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Category: Gustavo CorçãoConteúdo sindicalizado

Deus marcou encontro conosco

     

O texto de Gustavo Corção que publicamos aqui é parte de um ciclo de conferências realizadas em Belo Horizonte na década de 1950. Apesar de não estar completo, não deixa de ser um exemplar importante das atividades do grande escritor católico, numa época em que Corção era requisitado para constantes palestras, entrevistas e artigos. Depois o mundo girou, os polos foram deslocados, os homens tornaram-se cúmplices da Revolução num mundo evolutivo e estagnado no nada. Já não lhes interessava a firmeza da verdade e da fé que Gustavo Corção guardou e ensinou até a morte.

Editora Permanência

 

 

Sobre Lições de Abismo

[Com satisfação publicamos um escrito inédito de Gustavo Corção sobre o seu romance Lições de Abismo. O texto era na verdade uma carta enviada à escritora Raquel de Queiroz e a reproduzimos pela primeira vez na Revista Permanência 265]. 

 

D. Raquel de Queiroz,

Li com enorme interesse a sua nota sobre o meu livro. Vou mais longe, confesso que li com sofreguidão. A senhora que já teve seus livros me entenderá.  Digam os outros que é vaidade nossa, mas não é; ao contrário, é talvez o melhor de nós, o mais puro de nós, essa avidez pela confirmação daquilo que escrevemos. Será no fundo vaidade, se quiserem, mas uma pobre vaidade, ou uma vaidade de pobre.

Aquele livro, quando o soltei, deu-me mais insônias do que nos dias de trabalho. Escrevera-o com paixão, dias e dias, noites e noites. Andava com ele em mim, comigo nele. Juntara, como num cadinho, a escória de todo um passado fantástico, meio vivido e meio sonhado. Fundira o grosso minério. Cinzelara as pepitas, os lingotes, as barras. E agora, apesar de todas as reprises, da revisão esticada, da refusão dos caprichos ingratos, dos cortes, e finalmente da ortografia — porque a minha nunca se depurou dum hibridismo em que as letras da adolescência se misturam aos acentos circunflexos da velhice — apesar de todo esse nervoso apego eu tinha de largá-lo, como se larga o filho completo e maior. (Continue a ler)

Anarquismo e progressismo

Gustavo Corção

A crise de nosso tempo poderia ter este título que encerra uma grotesca contradição, e que tem seu tipo representativo mais cômico nos descendentes de Bakunin que começaram na Espanha a infiltração e a perseguição religiosa antes dos comunistas marxistas. Romanticamente se apresentavam como militantes de um mundo novo munidos de uma pistola na mão direita e da enciclopédia na esquerda. O programa era sucinto: beber o sangue dos últimos padres na cabeça craniana do último dos reis.

Lembrando a alta que os títulos dos revolucionários tiveram na convulsão de 1789, que nos foi inculcada como feito de glória universal, seria melhor, naquele retrato do herói anarquista, trocar a pistola pela guilhotina, mas a imagem que já me parecia insustentável com a enciclopédia na mão esquerda, fica decididamente inimaginável se na direita quisermos colocar a aparatosa guilhotina.

Mas, sob o ponto de vista do valor simbólico, insisto na guilhotina, e quem quiser se apegar à figura romântica desenhe na imaginação um Robot gigantesco portando na mão direita uma guilhotina, e na esquerda a Britânica ou a Barsa. E insisto na guilhotina porque o supremo ideal do anarquista é a decapitação, e não a morte qualquer produzida por uma bala nas partes baixas, ou nas obras mortas do corpo humano. Não foi por mero acaso que nos primórdios da Revolução Francesa o doutor Guillotin inventou a guilhotina, e até submeteu-a à apreciação do rei Luis XVI que tinha pendores para a mecânica e para a serralheria.

Não sei se é apócrifa a anedota; mas a Guilhotina tornou-se uma sólida realidade. E tornou-se o símbolo da democracia liberal que contesta o princípio da autoridade em nome de “virtudes cristãs enlouquecidas”. Autoridade está para a cabeça como a idéia para a imagem ou para o símbolo. Chefe quer dizer “pessoa investida de autoridade”, e quer dizer cabeça. Em francês a primeira e direta significação do termo é a de cabeça: “Le chef de saint Jean-Baptiste...”, e a significação derivada é a de autoridade moral.

E enquanto permanecemos na consideração de termos e de imagens aproveitamos para assinalar o curioso aspecto do ideal democrático baseado no igualitarismo. Não podendo evitar um mínimo de organização social ou de hierarquia, tal regime, para não ser autocrático, tem de ser dirigido por decapitados ou por acéfalos. A segunda solução, ao longo da história, pareceu mais prática e já houve um espirituoso, não me lembra quem, que chegou à fórmula do regime anarco-democrático: um povo de decapitados dirigido por uma dúzia de acéfalos. (continue a ler)

A Igreja do Céu

Gustavo Corção

 

“Em mim reside toda a graça do caminho e da verdade, em mim toda a esperança da vida e da virtude. Sou como a roseira plantada à beira das águas”. Ofertório — Nossa Senhora do Rosário

Vale a pena, nestes meses de outubro e novembro, meditar muitas vêzes na Comunhão dos Santos, e especialmente na intercessão daqueles que povoam a Igreja do Céu; e vale a pena consagrar uma especial atenção ao culto de veneração que devemos à Virgem Santíssima, de cujas mãos recebemos as graças de seu Filho para nossa salvação.

