Pois, as obras de Cristo deviam concordar com as suas palavras. Ora, ele próprio disse: Esta geração má e adúltera pede um prodígio; mas não lhe será dado outro prodígio senão o prodígio do profeta Jonas. Logo, não devia fazer milagres.
2. Demais. — Assim como Cristo, no seu segundo advento, há de vir com grande poder e majestade, como diz o Evangelho; assim no primeiro se manifestou como fraco, segundo a Escritura: Varão de dores e experimentado nos trabalhos. Ora, fazer milagres é antes próprio do poder que da fraqueza. Logo, não foi conveniente que no seu primeiro advento fizesse milagres.
3. Demais. — Cristo veio salvar os homens pela fé, segundo aquilo do Apóstolo: Pondo os olhos no autor e consumador da fé, Jesus. Ora, os milagres diminuem o mérito da fé, donde o dizer o Senhor: Vós se não vedes milagres e prodígios não credes. Logo, parece que Cristo não devia fazer milagres.
Mas, em contrário, o Evangelho diz, das pessoas dos adversários de Deus: que fazemos nós? Que este homem faz muitos milagres.
SOLUÇÃO. — Deus permite ao homem fazer milagres por duas razões. - Primeiro e principalmente para confirmar a verdade que se ensina. Pois, como as verdades da fé excedem a razão, não podem ser provadas por meio de razões humanas, mas é preciso que tirem a sua prova do poder divino. E assim, quando alguém faz obras, que só Deus pode fazer, devemos crer que tais obras têm em Deus a sua causa; do mesmo modo que quando alguém expede cartas assinadas com o selo do rei, devemos crer que da vontade do rei procede o que elas contêm - Segundo, para mostrar a presença de Deus no homem, pela graça do Espírito Santo; de modo que creiamos que Deus habita pela graça em quem faz as obras de Deus. Donde o dizer o Apóstolo: Aquele que vos dá o Espírito Santo obra milagres no meio de vós. Ora, devia tornar-se manifesto aos homens, que Deus habitava em Cristo pela graça, não de adoção, mas de união; e que a sua doutrina sobrenatural procedia de Deus. Por isso foi convenientíssimo que fizesse milagres. Donde o dizer o Evangelho: Quando não queirais crer em mim, crede as minhas obras. E noutro lugar: As obras que meu Pai me deu que cumprisse, essas mesmas são as que dão testemunhos de mim.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O dito do Evangelho — Não lhe será dado outro prodígio senão o prodígio do profeta Jonas — significa, segundo Crisóstomo, que então não receberam o prodígio que pediram, isto é, do céu; e não, que não lhes deu nenhum prodígio. — Ou porque fazia prodígios, não por causa daqueles que sabia terem coração de pedra, mas para que purificasse os outros. Por isso, esses milagres eram feitos, não para eles, mas para os outros.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Embora Cristo viesse na fraqueza da carne que se manifesta pelo sofrimento, veio, contudo com o poder de Deus, que devia manifestar-se pelos milagres.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Os milagres diminuem o mérito da fé na medida em que manifestam a dureza daqueles que não querem crer no que a Escritura divina ensina, senão por meio de milagres. E, contudo melhor lhes é que, por meio de milagres, se convertem à fé, do que permanecerem totalmente na infidelidade. Mas, o Apóstolo diz que os milagres foram feitos para os infiéis.
O quarto discute-se assim. — Parece que Cristo não devia ensinar a sua doutrina por escrito.
1. — Pois, a escrita foi inventada para, no futuro, gravar a doutrina na memória. Ora, a doutrina de Cristo devia durar eternamente, segundo aquilo do Evangelho: Passará o céu e a terra, mas as minhas palavras não passarão. Logo, parece que Cristo devia ter ensinado a sua doutrina por escrito.
2. Demais. — A lei antiga foi uma figura de Cristo, segundo aquilo do Apóstolo: A lei tendo a sombra dos bens futuros. Ora, a lei antiga foi escrita por Deus, segundo a Escritura: Dar-te-ei duas tabuas de pedra e a lei e os mandamentos que eu escrevi. Logo, parece que também Cristo devia ter escrito a sua doutrina.
