Category: Santo Tomás de Aquino
O terceiro discute–se assim. – Parece que a oração não é um ato de religião.
1. – Pois, a religião, fazendo parte da justiça, tem na vontade o seu sujeito. Ora, a oração pertence à parte intelectiva, como dissemos. Logo, parece que a oração não é um ato de religião, mas, um dom do intelecto que nos faz elevar a mente para Deus.
2. Demais. – O ato de latria é imposto por uma necessidade de preceito. Ora, parece que a oração não é imposta por necessidade de preceito, mas procede meramente da vontade, pois, não é senão o pedido do que queremos. Logo, parece que a oração não é um ato de religião.
3. Demais. – Parece próprio da religião levar–nos a prestar mito e fazer cerimônias à natureza divina. Ora, a oração nada atribui a Deus, mas, antes, procura obter dele alguma causa. Logo, a oração não é um ato de religião.
Mas, em contrário, a Escritura: Suba direito a minha oração como incenso na tua presença. Ao que diz a Glosa: Com essa figura a lei antiga queria significar que o incenso era oferecido como um odor suave ao Senhor. Ora, isto é próprio da religião. Logo, a oração é um ato de religião.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, à religião é próprio prestar honra e reverência a Deus. Portanto, a ela é próprio tudo aquilo por meio do que reverenciamos a Deus, Ora, pela oração reverenciamos a Deus, porque nos submetemos a ele e confessamos, orando, que dele precisamos como do Autor dos nossos bens. Por onde, é manifesto que a oração é um ato de religião.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A vontade move para os seus fins as outras potências da alma, como dissemos. Logo, a religião, que se funda na vontade, ordena os atos das outras potências para reverenciarem a Deus. Ora, dentre todas as potências da alma, o intelecto é mais alto e mais próximo da vontade. Por onde, depois da devoção, que pertence à vontade, a oração, que pertence à parte intelectiva, é o principal entre os atos de religião, pelo qual esta move o intelecto para Deus.
RESPOSTA À SEGUNDA. – É de preceito não só pedirmos o que desejamos, mas também desejar retamente. Ora, desejar inclui–se no preceito da caridade; ao passo que, pedir, no da religião, que o Evangelho estabelece como preceito, quando diz: Pedi e recebereis.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Orando, o homem confia o seu espírito a Deus, a quem o sujeita em sjnal ele reverência e de certo modo lh'o apresenta, como está claro pelo lugar citado de Dionísio. Por onde, assim como a mente humana tem preeminência sobre os membros exteriores ou corporais ou sobre as cousas externas, que se aplicam ao serviço de Deus, assim também a oração tem preeminência sobre os outros atos de religião.
O segundo discute–se assim. – Parece que não é conveniente orar.
1. – Pois, parece necessária a oração para darmos a conhecer as nossas necessidades aquele a quem pedimos. Ora, como diz a Escritura, vosso Pai sabe que tendes necessidade de todas estas cousas. Logo, não é conveniente orar a Deus.
2. Demais. – A oração dobra o espírito, a quem oramos, a fazer o que lhe pedimos. Ora, o espírito de Deus é imutável e inflexível, conforme aquilo da Escritura: Mas o triunfador em Israel não perdoará e nem se dobrará pelo arrependimento, Logo, não é conveniente orarmos a Deus.
3. Demais. – É mais liberal dar a quem não pede do que a quem pede; pois, no dizer de Seneca, nada compramos mais raro do que aquilo que compramos pedindo. Ora, Deus é liberalíssimo. Logo, não parece conveniente orarmos a Deus.
Mas, em contrário, o Evangelho: Importa orar sempre e não cessar de o fazer.
SOLUÇÃO. – A respeito da oração três erros se cometeram. – Uns, ensinando que as cousas humanas não são regidas pela divina providência, consequentemente concluíam que é vão orar e de qualquer modo prestar culto a Deus. E desses diz a Escritura: Dissestes: Vão é o que serve a Deus. – A segunda opinião ensina que todas as cousas, mesmo as humanas, realizam–se necessariamente, quer pela imutabilidade da divina providência, quer pela necessidade imposta pelas estrelas, quer ainda, pela conexão das cousas. E estes também excluem a utilidade da oração. – A terceira opinião é a dos que admitem serem as cousas humanas regidas pela providência divina e que não se produzem necessariamente; mas dizem também que a disposição da providência divina é variável e pode mudar–se pelas orações e pelo mais que pertence ao culto divino. – Ora, todas essas opiniões já foram refutadas no Primeiro Livro. Por onde, devemos fundar a utilidade da oração de modo que nem imponhamos necessidade às cousas humanas sujeitas à divina providência, nem julguemos mutável a disposição divina.