Bem sabemos que os tempos são ingratos para esta forma de piedade, tão católica e tão comprovadamente boa. Quase devemos ter força de mártir se quisermos dizer alguma coisa sobre o nono artigo do Símbolo: “creio na Comunhão dos Santos”, e sobretudo se quisermos meditar aos pés de Nossa Senhora. Ai de nós!, o tempo em que vivemos gaba-se de ser comunitário em todos os sentidos, exceto neste que se refere à Comunhão dos Santos; e gaba-se de ser pacífico e fraterno em todos os sentidos, exceto neste que se refere à nossa Mãe. (Continue a ler)

Redemocratização

Gustavo Corção

Não cabendo nos limites de um artigo um retrospecto da história dos regimes políticos, ainda que abusássemos da paciência do leitor e da liberalidade do jornal, tentaremos, entretanto, esboçar a figura peculiar dessa história: em contraste com o desenrolar de outros progressos humanos, notadamente no plano da ciência e da técnica, a soma de experiências e especulações realizadas pelo homem, na procura do regime mais conveniente, ou menos inconveniente, processou-se de um modo sinuoso e cambaleante, com avanços e recuos, sem que possamos dizer com segurança que este ou aquele regime representa uma decisiva e irreversível conquista do animal-político de Aristóteles.

Aliás, o próprio Aristóteles, quando genialmente reconhece que ao homem não convém propor somente o humano, já nos deixa entrever que a procura do melhor regime de organização da Pólis nos levaria irresistivelmente, como de fato nos levou, a uma reconsideração no modo de armar e propor o problema.

O Cristianismo nos trouxe uma nova posição de toda a problemática do homem neste mundo, imperada por princípios e normas que não são deste mundo. E os mesmos evangelhos que nos anunciam a Incarnação do Verbo “para nós homens e para a nossa salvação”, assim pregando uma igualdade que será reclamada mais tarde pelos portadores da bandeira da Democracia, e até da Revolução, também nos trazem um singular reforço de ideia do senhorio de Deus, que foi inspiradora do regime monárquico durante todo o milagroso e maravilhoso milênio medieval.

Os antigos sábios, quando diziam que não convém propor somente o humano ao homem, certamente suspeitavam a grandeza de um destino mais alto, em desproporção gritante com os pés de barro tão facilmente observáveis na marcha diária ou secular desse animal-racional tão pouco razoável, mas também frequentemente tão pouco animal.

O Cristianismo nos traz a chave dos dois grandes segredos da sorte humana, a chave do paraíso perdido, e a chave do céu trazida pelo Salvador. O problema e mistério da sorte humana impera do alto a política, a economia, e toda a emaranhada problemática do mundo.

Com a tragédia que encerra a história da civilização cristã, numa reprise do percado original em proporções civilizacionais, surge no mundo, com o pseudônimo de “humanismo” um anticristianismo essencialmente anárquico, porque desde logo fundado na autonomia do homem, que será sua própria lei e que, com maior ou menor violência, chegará a afrontar o senhorio de Deus.

Os antigos, de Aristóteles até Santo Tomás, já haviam dito, dos regimes de governo, que cada um tem sua fraqueza congênita – já que pela intuição pagã ou pela sabedoria cristã, todos suspeitavam ou sabiam que o homem, por suas próprias forças, era um animal ingovernável. No esquema clássico das perfeições e misérias dos regimes de governo, era sabido que o regime democrático (que mais tarde será pomposamente definido como “governo do povo, para o povo”) tinha uma congênita tendência à anarquia.

Ora, nos tempos modernos, marcados pela antítese formada pelo Cristianismo e pelo humanismo anárquico, vemos reviravoltar-se a colocação do problema dos regimes. E hoje diríamos vendo o problema de uma altura maior, que já não é a democracia, aqui ou ali experimentada, que tende para o anarquismo. Ao contrário, hoje é o anarquismo que marca toda uma civilização progressivamente anticristã, é essa religião do homem que agora reclama a bandeira da “democracia”, com cujo tênue véu cobrirá a nudez feia do orgulho do homem. Depois de especulações e experiências ora trágicas, ora cômicas, a Revolução humanista, anticristã, chegará ao século XX, estuário de erros e imposturas e então, provocadas pelo surgimento de dois regimes ditos “totalitários”, as nações ditas “liberais” são compelidas a aceitar a guerra que logo tomou proporções planetárias. E foi nessa guerra mal começada e ainda mais desastrosamente acabada para os vencedores, que aqui invertem a frase de Breno: “Ai dos vencidos”. A II Guerra Mundial terminou com este grito: “Ai dos vencedores”. Passemos, antes que, apesar da idade, eu monte num pégaso azul e saia galopando, ou voando em todas as direções, porque a história dos desastres da França e da Inglaterra, nesse absurdo episódio, faz-me perder a última reserva de serenidade. Mas antes de virar esta ridícula página da história registremos um fato: foi especialmente nesses anos de guerra que a bandeira da Democracia ganhou um prestígio imenso, e uma significação muito mais ampla do que a de um simples regime ou forma de governo. Democracia passou a ser um ideal supremo, uma “weltaschauung” e, por que não?, religião.

