Category: Santo Tomás de Aquino
O duodécimo discute-se assim. — Parece que a paixão de Cristo de ser atribuída à sua divindade.
1. — Pois, diz o Apóstolo: Se eles o conhecessem não crucificariam nunca ao Senhor da Glória. Ora, o Senhor da glória é Cristo, na sua divindade. Logo, a paixão de Cristo devia lhe ser atribuída àdivindade.
2. Demais. — O princípio da salvação humana é a divindade, segundo aquilo da Escritura: Mas a salvação dos justos vem do Senhor. Se, logo, a paixão de Cristo não lhe pertencesse àdivindade, parece que nenhum fruto podia produzir para nós.
3. Demais. — Os judeus foram punidos pelo pecado de matarem a Cristo, como homicidas do próprio Deus, o que mostra a grandeza da pena em que incorreram. Ora, tal não se daria se a Paixão não fosse atribuída à divindade. Logo a paixão de Cristo lhe pertencia à divindade.
Mas, em contrário, diz Atanásio: O Verbo, enquanto Deus é impassível. Ora, o impassível não pode padecer. Logo, a paixão de Cristo não lhe devia ser atribuída à divindade.
SOLUÇÃO. — Como dissemos a união entre a natureza divina e a humana realizou-se na pessoa, na hipóstase e no suposto, permanecendo, porém a distinção das naturezas. De modo que é a mesma a pessoa e a hipóstase da natureza divina e da humana, salva, contudo a propriedade de uma e outra natureza. Por isso, como dissemos, ao suposto da natureza divina foi atribuído a Paixão, não em razão da natureza divina, que é impassível, mas em razão da natureza humana. Por isso diz a epístola sinodal de Cirilo: Quem não confessar que o Verbo de Deus sofreu na sua carne e foi na sua carne crucificado, seja anátema. Logo, a Paixão de Cristo deve ser atribuída ao suposto da natureza divina, em razão da natureza passível assumida e não em razão da natureza divina impassível.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Diz-se que o Senhor da glória foi crucificado, não enquanto Senhor da glória, mas enquanto homem passível.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz um sermão do Concílio Efesino, a morte de Cristo, foi à morte de um Deus, por causa da união na pessoa; por isso destruiu a morte, porque quem sofria era Deus e homem. Mas a natureza de Deus não padeceu nenhum detrimento, nem nenhum sofrimento por não ter passado por qualquer mudança.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como no mesmo lugar se acrescenta, os judeus não crucificaram somente um homem, mas foi o próprio Deus que fizeram o objeto das suas ofensas. Assim, suponde um príncipe que dá instruções e as formula em uma carta, que envia às suas cidades. Se algum insubmisso rasgasse a carta, seria condenado à morte, não por ter assim procedido, mas porque, desse modo, desfez as instruções mesmas do príncipe. Os judeus não devem, portanto considerar-se em segurança, como se tivessem crucificado apenas o homem. O que viam era uma como carta; e o que nela estava oculto era o Verbo imperial, nascido da natureza, e não proferido pela língua.
O undécimo discute-se assim. Parece que não foi conveniente Cristo ter sido crucificado com os ladrões.
1. — Pois, diz oApóstolo: Que união pode haver entre a justiça e a iniquidade? Ora, Cristo nos tem sido feito por Deus justiça, e dos ladrões é própria a iniquidade. Logo, não foi conveniente que Cristo fosse crucificado junto com os ladrões.
2. Demais. — Aquilo do Evangelho: Ainda que seja necessário morrer eu contigo, não te negarei — diz Orígenes: Não convinha a nenhum homem morrer com Jesus, que morreu por todos. E comentando aquele outro lugar. - Eu estou pronto a ir contigo, tanto para a prisão como a morrer, diz Ambrósio: A Paixão de Cristo tem imitadores, mas não iguais. Logo, parece que era muito menos conveniente que Cristo sofresse simultaneamente com os ladrões.
3. Demais. — O Evangelho diz num lugar. Impropérios lhe diziam também os ladrões que haviam sido crucificados com ele. E noutro lugar se refere que um dos ladrões crucificados com Cristo lhe dizia: Senhor lembra-te de mim, quando entrares no teu reino. Por onde se vê que, além dos ladrões, que blasfemavam, foi crucificado com Cristo um que não blasfemava. Logo, parece inexato o narrado pelos evangelistas, que Cristo foi crucificado com ladrões.
Mas, em contrário, a Escritura: E foi posto no número dos malfeitores.
SOLUÇÃO. — Cristo foi crucificado entre os ladrões, por uma razão se considerarmos a intenção dos judeus, e por outra, considerada a ordem de Deus: Assim, quanto à intenção dos judeus, crucificaram aos lados de Cristo dois ladrões, como adverte Crisóstomo, para que ele participasse da ignomínia deles. Contudo, àqueles ninguém se refere, ao passo que a cruz de Cristo é honrada em toda parte. Os reis, depondo os seus diademas, assumem a cruz: no meio das púrpuras, dos diademas, das armas, da mesa sagrada, em toda a parte do mundo a cruz resplandece. De outro lado, quanto à ordenação de Deus, Cristo foi crucificado entre ladrões, porque, segundo diz Jerônimo, assim como Cristo foi feito na cruz maldição por nós, assim, foi crucificado como criminoso entre criminosos, para a salvação de todos. — Segundo, como diz Leão Papa, dois ladrões foram crucificados, um ao lado direito e outro ao lado esquerdo de Cristo, a fim de que nesse espetáculo mesmo do patíbulo se espelhasse aquela separação que ele próprio há de fazer quando vier a julgar os homens. E Agostinho diz: Se bem refletires verás, que essa cruz foi um tribunal. O juiz está posto no meio; o que acreditou foi salvo; o outro que insultou, foi condenado. Por onde se vê o que Cristo fará um dia, dos vivos e dos mortos, colocando aqueles à sua direita e os outros, à esquerda: — Terceiro, segundo Hilário, porque os dois ladrões, crucificados — um, à direita, o outro à esquerda, mostram que toda a diversidade do gênero humano é chamada a participar do mistério da paixão de Cristo. Mas como a divisão entre fiéis e infiéis é correspondente aos lados direito e esquerdo, um dos dois, o colocado à direita, foi salvo pela justificação da fé. — Quarto, porque, como diz Beda, os ladrões crucificados com o Senhor, simbolizam aqueles que, sob a fé e a confissão de Cristo, sofrem a agonia do martírio, ou vivem sob as regras de uma disciplina mais austera. E os que trabalham para a glória eterna são figurados pelo ladrão da direita; ao passo que os de olhos postos na glória humana imitam os atos do ladrão da esquerda.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Assim como Cristo não estava obrigado a morrer, mas sofreu a morte voluntariamente para vencê-la com o seu poder, assim também não mereceu ser crucificado com os ladrões, mas quis ser confundido com homens iníquos a fim de destruir a iniquidade com a sua virtude. Donde o dizer Crisóstomo, que converter o ladrão na cruz e introduzi-lo no Paraíso, não foi menos que fender rochedos.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Não convinha que ninguém sofresse com Cristo pela mesma causa. Por isso acrescenta Orígenes no mesmo lugar: Todos eram pecadores e todos tinham necessidade que um outro morresse por eles, mas não eles pelos outros.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como adverte Agostinho, podemos entender que Mateus usou do número plural pelo singular, ao narrar que os ladrões lhe diziam impropérios. - Ou podemos dizer segundo Jerônimo, que a princípio tanto um como outro blasfemavam; depois um deles, vendo os milagres, acreditou em Cristo.