Para evidenciá–lo devemos considerar, que a divina providência não só dispõe a realização dos efeitos, mas também as causas que os produzirão e a ordem em que hão de produzir–se. Ora, entre as outras causas também os atos humanos o são, de certos efeitos. Donde, hão de os homens praticar certos atos, não, para com eles mudarem a disposição divina, mas para produzirem determinados efeitos, de acordo com a ordem estabelecida por Deus. E o mesmo se dá com as causas naturais, passando também cousa semelhante com a oração. Pois, não oramos para mudarmos a disposição divina, mas, para impetrarmos o que Deus dispôs que se deveria cumprir pela oração; a saber, que os homens, pedindo, mereçam receber o que o Deus Onipotente determino–o, nos séculos eternos, haver de nos dar, como diz Gregório.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Não é necessário fazermos oração a Deus para lhe manifestarmos as nossas necessidades; mas, para que nós mesmos consideremos que, nelas, devemos recorrer ao auxílio divino.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Como se disse, a nossa oração não visa mudar a disposição divina, mas obter, pelas nossas preces, o que Deus determinou.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Deus nos faz muitas cousas, mesmo sem lh'as pedirmos, pela sua liberalidade. Mas é para nossa utilidade que quer nos fazer outras, a nosso pedido; isto é, para termos confiança de recorrer a ele e o reconhecermos autor dos nossos bens. Donde o dizer Crisóstomo: Considera quanta felicidade te foi concedida, quanta glória atribuída: confabularmos com Deus mas nossas orações; entrarmos em colóquio com Cristo: pedir o que queres, o que desejas.
O primeiro discute–se assim. – Parece que a oração é um ato de virtude apetitiva.
1. – Pois, a oração é para ser ouvida. Ora, é o desejo que é ouvido de Deus, segundo a Escritura: O Senhor ouviu o desejo dos pobres. Logo, a oração é um desejo. Ora, o desejo é um ato da virtude apetitiva. Portanto, também a oração.
2. Demais. – Dionísio diz: Antes de tudo é útil começar pela oração como a que nos dá e une a Deus. Ora, é a união, pertencente à potência apetitiva, que produz o amor. Logo, a oração pertence à potência apetitiva.
3. Demais. – O Filósofo diz que são duas as operações da parte inte1ectiva. A primeira é a inteligência dos indivisíveis, pela qual apreendemos a qualidade das cousas. A segunda, a composição e a divisão, pelas quais apreendemos o que é. A essas partes se acrescenta uma terceira, o raciocínio, que procede do conhecido para o desconhecido. Ora, a oração não se reduz a nenhuma dessas operações. Logo, não é ato da virtude intelectiva, mas, da apetitiva.
Mas, em contrário, diz Isidoro, que orar é o mesmo que dizer. Ora, dizer é ato próprio do intelecto. Logo, orar não é ato da potência apetitiva, mas, da intelectiva.