Naquele tempo em todo o ocidente, prejudicado pela queda da França traída por todos os que chamaram Charles Maurras e Brasillac de traidores, e mal dirigido pelos povos de língua inglesa, os lutadoes julgavam-se os paladinos da Democracia. E por que não os cruzados da religião do homem que se fez Deus? Democracy, democracia, democrácia, democratie. Bilhões de vezes por dia seu santo nome foi invocado. E quando Hitler praticava com satânica crueldade algum feito de genocídio, a consciência ocidental via naquele horror não uma ofensa a Deus e ao próximo, mas um monstruoso ato antidemocrático.

E graças a essa brutal e estúpida simplificação mental, o governo da Espanha católica, por ser ditatorial, e portanto antidemocrático como regime, passou a ser apontado como antidemocrático no novo sentido, e quase tão repulsivo como o massacre dos judeus na Alemanha e na URSS ou como o massacre dos poloneses em Katyn. Um só homem em toda a Inglaterra, repelia energicamente a fórmula que explicava a heróica resistência de Londres: -- Não! A Inglaterra não combate em defesa da Democracia, ela se levantou e lutará até o fim em defesa da Civilização. E por que não em defesa da Religião do Verbo Incarnado? Esse homem foi Hilaire Belloc, o grande amigo de Chesterton, e o constante leitor de L´Action Française.

No Brasil, a infeliz ditadura de Vargas contribuiu eficazmente para aderirmos à estupidez universal. Penitencio-me pela minha generosa contribuição trazida ao Banco das Asneiras do Século. Mea culpa! Mas hoje, depois de ter assistido ao espetáculo oferecido pelas “democracias” no arremate da guerra e as “tournées” especialmente degradantes da democracia cristã, na França, no Brasil, no Chile e na Itália, podemos dizer: -- Democracia? Pagamos para ver.

E quando nos falam em redemocratização penso na imagem muito usada por Santa Catarina de Sena: a dos cães que vomitam o mal que comeram, mas que depois de andar alguns passos voltam atrás e tomam a comer o vômito.

(O Globo, 12/2/77)

Reflexões sobre a CNBB

Gustavo Corção

 

No artigo de quinta-feira mostramos que as Conferências Episcopais, no mundo inteiro, se hipertrofiaram em relação ao que delas esperavam os padres conciliares com um otimismo que infelizmente não foi correspondido pela marcha dos acontecimentos. Dessa deformação resultaram a diminuição e até o amordaçamento da autoridade episcopal que forma, em ligação com o Sumo Pontífice, a verdadeira estrutura hierárquica de direito divino da Igreja de Cristo.

De antemão poderíamos prever as exorbitâncias e os aberrantes pronunciamentos, porque sabemos que as coisas agem segundo sua natureza e seu estado: operatio sequitur esse. Em tempos normais seriam descabidas as apreciações críticas de um leigo que, normalmente, deveria ouvir com obediência com e respeito os pronunciamentos de seus pastores; mas os tempos em que vivemos se afastaram demais da normalidade e nos obrigam a atitudes e protestos que só fazemos com lágrimas do mais profundo desgosto. E aqui não preciso lembrar os estímulos que os leigos receberam do Concílio Vaticano II (Lumen Gentium, Cap. IV) para uma participação maior nas obras do apostolado. Muito antes do Concílio, desde o dia bendito em que voltei à Fé de meu batismo, não faço coisa alguma com mais empenho e fervor do que estudar a Sagrada Doutrina, e logo ensiná-la aos que há mais de trinta anos me procuram, como guia sem diplomas, ou como hostiário da Casa Luminosa, hostiário sem ordens, mas também sem aposentadoria. E agora Deus sabe que não minto se disser que não há para mim maior aflição do que a dos descalabros que cercam, escurecem, ocultam, desfiguram a mais bela das esposas como aquela Jerusalém que João viu descer dos céus ornada e paramentada para seu Esposo (Ap. XXI, 2). E a aflição se torna exponencial, lancinante e quase insuportável quando leio ou ouço dizer "que eu estou atacando a Igreja!!!" Como se a Igreja de Cristo assumisse em sua santa e impenetrável substância todos os disparates de seus membros, e com eles se identificasse. Quereriam, se bem entendi, que meus protestos fossem mais aveludados, que minha indignação fosse sempre dominada e vencida pela suavidade do tom. Seria tal coisa uma perfeição exigida pela Caridade? Não haverá debaixo da grande cúpula da maior das virtudes teologais lugar para todas as paixões da alma? Não haverá uma alegria caridosa? Uma tristeza caridosa? Não haverá também uma cólera caridosa?

Santa Catarina de Sena, a "dolce mamma" que à imagem da Mãe de Deus foi mãe e virgem, mãe solícita e virgem intransigente, escrevia a três cardeais italianos, nos tempos em que a Igreja não chegara à metade ou à décima parte do que hoje padece: "Desgraçados! As trevas do amor próprio vos impedem de ver a verdade... sois ingratos, sois vendidos; em vez de serdes os escudos da Igreja, vós a perseguis. E em vez de flores perfumadas da Casa de Deus, tornastes-vos podridão que envenena o mundo. E em vez de anjos da terra tomastes o oficio dos demônios... falo-vos sem respeito porque já não sois dignos do respeito." (Ste. Catherine de Sienne, Catholique romaine, par J. Leclereq, Lethielleux, 1522, p. 87.)