3. Demais. — A Cristo, que veio alumiar os que vivem de assento nas trevas e na sombra da morte, como diz o Evangelho, pertencia eliminar as ocasiões de erro e abrir o caminho à fé. Ora, tal o faria escrevendo a sua doutrina. Assim, diz Agostinho: Certos costumam achar dificuldade no fato do Senhor nada ter escrito, de modo que devamos crer no que os outros dele escreveram. E quem isso diz são sobretudo os pagãos, que, não ousando culpar a Cristo ou blasfemar contra Ele, atribuem-lhe uma sabedoria excelentíssima, mas como a homem. E dizem que os discípulos atribuíram ao mestre mais do que lhe era devido, quando afirmavam que era o Filho e o Verbo de Deus, por quem foram feitas todas as coisas. E depois acrescenta: Estão prontos a crer o que Cristo mesmo disse de si e não o que outros arbitrariamente lhe atribuíram. Logo, parece que Cristo devia ele próprio transmitir a sua doutrina por escrito.
Mas, em contrário, entre as Escrituras canônicas, não há nenhum livro escrito por ele.
SOLUÇÃO. — Cristo não devia ter deixado a sua doutrina por escrito. — Primeiro, por causa da sua dignidade. Pois, tanto mais excelente é quem ensina e tanto mais excelente deve ser o seu modo de ensinar. Sendo, portanto Cristo o mais excelente dos doutores, o seu modo de ensinar devia consistir em imprimir a sua doutrina no coração dos ouvintes. E por isso diz o Evangelho, que eleos ensinava como quem tinha autoridade. Assim também entre os gentios, Pitágoras e Sócrates, que foram excelentíssimos doutrinadores, nada quiseram escrever. Pois, a escrita tem como fim a impressão da doutrina no coração dos ouvintes. — Segundo, por causa da excelência da doutrina de Cristo, que não pode ser abrangida pela escrita, segundo aquilo do Evangelho: Muitas outras causas porém há ainda, que fez Jesus; as quais se escrevessem uma por uma, creio que nem no mundo todo poderiam caber os livros que delas se houvessem de escrever. O que não significa que devemos crer, como diz Agostinho, não pudesse o mundo conter tais livros, localmente falando, mas que talvez não pudesse compreendê-los a capacidade dos leitores. Se, porém, Cristo tivesse deixado a sua doutrina por escrito, os homens não a julgariam senão pelo que estava escrito. — Terceiro, para que a doutrina promanada dele chegasse a todos numa certa ordem, de modo que sendo primeiro os discípulos os ensinados, ensinassem depois aos outros com as suas palavras e os seus escritos. Se, ao contrário, ele próprio tivesse, escrito, a sua doutrina chegaria a todos imediatamente. Por isso a Escritura diz da sabedoria de Deus: Enviou as suas escravas a chamar à fortaleza. Devemos, porém saber que, como refere Agostinho, certos gentios pensavam ter Cristo escrito certos livros que continham mágicas com as quais fazia milagres, condenados pela doutrina cristã. É contudo os que afirmam ter lido esses tais livros de Cristo não fazem nada de comparável ao que admiram que ele com tais livros tivesse feito. E por juízo divino erram, a ponto de dizerem que esses tais livros eram dedicados a Pedro e a Paulo, porque em vários passos viram esses apóstolos pintados em companhia de Cristo. Nem é de espantar se foram enganados esses falsários pelas figuras pintadas. Pois, durante todo o tempo em que Cristo viveu em corpo mortal, com os seus discípulos, Paulo ainda não era do número deles.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Como diz Agostinho no mesmo livro, Cristo é a cabeça de todos os seus discípulos, como membros do seu corpo. Por isso, o que eles relataram como ensinado e dito por ele, de nenhum modo devemos dizer que não o tivesse ele próprio escrito. Pois, às vezes os seus membros fizeram o que sabiam que o chefe mandou. Assim, todos os seus fatos e ditos que quis que nos lêssemos, mandou-os escrever, como se ele próprio o tivesse escrito.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Por ter a lei antiga sido dada sob figuras sensíveis, também foi convenientemente escrita com sinais sensíveis. Mas a doutrina de Cristo, que é a lei do Espírito de vida, devia ter sido escrita, não com tinta, mas com o espírito de Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas em taboas de carne do coração, como diz o Apóstolo.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Os que não quiseram crer no que os Apóstolos escreveram de Cristo não acreditariam nem mesmo no que o próprio Cristo escrevesse; de quem opinavam que fazia milagres por meio de artes mágicas.
O terceiro discute-se assim. — Parece que Cristo não devia ensinar tudo publicamente.
1. — Pois, como lemos no Evangelho, Cristo ensinou muitas coisas particularmente aos discípulos, como o demonstra o sermão da Ceia. Por isso refere o evangelista: O que se vos diz ao ouvido, publicai-o dos telhados. Logo, não devia ensinar tudo publicamente.