O décimo discute-se assim. — Parece que Cristo não sofreu no lugar conveniente.
1. — Pois, Cristo sofreu na sua carne humana, que foi concebida de uma virgem em Nazaré, e nascida em Belém. Logo, parece que devia ter sofrido não em Jerusalém, mas em Nazaré ou em Belém.
2. Demais. — A realidade deve corresponder à figura. Ora, a Paixão de Cristo era figurada pelos sacrifícios da lei antiga. Mas, tais sacrifícios eram oferecidos no Templo. Logo, parece que Cristo devia ter sofrido no Templo e não fora da porta da cidade.
3. Demais. — O remédio deve ser adequado à doença. Ora, a Paixão de Cristo foi o remédio do pecado de Adão. Adão, porém não foi sepultado em Jerusalém, mas no Hebron, como o refere Josué: Hebron chamava-se antes por nome Cariath-Arbe; ali foi enterrado Adão, que foi o máximo entre os Enacinos. Logo, parece que Cristo devia ter sofrido em Hebron e não em Jerusalém.
Mas, em contrário, o Evangelho: Não convém que um profeta morra fora de Jerusalém. Logo, sofreu como o devia, em Jerusalém.
SOLUÇÃO. — Como diz um Autor o Salvador fez tudo em lugares e tempos próprios; pois como todos os tempos estão em suas mãos, assim também todos os lugares. Por onde, assim como Cristo sofreu no tempo conveniente, assim também no lugar conveniente.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Cristo sofreu muito convenientemente em Jerusalém. — Primeiro, porque Jerusalém foi o lugar escolhido por Deus para aí se lhe oferecerem os sacrifícios. Sacrifícios esses que, sendo figurados, representavam a Paixão de Cristo, que é o verdadeiro sacrifício segundo o Apóstolo: Entregou-se a si mesmo como oferenda e hóstia em odor de suavidade, Por isso diz Beda, numa Homilía, que, aproximando-se a hora, da Paixão, o Senhor quis aproximar-se do lugar dela, isto é de Jerusalém, onde chegou cinco dias antes da Páscoa, assim como o cordeiro pascal, era conduzido ao lugar da imolação cinco dias antes da Páscoa, isto é, na décima lua, segundo o preceito da lei. — Segundo, porque a virtude da sua Paixão devia difundir-se a todo o mundo; por isso quis sofrer no meio da terra habitável, isto é, em Jerusalém. Donde o dizer a Escritura: Mas o Deus, rei nosso antes dos séculos, obrou a salvação no meio da terra, isto é, Jerusalém, considerada como o umbigo da terra. — Terceiro, porque isso lhe convinha sobremaneira à humildade; pois, assim como elegeu o mais infamante dos gêneros de morte, assim também àhumildade lhe convinha não recusar sofrer a confusão num lugar tão célebre. Por isso diz Leão Papa: Quem assumira a forma de servo, preelegeu Belém para a sua natividade e Jerusalém, para a Paixão. — Quarto, para mostrar que a iniquidade cometida com a sua morte foi oriunda dos chefes do povo. Por isso quis sofrer em Jerusalém, onde moravam os príncipes. Daí, o dizer a Escritura: Ligaram-se nesta cidade contra o teu santo Filho Jesus, ao qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com os gentios e com os povos de Israel.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Cristo não sofreu a sua Paixão no templo nem na cidade, mas fora da porta, por três razões. - Primeiro, para que a realidade correspondesse ao figurado. Pois, o vitelo e o bode, oferecidos em soleníssimo sacrifício para a expiação de toda a multidão, eram queimados fora dos arraiais. Por isso diz o Apóstolo: Os corpos daqueles animais, cujo sangue é metido pelo pontífice no santuário para expiação do pecado, são queimados fora dos arraiais. Pelo que também Jesus, para que santificasse ao povo pelo seu sangue, padeceu fora da porta. - Segundo, para que assim nos ensinasse, pelo seu exemplo, a nos apartar da vida do mundo. Por isso acrescenta o Apóstolo: Saiamos, pois a ela fora dos arraiais, levando sobre nós o seu opróbrio. - Terceiro como diz Crisóstomo, o Senhor não quis sofrer debaixo de um teto nem num templo judaico, a fim de que os judeus não nos privassem do sacrifício da salvação e não pensássemos que só por esse povo fosse ele oferecido. - Por isso Cristo sofreu fora ela cidade e fora dos muros para sabermos que esse sacrifício foi oferecido por todos, por ser a oblação de toda a terra e a purificação de todos.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz Jerônimo, pretendeu-se que o Calvário, lugar onde fora enterrado Adão, foi por isso chamado lugar do crânio por ter sido aí enterrada a cabeça do primeiro homem. Essa interpretação foi bem aceita por lisonjear os ouvidos do povo, mas não é verdadeira. Porque na verdade, fora da cidade e fora da porta, havia lugares onde eram decapitados os condenados; daí o nome que lhes davam, de calvários, isto é, dos decapitados. E por isso aí foi crucificado Jesus para que, onde primeiro fora o campo dos condenados, aí se erigisse o estandarte do martírio. Quanto a Adão, ele foi sepulto perto de Hebron, como lemos no livro de Jesus, filho de Nave. — Mas Jesus devia ser crucificado antes no lugar comum dos condenados, que perto do sepulcro de Adão, para que se mostrasse ser a cruz de Cristo não só um remédio contra o pecado individual de Adão, mas ainda contra o pecado de todo o mundo.
O nono discute-se assim. — Parece que Cristo não sofreu no tempo conveniente.
1. — Pois, a paixão de Cristo era figurada pela imolação do cordeiro pascal donde o dizer o Apóstolo: Cristo, que é a nossa Páscoa, foi imolado. Ora, o cordeiro pascal era imolado no dia quatorze à tarde, como refere a Escritura. Logo, parece que então é que deveria Cristo sofrer. O que é falso, pois, então, celebrou a Páscoa com os seus discípulos, segundo o Evangelho: No primeiro dia, em que se comiam os pães asmos, quando se imolava o cordeiro pascal; e no dia seguinte sofreu a paixão.
2. Demais. — A paixão de Cristo foi a sua exaltação, segundo o Evangelho: Importa que seja levantado o Filho do Homem, Ora, Cristo é chamado na Escritura o Sol de Justiça. Logo, parece que devia ter sofrido na hora sexta, (meio dia), quando o sol está no ponto máximo de elevação. Ora, o contrário está no Evangelho: Era, pois a hora de terça, tempo em que eles o crucificaram.