SOLUÇÃO. – Segundo Cassiodoro, oração significa como que razão vocal. Ora, a razão especulativa e a prática diferem em que aquela só apreende as cousas: e esta, não só as apreende, mas também as causa. Mas, de dois modos pode uma cousa ser causa de outra. De modo perfeito, quando impõe necessidade, o que se dá quando o efeito totalmente depende da ação da causa. De modo imperfeito, por simples disposição: isto é, quando o efeito não depende totalmente da ação da causa. Assim, pois, também a razão pode ser de dois modos; causa. De um, impondo necessidade; e deste modo compete–lhe não só imperar sobre as potências inferiores e os membros do corpo, mas também sobre os homens que lhe estão sujeitos, ordenando–lhes. De outro modo, influindo e de certa maneira dispondo; assim, quando pede lhe façam alguma cousa os que não lhe estão sujeitos, por serem iguais ou superiores. Ora, ambos esses modos de proceder, isto é, imperar e pedir ou deprecar implicam uma certa ordenação, por dispormos que uma cousa seja feita por meio de outra. O que portanto pertence à razão, a que é próprio ordenar; e por isso diz o Filósofo, que a razão nós exorta ao melhor. Ora, é neste sentido que agora tratamos da oração, enquanto implica uma certa deprecação ou petição, conforme às palavras de Agostinho dizendo, que a oração é um certo pedido; e às de Damasceno, ensinando que a oração consiste em pedirmos a Deus o que convém. Por onde é claro, que a oração, no caso vertente, é um ato de razão.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Diz–se que Deus ouve o desejo dos pobres, quer por ser o desejo a causa do pedido, sendo este de certo modo o intérprete daquele; quer para mostrar a rapidez da audição, pois, Deus já ouve o que ainda constitui um simples desejo dos pobres, antes de eles o formularem em oração, conforme àquilo da Escritura: E acontecerá que antes que eles bradem eu os escutarei.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Como já dissemos, a vontade move a razão para os seus fins. Por onde, nada impede que, movido pela vontade, o ato da razão tenda para o fim da caridade, que é a união com Deus. Ora, a oração tende para Deus, quase movida pela vontade da caridade, de dois modos. De um modo, quanto ao que é pedido, pois, o que principalmente devemos pedir na oração é a nossa união com Deus, segundo a Escritura: Uma só cousa pedi ao Senhor; esta tornarei a pedir: que habite eu na casa do Senhor todos os dias da minha vida. De outro, quanto ao que pede, que deve aproximar–se daquele a quem pede, ou localmente, tratando–se de um homem, ou espiritualmente, de Deus. Por onde, diz no mesmo lugar Dionísio, que quando invocamos a Deus nas nossas orações, achamo–nos presentes a ele, com o espírito descoberto. E, neste sentido também Damasceno diz que a oração é a ascenção do espirito para Deus.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Os três atos referidos pertencem à razão especulativa. Mas, ulteriormente, à razão prática pertence causar pelo império ou pela petição, como se disse.
O quarto discute–se assim. – Parece que a alegria não é efeito da devoção.
1. – Pois, como se disse, a paixão de Cristo excita soberanamente a devoção. Ora, de a considerarmos resulta em nossa alma uma certa aflição, conforme àquilo da Escritura: Lembra–te da, minha pobreza, do absintio e do fel, que são próprios da paixão. E depois acrescenta: Eu me lembrarei muito bem disto e a minha alma se definhará dentro de mim. Logo, a alegria ou o gáudio não é efeito da devoção.
2. Demais. – A devoção consiste principalmente no sacrifício interior. Ora, a Escritura diz: Sacrifício; para Deus é o espírito atribulado. Logo, a aflição é, mais do que a alegria ou o gáudio, efeito da devoção.
3. Demais. – Gregório Nisseno diz: Assim como o riso procede da alegria, assim, as lágrimas e os gemidos são sinais de tristeza. Ora, a certos a devoção os leva a verter lágrimas. Logo, a alegria ou o gáudio não é efeito da devoção.
Mas, em contrário, uma coleta diz: Os que se mortificam com o jejum, por devoção, a esses também a devoção santa os alegrará.
