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Sobre Lições de Abismo

[Com satisfação publicamos um escrito inédito de Gustavo Corção sobre o seu romance Lições de Abismo. O texto era na verdade uma carta enviada à escritora Raquel de Queiroz e a reproduzimos pela primeira vez na Revista Permanência 265]. 

 

D. Raquel de Queiroz,

Li com enorme interesse a sua nota sobre o meu livro. Vou mais longe, confesso que li com sofreguidão. A senhora que já teve seus livros me entenderá.  Digam os outros que é vaidade nossa, mas não é; ao contrário, é talvez o melhor de nós, o mais puro de nós, essa avidez pela confirmação daquilo que escrevemos. Será no fundo vaidade, se quiserem, mas uma pobre vaidade, ou uma vaidade de pobre.

Aquele livro, quando o soltei, deu-me mais insônias do que nos dias de trabalho. Escrevera-o com paixão, dias e dias, noites e noites. Andava com ele em mim, comigo nele. Juntara, como num cadinho, a escória de todo um passado fantástico, meio vivido e meio sonhado. Fundira o grosso minério. Cinzelara as pepitas, os lingotes, as barras. E agora, apesar de todas as reprises, da revisão esticada, da refusão dos caprichos ingratos, dos cortes, e finalmente da ortografia — porque a minha nunca se depurou dum hibridismo em que as letras da adolescência se misturam aos acentos circunflexos da velhice — apesar de todo esse nervoso apego eu tinha de largá-lo, como se larga o filho completo e maior. (Continue a ler)

Ora, nesse momento assaltou-me uma angústia atroz. Coisa horrível, esses gestos sem volta, esses atos irreversíveis! Há gente que ainda discute o divórcio e a indissolubilidade por não ter observado quantos e quantos atos irreversíveis formam nossa vida. Assim o livro publicado. Cinco minutos antes podia rasgá-lo. É verdade que já não poderia anular, retirar do universo, da história invisível, as noites e os dias da composição. Não podia reter o livro. Rasgava-o, chorava em silêncio, sofria a portas fechadas, e pronto! Entregue ao editor já ficava mais difícil a volta. Houve conversas comerciais, cláusulas, estampilhas e adiantamentos em dinheiro.  E dinheiro na mão que o não tem fácil, é coisa que corre com a inflexibilidade do tempo. As notas somem-se como os dias da folhinha. Depois vem a máquina. A máquina pega no livro e faz dele centenas de pacotes que se empilham num depósito. E cada vez a gente mais sente que a coisa fugiu, escapou de seu dono, e tornou-se volume e peso do universo físico, fato do universo moral, compromisso no mundo do homem.

Grave coisa! Pois aquilo que eu escrevia em surdina, mal aceitando que me lessem por cima do ombro, era agora uma estridência editorial, uma coisa de praça pública!

Um dia — já estava o livro nas montras — eu vi num bonde um senhor de meia idade, entalado entre duas mulheres corpulentas, a ler o meu livro. Em que página estaria? Como estaria entrando nele a minha paixão? Com que pedaço de vida, com que acompanhamento estaria ele pronunciando as palavras que em segredo eu vira nascer e crescer?

Quando o bonde chegou ao termo o meu homem desceu levando o livro embaixo do braço. Tive ímpetos de ir atrás dele para explicar, para justificar, para desculpar. Diria, antes que tomasse ele a ofensiva, que classificara o livro como Romance, depois de muito hesitar. Mas defenderia a classificação. Por que não? Não há nada mais intensamente e mais interiormente humano do que a história de uma alma. Tomado materialmente, medido pelas páginas de incidentes coloridos e exteriores, não seria romance; mas tomado, como convém, na perspectiva das experiências concretas, vividas, e particularíssimas, seria romance.

Discutiria, aflito, com o homem que levava minha alma embaixo do braço. Mas os outros. Os que lêem em casa? Os que lêem na rede ou na cadeira de balanço? Os que lêem na cama? Como poderia eu cativar esse mundo de opiniões formadas, como poderia apagar as palavras gravadas na memória, as frases desencontradamente fixadas entre mil preconceitos?