3. Demais. — Assim como o sol atinge cada dia o seu ponto mais alto na hora sexta (meio dia), assim no solstício do verão é que está, cada ano, no seu ponto mais elevado. Logo, Cristo devia ter sofrido a Paixão, antes no tempo do solsticio do verão que por ocasião do equinócio da primavera.
4. Demais. — A presença de Cristo no mundo iluminava-o a este, segundo o Evangelho: Eu, entretanto que estou no mundo sou a luz do mundo. Logo, teria sido mais conveniente à salvação humana que tivesse vivido por mais tempo neste mundo, de modo que não viesse a sofrer na idade de moço, mas quando já idoso.
Mas, em contrário, o Evangelho: Sabendo Jesus que era chegada a sua hora de passar deste mundo ao Pai. E noutro lugar: Ainda não é chegada a minha hora. Ao que diz Agostinho: Quando fez tanto quanto julgava suficiente, então veio a sua hora; não imposta por necessidade, mas voluntária; não dependente de uma condição, mas do seu poder. Logo, sofreu no tempo conveniente.
SOLUÇÃO. — Como dissemos, a Paixão de Cristo dependia da sua vontade. Ora, a sua vontade era dirigida pela sabedoria divina, que dispõe todas as coisas convenientemente e com suavidade, no dizer da Escritura, Donde devemos concluir que a Paixão de Cristo se consumou no tempo conveniente. Donde o dizer um autor: O Salvador fez tudo em lugares e tempos próprios.
DONDE A RESPOSTA ÀPRIMEIRA OBJEÇÃO. — Certos dizem que Cristo sofreu na décima quarta lua, quando os judeus imolavam a Páscoa. Por isso refere o Evangelho, que os judeus não entraram no Pretório do Pilatos, no dia mesmo da Paixão, por se não contaminarem, mas comerem a Páscoa, Ao que diz Crisóstomo: Então os judeus celebravam a Páscoa; ao passo que Cristo celebrou a Páscoa um dia antes, reservando-se a sua imolação para a sexta-feira quando se celebrava a Páscoa antiga. Com o que parece estar de acordo o dito do Evangelho, que antes do dia da festa da Páscoa Cristo acabada a ceia, lavou os pés dos discípulos. Mas contra este sentir é o lugar do Evangelho, onde se diz que no primeiro dos dias em que se comiam os pães asmos, vieram ter com Jesus seus discípulos, dizendo: Onde queres tu que te preparemos o que se há de comer na Páscoa? Donde resulta que chamando-se dia de asmos o décimo quarto dia do primeiro mês, quando o cordeiro era imolado e era o plenilúnio, como adverte Jerônimo, resulta que Cristo celebrou a ceia na décima quarta lua e sofreu a Paixão na décima quinta. E isso é mais expressamente mencionado pelo dito do Evangelho: No primeiro dia em que se comiam os pães asmos, quando se imolava o cordeiro pascal. etc. E noutro lugar: Chegou o dia dos pães asmos no qual era necessário imolar-se a Páscoa. Por isso, certos dizem, que Cristo no dia conveniente, isto é, na décima quarta lua, comeu a Páscoa com os seus discípulos, mostrando assim que até o último dia não era contrário à lei, como ensina Crisóstomo. Mas os judeus, ocupados em condenar Cristo à morte, adiaram para o dia seguinte a celebração da Páscoa, contrariando a lei. E por isso o Evangelho diz deles que, no dia da Paixão de Cristo, não quiseram entrar no pretório, por não se contaminarem, mas comerem a Páscoa.
Mas também este modo de ver não concorda com as palavras de Marcos quando diz: No primeiro dia em que se comiam os pães asmos, quando se imolava o cordeiro pascal. Logo Cristo e os judeus celebraram simultaneamente antiga Páscoa. E, como Beda diz: embora Cristo, que é a nossa Páscoa, fosse crucificado no dia seguinte, isto é, na décima quinta lua, contudo na noite em que o cordeiro foi imolado, entregou seu corpo e seu sangue aos discípulos para a celebração dos santos mistérios; e então preso e ligado pelos judeus, consagrou o principio da sua imolação, isto. é da sua paixão. Quanto ao dito do Evangelho — Antes do dia da festa da Páscoa — entende-se que foi a décima quarta lua, que então teve lugar na quinta-feira; pois, a lua décima quinta era o dia solenissímo da Páscoa entre os judeus. E assim, o mesmo dia a que João chama — antes do dia da festa da Páscoa — por causa da distinção natural dos dias, Mateus denomina o primeiro dia em que se comiam os asmas. Porque, segundo o rito da festividade judaica, a solenidade principiava na tarde do dia precedente. — Quanto ao lugar, que os judeus haviam de comer a Páscoa na décima quinta lua, devemos entender que ai a Páscoa não significa o cordeiro pascal, que fora imolado na décima quarta lua; mas a comida pascal, isto é, os pães asmos, que deviam ser comidos pelos puros. E por isso Crisóstomo, comentando esse lugar refere outra exposição: Páscoa pode se tomar por toda a festa dos judeus, que durava sete dias.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz Agostinho, era quase a hora sexta quando o Senhor foi entregue a ser crucificado por Pilatos, segundo refere João. Assim, ainda não era plenamente a sexta, mas quase a sexta, isto é, já se tinha passado a quinta e tinha decorrido já uma parte da sexta, até que, completa esta estando Cristo pendente da cruz, fizeram-se as trevas. Entende-se, porém que era à terceira hora, quando os Judeus vociferavam pedindo pela crucifixão do Senhor; e é muito verdade que o crucificaram quando vociferavam. Por onde, a fim de que ninguém, afastando dos judeus o pensamento de um tão grande crime, o fizesse recair sobre os soldados, o Evangelho diz que era a hora terceira e então o crucificaram. De modo que se entenda, antes, terem sido os que vociferavam os que o crucificaram na hora sexta. — Embora não falte quem queira entender como a terceira hora do dia a Parasceve, que João comemora, ao dizer — Era então o dia da preparação da Páscoa (Parasceve), quase à hora sexta. Porque Parasceve significa preparação. Porém e verdadeiramente, a Páscoa celebrada na Paixão do Senhor, começou a ser preparada desde a nona hora ria noite, isto é, quando todos os príncipes dos sacerdotes disseram — É réu da morte. Assim que, dessa hora da noite até a crucificação de Cristo, decorreu a hora sexta da Parasceve, segundo João, e a terceira hora do dia, segundo Marcos. — Certos, porém dizem que essa diversidade resulta de um erro do copista grego; pois, os números que representam três e seis são muito semelhantes entre si.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Diz um autor: O Senhor quis remir e reformar o mundo pela sua paixão, na mesma época em que o criou, isto é, no equinócio. É então que o dia começa a ser mais longo que a noite, porque pela paixão do Salvador somos tirados das trevas para a luz. E como a iluminação perfeita será no segundo advento de Cristo, por isso o tempo do segundo advento é comparado ao estio, pelo Evangelho, quando diz: Quando os seus ramos (da figueira) estão já tenros e as folhas tem brotado, sabei que está perto o estio; assim também vós quando vides tudo isto, sabei que esta perto, às portas. E então terá lugar a exaltação suprema de Cristo.