SOLUÇÃO. – A devoção, essencial e principalmente, causa a alegria espiritual da alma; mas, por consequência e por acidente, causa a tristeza. Pois, dissemos que a devoção procede de uma dupla consideração. – Principalmente, procede da consideração da divina bondade; pois, esta consideração constitui quase o termo da vontade que se entrega a Deus. E dela resulta essencialmente o prazer, conforme aquilo da escritura: Lembrei–me de Deus e me deleitei. Mas, por acidente, essa consideração causa uma certa tristeza naqueles que ainda não gozam plenamente de Deus, segundo a Escritura: A minha alma está ardendo de sede por Deus, fonte viva. E a seguir acrescenta: As minhas lágrimas foram o meu pão, etc. Em segundo lugar, a devoção é causada, como dissemos, pela consideração dos nossos próprios defeitos; pois, esta constitui o termo de que nos afastamos pelo movimento da vontade devota, de modo que a vontade não se afirme independente, mas, sujeita a Deus. E esta consideração se comporta inversamente à primeira: pois, por si mesma é de natureza a causar a tristeza, porque nos faz revolver na mente os nossos próprios defeitos; mas, por acidente, isto é, pela esperança no socorro divino, causa a alegria. – E fica assim, claro que da devoção resulta, primária e essencialmente, o prazer, e, secundária e acidentalmente, a tristeza que conduz a Deus.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Na meditação da paixão de Cristo há algo de contristador, a saber, os defeitos humanos, para delir os quais Cristo teve que sofrer. Mas também há o que nos alegra, a saber, a benignidade de Deus para conosco, que nos livrou de tão grandes males.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O espírito que, por um lado, sofre tribulação com os defeitos da vida presente, por outro se compraz na meditação da bondade divina e na esperança no divino auxílio.
RESPOSTA À TERCEIRA. – As lágrimas brotam não só da tristeza, mas também de uma certa ternura do afeto, sobretudo quando consideramos algo de deleitável que vai, contudo, de mistura com uma certa tristeza. Assim, costumam os homens chorar, movidos de piedoso afeto, quando recobram os filhos ou amigos caros, que julgavam perdidos. E deste modo é que as lágrimas brotam da devoção.
O segundo discute–se assim. – Parece que a devoção não é um ato de religião.
1. – Pois, a devoção, como se disse, consiste em nos darmos a Deus. Ora, isto se realiza, sobretudo pela caridade; pois, como diz Dionísio, o amor divino produz o êxtase, não consentindo que os amantes se pertençam a si mesmos, mas aos seres que amam, Logo, a devoção é mais um ato de caridade que de religião,
2. Demais. – A caridade tem precedência sobre a religião. Ora, parece que a devoção tem precedência sobre a caridade; pois, na Escritura, a caridade é simbolizada pelo fogo; e a devoção, pela gordura, que é a matéria do fogo. Logo, a devoção não é um ato de religião.
3. Demais. – Pela religião o homem se ordena só para Deus, como se disse. Ora, também há devoção para com os homens; assim, dizemos que uns têm devoção para com certos varões santos; e também, que os escravos são devotados aos seus senhores. E neste sentido Leão Papa diz que os Judeus, quase devotados às leis romanas, exclamaram: Não temos outro rei senão César. Logo, a devoção, não é ato de religião.
Mas, em contrário, devoção deriva de devotar se, como se disse. Ora, o voto é um ato de religião. Logo, também a devoção.
SOLUÇÃO. – Pela mesma virtude queremos fazer um certo ato e temos a vontade pronta para fazê–lo, porque ambos esses atos tem o mesmo objeto. Por isso diz o Filósofo: a justiça faz os homens quererem e praticarem atos justos. Ora, é manifesto que propriamente à religião pertence fazer o que respeita ao culto ou serviço divino, como do sobredito se colhe. Portanto também a ela pertence tornar–nos a vontade pronta para executar tais atos, o que é ser devoto. Por onde, é claro que a devoção é um ato de religião.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A caridade pertence imediatamente levar o homem a se dar a Deus, Entregando–se–lhe por espírito de união. Mas, o darmo–nos a Deus para certas obras do culto divino é imediatamente próprio da religião, e Imediatamente, da caridade, que é o princípio da religião.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A gordura corporal gera–se pelo calor natural, que digere, e conserva esse próprio calor, como sua nutrição. Semelhantemente, a caridade por um lado, causa a devoção tornando–nos prontos para servir aos amigos por amor; e por outro, nutre–se da devoção, assim como qualquer amizade conserva–se e aumenta pelo exercício dos atos de amizade e pelo meditar neles.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A devoção que temos para com os santos de Deus, mortos ou vivos, não acabei neles, mas chega até Deus, pelo venerarmos nos seus ministros. Ora, a devoção que atribuímos aos escravos para com o senhor temporal é de outra natureza; assim como servir aos senhores temporais difere de servir a Deus.
O quinto discute–se assim. – Parece que a religião é uma virtude teologal.