O meu livro estava agora em pedaços, mal ou bem digeridos, no sangue dos outros. Já não me adianta explicar as intenções onde impera a dureza do objeto. Já não me vale desculpar-me, se por abjeção quisesse dizer que escrevo em brechas de tempo, aos solavancos, numa vida estilhaçada, num ritmo interrompido. Sabes, ó fino leitor, que sou um pobre professor de eletrônica no Exército, no Departamento de Correios e Telégrafos, e na Companhia Telefônica? Sabes, ó irritada leitora, que eu vivo como o homem de que fala Isaías, isto é, circundado de mulheres?

É exato. Em casa são oito contra um. O único filho homem está longe de mim. Sou o único homem em casa, cercado, às vezes abafado por esse misterioso e ilimitado mundo feminino. Tenho um amigo, o Chagas, nas mesmas condições. Contou-me ele que às vezes desce do escritório, quando ouve a tesoura do jardineiro, e vai entabular com ele “uma conversa de homens”.

Que mais vos deixei eu, ó sombras exigentes?

Que tenho muitos amigos? Que o telefone não me dá um descanso? Que escrevo nos jornais e que mal posso responder às cartas que recebo? Lembrarei os afilhados, e as combinações, os arranjos e permutações entre todas essas pessoas de títulos diversos, mulher, filhas, alunos, afilhados, e leitores? Ficará bem acrescentar aqui os anos, 55 bem contados, bem pesados, e sobre os anos colocar as mazelas, e sobre as mazelas as aflições?

Mas um livro é um livro. Quem o escreve não tem apelo nas conjuntivites e nas saudades. Não vale a desculpa onde impera a exigência do objeto. Tive um amigo atroz, duro, retilíneo, milimétrico, que mandou pendurar na parede de sua oficina, para edificação dos operários, esse cartaz dantesco: “A melhor desculpa nunca vale um bom resultado”. 

Assim também nas fábricas das coisas espirituais está pendurada a mesma frase implacável. O livro é o que é. Aplicam-se aqui, em sentido inverso, as palavras de Pilatos: “quod scripsi, scripsi”.

Depois do que disse acima eu deveria guardar a pena, dobrar o papel e contentar-me com três palavras de agradecimento pela nota que a senhora publicou. Mas não me contenho. Rasgo o cartaz. Desminto as palavras de Pilatos e as regras da arte. E enveredo por uma interminável explicação, tendo por desculpa que não é absurdo escrever depois do que ficou escrito. Penduro no meu livro este longo post-scriptum. E digo longo, sem cálculos, porque nem sei até onde irá esta carta que ainda não comecei, ou este post-scriptum que começo agora. 

Devo dizer que a senhora me confundiu nas primeiras linhas de seu artigo. Mas logo me assustou quando diz: “Aquele homem despreza e repele os demais homens!” Quem? Eu ou José Maria? No ponto em que se acha a frase a senhora ainda está falando do autor e não do personagem. Terá havido engano, deslocamentos, ou será para mim mesmo que a senhora dirige tão severa acusação? É claro que não me compete defender-me, e que nem posso trazer-lhe aqui as provas de meus sentimentos. O mais que posso dizer, sem provas, sem argumentos, é que eu não desprezo os outros homens. Permita-me aqui o simples e infantil recurso da teimosia: não desprezo, não desprezo, não desprezo!

Mas deixemos a minha pessoa e vamos ao personagem. Desde logo quero mostrar-lhe o que me parece ser uma contradição sua: a senhora impugna a classificação de romance, mas logo após entra a brigar com meu pobre José Maria como brigaria com sua prima ou sua cunhada. De seu artigo, se não fosse a peregrina beleza de muitas passagens que me deixaram inveja, eu poderia impugnar a classificação de crítica literária. É antes uma briga, uma discussão em família. A senhora tomou partido contra José Maria. Zangou-se. Ora, a gente só pode zangar-se com uma pessoa. Logo existe a pessoa, e conseguintemente, o romance.

Vamos agora ao personagem.

Não. Ainda tenho alguma coisa a dizer do autor, ou melhor, das intenções e dos motivos que foram empurrando o autor para aquele feitio de que se revestiu a obra.