Não ousarei imitar a cólera daquela que não pude e nem de longe cheguei a imitar na santidade.

Tratarei de graduar o tom de minhas apóstrofes, não por um convencional e diplomático respeito que não merecem os vendilhões do templo, mas por um reconhecimento de minha pequenez e da infinita tristeza de não ser santo. Mas esse reconhecimento não me levará à capitulação e ao silêncio.

Procuremos, leitor amigo, um tom que seja verdadeiro sem deixar de ser áspero se a aspereza estiver nas próprias arestas da verdade; procuremos um tom que seja mais serviço do que desabafo, que sempre seja mais voltado para a glória de Deus do que para as conveniências dos homens.

E volto a reafirmar o que outros, em vários tons, estão dizendo na França, na Itália, na Espanha e nos demais países onde ainda subsiste a cristandade. Volto a dizer que as Conferências Episcopais se hipertrofiaram, se deformaram, e assim desnaturadas passaram a dar maus e abundantes frutos. Já disse atrás o que é de uma solar evidência: as Conferências estão permitindo que alguns poucos atrevidos, e às vezes um só, multipliquem pelos jornais pronunciamentos que recaem sobre a honra de outros bispos que, por sua vez, não têm coragem de desmentir e de protestar, porque espalhou-se no ar o mau e falso princípio de que acima de tudo devemos salvar as aparências de uma unidade que mais se fundamenta nas conveniências do mundo do que na Verdade de Deus de que a Igreja é guardiã virginal e intolerante.

Vê-se assim que as Conferências, no grau de deformação a que chegaram, são instrumentos perfeitos para o atrevimento de uma minoria ativa que já não merece o respeito de ninguém, e para a passividade timorata de uma maioria que destarte acabará perdendo também o direito ao respeito. A esse defeito de estrutura acrescentemos da incontinência verbal: as Conferências falam demais, estão demais nos boletins, estão todos os dias nos jornais.

E além de tudo isto cabe aqui a pergunta: como pode uma Assembleia deliberativa e executiva funcionar sem a reunião constante de seus membros? Pode alguém imaginar uma Câmara ou um Senado cujos membros residissem nos Estados e nas cidades que o elegeram? Tal Assembleia, para parecer que é Assembleia e para funcionar com membros esparsos, só teria uma solução: fazer-se representar por uma Comissão Central, ou por quatro secretários e peritos. E aqui voltamos ao defeito fundamental: a autoridade dos Bispos, em pronunciamentos e decisões gravíssimos, como por exemplo as que se referem à pastoral catequética, se omite, se dissolve, e se entrega aos "peritos" de que se queixaram os Bispos de Minas Gerais.

 

(O Globo, 03/07/1971)

Reflexões sobre as conferências episcopais

Gustavo Corção

 

Estas reflexões, feitas por um velho leigo que nunca pretendeu falar pela Igreja, mas que também nunca desanimou de poder servir à Igreja com suas modestas contribuições, dirigem-se aos bispos do Brasil, e concernem especialmente à CNBB, embora de início se refiram à problemática geral das Conferências Episcopais.

De início devemos recapitular os tópicos em que o problema foi abordado e ficou oficialmente formulado nas Constituições e Decretos do Concílio Vaticano II. São os seguintes:

1. Quanto à função nacional das Conferências Episcopais, temos no Decreto sobre o Ministério dos Bispos (Christus Dominus), parágrafo 18, apenas 7 linhas recomendando às Conferências o cuidado pelos fiéis emigrantes, itinerantes, exilados etc. que ainda "não possam desfrutar convenientemente dos cuidados pastorais dos párocos".

2. Quanto à sua importância, temos no parágrafo 37 do mesmo Decreto 12 linhas relativas às exigências maiores dos tempos modernos e "aos magníficos resultados de fecundo apostolado já trazidos em muitas nações por essas conferências". Na base dessa apreciação otimista "julga este santo Concílio que será muito conveniente, no mundo inteiro, que os bispos da mesma nação se reúnam em uma assembleia, em datas prefixadas, a fim de que, comunicando-se as perspectivas da prudência e da experiência, e contrastando os pareceres (destaque meu) se constitua uma santa inspiração de forças para o bem comum das igrejas. No tópico seguinte, em página e meia dividida em seis tópicos, passa o Concílio a formular o conceito, a estrutura e a competência das conferências. Merece especial destaque o tópico 4 onde se lê: "As decisões da conferência episcopal, legitimamente adotadas, com uma maioria de dois terços de votos dos bispos que pertencem à conferência com voto deliberativo, e aprovadas pela Sé Apostólica, só obrigam juridicamente nos casos em que o ordenar o direito comum ou o determinar por ordem expressa a Sé Apostólica, manifestada por vontade própria ou por petição da mesma conferência”.

A abertura trazida pelo Concílio não podia ser mais discreta e mais moderada, mas a experiência subsequente provou, no mundo inteiro, que a discreta abertura se alargou desmesuradamente e que a "santa conspiração" se transformou em conspirações sem sinais de santidade. Aliás, no decurso dos debates conciliares várias vozes se levantaram em sinal de alarma e com lucidez previram abusos que os boletins meteorológicos da atmosfera espiritual de nosso tempo já anunciavam. Não era preciso ser profeta para ver que, desde a década de 30 se avolumara a onda revolucionária que na Espanha fez milhares de mártires "no sentido próprio do termo", segundo Pio XI, e que na França produziu milhares de "progressistas" e apóstatas que se entregaram às chamadas "esquerdas" que desde o princípio do século se infiltravam e envenenavam os meios católicos mais preocupados com os problemas sociais.