1 – Pois, como diz Agostinho, adoramos a Deus pela fé, pela esperança e pela caridade, que são virtudes teologais. Ora, cultuar a Deus é próprio da religião. Logo, a religião é uma virtude teologal.
2. Demais. – Chama–se virtude teologal a que tem Deus por objeto. Ora, a religião tem Deus por objeto porque só a ele se ordena, como se disse. Logo, a religião é uma virtude teologal.
3. Demais. – Toda virtude ou é teologal ou intelectual ou moral, como do sobredito resulta, Ora, é claro que a religião não é uma virtude intelectual, porque a sua perfeição não depende da consideração da verdade. E não é também uma virtude moral, a que é próprio ser um meio termo entre o excesso e o defeito; pois, ninguém pode adorar a Deus excessivamente, conforme aquilo da Escritura: Bendizendo–o, exaltai ao Senhor quanto podeis pois, é superior a todo louvor. Logo, conclui–se que é uma virtude teologal.
Mas, em contrário, é considerada como parte da justiça, que é uma virtude moral.
SOLUÇÃO. – Como já dissemos a religião é a que nos leva a prestar a Deus o culto devido. Por isso, dois elementos nela se consideram. Um o que ela presta, a saber, o culto, que lhe constitui a matéria e o objeto. O outro, o a quem o culto é prestado, que é Deus. Não que os atos com os quais adoramos a Deus o atinjam, como seu objeto próprio, do mesmo modo pelo qual, crendo nele, o atingimos como tal; pois, como já dissemos, Deus é o objeto da fé, não só enquanto cremos Deus, mas enquanto cremos a Deus. Ora, quando prestamos o culto devido a Deus, praticamos para o reverenciar certos atos com que o cultuamos, como a oferta de sacrifícios e outros semelhantes. Por onde, é claro, que Deus não constitui a matéria ou o objeto da virtude de religião, mas o fim. Portanto, a religião não é uma virtude teologal, cujo objeto fosse o fim último, mas, uma virtude moral, cujo objeto são os meios conducentes a esse fim:
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A potência ou virtude que obra em vista de um fim, move, pelo império, a potência ou virtude que obra o que se ordena para esse fim. Ora, as virtudes teologais, a saber, a fé, a esperança e a caridade, buscam pelos seus atos a Deus, como objeto próprio. Por isso, pelo seu império, causam o ato de religião, cujos atos se ordenam para Deus. Donde o dizer Agostinho, que adoramos a Deus pela fé, pela esperança e pela caridade.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A religião ordena o homem para Deus, não como para o objeto, mas, como para o fim.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A religião, fazendo parte da justiça, não é virtude teologal, nem intelectual, mas, moral. E o seu meio termo é considerado, não como entre paixões, mas, por uma certa igualdade, relativa aos atos referentes a Deus, Essa igualdade porém de que falo não é absoluta, porque não podemos fazer para Deus quanto lhe devemos; mas, depende de uma certa consideração da capacidade humana e da aceitação de Deus. Quanto ao que respeita ao culto divino, pode haver excesso, não pela circunstância da quantidade, mas, por outras circunstâncias. Por exemplo, se prestarmos o culto divino a quem ou quando não o devemos, ou conforme outras circunstâncias, indevidamente.
O quarto discute–se assim. – Parece que a religião não é uma virtude especial distinta das outras.
1 – Pois, diz Agostinho: Verdadeiro sacrifício é toda obra que praticamos para nos unirmos com Deus por uma sociedade santa. Ora, o sacrifício pertence à religião. Logo, toda obra de virtude pertence à religião. E, assim, não é esta uma virtude especial.
2. Demais. – O Apóstolo diz: Fazei tudo para a glória de Deus. Ora, à religião pertence praticar certo, atos para reverenciar a Deus, como já se disse. Logo, a religião não é uma virtude especial.
3. Demais. – A caridade com que amamos a Deus não é virtude distinta da com que amamos o próximo. Ora, como diz Aristóteles, ser honrado é quase o mesmo que ser amado. Logo, a religião com que honramos a Deus não é uma virtude especialmente distinta do respeito, dulia ou piedade com que honramos o próximo. Portanto, não é uma virtude especial.