2. Demais. — As profundezas da sabedoria não devem ser transmitidas senão aos perfeitos, segundo aquilo do Apóstolo: Entre os perfeitos falamos da sabedoria. Ora, a doutrina de Cristo continha a profundíssima das sabedorias. Logo, não devia ser comunica da à multidão imperfeita.
3. Demais. — Ocultar uma verdade pelo silêncio é o mesmo que a envolver em palavras obscuras. Ora, Cristo ocultava a verdade que pregava as turbas, com a obscuridade das palavras; pois, não lhes falava sem parábolas, como diz o Evangelho. Logo, pela mesma razão, poderia ocultá-la com o silêncio.
Mas, em contrário, o próprio Cristo o proclamou: Eu nada disse em segredo.
SOLUÇÃO. — Quem ensina uma doutrina pode ocultá-la de três modos. — Primeiro, intencionalmente, quando tem a intenção não de a manifestar a muitos, mas antes, de ocultá-la. Oque de dois modos pode dar-se. — Às vezes, por inveja do docente, que querendo ser excelente pela sua ciência, não quer comunica-la aos outros. O que não se dava com Cristo, de cuja pessoa diz a Escritura: Eu a aprendi sem fingimento e a reparto com os outros sem inveja e não escondo as riquezas que ela encerra. — Outras vezes tal se dá por causa da inhonestidade das coisas ensinadas, como o diz Agostinho: Há certas coisas tão más que nenhum pudor humano pode suportá-las. Por isso, da doutrina dos heréticos diz a Escritura: As águas furtivas são mais doces. Ora, a doutrina de Cristo, como diz o Apóstolo, não foi de erro nem de imundície. Donde o dizer o Senhor: Porventura vem a lucerna, isto é, a doutrina verdadeira e honesta, para a meterem debaixo do alqueire? De outro modo, uma doutrina fica oculta quando exposta a poucos. E, nesse sentido, Cristo também nada ensinou ocultamente, porque propunha toda a sua doutrina ou a todo o povo ou a todos os seus discípulos em comum. Donde o dizer Agostinho: Falará ocultamente quem fala na presença de todos? Sobretudo que, se o faz a poucos, é que quer por meio desses ensinar a todos. Em terceiro lugar uma doutrina pode ser oculta quanto ao modo de ensinar. Assim, Cristo expunha certas coisas às turbas, ocultamente, usando de parábolas a fim de anunciar os mistérios espirituais, para cuja compreensão não eram idôneos nem dignos. E contudo era-Ihes melhor, mesmo assim, oculta em parábolas, ouvir a doutrina espiritual, do que ficarem de todo privadas dela. Mas a verdade patente e nua dessas parábolas o Senhor a expunha aos seus discípulos, por meio dos quais pudessem chegar a outros, que delas fossem capazes, segundo aquilo do Apóstolo: O que ouviste da minha boca diante de muitas testemunhas, entrega-o a homens fiéis, que sejam capazes de instruir também a outros. E é o que significa aquele lugar da Escritura, onde se manda aos filhos de Aarão envolver os vasos do Santuário, que os Levitas assim haveriam de levar.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Como diz Hilário, não lemos no Evangelho, que o Senhor costumasse pregar à noite ou ensinar a sua doutrina nas trevas; e quando o diz isso significa que todas as suas pregações eram trevas para os homens carnais e sua palavra, a noite para os infiéis. Por isso, o que disse quer que entre os infiéis, seja publicado entenda com a liberdade da fé e da pregação. - Ou, segundo Jerônimo, falava em sentido comparativo, porque os ensinava no país da Judia, pequeno relativamente a todo o mundo, no qual deveria publicar-se a doutrina de Cristo, pela pregação dos Apóstolos.
RESPOSTA À SEGUNDA. — O Senhor não manifestou, com a sua doutrina, toda a profundeza da sua sabedoria, nem às multidões nem ainda aos seus discípulos, a quem disse: Eu tenho ainda muitas coisas que vos dizer, mas vós não nas podeis suportar agora. Contudo, o que julgou digno de transmitir aos outros, da sua sabedoria, não o propôs às ocultas, mas publicamente, embora não fosse entendido por todos. Donde o dizer Agostinho: Quando oSenhor disse - falei publicamente ao mundo, é como se tivesse dito - muitos me ouviram. Mas não era público o seu ensino para quem não o entendesse.
RESPOSTA À TERCEIRA. — O Senhor falava à multidão em parábolas, como se disse, porque ela não era digna nem capaz de receber a verdade plena, que expunha aos discípulos. — Quanto ao dito do Evangelho - não lhes falava em parábolas - ele se refere, segundo Crisóstomo, ao que pregava nessa ocasião; pois em outras ocasiões muitas outras coisas ensinou às turbas, sem parábolas. — Ou, segundo Agostinho, esse dito não significa que não explicasse nada com expressões apropriadas, mas que quase não deu nenhum ensinamento em que não se servisse de alguma parábola, embora empregasse então expressões claras.