Em 9-10-1963, na Quadragésima Congregação Geral sobre a Hierarquia, D Geraldo de Proença Sigaud, Arcebispo de Diamantina falando em nome dos bispos Marcel Lefebvre, Luiz Gonzaga Marelim, Antônio de Castro Mayer, João Pereira Venâncio, Carlos Saboia Bandeira de Melo, João Rupp, e do Abade João Prou, de Solesmes, alertou os padres conciliares contra dois "escolhos sumamente perigosos": O primeiro era criação de uma instituição mundial comparável a um Concílio Ecumênico Permanente (...) que seria uma espécie de Parlamento Mundial na Igreja Cristo. O segundo perigo (que não foi evitado) residia na instituição de uma espécie de Concílio Nacional ou Regional permanente na qual alguns bispos de uma nação ou região poderiam, mediante sentenças jurídicas ou doutrinárias aprovadas pelo Papa, comprometer todos outros bispos daquela nação ou região. "Pois é evidente -- dizia D. Geraldo Proença Sigaud -- que tais instituições trariam enormes dificuldades ao exercício do poder ordinário, seja do Papa, seja dos bispos."

A experiência subsequente velo provar que neste ponto, como em vários outros deixados pelo Concílio, o uso de discretas aberturas transformou-se em abuso, e os abusos produziram calamidades como se vê por exemplo no maciço abuso praticado pelo episcopado francês em matéria de catequese.

É fácil compreender o grave defeito estrutural dessa instituição que inchou e deformou-se ao sabor da torrente revolucionária que disputa com o Cristianismo a hegemonia do novo mundo, ou nova "civilização" que está para nascer. Com o volume e a forma que tomaram, as Conferências Episcopais têm dois defeitos graves e complementares: 1) Fácil acesso das alavancas aos ativistas da minoria agressiva e revolucionária; 2) Vasto repositório para as omissões da maioria dos bispos que não têm coragem e vigor de enfrentar a onda, embora não concordem com ela.

Para exemplificar o funcionamento desses dois defeitos conjugados temos as sugestões de 4 arcebispos mineiros apresentados ao presidente da CNBB por ocasião da IX Assembleia Geral da CNBB em julho de 1968. Transcrevo um trecho colhido no vol. 1, setembro de 1968, de SEDOC:

"Ninguém pode esconder que uma profunda desconfiança cerca diversas atividades de diversos secretariados regionais e da mesma CNBB, oriunda das orientações transmitidas aqui e acolá a nossos sacerdotes, religiosos e leigos, orientações que às vezes não nos parecem ortodoxas tanto com referência à fé quanto à moral."

"Conscientes de nossa responsabilidade como Pastores da Santa Igreja e membros desta Conferência, sentimo-nos na obrigação de confessar que nós mesmos não temos podido exercer em plenitude nosso múnus na colegialidade, pois parte desta orientação é dada por um grupo de "peritos" que prepara nossos documentos e planos de atividade, sem que tenhamos oportunidade ou mesmo possibilidade de analisá-los acuradamente ou de emendá-los. Acresce ainda que alguns dos nossos peritos não merecem nossa confiança, seja por não trazerem consigo algumas qualidades indispensáveis a sacerdotes que se apresentam a nosso clero como credenciados pela CNBB, seja por se fazerem portadores de uma orientação que não reconhecemos como a da maioria da Conferência. Sentimos que somos substituídos por eles, pois muitas vezes somos convocados para reuniões nas quais nos são apresentados documentos para serem votados sem o tempo necessário para a sua apreciação e nas quais não nos é dada oportunidade de tratarmos assuntos que nos parecem graves e importantes para nossa pastoral."

Estas "Sugestões", que em pequena parte, transcrevo acima, são assinadas por quatro arcebispos mineiros: D. Geraldo Proença Sigaud, de Diamantina, D. José d'Angelo Neto, de Pouso Alegre, D. Oscar de Oliveira, de Mariana, e D. Alexandre Gonçalves do Amaral, de Uberaba, e constituem um pequeno exemplo da grande deformidade estrutural a que chegaram as Conferências Episcopais.

Evidencia-se assim que a honra da Igreja e dos episcopados nacionais ficam à mercê de minorias agressivas que talvez pertençam mais à Anti-igreja do que à Igreja Cristo. Multiplicando-se esse defeito pela incontinência publicitária e pela logorréia que todos os dias estampa nos jornais pronunciamentos de titulares das Conferências, tem-se um resultado final que clama aos céus e pede reação viril e imediata das autoridades eclesiásticas e enquanto não se veem sinais de tal reação, justificam-se os gritos de dor filhos da Igreja que só podem clamar, e que, sem grave pecado de omissão, não devem silenciar.