Mas, em contrário, ela é considerada como parte da justiça, distinta das outras partes desta.
SOLUÇÃO. – Ordenando–se a virtude para o bem, a uma noção especial do, bem há de necessariamente corresponder uma virtude especial. Ora, o bem a que a religião se ordena é prestar a Deus a honra devida. Mas, a honra é devida a alguém, em razão da sua excelência, Ora, Deus, sobrepujando todas as cousas infinitamente por uma superioridade omnimoda, tem uma excelência singular. Por onde, é–lhe devida uma honra especial, assim como, nas cousas humanas, vemos que às excelências diversas elas pessoas é devida uma honra especial – uma ao pai, outra ao rei e assim por diante. Portanto, é manifesto que a religião é uma virtude especial.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Toda obra virtuosa é considerada sacrifício enquanto ordenada a reverenciar a Deus. Por isso não se conclui daí que a religião seja uma virtude especial, mas, que impera sobre todas as outras virtudes, como se disse.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Todos os atos, enquanto feitos para a glória de Deus, pertencem à religião, não como elícitos dela, mas como imperados. Ao contrário, pertencem à religião, como atos dela eleitos, os que especificamente visam reverenciar a Deus.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O objeto do amor é o bem, ao passo que o objeto da honra ou da reverência é alguma excelência. Ora, é a bondade de Deus que se comunica às criaturas e não, a excelência dessa bondade. Por onde, a caridade, com que amamos a Deus, não é virtude distinta ela com que amamos ao próximo. Ao passo que a religião, com que honramos a Deus, distingue–se elas virtudes com que honramos o próximo.
O terceiro discute–se assim. – Parece que a religião não é uma só virtude.
1 – Pois, pela religião nós nos ordenamos para Deus, como se disse. Ora, devemos admitir três Pessoas em Deus; e além disso muitos atributos que, ao menos racionalmente, diferem entre si. Ora, as noções diversas do objeto bastam para diversificar as virtudes, como do sobredito se colhe. Logo, a religião não é uma só virtude.
2. Demais. – Parece que a cada virtude corresponde um ato, pois, os hábitos se distinguem pelos atos, Ora, muitos são os atos da religião, como cultuar e servir, devotar–se, orar, sacrificar e muitos outros. Logo, a religião não é uma só virtude.
3. Demais. – A adoração pertence à religião. Ora, por uma razão adoramos as imagens e por outra, a Deus. Logo, como noções diversas distinguem as virtudes, parece que a religião não é uma só virtude.
Mas, em contrário, a Escritura: Um Deus, uma fé. Ora, a verdadeira religião proclama a sua fé em um só Deus. Logo, a religião é uma só virtude.
SOLUÇÃO. – Como se disse os hábitos se distinguem pelas noções diversas do objeto. Ora, à religião pertence prestar reverência ao Deus único, fundada numa só noção, isto é, enquanto ele é o primeiro princípio da criação e do governo das cousas. Donde o dizer a Escritura: Se eu sou vosso pai, onde está minha honra? Pois, é próprio do pai produzir e governar. Logo, é manifesto que a religião é uma só virtude.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – As três Pessoas divinas são um só princípio da criação e do governo das cousas : por isso uma só religião lhes presta submissão. Ora, as ideias diversas dos atributos concorrem para formar a noção do primeiro princípio; porque Deus produz todas as coisas e as governa pela sabedoria, pela vontade e pelo poder da sua bondade. Logo, a religião é uma só virtude.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Pelo mesmo ato o homem serve a Deus e o cultua; pois, o culto respeita à excelência divina, a quem é devida a reverência; ao passo que a servitude respeita à sujeição do homem que, pela sua condição, está obrigado a prestar reverência a Deus. E ao culto e à servitude pertencem todos os atos atribuídos à religião; porque por todo o homem proclama a divina excelência e a sua sujeição a Deus, quer oferecendo–lhe alguma coisa, quer também, considerando–se coisa de Deus.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Não prestamos o culto de religião às imagens consideradas em si mesmas, como coisas: mas, enquanto conducentes ao Deus incarnado. Ora, o culto pela imagem, como tal, não finda nela, mas, tende para o ser que ela representa. Logo, prestar o culto de religião às imagens de Cristo não diversifica a ideia de latria nem a virtude de religião.