RESPOSTA À QUARTA. — Cristo quis sofrer na idade de moço por três razões. — Primeiro, para nos demonstrar melhor o seu amor, dando a sua vida por nós, quando a tinha no seu estado mais perfeito. — Segundo, porque não convinha que nele se manifestasse nenhuma decadência física, como nem qualquer doença, segundo se disse. - Terceiro, a fim de que, morrendo e ressurgindo na quadra da mocidade, mostrasse de antemão em si a qualidade futura dos ressurrectos. Por isso diz o Apóstolo: Até que todos cheguemos à unidade da fé e ao conhecimento do Filho de Deus, a estado de varão perfeito, segundo a medida de idade completa de Cristo.
O oitavo discute-se assim. — Parece que a alma de Cristo, durante o tempo da sua paixão, não fruía totalmente o gozo da bem-aventurança.
1. — Pois, é impossível sofrer e gozar simultaneamente, por serem contrários a dor e o prazer. Ora, a alma de Cristo sofria totalmente a dor no tempo da paixão, como se estabeleceu. Logo, não podia fruir na sua totalidade.
2. Demais. — O Filósofo diz que a tristeza, sendo veemente, não só impede o prazer contrário, mas qualquer prazer; e inversamente. Ora, a dor da paixão de Cristo foi a dor máxima, como se demonstrou; e semelhantemente, o deleite do gozo é o máximo, como se estabeleceu na Segunda Parte. Logo, não era possível a alma de Cristo na sua totalidade, simultaneamente sofrer e gozar.
3. Demais. — O gozo da bem-aventurança se funda no conhecimento e no amor divinos, como está claro em Agostinho. Ora, nem todas as potências da alma são capazes de conhecer e amar a Deus. Logo, Cristo não gozava com toda a sua alma.
Mas, em contrário, diz Damasceno, que a divindade de Cristo permitia à carne agir e sofrer como lhe era próprio. Logo, pela mesma razão, sendo próprio à alma de Cristo, enquanto bem-aventurada, gozar a sua paixão não lhe Impedia o gozo.
SOLUÇÃO. — Como dissemos antes, a alma na sua totalidade, podemos entendê-la, tanto na sua essência como em todas as suas potências. — Se, pois, a considerarmos na sua essência então toda a alma de Cristo gozava, enquanto o sujeito da sua parte superior, a que cabe gozar da divindade. De modo que, assim como a paixão, em razão da essência, se atribui à parte superior da alma, assim também e ao inverso, o gozo, em razão da parte superior da alma, há de atribuir-se à essência. — Se, porém considerarmos toda a alma, em razão de todas as suas potências, então não era a alma na sua totalidade a que fruía. Nem diretamente porque a fruição não pode ser ato ele nenhuma parte da alma. Nem pela redundância da glória, pois enquanto Cristo era viandante, não havia nenhuma redundância de glória da parte superior para a inferior, nem da alma para o corpo. Mas porque, do inverso também a parte superior da alma não ficava impedida na sua ação própria pela parte inferior, resulta que a parte superior da alma de Cristo fruía perfeitamente, durante a sua paixão.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O gáudio da fruição diretamente não contraria à dor da paixão porque um e outra não recaem sobre o mesmo objeto. Pois, nada impede os contrários existirem num mesmo sujeito, mas não sob o mesmo aspecto. E assim, o gáudio da fruição pode pertencer à parte superior da razão, pelo seu ato próprio: e a dor da paixão, pelo seu sujeito. Ora, a essência da alma concerne a dor da paixão, quanto ao corpo, de que ela é a forma: e o gáudio da fruição, quanto à potência, de que depende.
RESPOSTA À SEGUNDA. — As palavras citadas do Filósofo são verdadeiras em razão da redundância, naturalmente resultante de uma potência da alma para outra. Mas isso não se deu com Cristo, como dissemos.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A objeção colhe no concernente à totalidade da alma, quanto às suas potências.
O sétimo discute-se assim. — Parece que Cristo não sofreu em toda a sua alma.
1. — Pois a alma sofre quando sofre o corpo, por acidente, por ser o ato do corpo. Ora, a alma não é ato do corpo relativamente a qualquer das suas partes; assim, o intelecto não é ato de nenhum corpo, como diz Aristóteles. Logo, parece que Cristo não sofreu em toda a sua alma.
2. Demais. — Toda potência da alma é passiva em relação ao seu objeto. Ora, o objeto da razão da parte superior são as razões eternas, que ela se esforça por contemplar e consultar, como o diz Agostinho. Mas, pelas razões eternas, Cristo não podia sofrer nenhum mal, pois em nada o contrariavam. Logo, parece que não sofreu em toda a sua alma.
3. Demais. — Quando o sofrimento sensível atinge até a razão, então é considerado como sofrimento completo. O que não se deu com Cristo, que só sofreu uma propaixão, como o nota Jerônimo. Donde o dizer Dionísio que os sofrimentos que lhe foram infligidos ele os sofreu só pelos julgar. Logo, não parece que Cristo sofresse em toda a sua alma.
4. Demais. — O sofrimento causa a dor. Ora, o intelecto especulativo não é susceptível de dor: pois, o prazer nascido da contemplação não pode ser atingido por nenhuma dor, como o diz o Filósofo. Logo, parece que Cristo não sofreu em toda a sua alma.
Mas, em contrário, a Escritura diz, da pessoa de Cristo: A minha alma está repleta de males. O que aumenta a Glosa: Não de vícios, mas de dores, pelas quais a alma se compadece da carne ou dos males do povo que perecia. Ora, a sua alma não estaria repleta desses males se não tivesse sofrido em toda ela. Logo, Cristo sofreu em toda a sua alma.