O segundo discute-se assim. — Parece que Cristo devia pregar aos judeus sem os chocar.
1. — Pois, como diz Agostinho, Jesus Cristo, homem e Filho de Deus, deu-se-nos como exemplo de vida. Ora, devemos evitar não só o escândalo dos fiéis, mas também o dos infiéis, conforme aquilo do Apóstolo: Portai-vos sem dar escândalo, nem aos Judeus nem aos gentios. Logo, parece que também Cristo devia ensinar aos judeus sem os chocar.
2. Demais. — Ninguém que proceda com sabedoria deve agir de modo a contrariar o efeito da sua obra. Ora, Cristo contrariando os judeus com a sua doutrina encontrava-lhe os efeitos. Assim, quando repreendeu os escribas e os fariseus, começaram a apertá-lo com fortes instâncias e a quererem-no fazer calar com a multidão das questões a que o obrigavam a responder, armando-lhe desta maneira laços e buscando ocasião de lhe apanharem da boca alguma palavra para o acusarem. Logo, parece que não devia chocá-las com a sua doutrina.
3. Demais. — O Apóstolo diz: Não repreendas com aspereza ao velho, mas adverte-o como o pai. Ora, os sacerdotes e os príncipes dos judeus eram os anciãos do povo. Logo, parece que não devia arguí-los com duras íncrepações.
Mas, em contrário, a Escritura profetizou que Cristo seria pedra de tropeço e pedra de escândalo às duas casas de Israel.
SOLUÇÃO. — O bem comum é preferível ao de qualquer particular. Por onde, o pregador ou o doutor, para prover ao bem comum, não deve temer atacar aqueles que perversamente se opõem a esse bem. Ora, os escribas, os fariseus e os príncipes dos judeus eram, com a sua malicia, um grande obstáculo ao bem do povo, quer por se oporem à doutrina de Cristo, única donde podia provir a salvação; quer também porque corrompiam com os seus maus costumes a vida do povo. Por isso o Senhor ensinava publicamente a verdade, que eles odiavam, e lhes íncrepava os vícios, embora assim os chocasse. Donde, como se lê no Evangelho, aos discípulos que diziam ao Senhor — Sabes que os fariseus, depois que ouviram o que disseste, ficaram escandalizados? Respondeu: Deixai-os, cegos são e condutores de cegos; e se um cego guia a outro cego, ambos vêm a cair no barranco.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Devemos proceder sem chocar a ninguém, não dando a quem quer que seja ocasião de queda por algum dito ou ato nosso menos certo. Mas se a verdade for ocasião de escândalo, devemos antes arrastar o escândalo que abandonar a verdade, como diz Gregório.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Cristo, arguindo publicamente os escribas e fariseus, longe de impedir, promovia o efeito da sua doutrina. Pois, como o povo lhes conhecia os vícios, as palavras dos escribas e dos fariseus, que sempre se opunham à doutrina de Cristo, tinham menos poder para o desviarem dele.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Essas palavras do Apóstolo devem sei entendidas dos anciãos que o eram, não só pela idade ou pela autoridade, mas também pela honorabilidade, conforme àquilo da Escritura — Ajunta-me setenta homens dos anciãos de Israel que tu souberes serem os mais experimentados do povo, Mas, se a autoridade da velhice a transformarem em instrumento da malícia, pecando publicamente, devem ser manifesta e acremente increpados, como o fez Daniel quando objurgou: Homem inveterado no mal, etc.
O primeiro discute-se assim. — Parece que Cristo devia pregar, não somente aos judeus, mas também aos gentios.
1. — Pois, diz a Escritura: Pouco é que tu sejas meu servo para suscitar as tribos de Israel e converter as fezes de Jacó. Eis aqui estou eu que te estabeleci para luz das gentes a fim de seres tu a salvação que eu envio até a última extremidade da terra. Ora, a luz e a salvação Cristo nos trouxe com a sua doutrina. Logo, parece que não devia ter pregado só, aos judeus, com exclusão dos gentios.
2. Demais. — Como diz o Evangelho, Ele os ensinava como quem tinha autoridade. Ora, maior necessidade havia de ensinar doutrina para a instrução daqueles que nunca o ouviram pregar, como' eram os gentios; donde o dizer o Apóstolo - Assim tenho anunciado este Evangelho, não onde se havia feito já menção de Cristo, por não edificar sobre fundamento de outro. Logo, com muito maior razão, Cristo devia pregar, antes, aos gentios que aos judeus.