 

(O Globo, 01/07/1971)

O cochilo da CNBB

Gustavo Corção

 

No artigo de quinta-feira referi-me ao sono que me deixou por um mês desatento às voltas que o mundo deu, mas agora, acordado, e remexendo os recortes acumulados na gaveta, vejo que a CNBB, nesse meio tempo, esteve mergulhada num sono mais profundo e mais surdo do que o meu. E não creio que a Presidência e o Secretariado dessa instituição possam dizer, como a esposa do Cântico dos Cânticos: "Ego dormio, et cor meum vigilat", porque a CNBB tem máquinas de escrever, tem peritos, comissões, Presidência e Secretariado, mas não sei se possui um coração que vigia quando o pomposo aparelho adormece.

***

O cochilo da CNBB a que me refiro neste artigo está provado pela nota com que o Secretariado Geral da CNBB exprime profunda estranheza e enérgica repulsa em face da matéria publicada em O GLOBO de 26-10-71 sobre o título "Subversão cai, mas ainda apresenta áreas sensíveis".

Dom Ivo Lorscheider, em nome do Secretariado Geral da CNBB, publicou em vários jornais uma nota de protesto contra a afirmação de existir nos meios católicos do Brasil largas áreas de infiltração comunista.

Ora, todos nós estamos cansados de saber que a tragédia do mundo moderno, que põe em risco todas as conquistas e valores de uma civilização ainda vagamente cristã, tem seu ponto mais doloroso na infiltração comunista que se processou nos meios católicos e especialmente nas casas religiosas. Todos nós sabemos que essa onda avolumou-se na década de 30 e concentrou-se na esquerda católica francesa de onde se irradiou para o mundo inteiro. Sabemos que durante o martírio da igreja espanhola, e durante a Guerra Civil que salvou a Espanha, a esquerda-católica francesa foi sempre rebelde ao Papa Pio XI. Sabemos que a revista Sept dos dominicanos foi fechada por ordem de Roma por dar apoio aos comunistas. Sabemos que o Pe. Bigo, com enorme simplicidade, diz que o "progressismo" católico começou na Résistance com "os prolongados contatos entre comunistas e católicos que aí fizeram a bouleversant découvert de la révolution en marche. Sabemos que o movimento de Economia e Humanismo foi fundado por dois dominicanos, o Pe. Lebret e Pe. Desroches, que mais se preocupavam com problemas temporais do que com a salvação das almas. Sabemos que o Pe. Desroches tornou-se dois ou três anos depois desmascaradamente comunista. Sabemos que foi essa anti-Igreja da esquerda francesa que trouxe ao Brasil as sementes do marxismo cristão. Sabemos que o Pe. Francisco Pessoa Lage, lazarista, que durante anos foi nosso amigo e muitas vezes nosso comensal, através de Economia e Humanismo transformou-se em marxista fervoroso e depois em comunista furioso. Sabemos que em Volta Redonda, Dom Waldir Calheiros acobertava comunistas, que em Belo Horizonte os padres assuncionistas ensinavam marxismo. Sabemos que na PUC muitas moças egressas do Colégio Sion e outros Institutos católicos saíam transformadas em guerrilheiras, e que a pregação do Pe. Henrique Vaz foi um dos fatores ativos da comunização dos jovens da PUC. Sabemos por declaração deles mesmos (ver o livro recente de Charles Antonoine) que Sr. Cândido Mendes, indicado para alto posto de representante do Brasil no Sínodo, andou sempre de braços com a esquerda católica pervertedora de jovens, e até hoje em todas as suas algaravias deixa transparecer sua irresistível atração pela anti-Igreja apelidada de "progressista". Sabemos também que muitas vezes os senhores bispos, numa lamentável incompreensão de seus deveres pastorais, correram precipitadamente a dar cobertura a padres relapsos e até criminosos, dificultando a tarefa do Governo.

Tudo isto é público e notório. Meus leitores devem saber que não é por gosto que comento tais escândalos, mas por julgar que, depois do escândalo de tais relapsos ou criminosos, e do escalo de tais bispos complacentes, maior escândalo seria o silêncio de quem tem uma pena na mão e a consciência de que deverá prestar contas a Deus do uso que fez de seus dons.

Tudo isto é planetariamente sabido. Como se não bastassem todos os meios de comunicação, já de si inclinados ao sensacionalismo, saem voando arcebispos para espalhar aos quatro ventos a simpatia de bispos católicos por guerrilheiros e sequestradores. Tudo isto, evidentemente, coberto com "o véu diáfano da fantasia" de um interesse pelos pobres que hoje só pode enganar os imbecis, ou os que por um dos tantos paradoxos da condição humana se apegam desesperadamente à mentira que sabe ser mentirosa, mas que julgam vital. Não podem mais viver sem esse ópio,

Ora, todo esse Himalaia de fatos corruscantes e estridentes é ignorado por Dom Ivo Lorscheider, que acorda cheio de melindres quando alguém lhe vem dizer  - Que horror! - que O GLOBO viu comunistas nos arraiais católicos! Não quero ocupar a atenção do leitor com o tumulto de sentimentos que me despertam pronunciamentos como este que acabo de ler. Mas creio cumprir um dever de caridade, de respeito, de decência elementar no aviso, no conselho, no serviço de advertência que ofereço ao Secretariado-Geral da CNBB.

Digo a essa entidade que tudo tem limite, e que um pronunciamento assim corre o risco de ser interpretado por qualquer pessoa de bom-senso como algo mais sério e mais grave do que uma simples sonolência eclesiástica. Corre o risco de ser visto pelo tão falado Povo de Deus como uma tentativa de tapar o sol com peneira de pedreiro. Corre o risco de empenhar gravemente, em tão baldado esforço, a honra da Igreja de Cristo.