O segundo discute–se assim. – Parece que a religião não é uma virtude.
1 – Pois, parece que à religião pertence prestar reverência a Deus. Ora, reverenciar é ato de temor, que é um dom, como do sobredito resulta. Logo, a religião não é uma virtude, mas um dom.
2. Demais. – Toda virtude consiste na vontade livre, sendo por isso chamada hábito eletivo ou voluntário. Ora, corno se disse, à religião pertence a latria, que implica uma certa servitude. Logo, a religião não é uma virtude.
3. Demais. – Como diz Aristóteles, nós temos por natureza a aptidão para a virtude: por onde, o que respeita às virtudes constitui ditame da razão natural. Ora, à religião pertence realizar as cerimônias próprias à natureza divina. Mas, o que respeita às cerimônias, não constituindo ditame da razão natural, como já se disse, conclui–se que a religião não é uma virtude.
Mas, em contrário, a religião está enumerada entre ás outras virtudes como resultado que já foi dito.
SOLUÇÃO. – Como já se disse a virtude torna bom quem a tem e boa a sua obra. Logo, é necessário admitir que todo ato bom pertence à virtude. Ora, é manifesto, que pagar o devido é obra por natureza boa; porque, quem o faz observa a ordem devida para com aquele a quem deve quase como convenientemente ordenado para ele. Ora, a ordem, como o modo e a espécie, implica à noção de bem, conforme está claro em Agostinho. Logo, pertencendo à religião prestar as honras devidas a alguém, que é Deus, é manifesto que ela é uma virtude.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Reverenciar a Deus é um ato do dom do temor. Ora, à religião pertence praticar certos atos para reverenciar a Deus. Donde não se segue que a religião seja o mesmo que o dom do temor, mas, que se ordena para Ele como para algo de mais principal; pois, os, dons são mais principais que as virtudes morais, como já se estabeleceu.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Também o servo pode pagar voluntariamente ao senhor o que lhe deve; e assim faz da necessidade, virtude, pagando de livre vontade o que deve. E, do mesmo modo, servir a Deus, como devemos, pode ser ato de virtude, enquanto que voluntariamente o fazemos.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O ditame da razão natural exige que o homem faça certos atos para reverenciar a Deus. Mas, não exige o ditame da lei natural, senão que é instituição de direito divino ou humano, que faça determinadamente tais cousas ou tais outras.
O primeiro discute–se assim. – Parece que a religião não ordena o homem só para Deus.
1. – Pois diz a Escritura: A religião pura e sem mácula aos olhos de Deus e nosso Pai consiste nisto: Em visitar os órfãos e as viúvas nas suas aflições, e em se conservar cada um isento da corrupção deste século. Ora, visitar viúvas e órfãos supõe relação com o próximo; e o dito – conservar–se cada uni a si isento da corrupção deste século – implica em ordenar–se o homem para si mesmo. Logo, a religião não tem por fim só ordenar–nos para Deus.
2. Demais. – Agostinho diz: Pelo costume latino de falar, não só dos imperitos, mas também dos muito doutos, disse que a religião deve manifestar–se quando se trata do parentesco e da afinidade humana e de quaisquer necessidades. Por isso, não se evita a ambiguidade desse vocábulo, quando, ao se tratar do culto à divindade, discute–se a questão de saber se confiadamente podemos falar em religião só em se tratando do culto a Deus. Logo, a religião não se ordena só para Deus, mas também, para os próximos.
3. Demais. – Parece que à religião pertencem três latrias, pois, latria se interpreta como servidão, no dizer de Agostinho. Ora, servir nós o devemos não só a Deus mas também aos próximos, conforme àquilo da Escritura: Servi–vos uns aos outros pela caridade do Espírito. Logo, a religião importa em nos ordenarmos também para o próximo.
4. Demais. – À religião pertence o culto. Ora, diz–se que o homem presta culto não só a Deus, mas, também ao próximo, segundo àquilo de Catão: Cultua os pais. Logo, a religião também nos ordena para o próximo e não só para Deus.