3. Demais. — É mais útil a instrução de muitos que a de um só. Ora. Cristo instruiu certos gentios, como a mulher Samaritana e a Cananía. Logo, parece que Cristo devia com muito maior razão pregar à multidão dos gentios.
Mas, em contrário, o Senhor diz, no Evangelho: Eu não fui enviado senão às ovelhas que pereceram da casa de Israel. E o Apóstolo: Como pregarão eles se não forem enviados? Logo, Cristo não devia pregar aos gentios.
SOLUÇÃO. — Tanto Cristo como os Apóstolos deviam ter começado por pregar só aos Judeus. — Primeiro, para mostrar que, pelo seu advento, se cumpriram as promessas anteriormente feitas aos judeus e não aos gentios. Donde o dizer o Apóstolo: Digo que Jesus Cristo foi ministro da circunscrição, isto é, Apóstolo e pregador dos judeus, pela verdade de Deus, para confirmar as promessas dos pais. — Segundo, para provar que o seu advento procedia de Deus; pois, as coisas de Deus são ordenadas, como diz o Apóstolo. Ora, a ordem devida exigia que a doutrina de Cristo fosse proposta primeiro aos Judeus, mais próximos de Deus pela fé e pelo culto monoteísta, para ser depois, por meio deles, transmitida aos gentios; assim como também, na hierarquia celeste as iluminações divinas são transmitidas aos anjos inferiores pelos superiores. Por isso, àquilo do Evangelho — Eu não fui enviado senão às ovelhas que pereceram da casa de Israel — diz Jerônimo: Não quer isso significar que não foi mandado aos gentios, mas que o foi primeiro a Israel. Donde o dizer a Escritura: E os que dentre eles forem salvos, isto é, dos judeus, eu os enviarei às gentes de além mar e eles anunciarão a minha glória as gentes. — Terceiro, para tirar aos judeus a ocasião de caluniá-lo. Por isso, àquilo do Evangelho — Não ireis caminho de gentios, diz Jerônimo: O advento de Cristo devia ser anunciado primeiro aos judeus, para não terem justa excusa de dizer, que rejeitaram o Senhor, porque mandou os seus apóstolos aos gentios e aos samaritanos. — Quarto, porque Cristo, pela vitória da cruz, mereceu o poder e o domínio sobre as gentes. Por isso diz a Escritura: Aquele que vencer eu lhe darei poder sobre as nações, assim como também eu a recebi de meu Pai. E o Apóstolo diz que porque foi feito obediente até a morte da cruz, Deus o exaltou para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho e toda língua e confesse. E eis porque antes da paixão não quis pregar a sua doutrina aos gentios; mas depois dela disse aos discípulos: Ide e ensinai a todas as gentes. Por isso, como se lê no Evangelho, quando, na iminência da paixão, certos gentios queriam ver a Jesus, respondeu: Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, fica ele só; mas se ele morrer produz muito fruto. E, como explica Agostinho, dizia de si que era um grão à ser morto, pela infidelidade dos judeus; e multiplicado, pela fé de todos os povos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Cristo foi a luz e a salvação das gentes por meio dos seus discípulos, que mandou a pregarem aos gentios.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Agir antes por meio de outrem que por si mesmo é sinal, não de um poder inferior, mas de um poder maior. Por isso o poder divino de Cristo se manifestou sobretudo por ter conferido aos seus discípulos um tão grande poder de ensinar, que converteram para Cristo os gentios, que nunca tinham ouvido falar dele. — Ora, o poder de ensinar, que Cristo tinha, pode ser considerado quanto aos milagres, pelos quais confirmava a sua doutrina; quanto à eficácia de persuadir; e quanto à autoridade da sua palavra, porque falava como quem tinha o domínio sobre a lei, quando afirmava — Eu porém vos digo; e também quanto à virtude da retidão, que mostrava na sua vida isenta de pecados.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Assim como Cristo não devia comunicar indiferentemente, desde o princípio, a sua doutrina aos gentios, a fim de mostrar que fora dado aos Judeus, como ao povo primogênito, assim também não devia repelir de todo os gentios, para não serem privados da esperança da salvação. E por isso certos gentios foram particularmente admitidos por causa da excelência da sua fé e devoção.
O quarto discute-se assim. — Parece que não foi conveniente o modo nem a ordem da tentação.