 

(O Globo, 13-11-71)

Os amigos de Dom Hélder

Gustavo Corção

 

Alguns leitores estranharam, que eu tivesse dito, no artigo de quinta-feira, que os criminosos sequestradores do Caravelle eram amigos de Dom Hélder; mas é o próprio arcebispo que autoriza essa declaração, como se lê claramente na entrevista dada a L”Express e já comentada em vários jornais e transcrita na íntegra em O Estado de São Paulo de 5 de julho.

L”Express: “O senhor também não crê na guerrilha urbana? ”

Dom Hélder: “Também não. Mas não digo isto para desencorajar os jovens que se esforçam por obter a liberação de nosso povo. Eu os amo e persigo o mesmo objetivo. Eles são admiráveis, esses guerrilheiros urbanos. Eles assaltam os bancos para obter dinheiro a fim de comprar armas. Mas quando conhecemos um pouco o preço das armas, sabemos que eles nunca terão o bastante, com o que tiram dos bancos, para enfrentar o Exército. Nem mesmo com o que podem recuperar aqui ou ali nos quartéis. Você me dirá que eles lucram mais com os sequestros de pessoas importantes, mas alguns são presos. São torturados e às vezes dão com a língua nos dentes. É muito difícil resistir quando lhes arrancam as unhas e lhes esmagam os testículos”

Eis aí o que Dom Hélder disse em Paris. Ele ama e admira os moços que assaltam bancos matando os funcionários que resistem, os moços que sequestram aviões pondo os passageiros em risco de vida, e os que assassinam os embaixadores caso os governos resistam a suas “exigências”. Os do Caravelle exigiram dois cardeais. Dom Hélder os admira e os aprova. Dois anos atrás, em São Paulo, esses amigos de Dom Hélder, para comemorar o aniversário de morte de Guevara, assassinaram ritualmente um moço americano que passeava com o filho de dez anos. A moça que ajudou a matar esses desprezível bípede implume, para o qual Dom Hélder não se digna sequer a dedicar uma linha de sua entrevista, está na Argélia e já disse que praticara um assassinato místico. Dom Hélder, em Paris, fez questão de se tornar corresponsável por esse crime. Não ama? Não admira? Não encoraja os assassinos? Se os cardeais exigidos numa bandeja morressem de enfarte, Dom Hélder lamentaria esse defeito técnico de operação, mas não desaprovaria a operação em si.

***

Quero registrar aqui apenas uma ligeira reflexão sobre as unhas arrancadas. É curioso que até hoje, com quase 100 terroristas libertados, não tenham apresentado nenhum com as unhas arrancadas.

Mas não é nada disso o que mais me choca na entrevista de Dom Hélder. O que mais me choca não é a sua aprovação de meios tão evidentemente criminosos. Peço ao leitor que entenda bem a coisa espantosa que vou dizer. É o seguinte: eu ainda entenderia toda essa clamorosa admiração pelo crime se me dissessem que Dom Hélder tem uma convicção socialista tão forte e tão apaixonada, e tão clara e nítida como a da Passionária.

Mas nosso arcebispo, na mesma entrevista, interrogado sobre o modelo de sociedade que deseja, já que repeliu o capitalismo e o socialismo comunista, se perde em reticências. Ele ainda não sabe, ele ainda não tem os planos, os programas, os lemas, as estruturas. Nada. O arcebispo que se entusiasma com roubos, sequestros e assassinatos, ainda não fixou seu ideal pelo qual, entretanto, já aconselha o assalto, o sequestro e o assassinato. Diz “que é preciso que todos os universitários técnicos, trabalhadores, todos procurem uma forma de socialismo que não esmague as pessoas...”

Nesse meio tempo, enquanto não se encontra o ideal, Dom Hélder aplaude o mostro que ritualmente ou misticamente imolou um inocente. É claro que nosso arcebispo não explicitou esse aplauso particular; mas explicitou o genérico que me autoriza o enquadramento dos casos particulares a que se esquivara o ilustre prelado.

O que me deixa atordoado de espanto é o abismo que vejo entre a terrível responsabilidade que assume o arcebispo nos louvores que tece aos criminosos, e o vácuo absoluto de qualquer objetivo. Matar pessoas para uma “liberação” que ainda não está sequer esboçada é algo de tão colossalmente monstruoso que me leva a uma conclusão no extremo oposto de tudo o que até aqui escrevi para cobrar responsabilidades a um arcebispo.

Concluo que é inútil. Concluo que nada do que diz Dom Hélder significa nada. Tudo o que disse a L’Express se reduz a nada, a noves fora nada. Não há outra alternativa: ou monstruosidade moral digna de um prêmio Nobel, ou vacuidade total. Refugio-me nesta última hipótese e vejo diante de mim um títere esvaziado de substância humana, um cata-vento, um boneco falante que só é entrevistado e levado a sério porque o mundo está acometido de uma forma nova de gripe que transforma vinte mil franceses, inclusive os eclesiásticos presentes no Palais des Sports, em vinte mil imbecis ou vinte mil canalhas.

Fora daí não vejo explicação plausível para o fenômeno, a não ser que tudo se explique pela organização IDO-C ou maoísta do Palais des Sports, dentro da qual o infortunado arcebispo fala, braceja e se contorce como um simples títere.