SOLUÇÃO. — O todo é assim chamado relativamente às partes. Ora, partes da alma se chamam as suas potências. Assim, pois, dizemos que toda a alma sofre quando sofre na sua essência ou em todas as suas potências. Devemos, porém considerar que uma potência da alma pode sofrer de dois modos. De um modo, por sofrimento próprio, isto é, quando o sofrimento lhe é causado pelo seu objeto; tal o caso da visão que sofre por causa de uma excessiva visibilidade do objeto. De outro modo sofre uma potência pela paixão do sujeito no qual se ela funda; assim a vista sofre quando sofre o sentido do tato nos olhos, em que se funda a vista; por exemplo, quando os olhos são pungidos ou perturbados pelo calor. Donde, pois, devemos concluir que, se considerarmos toda a alma, em razão da sua essência, então é manifesto que toda a alma de Cristo sofreu. Pois, a alma está unida ao corpo na totalidade da sua essência, de modo que está toda em todo o corpo e toda em qualquer parte dele. Por onde, sofrendo o corpo e em disposição de ser separado da alma, toda a alma sofria. Se, porém, considerarmos toda a alma segundo todas as suas potências, então, tratando das paixões próprias das potências, ela sofria certo, em todas as suas potências inferiores. Pois, em cada uma das potências inferiores da alma, que tem por objeto coisas temporais, havia alguma causa da dor de Cristo, como do sobredito resulta. Mas, então, a razão superior de Cristo não sofria por parte do seu objeto, isto é, Deus, que não era causa de dor, mas de prazer e de gáudio, para a alma de Cristo. — Mas, segundo aquele aspecto da paixão, em virtude do qual dizemos que uma potência sofre por parte do seu objeto, todas as potências da alma de Cristo sorriam. Pois, todas as potências da alma se lhe radicam na essência, que é atingida pela paixão, quando sofre o corpo, de que a alma é o ato.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Embora o intelecto, enquanto determinada potência, não seja o ato do corpo, contudo ato do corpo é a essência da alma, na qual se radica a potência intelectiva, como estabelecemos na Primeira Parte.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A objeção colhe quanto à paixão resultante do objeto próprio; segundo a qual a razão superior de Cristo não sofreu.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Dizemos que a dor é um sofrimento perfeito, que perturba a alma quando a paixão da parte sensitiva chega até a desviar a razão da rectitude do seu ato, de modo que obedeça à paixão e não exerça o livre arbítrio sobre ela. Assim, porém, a paixão da parte sensitiva não atingiu a razão de Cristo: mas sim, no concernente ao sujeito, como se disse.
RESPOSTA À QUARTA. — O intelecto especulativo não é susceptível de dor nem de tristeza por parte do seu objeto, que é a verdade absolutamente considerada, cuja perfeição é. Pode, porém atingi-lo a dor ou a causa da dor, pelo modo já dito.
O sexto discute-se assim. — Parece que a dor da paixão de Cristo não foi maior que todas as outras dores.
1. — Pois, a dor do paciente aumenta conforme a gravidade e a duração do sofrimento. Ora, certos mártires padeceram sofrimentos mais graves e mais longos do que Cristo; assim, Lourenço, assado em grelhas, e Vicente cujas carnes foram laceradas por unhas de ferro. Logo, parece que a dor dos sofrimentos de Cristo não foi a máxima.
2. Demais. — A força do espírito mitiga a dor, a ponto de os estóicos ensinarem que a alma do sábio não é susceptível de tristeza. E Aristóteles diz que a virtude moral faz conservar o justo meio nas paixões. Ora, Cristo teve a virtude perfeitíssima da alma. Logo, parece que Cristo sofreu a mínima das dores.
3. Demais. — Quanto mais sensível é um paciente, tanto maior é a dor da paixão. Ora, a alma é mais sensível que o corpo, pois, pela alma é que o corpo sente. E também, Adão parece ter tido, no estado de inocência, um corpo mais sensível que o de Cristo, que assumiu o corpo humano com as suas deficiências naturais. Logo, parece que a dor da alma padecente no purgatório ou no inferno, ou ainda a dor de Adão, se alguma sofreu, teria sido maior que a dor da paixão de Cristo.
4. Demais. — A perda de um maior bem causa uma dor maior. Ora, o pecador, pecando, perde um maior bem que Cristo, sofrendo, porque a vida da graça é melhor que a da natureza humana. Demais, Cristo, que perdeu a vida, havendo de ressurgir três dias depois, parece que perdeu um bem menor do que aqueles que perdem a vida, havendo de permanecer mortos. Logo, parece que a dor de Cristo não foi a máxima das dores.
5. Demais. — A inocência do paciente diminui a dor da paixão. Ora, Cristo sofreu inocentemente, segundo a Escritura: Eu era como um manso cordeiro que élevado a ser vítima. .Logo, parece que a dor da paixão de Cristo não foi a máxima.
6. Demais. — Nada do que teve Cristo era supérfluo. Ora, uma dor mínima de Cristo bastaria para o fim da salvação humana, pois, teria uma virtude infinita, por causa da sua pessoa divina. Logo, foi supérfluo assumir a máxima das dores.
Mas, em contrário, a Escritura diz, da pessoa de Cristo: Atendei e vê de se há dor semelhante à minha dor.
SOLUÇÃO. — Como dissemos, quando tratamos das deficiências assumidas por Cristo, ele sofreu verdadeiramente a dor, na sua paixão. Tanto a sensível, causada pelos tormentos corpóreos, como a interior, causada pela apreensão do mal, que se chama tristeza. Ora, ambas essas dores foram máximas em Cristo, entre as dores da vida presente. O que se explica por quatro razões. Primeiro, pelas causas da dor. — Pois, a dor sensível teve como causa uma lesão corpórea cheia de acerbidade, tanto pela generalidade da paixão, de que já tratamos, como pelo gênero da mesma. Pois, a morte dos crucificados é acerbíssima, por serem trespassados em lugares nervosos e sobremaneira sensíveis, que são as mãos e os pés. E além disso, o peso mesmo do corpo pendente continuamente aumenta a dor; acrescentando-se ainda a diuturnidade dela, pois, os crucificados não morrem logo como os mortos pela espada. — Quanto à dor interna teve as causas seguintes. Primeiro todos os pecados do gênero humano, pelos quais satisfazia com os seus sofrimentos; por isso como que os avocou a si, dizendo: Os clamores dos meus pecados. Segundo e especialmente, a culpa dos judeus e dos outros, que lhe infligiram a morte; e sobretudo a dos discípulos, que se escandalizaram com a paixão de Cristo. Terceiro, ainda, a perda da vida do corpo, naturalmente horrível à natureza humana. Em segundo lugar, a grandeza da dor pode ser considerada relativamente à sensibilidade do paciente. — Assim, o seu corpo tinha a melhor das compleições; pois, fora formado milagrosamente por obra do Espírito Santo. Porque nada é mais perfeito que o produzido por milagre, como o nota S. João Crisóstomo, a propósito da água convertida em vinho por Cristo, nas bodas. Assim, o sentido do tato, que serve para perceber a dor, era em Cristo extremamente delicado. — Também a alma, nas suas potências interiores, apreendia com grande eficácia todas as causas de tristeza. Terceiro, a grandeza da dor de Cristo na sua paixão, pode ser considerada quanto à pureza da mesma dor. Pois, nos outros pacientes, mitiga-se a tristeza interior e também a dor externa, pela reflexão racional, causando uma certa derivação ou redundância das potências superiores para as inferiores. Oque não se deu na paixão de Cristo, pois. à cada uma das potências permitia agir dentro do que lhe era próprio, como diz Damasceno. Em quarto lugar, a grandeza da dor de Cristo pode ser considerada quanto ao fato de ser a sua paixão e a sua dor assumidas voluntariamente, com o fim de livrar o homem do pecado. Por isso, assumiu uma dor tão grande, que fosse proporcionada àgrandeza do fruto dela resultante. Assim, pois, de todas essas causas simultaneamente consideradas resulta claro que a dor de Cristo foi a máxima das dores.