1. — Pois, a tentação do diabo é para induzir a pecar. Ora, se Cristo satisfizesse à fome do seu corpo convertendo as pedras em pão, não pecaria; assim como não pecou quando multiplico os pães - milagre não menor - para matar a fome à multidão. Logo, parece que não houve no caso nenhuma tentação.
2. Demais. — Ninguém que queira persuadir a outrem irá persuadi-lo do contrário do que pretende. Ora, o diabo, colocando a Cristo sobre o pináculo do templo, pretendia tentá-lo com a soberba ou a vanglória. Logo, não devia tê-lo persuadido a atirar-se abaixo, o que é o contrário da soberba ou da vanglória, que busca sempre subir.
3. Demais. — Cada tentação há de ter por objeto um pecado. Ora, a tentação do monte persuadiu à prática de dois pecados — o da cobiça e o da idolatria. Logo, parece que o modo da tentação não foi o devido.
4. Demais. — As tentações têm por fim os pecados. Ora, sete são os vícios capitais, como se estabeleceu na Segunda Parte. Ora, o diabo não tentou senão com os três — da gula, da vanglória e da cobiça. Logo, parece não ter sido suficiente a tentação.
5. Demais. — Depois da vitória sobre todos os vícios, fica o homem sujeito à tentação da soberba e da vanglória; porque, a soberba também arma cilada às boas obras, para perdê-las, como diz Agostinho. Logo, inconvenientemente, Mateus situa no monte a última tentação — a da cobiça: e no templo, a média — a da vanglória; sobretudo quando Lucas segue a ordem inversa.
6. Demais. — Jerônimo diz, que o propósito de Cristo foi vencer o diabo pela humildade e não pelo poder. Logo, não devia tê-lo repelido imperiosamente, objurando-o: vai-te, Satanás.
7. Demais. — Parece que há falsidade na narração do Evangelho. Pois, não era possível Cristo ser colocado no pináculo do Templo, sem que fosse visto por todos. Nem há nenhum monte tão alto donde pudesse ser descortinado todo o mundo, de modo que pudesse aparecer a: Cristo todos os reinos dele. Logo, parece mal referida a tentação de Cristo.
Mas, em contrário, a autoridade da Sagrada Escritura.
SOLUÇÃO. — O nosso inimigo nos tenta por meio de sugestões, como diz Gregório. Ora, não é do mesmo modo que faz sugestão a todos, mas a cada um sugere aquilo a que oinclina o afeto. E é a razão do diabo não tentar as pessoas espirituais, entrando logo a sugerir-lhes pecados graves; mas começa paulatinamente, sugerindo-lhes os mais leves para passar depois aos mais graves. Por isso, Gregório, expondo aquilo da Escritura — Cheira de longe a batalha, a exortação dos capitães e o alarido do exército. — Comenta: Acertadamente se fala na exortação dos capitães e no alarido do exército. Porque os primeiros vícios à sorrelfa e com aparências de razão, se introduzem na alma transviada mas todos os mais daí resultantes confundem-na com um como clamor bestial, arrastando-a a toda espécie de demências.
E foi essa ordem a mesma que o diabo observou na tentação do primeiro homem. Assim, primeiro despertou-lhe na alma o desejo de comer do fruto da árvore proibida, ao dizer-lhe: Por que vos mandou Deus que não comêsseis de toda árvore do paraíso? Depois, tentou-o com a vanglória, quando disse: Abrir-se-vos-ão os olhos. E em terceiro lugar, levou a tentação ao extremo da soberba, quando disse: Vós sereis como uns deuses, conhecendo o bem e o mal. E também observou a mesma ordem quando tentou a Cristo. Assim, primeiro tentou-o com o desejo natural do sustento da vida do corpo, por meio da comida, que têm todos os homens, por mais espirituais que sejam. Depois passou à tentação de obrar por ostentação, em que os varões espirituais às vezes caem, e que constitui a vanglória: E em terceiro lugar, despertou a tentação do desejo das riquezas e da glória do mundo até ao desprezo de Deus, na qual não caem os homens espirituais, mas só os carnais. Por isso, nas primeiras duas tentações o diabo disse — Se és o filho de Deus; não porém na terceira, na qual não caem os varões espirituais, por serem filhos adotivos de Deus, podendo porém cair nas duas primeiras.