 

(O Globo, 11/07/1970)

Em Paris

Gustavo Corção

 

No mesmo número em que rememora os sucessos e a fascinação de Adolf Hitler, a revista francesa de maior tiragem, Paris-Match, dedica uma página inteira à figura de Dom Hélder Câmara a gritar, no Palais des Sports, a vinte mil ouvintes, a frase que o jornalista destaca: “oui, dans mon pays on torture”. E o autor da reportagem, Jean Cau, não somente acredita na sinceridade do orador como também a admira. E admira os jovens que correm a ouvir Dom Hélder; e assinala, com a maior simpatia do mundo, a presença do Arcebispo de Paris, na primeira fila dos ouvintes.

Mas o curioso aspecto dessa reportagem está nas fotografias, mais do que nos comentários fabricados por um profissional que está “por fora” e não esconde o seu sentimento de estar em terra alheia e em mundo desconhecido.

O conferencista leva a Paris a notícia de que o Brasil é um país onde se torturam os presos, e onde esse comportamento, longe de ser acidental, emana do próprio sistema que governa o país. Ora, o que se vê no auditório é uma multidão de rostos sorridentes. O Arcebispo de Paris sorri como se estivesse a acompanhar acrobacias ou palhaçadas. E o repórter depaysé tenta inculcar a ideia de que Dom Hélder esteja a demonstrar uma grande coragem, dada a incrível ferocidade do povo brasileiro, mas não consegue a modulação estilística que se impunha para tornar convincente a “coragem” de Dom Hélder.

***

Em tudo isto, que já bastava para nos encher de vergonha e tristeza, eu não me impressiono demais com o personagem Hélder Câmara e com o seu sucesso. Na mesma revista rememoramos o personagem Hitler e o seu sucesso. Em vão procuraríamos em Hélder e em Adolf o ramalhete de qualidades peregrinas ou de vícios geniais que explicassem o sucesso. Uma das maiores e mais torpes tentações do espírito humano é a que o leva a se prosternar diante do sucesso. Adolf Hitler era um pobre títere, insignificante e destinado a voltar ao pó sem deixar nenhuma lembrança na mente dos homens se um conjunto de circunstâncias o não tivesse colocado no pedestal da esperança de um povo ressentido.

O que espanta nesses espetáculos não é Hitler nem Hélder, são os “outros”; é a multidão que se eletriza e que elege, inventa, ou julga descobrir um representante de uma secreta ressonância. A reportagem de Jean Cau não prova que Dom Hélder esteja fazendo um sucesso doido em Paris; prova que Paris se tornou capaz de produzir tal phenomêne.

Lendo a reportagem de Jean Cau e examinando as fotografias que a ilustram, eu sinto duas vergonhas profundas. A primeira é a de imaginar que é um brasileiro, cearense, e ainda por cima arcebispo, que está espalhando no estrangeiro a difamação da pátria que cumpriu o dever de expulsar e reprimir os comunistas. A segunda vergonha, mais profunda, é a de ver Paris ouvir com tamanha atenção um personagem que aqui no Brasil só conseguiu cativar a meia dúzia de senhoras e senhoritas que o serviram no Palácio São Joaquim. Parece inevitável esta conclusão: o planeta está acometido de um ataque de estupidez. Há uma depressão cultural, uma bolha na história, um buraco em vez de pedra no caminho do homem, e parece que Paris, Tout-Paris, caiu nesse buraco. O sucesso de nosso Hélder Câmara em Paris prova aquilo a que já me referi em vários artigos: Paris é o centro da guerra revolucionária, a capital da contestação, o foco da peste que imbeciliza o mundo. E é esta contestação inevitável que me mergulha numa envergonhada melancolia como se no Palais des Sports estivesse sendo vaiada, ou por derrisão aplaudida a caricatura do Homem.

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Um amigo meu estava outro dia no Galeão e, sem querer, assistiu à chegada de Dom Hélder. Chegou, com sua batina e sua mala. Ninguém o esperava. Até aqui não se admirou meu amigo, e até se algum francês estivesse no Galeão seria capaz de atribuir tal apagamento à humildade de Dom Hélder. Mas meu amigo teve a ideia de seguir de longe a trajetória do padre até o momento em que tomou um taxi e observou o seguinte: ninguém, absolutamente, ninguém aproximou-se de Dom Hélder, cumprimentou, sorriu-lhe.

Mas então como se explica a popularidade em Paris? A chave não está no valor próprio do personagem; nem está no campo de força da multidão. Onde está então? Creio que a explicação que se impõe é esta: o fenômeno é produzido e comandado por um “aparelho” que organiza, promove e escolhe seus títeres e seu público. Sem esse “aparelho” Dom Hélder volta ao pó do andar térreo do Palácio São Joaquim.

E de onde vem a força e o comando desse “aparelho”? Não sei. Devem estar relacionadas com as conhecidas organizações que assaltam a Igreja e aprisionam o Papa. Mas quem é que puxa os cordões que fazem Dom Hélder abrir os braços, abrir a boca, parolar, e faz o Arcebispo D. Marthy sorrir beatamente? Quem é que comanda o “aparelho” que imbeciliza durante uma ou duas horas vinte mil parisienses? Não sei, mas tenho uma pista, uma desconfiança.

 

(O Globo, 20/06/1970)

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