DONDE A RESPOSTÀ ÀPRIMEIRA OBJEÇÃO. — A objeção colhe quanto a uma só das causas de sofrimento enumeradas, a saber, a lesão corpórea, causa da dor sensível, Mas, as outras causas aumentaram muito mais a dor de Cristo na sua paixão, como se disse.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A virtude moral não mitiga do mesmo modo a tristeza interior e ador sensível externa, Assim, a tristeza interior ela a diminui diretamente, estabelecendo nela a mediedade, como em matéria própria. Ao passo que a virtude moral constitui a mediedade nas paixões, como estabelecemos na Segunda Parte, introduzindo nelas não uma quantidade real, mas uma quantidade proporcional, de modo que a paixão não ultrapasse a regra racional. E como os estóicos reputavam a tristeza totalmente inútil, por isso criam que ela se divorcia totalmente da razão e, por consequência, deve ser totalmente evitada pelo sábio, Mas, na verdade das causas, há uma certa tristeza digna de louvor, como o prova Agostinho: é a procedente de um amor santo, como quando nos entristecemos dos pecados próprios ou dos alheios, e também é considerada como útil quando tem por fim satisfazer pelas pecados, segundo aquilo do Apóstolo: A tristeza, que é segundo Deus, produz para a salvação uma penitência estável. Por isso Cristo, a fim de satisfazer pelos pecados de todos os homens, assumiu uma tristeza máxima pela sua quantidade absoluta, mas que não ultrapassava a regra racional. - Mas quanto àdor exterior do sentido, a virtude moral não a diminui diretamente, porque essa dor não obedece àrazão, mas resulta da natureza do corpo. Diminui-a, porém indiretamente pela redundância das potências superiores para as inferiores. Oque não se deu com Cristo, como dissemos.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A dor da alma do padecente, separada, é própria do estado futuro de danação, que excede todos os males desta vida, como a glória dos Santos excede todos os bens da vida presente. Por isso, quando dizemos que a dor de Cristo foi máxima, não a comparamos com a dor da alma separada. - Quanto ao corpo de Adão, ele não podia sofrer se não tivesse pecado, tornando-se assim mortal e passível. E, sofrendo, padeceria menos que o corpo de Cristo, pelas razões referidas. — Donde também resulta que mesmo se, por impossível, considerássemos que Adão no estado de inocência sofreu, a sua dor teria sido menor que a de Cristo.
RESPOSTA À QUARTA. — Cristo não somente sofreu perdendo a vida do seu próprio corpo, mas também pelos pecados de todos os homens. Porque a dor de Cristo ultrapassou toda dor de qualquer paciente. Quer porque procedia de uma sabedoria e caridade maiores, que aumentam a dor do padecente; quer também porque sofreu simultaneamente por todos os pecados, segundo aquilo da Escritura: Verdadeiramente ele foi oque tomou sobre si as nossas fraquezas. — Mas a vida corporal de Cristo foi de tão grande dignidade, e, sobretudo, pela divindade que lhe estava unida, que sofreu mais, perdendo-a, mesmo momentaneamente, que qualquer outro homem perdendo a sua, por qualquer tempo que fosse. Donde o dizer o Filósofo, que o virtuoso tanto mais ama a sua vida, quanto mais a tem como melhor; e, contudo, a expõe pelo bem da virtude, E semelhantemente, Cristo, tendo uma vida amável por excelência, a expôs pelo bem da caridade, segundo aquilo da Escritura: Dei a minha amada alma em mãos de seus inimigos.
RESPOSTA À QUINTA. — A inocência do paciente diminui numericamente a dor da paixão; porque quando padece por culpa, sofre não só pela pena, mas também pela culpa; sendo inocente, porém, sofre só pela pena. Contudo a sua inocência lhe aumenta a dor, porque sabe que não merece o mal que lhe é infligido. E por isso são tanto mais repreensíveis os que não se compadecem dele, conforme a Escritura: O justo perece e não há quem considere no seu coração.
RESPOSTA À SEXTA. — Cristo quis liberar o gênero humano dos pecados, não só pelo seu poder, mas ainda por justiça. Por isso, não só levou em conta a grandeza do poder que tinha a sua dor, em virtude da divindade que lhe estava unida, mas também o quanto bastava essa dor pela sua natureza humana, para tão grande satisfação.
O quinto discute-se assim. Parece que Cristo sofreu todos os sofrimentos.
1. — Pois, diz Hilário: O Unigênito de Deus, para completar o sacrifício da sua morte, atestou ter consumado em si todos os sofrimentos do gênero humano, quando, inclinada a cabeça, rendeu o espírito. Logo, parece que sofreu todosos sofrimentos humanos.
2. Demais. — A Escritura diz: Eis aí está que o meu servo terá inteligência; ele será exaltado e elevado e ficará em alto grau sublimado; assim como pasmavam muitos à vista de ti, assim será sem glória o seu aspecto entre os varões e sua figura entre os filhos dos homens. Ora, Cristo foi exaltado por ter a totalidade da graça e da ciência, pelo que muitos pasmaram à vista dele, admirando-o. Logo, parece que teria sido sem glória, sofrendo todos os sofrimentos humanos.
3. Demais. — A Paixão de Cristo tinha por fim libertar o homem do pecado, como se disse. Ora, Cristo veio liberar os homens de todo gênero de pecados. Logo, devia sofrer todo gênero de sofrimentos.
Mas, em contrário, diz o Evangelho, que os soldados quebraram as pernas aoprimeiro eao outro que com ele fora crucificado; tendo vindo depois a Jesus, não lhe quebraram as pernas. Logo não sofreu todo o gênero de sofrimentos.
