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Os amigos de Dom Hélder

Gustavo Corção

 

Alguns leitores estranharam, que eu tivesse dito, no artigo de quinta-feira, que os criminosos sequestradores do Caravelle eram amigos de Dom Hélder; mas é o próprio arcebispo que autoriza essa declaração, como se lê claramente na entrevista dada a L”Express e já comentada em vários jornais e transcrita na íntegra em O Estado de São Paulo de 5 de julho.

L”Express: “O senhor também não crê na guerrilha urbana? ”

Dom Hélder: “Também não. Mas não digo isto para desencorajar os jovens que se esforçam por obter a liberação de nosso povo. Eu os amo e persigo o mesmo objetivo. Eles são admiráveis, esses guerrilheiros urbanos. Eles assaltam os bancos para obter dinheiro a fim de comprar armas. Mas quando conhecemos um pouco o preço das armas, sabemos que eles nunca terão o bastante, com o que tiram dos bancos, para enfrentar o Exército. Nem mesmo com o que podem recuperar aqui ou ali nos quartéis. Você me dirá que eles lucram mais com os sequestros de pessoas importantes, mas alguns são presos. São torturados e às vezes dão com a língua nos dentes. É muito difícil resistir quando lhes arrancam as unhas e lhes esmagam os testículos”

Eis aí o que Dom Hélder disse em Paris. Ele ama e admira os moços que assaltam bancos matando os funcionários que resistem, os moços que sequestram aviões pondo os passageiros em risco de vida, e os que assassinam os embaixadores caso os governos resistam a suas “exigências”. Os do Caravelle exigiram dois cardeais. Dom Hélder os admira e os aprova. Dois anos atrás, em São Paulo, esses amigos de Dom Hélder, para comemorar o aniversário de morte de Guevara, assassinaram ritualmente um moço americano que passeava com o filho de dez anos. A moça que ajudou a matar esses desprezível bípede implume, para o qual Dom Hélder não se digna sequer a dedicar uma linha de sua entrevista, está na Argélia e já disse que praticara um assassinato místico. Dom Hélder, em Paris, fez questão de se tornar corresponsável por esse crime. Não ama? Não admira? Não encoraja os assassinos? Se os cardeais exigidos numa bandeja morressem de enfarte, Dom Hélder lamentaria esse defeito técnico de operação, mas não desaprovaria a operação em si.

***

Quero registrar aqui apenas uma ligeira reflexão sobre as unhas arrancadas. É curioso que até hoje, com quase 100 terroristas libertados, não tenham apresentado nenhum com as unhas arrancadas.

Mas não é nada disso o que mais me choca na entrevista de Dom Hélder. O que mais me choca não é a sua aprovação de meios tão evidentemente criminosos. Peço ao leitor que entenda bem a coisa espantosa que vou dizer. É o seguinte: eu ainda entenderia toda essa clamorosa admiração pelo crime se me dissessem que Dom Hélder tem uma convicção socialista tão forte e tão apaixonada, e tão clara e nítida como a da Passionária.

Mas nosso arcebispo, na mesma entrevista, interrogado sobre o modelo de sociedade que deseja, já que repeliu o capitalismo e o socialismo comunista, se perde em reticências. Ele ainda não sabe, ele ainda não tem os planos, os programas, os lemas, as estruturas. Nada. O arcebispo que se entusiasma com roubos, sequestros e assassinatos, ainda não fixou seu ideal pelo qual, entretanto, já aconselha o assalto, o sequestro e o assassinato. Diz “que é preciso que todos os universitários técnicos, trabalhadores, todos procurem uma forma de socialismo que não esmague as pessoas...”

Nesse meio tempo, enquanto não se encontra o ideal, Dom Hélder aplaude o mostro que ritualmente ou misticamente imolou um inocente. É claro que nosso arcebispo não explicitou esse aplauso particular; mas explicitou o genérico que me autoriza o enquadramento dos casos particulares a que se esquivara o ilustre prelado.

O que me deixa atordoado de espanto é o abismo que vejo entre a terrível responsabilidade que assume o arcebispo nos louvores que tece aos criminosos, e o vácuo absoluto de qualquer objetivo. Matar pessoas para uma “liberação” que ainda não está sequer esboçada é algo de tão colossalmente monstruoso que me leva a uma conclusão no extremo oposto de tudo o que até aqui escrevi para cobrar responsabilidades a um arcebispo.

Concluo que é inútil. Concluo que nada do que diz Dom Hélder significa nada. Tudo o que disse a L’Express se reduz a nada, a noves fora nada. Não há outra alternativa: ou monstruosidade moral digna de um prêmio Nobel, ou vacuidade total. Refugio-me nesta última hipótese e vejo diante de mim um títere esvaziado de substância humana, um cata-vento, um boneco falante que só é entrevistado e levado a sério porque o mundo está acometido de uma forma nova de gripe que transforma vinte mil franceses, inclusive os eclesiásticos presentes no Palais des Sports, em vinte mil imbecis ou vinte mil canalhas.

Fora daí não vejo explicação plausível para o fenômeno, a não ser que tudo se explique pela organização IDO-C ou maoísta do Palais des Sports, dentro da qual o infortunado arcebispo fala, braceja e se contorce como um simples títere.

 

(O Globo, 11/07/1970)

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