E assim, Cristo resistiu a essas tentações, invocando o testemunho da lei e não recorrendo ao seu poder, para desse modo honrar mais o homem e dar maior punição ao adversário, que foi vencido não por Deus mas pelo homem, como escreve Leão Papa.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Usar do necessário para o sustento não é pecado de gula; mas proceder desordenadamente, levado do desejo desse sustento, pode constituir o referido pecado. Assim, é proceder desordenadamente querermos que a comida nos seja fornecida milagrosamente, só para sustentarmos o corpo, quando podemos fazê-lo pelo subsídio humano. Por isso o Senhor distribuiu milagrosamente o maná aos filhos de Israel no deserto, porque de nenhuma outra maneira podiam alimentar-se. Do mesmo modo Cristo alimentou milagrosamente a multidão no deserto, que não podia ser nutrida de outra maneira. Ora, Cristo, para satisfazer a sua fome, podia recorrer a outros meios que não o milagre, como o fez João Batista; ou também dirigindo-se a povoações próximas. Por isso, o diabo pensava que Cristo pecaria se, na qualidade de puro homem, tentasse fazer milagre, para satisfazer a fome.
RESPOSTA À SEGUNDA. — É comum fazer-se da humildade exterior um meio de buscar a glória que nos exalte, pelos nossos bens espirituais. Por isso diz Agostinho: Devemos notar que pode haver jactância, não somente no esplendor e na pompa dos bens externos, mas também nas mortificações da humildade. E para o significar o diabo persuadir a Cristo que se despenhasse abaixo, corporalmente, para ganhar a glória espiritual.
RESPOSTA À TERCEIRA. — É pecado desejar desordenadamente as riquezas e as honras do mundo. O que sobretudo se dá quando para alcançá-las, procedemos desonestamente. Por isso o diabo não se contentou com persuadir a cobiça das riquezas e das honras: mas induzir a Cristo que, para alcançá-las, o adorasse, o que é o máximo crime e contra Deus. Nem só disse — Se me adorares, mas acrescentou — se prostrado, porque, como diz Ambrósio, há na ambição um perigo iminente — o de primeiro servir para depois dominar os outros; de curvar-se em obséquios para depois ser honrada; e de se tornar remissa para em seguida guindar-se. — E semelhantemente, nas precedentes tentações, procurou despertar o desejo de um pecado, — para fazer cair em outro; assim, pela desejo da comida procurou levar à vaidade de fazer milagres sem causa; e pelo desejo da glória, quis fazer Cristo tentar a Deus, atirando-se do templo abaixo.
RESPOSTA À QUARTA. — Como diz Ambrósio, a Escritura não teria dito que o diabo se afastou de Cristo, depois de consumadas todas as três tentações, se nessas três não incluíssem a matéria de todos os pecados. Pois, as causas das tentações são as causas das seguintes cobiças: os deleites da carne, a esperança da glória e o desejo do poder.
RESPOSTA À QUINTA. — Como diz Agostinho, é incerto o que se passou em primeiro lugar se primeiro forem mostrados a Cristo os reinos da terra e depois foi levado ao pináculo do Templo, ou se foi este último fato anterior àquele. Mas nada importa para o caso, pois, é certo que ambos se deram. Os Evangelhos, porém os narram em ordem diferente, pois, ora referem a vanglória antes da cobiça, ora inversamente.
RESPOSTA À SEXTA. — Quando Cristo sofreu a injúria da tentação ao dizer-lhe o diabo - Se és Filho de Deus, lança-te daqui abaixo, não se perturbou nem o increpou. Mas quando o diabo, usurpando para si a honra devida a Deus, disse — Dar-te-ei todas estas coisas se prostrado me adorares — Cristo exasperou-se e repeliu-o dizendo — vai-te, Satanás; querendo ensinar-nos com esse exemplo que devemos suportar magnanimamente as injúrias, feitas a nós mas não toleramos, nem sequer para os ouvir, as injúrias feitas a Deus.
RESPÓSTA ÀSÉTIMA. — Como diz Crisóstomo o diabo levou a Cristo (ao pináculo do Templo) para que fosse visto de todos; mas ele, sem o diabo saber, dispôs-se de modo a não ser vista de ninguém. — E enquanto ao dito - E lhe mostrou todos os reinos da terra não devemos entendê-lo como significando, que os viu a esses reinos, materialmente falando, nem as cidades ou os povos ou o ouro ou a prata, que contivessem; mas sim, que o diabo mostrava com o dedo a Cristo as partes da terra, nos quais cada um desses reinos ou cidades estava situado e expunha verbalmente as honras e o estado de cada um deles. — Ou, segundo Orígenes, mostrava-lhe como ele, por meio dos diversos vícios, reinava no mundo.