SOLUÇÃO. — Os sofrimentos humanos podem ser considerados à dupla luz. Primeiro, quanto à espécie. E então, não devia Cristo sofrer todos os sofrimentos; pois, muitas espécies de sofrimentos são contrárias entre si, tal a combustão pelo fogo e a submersão na água. Mas, agora tratamos dos sofrimentos de proveniência extrínseca; pois, os sofrimentos procedentes de causas externas, como as doenças do corpo, não devia ele sofrê-las, como dissemos. Mas, quanto ao gênero, sofreu todos os sofrimentos humanos. O que é susceptível de tríplice consideração. — Primeiro, quanto aos homens que lhe causaram sofrimentos. Pois, certos sofrimentos lhe foram infligidos pelos gentios e pelos judeus; por homens e por mulheres, como o mostram as criadas acusadoras de Pedro. Também recebeu sofrimentos dos príncipes, e de seus ministros, e do populacho, conforme a Escritura: Por que razão se embraveceram as nações e os povos meditaram coisas vãs? Os reis da terra se sublevaram e os príncipes se coligaram contra o Senhor e contra o seu Cristo. Sofreu também de seus discípulos e conhecidos; como de Judas, que o traiu e de Pedro, que o negou. — Segundo, o mesmo se conclui relativamente àquilo em que o homem pode sofrer. Assim, sofreu nos seus amigos, que o abandonaram; na sua reputação, pelas blasfêmias contra ele proferidas; na sua honra e glória, pelas irrisões e contumélias contra ele assacadas; nos bens, quando das suas próprias vestes foi espoliado; na alma, pela tristeza, pelo tédio e pelo temor; no corpo, pelos ferimentos e flagelações. — Em terceiro lugar, podemos considerá-las relativamente aos membros do corpo. Assim, Cristo sofreu, na cabeça, a coroa de pungentes espinhos; nas mãos e nos pés, a pregação dos cravos; na face bofetadas e cuspe; e em todo o corpo, flagelações. Sofreu também em todos os sentidos do corpo: no tato, quando flagelado e pregado com cravos; no gosto, quando lhe deram de beber fel e vinagre; no olfato, quando suspenso no patíbulo, num lugar fétido pelos cadáveres dos supliciados, chamado Calvário; no ouvido, ferido pelas vociferações dos que o blasfemavam e faziam dele irrisão; na vista, ao ver sua mãe e o discípulo a quem amava, chorando.
DONDE A RESPOSTA À PRIMIEIRA OBJEÇÃO. — As palavras citadas de Hilário devem entender-se quanto a todos os gêneros de sofrimentos, mas não quanto a todas as espécies deles.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A semelhança, no caso, se considera, não quanto ao número dos sofrimentos e das graças, mas quanto à grandeza de uns e de outras. Porque, assim como foi levantado acima dos outros nos dons das graças, assim foi abatido abaixo deles pela ignomínia da paixão.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Quanto à suficiência, um sofrimento mínimo de Cristo bastava para remir o gênero humano de todos os pecados. Mas, quanto à conveniência, foi suficiente que sofresse todos os gêneros de sofrimentos, como já se disse.
O quarto discute-se assim. — Parece que Cristo não devia ter sofrido na cruz.
1. — Pois, a verdade deve corresponder à figura. Ora, eram figuras de Cristo todos os sacrifícios do Antigo Testamento, nos quais se matavam animais com a espada, que eram depois queimados no fogo. Logo, parece que Cristo não devia ter sofrido na cruz, mas antes ser sacrificado pela espada ou no fogo.
2. Demais. — Damasceno diz, que Cristo não devia assumir sofrimentos degradantes. Ora a morte da cruz era considerada como degradante e ignominiosa por excelência; por isso diz a Escritura: Condenemo-Io a uma morte a mais infame. Logo, parece que Cristo não devia sofrer a morte da cruz.
3. Demais. — De Cristo diz o Evangelho: Bendito o que vem em nome do Senhor. Ora, a morte da Cruz era uma morte de maldição, segundo a Escritura: Maldito é de Deus aquele que está pendente de um lenho. Logo, parece que não foi conveniente que Cristo fosse crucificado.
Mas, em contrário, o Apóstolo: Feito obediente até a morte e morte de cruz.
SOLUÇÃO. — Era convenientíssimo que Cristo sofresse a morte da cruz. Primeiro, para dar o exemplo da virtude. Por isso diz Agostinho: A sabedoria de Deus assumiu o homem para nos dar o exemplo de uma vida reta. Ora, é próprio de uma vida reta não temer o que não deve ser temido. Há porém homens que, embora não temam a morte em si mesma, tem horror contudo de um determinado gênero de morte. Por isso, a fim de o homem, que vive retamente, não temer nenhum gênero de morte o Homem-Deus quis morrer ostensivamente na cruz; pois, dentre todos os gêneros de morte nenhum era mais execrável e temível que esse. Segundo, porque esse gênero de morte era o por excelência conveniente à satisfação pelo pecado dos nossos primeiros pais, que consistiu em tomarem do fruto da árvore, contra a ordem de Deus. Por isso era conveniente que Cristo, para satisfazer por esse pecado, consentisse ele próprio ser pregado no madeiro, quase para restituir o que Adão subtraíra, como o diz a Escritura: Paguei então oque não tinha roubado: Donde o dizer Agostinho: Adão desprezou o preceito, colhendo o pomo da árvore; mas tudo o que Adão perdeu Cristo recuperou na cruz. A terceira razão é que, como diz Crisóstomo. Cristo sofreu num madeiro elevado e não debaixo de um teto, a fim de purificar também o ar. Mas também a terra sentiu um benefício semelhante, purificada pelo sangue que corria gota a gota do lado do crucificado. E aquilo do Evangelho - Importa que seja levantado o Filho do Homem - diz: Por levantado entende que foi elevado para o alto; para que santificasse o ar quem havia santificado a terra, andando nela (Teofilacto). A quarta razão é que, morrendo no alto de um madeiro, preparou a nossa subida ao céu, como diz Crisóstomo (Atanásio). Por isso ele próprio o diz no Evangelho: Eu, quando for levantado da terra, todas as coisas atrairei a mim mesmo. A quinta razão é que isso convinha também à completa liberação de todo o gênero humano. Por isso diz S. Gregório Nisseno, que a figura da cruz, esgalhando-se, de um centro único, em quatro extremos opostos, significa o poder e a providência daquele que dela pende, espalhados por toda parte. E Crisóstomo também diz que Cristo morreu na cruz com os braços abertos, para com uma das mãos, atrair para si o povo fiel e, com a outra, os que constituem a gentilidade. A sexta razão é que esse gênero de morte designa diversas virtudes. E por isso diz Agostinho: Não escolheu em vão tal gênero de morte, a fim de que fosse o mestre da largura, do comprimento, da altura e da profundidade, de que fala o Apóstolo. Assim, a largura desse madeiro é representada pela travessa que nele está fixada — símbolo das boas obras, porque nela estão estendidos os braços. O comprimento vai do ápice do madeiro à terra e nele é que o crucificado de certo modo se apóia - símbolo da estabilidade e da perseverança atribuídas à longanimidade. A altura é representada pela parte do lenho que se eleva acima da travessa e em que foi presa a cabeça do crucificado — suprema expectativa dos que tem esperança perfeita. Enfim, a profundidade é representada pela parte do madeiro oculta na terra e donde parece elevar-se toda a cruz - sim bolo da profundidade da graça gratuita. E como ainda o nota Agostinho, o lenho onde estavam fixos os membros do crucificado era uma como cátedra donde o mestre ensinava. A sétima razão é que esse gênero de morte corresponde a várias figuras. Pois, como diz Agostinho, uma arca de madeira salvou o gênero humano do dilúvio das águas. Quando o povo de Deus fugia do Egito, Moisés dividiu o mar com uma vara, aniquilou o Faraó e remiu o povo de Deus. Essa mesma vara Moisés a mergulhou na água, tornando-a doce, de amarga que era. Ainda com essa vara fez jorrar da pedra espiritual uma água salutar. Para vencer Amalec, Moisés conservava as mãos estendidas ao longo da vara. E a lei de Deus estava encerrada na arca do Testamento, que julgavam de madeira. Assim, pois, o gênero humano era conduzido, como gradativamente, ao lenho da cruz.