5. Demais. – Todos os que vivem no estado de graça sujeitam–se voluntariamente a Deus. Ora, nem todos os que vivem nesse estado se chamam religiosos; mas, só aqueles que por certos votos se obrigam a certas observâncias e a obedecer a certos homens. Logo, parece que a religião não importa uma relação de sujeição do homem a Deus.
Mas, em contrário, Túlio diz, que a religião presta culto e realiza cerimônias à natureza divina suprema.
SOLUÇÃO. – Como diz Isidoro, o religioso tira a sua denominação, na dizer de Cícero, de reler, porque repassa no espirito, e como que relê as cousas pertencentes ao culto divino. E assim, a religião deriva a sua designação de reler as cousas pertencentes ao culto divino, pois, tais cousas devem ser frequentemente revolvidas no espírito conforme aquilo da Escritura: Traze–me no pensamento em lodos os teus caminhos, – Embora também se possa entender que a religião é assim chamada, porque devemos reeleger a Deus que perdemos pela nossa negligência, como diz Agostinho; – ou podemos ainda entende–la como derivada de religar; donde o dizer Agostinho: A religião nos religue ao Deus único, e onipotente. Quer porém a religião seja assim chamada por causa da frequente lição; quer pela reeleição do que negligentemente perdemos, quer pela religação, ela propriamente importa em nos ordenarmos para Deus. Pois, é o ser ao qual principalmente nos devemos ligar, como ao princípio ineficiente; a quem a nossa eleição também deve assiduamente dirigir–se, como ao último fim; e a quem, perdendo pela nossa pecaminosa negligência, devemos recuperar pela crença e protestando a nossa fé.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A religião implica duas espécies de atos. Uns próprios, imediatos e ilícitos dela, como sacrificar, adorar e outros semelhantes, pelos quais o homem se ordena só para Deus. Outros atos porém ela os produz mediante as virtudes sobre que impera, ordenando–os à divina reverência. Pois, a potência de que depende o fim impera sobre aquelas de que dependem os meios. E, sendo assim, considera–se como ato de religião, a modo de império, visitar os órfãos e as viúvas nas suas aflições, que é um ato elícito da misericórdia. Conservar–se cada um a si isento da corrupção deste século, é, como imperado, ato de religião; mas, como ato elícito, pertence à temperança ou a outra virtude semelhante.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A religião pode significar, em sentido lato, os atos referentes ao parentesco humano; mas não quando tomada em sentido próprio. Por isso Agostinho, pouco antes das palavras aduzidas, tinha dito: A religião, mais distintamente, parece significar não qualquer culto, mas, o de Deus.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Sendo o servo assim chamado pela dependência, que supõe, do senhor, necessariamente, onde existe o domínio, na sua noção própria e especial, há de também existir, na sua noção própria e especial, a servitude. Ora, é manifesto que o domínio convém a Deus, por uma noção própria e singular, pois, foi ele quem fez tudo e tem sobre todas as causas o sumo principado. Logo, é–lhe devida a servitude, na sua acepção própria, que os gregos designam com o nome de latria e que, portanto, pertence propriamente à religião.
RESPOSTA À QUARTA. – Diz–se que cultuamos os homens, que frequentamos, pela honorificiência, pela recordação ou pela presença. E também se diz que cultuamos certas causas que nos estão sujeitas; assim, os agricultores tiram a sua denominação do facto de cultivarem os campos; e chamam–se íncolas por cultivarem os lugares que habitam. Ora, sendo devida a Deus honra especial, como ao principio primeiro de todas as cousas, é lhe também devido um culto, na sua noção especial, chamado em grego eusébeia, ou theosébeia, como está claro em Agostinho.
RESPOSTA À QUINTA. – Embora em geral possam chamar–se religiosos todos os que cultuam a Deus, contudo, em especial, religiosos se chamam os que dedicam toda a vida ao culto divino, apartados dos negócios mundanos. Assim como também se chamam contemplativos, não os que contemplam, mas os que aplicam toda a vida à contemplação. Ora, esses tais não se sujeitam ao homem por causa do homem, mas, por causa de Deus, conforme aquilo do Apóstolo: Vós me recebestes como a um anjo de Deus, como a Jesus Cristo.