O terceiro discute-se assim. — Parece que Cristo não devia ser tentado depois do jejum
1. — Pois, como se disse Cristo não devia viver uma vida de austeridades. Ora, parece que nenhuma austeridade era maior que a de passar sem comer nada quarenta dias e quarenta noites; pois a expressão — jejuou quarenta dias e quarenta noites — entende-se como significando que durante esses dias não tomou absolutamente nenhum alimento, como diz Gregório. Logo, parece que não devia ter-se sujeitado a um tal jejum antes da tentação.
2. Demais. — O Evangelho diz que esteve no deserto quarenta dias e quarenta noites e ali foi tentado por Satanás. Ora, jejuou durante quarenta dias e quarenta noites. Logo, parece que foi tentado pelo diabo, não depois do jejum, mas durante ele.
3. Demais. — No Evangelho não lemos que Cristo jejuasse, senão uma vez. Ora, não foi tentado pelo diabo só uma vez; assim, lemos que, acabada toda a tentação, se retirou dele o demônio até certo tempo. Logo, assim como a segunda tentação não foi precedida de jejum, nem a primeira devera tê-la sido.
Mas, em contrário, o Evangelho: Tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites, depois teve fome; e então chegou-se a ele o tentador.
SOLUÇÃO. — Era conveniente que Cristo quisesse ser tentado depois do jejum. — Primeiro, para nos dar exemplo. Pois, como todos temos o dever de nos defender contra as tentações, o ter Cristo jejuado antes da tentação futura, nos adverte que devemos nos armar contra as tentações pelo jejum. Por isso, o Apóstolo enumera o jejum entre as armas da justiça. — Segundo, para nos mostrar que mesmo os que jejuam o diabo os ataca com as suas tentações, assim como o faz os que vacam às boas obras. Por isso, assim como tentou a Cristo depois do batismo; assim também depois do jejum. Donde o dizer Crisóstomo: Cristo jejuou, sem precisar de o fazer só para nos instruir quão grande bem é o jejum e que escudo é contra o diabo; e que, depois do batismo devemos nos entregar ao jejum e não à sensualidade. — Terceiro, porque ao jejum se lhe seguiu a fome, que deu ao diabo a audácia para atacá-la, como dissemos. Pois, diz Hilário, se o Senhor teve fome, não foi que a necessidade o surpreendesse, mas porque quis abandonar o homem à sua natureza. Também, como diz Crisóstomo, não prolongou o seu jejum mais do que o fizeram Moisés e Elias, para que se não duvidasse da realidade do seu corpo.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A Cristo não convinha abraçar uma vida de austeridades, senão viver a mesma vida que aqueles a quem pregava. Ora, ninguém deve assumir o ofício de pregador, antes de ter-se purificado e aperfeiçoado na virtude, como de Cristo diz a Escritura, que começou a fazer e a ensinar. Por isso, Cristo, logo depois do batismo assumiu uma vida de austeridades, para ensinar que os pregadores só devem exercer o seu ofício depois de terem dominado a carne, segunda aquilo do Apóstolo: Castigo o meu corpo e o reduzo à servidão para que não suceda que, havendo pregado ao outros venha eu mesmo a ser reprovado.
RESPOSTA À SEGUNDA. — As palavras de Marcos podem entender-se no sentido que Cristo permaneceu no deserto quarenta dias e quarenta noites durante os quais jejuou. Quanto à expressão - foi tentado por Satanás — significa que Cristo o foi, não nesses quarenta dias e quarenta noites em que jejuou, mas depois deles; pois, na versão de Mateus, tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites, depois teve fome, o que ofereceu ocasião ao tentador de aproximar-se dele. E o que se acrescenta — e eis que os anjos o serviam — deve entender-se como tendo sucedido depois da tentação, pelo que Mateus diz: Então o deixou o diabo, isto é, depois da tentação, e eis que os anjos o serviam. Quando à interpolação de Marcos — e habitava com as feras — ela é para mostrar, segundo Crisóstomo, qual era o deserto, isto é, envio de homens e cheio de animais selvagens. — Contudo, segundo a exposição de Beda, o Senhor foi tentado durante os quarenta dias e as quarenta noites. Mas isso se entende, não daquelas tentações visíveis. Referidos por Mateus e Lucas, que tiveram lugar depois do jejum; mas de certos outros ataques que talvez Cristo sofreu do diabo no tempo desse jejum.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz Ambrósio, o diabo retirou-se de Cristo, até certo tempo, porque depois se aproximou dele no tempo da paixão, não para tentá-lo, mas para combatê-la abertamente. - Porém, nessa segunda tentação, Cristo foi tentado a cair em tristeza e no ódio dos próximos; assim como no deserto o foi pelo prazer da gula e pelo desprezo de Deus, mediante a idolatria.