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O altar dos holocaustos, onde eram oferecidos os sacrifícios dos animais, era feito de madeira, como se lê na Escritura; e, assim, a verdade corresponde à figura. Mas não é necessário que a correspondência seja total, porque então já não seria semelhança, mas identidade, como diz Damasceno. - Contudo e especialmente como diz Crisóstomo Atanásio, não se lhe amputou a cabeça, como a João; nem foi serrado, como Isaias; para que, morto, conservasse integro o corpo e indivisível, a fim de não dar ocasião aos que querem dividir a Igreja. — E em lugar do fogo material estava, no holocausto de Cristo, o fogo da caridade.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Cristo não quis assumir sofrimentos degradantes, que implicassem falta de ciência ou de graça, ou ainda de virtude. Não porém os resultantes de injúrias externas; antes, como diz o Apóstolo, sofreu a cruz, desprezando a ignomínia.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz Agostinho, o pecado é maldito, e por consequência a morte e a mortalidade proveniente do pecado. Pois, a carne de Cristo era mortal, tendo a semelhança da carne de pecado. E por isso Moisés lhe chama maldito, como o Apóstolo lhe chama pecado, quando diz: Aquele que não havia conhecido pecado o fez pecado por nós, isto é, pela pena do pecado. Nem indica maior ódio da parte de Deus o ter predito Moisés que Cristo é maldito de Deus. Pois, se Deus não odiasse o pecado não teria mandado o seu Filho a tomar a morte sobre si e a destruí-la. É, portanto a mesma coisa proclamar que ele aceitou a maldição em nosso lugar e dizer que morreu por nós. Donde o dito do Apóstolo: Cristo nos remiu da maldição da lei, feito ele mesmo maldição por nós.
O terceiro discute-se assim. — Parece que havia outro modo mais conveniente da liberação humana do que pela paixão de Cristo.
1. — Pois, a natureza nas suas obras imita as obras divinas, como regulada e movida que é por Deus. Ora, a natureza não faz por dois meios o que pode fazer por um só. Logo, como Deus podia liberar o homem pela sua só vontade, parece não era conveniente que se acrescentasse a paixão de Cristo para a liberação do gênero humano.
2. Demais. — As obras da natureza se realizam de maneira mais conveniente que o que se faz por violência; porque a violência é uma como ruína ou destruição do que faz a natureza, segundo o Filósofo. Ora, a paixão de Cristo implicava a morte violenta. Logo, era mais conveniente que Cristo liberasse o homem morrendo de morte natural, do que pela paixão.
3. Demais. — É convenientíssimo que quem retém uma coisa, violenta e injustamente, seja despojado dela por um poder superior. Donde o dito da Escritura: Vós fostes vendidos por nada, e sem prata sereis resgatados. Ora, o diabo não tinha nenhum poder sobre o homem, a quem enganava pela fraude e a quem retinha, por uma como violência, na escravidão. Logo, parece que teria sido, mais conveniente que Cristo despojasse o diabo, em virtude do seu simples poder, do que pela sua paixão.
Mas, em contrário, diz Agostinho: Não havia outro meio mais conveniente de curar a miséria do que pela paixão de Cristo.
SOLUÇÃO. — Tanto um meio é mais conveniente para conseguir um fim, quanto mais ele faz concorrerem elementos conducentes ao fim. Ora, o ser o homem liberado pela paixão de Cristo foi causa de concorrerem muitos elementos conducentes à salvação do mesmo, além da liberação do pecado. — Assim, primeiro, desse modo o homem conhece quanto Deus o ama; o que o excita a amá-lo mais, e nisso consiste a perfeição da salvação humana. Donde o dizer o Apóstolo: Deus faz brilhar a sua caridade em nós porque ainda quando éramos pecadores, morreu Cristo por nós. — Segundo, porque por esse meio nos deu o exemplo da obediência, da humildade, da constância, da justiça e das demais virtudes reveladas na paixão de Cristo e que são necessárias à salvação humana. Por isso diz a Escritura: Cristo padeceu por nós, deixando-vos exemplo para que sigais as suas pisadas. — Terceiro, porque Cristo, com a sua paixão, não somente liberou o homem do pecado, mas ainda lhe mereceu a graça justificante e a glória da beatitude como a seguir se dirá. — Quarto, porque, assim, uma necessidade maior impôs ao homem conservar-se imune do pecado, segundo aquilo do Apóstolo: Porque vós fostes comprado por um grande preço; glorificai, pois, e trazei a Deus no vosso corpo. — Quinto, porque contribuiu para maior dignidade do homem, de modo que assim como fora vencido e enganado pelo diabo, assim também fosse ele mesmo quem vencesse o diabo; e assim como o homem mereceu a morte, assim também, morrendo, a vencesse a ela, conforme o dizer do Apóstolo: Graças a Deus, que nos deu a vitória, por Jesus Cristo. — Por isso foi mais conveniente que, pela paixão de Cristo fossemos liberados, do que pela só vontade de Deus.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Também a natureza, para produzir uma obra de modo mais conveniente, aplica vários meios para um mesmo fim; assim, dois olhos, para ver. E o mesmo faz em casos semelhantes.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz Crisóstomo, Cristo veio destruir não a sua própria morte, pois, sendo a vida não estava sujeito a morrer; mas a dos homens. Por isso não depôs o seu corpo por uma morte natural, mas quis sofrê-la infligida pelos outros homens. Pois, se no seu corpo tivesse adoecido e na presença de todos, morrido, seria incompreensível que quem veio curar as doenças alheias tivesse o seu próprio corpo sujeito a elas. E se, sem nenhuma doença, tivesse se despojado do corpo, para se mostrar em seguida, não lhe acreditariam quando falasse da sua ressurreição. Pois, como teria Cristo manifestado a vitória sobre a morte, se não tivesse mostrado, sofrendo-a na presença de todos, que a morte foi vencida pela incorrupção do corpo?
RESPOSTA À TERCEIRA. — Embora o diabo tivesse atacado o homem injustamente, contudo o homem fora, por causa do pecado, justamente entregue por Deus à escravidão do diabo. Por isso foi conveniente que, pela justiça, o homem fosse liberado da escravidão do diabo. Satisfazendo do Cristo por ele, com a sua paixão. - E isso também foi conveniente para vencer a soberba do diabo, inimigo da justiça e amante do poder: de modo que Cristo vencesse o diabo e liberasse o homem, não pelo só poder da divindade, mas também pela justificação e pela humilhação da paixão, como diz Agostinho.