Eu não sei bem como em geral ocorre a gênese de uma composição. As confissões públicas de que tenho notícia, como, por exemplo, a racionalíssima explicação que Edgar Poe nos dá de seu poema, não me convencem. Não sei se via de regra o artista enceta seu trabalho com idéia da obra, do gênero e da espécie. O próprio Poe, movido pelos misteriosos impulsos, sentou-se um dia para fazer um poema. Mozart sentava-se para compor uma sinfonia. Balzac aparava a pena para escrever um romance. Não digo que o gênero se impunha, nesses casos, em primeiro lugar. Não. O que sempre aparece em primeiro lugar nos horizontes da inspiração é a idéia, a ponta, o mastro de uma indecisa idéia. O que o artista quer, antes de tudo, é dizer, exprimir, comunicar uma idéia. Mas como? Com que sistema de sinais? Dentro de que espécie de símbolos? Essa segunda determinação segue de perto o surgimento da idéia quando o artista tem um instrumento preferencial, bem marcado, em ligação conjunta com suas idéias. Balzac e Mozart tinham seus nítidos instrumentos de expressão, de tal sorte que à impulsão da idéia seguia-se a determinação do gênero da obra. Provavelmente, nesses casos, a idéia já aparece ligada ao meio de expressão como ao seu instrumento conjunto.

No meu caso, porém, por motivos diversos, de que não me gabo, a idéia apareceu com certa nudez e certa indeterminação quanto aos meios de expressão. Fui em tempos, quando andei a me procurar, uma espécie de monstro que detinha um bizarro título de campeonato: de todas as pessoas de meu próprio conhecimento eu era a que fazia o maior número de coisas mal feitas.

Fiz música, pintura, escultura, poesia, ciência, técnica, pedagogia, esgrima, taquigrafia, xadrez, e mais outras coisas truncadas e menores.

Mal ou bem fixado na nobre arte da palavra, e tendo deixado definitivamente a palheta, o florete e o tabuleiro, trouxe eu para dentro da literatura esse mau princípio da difusão e da indisciplina. Um gênero era pouco para minha tendência de poligamia espiritual. E dei um certo desligamento, um certo hiato — que reputo defeituoso — entre o surgimento de uma idéia e a escolha rápida e decisiva de seu instrumento conjunto.

Seja como for — e receio que essa explicação já esteja demais enfadonha — o fato é que eu posso asseverar que não foi “para escrever um romance” que um dia me sentei diante do papel em branco. Foi para dizer, para exprimir uma experiência. E essa experiência era a da procura do sentido último da vida, e da procura da própria alma — a descoberta do eu — desenhada contra o fundo escuro dos desencontros, dos equívocos, dos absurdos, e da morte.

Poderia exprimi-la de um modo teórico e especulativo, como em aulas no Centro Dom Vital já fizera. Mas a idéia que me empurrava já não era tão minha. Não. Ela queria ser dita com o calor e a particularização de uma experiência própria e vivida. Como fazer?

Em meu próprio nome não poderia fazer as introspecções necessárias, mormente quando precisava da ganga dos fatos, das decepções, das aflições pessoais. Se escrevi sempre na primeira pessoa, por questão de estilo, nunca me atrevi a tomar o pronome em toda a sua palpitante substancialidade. As experiências descritas poderiam facilmente se transpor para outros eus.

Ao contrário, a idéia que me puxava agora tinha exigências de personalidade e de intimidade. Como fazer?

Surgiu-me então na mente a idéia de lançar mão de um heterônimo, como o Fernando Pessoa. Pus-me então a catar dentro de mim, na memória e na imaginação, a matéria com que pudesse fazer um duplo. Impregnei-me de um tipo de leitura (Rilke, Pascal, etc) que não tinha as preferências do autor de meus livros anteriores. Impregnei-me de Wagner, Nietzche, para tirar de dentro de mim um tipo de parentela romanticamente germânica, diferente, bem diferente de Chesterton que me acompanhara passo a passo no “Três Alqueires e uma Vaca”.

Devo notar de passagem que tenho certa aversão a esse tipo humano que procurava tirar de mim mesmo. Mas parecia-me que era esse o tipo que mais convinha à experiência que andava a pedir expressão.

Na fina ponta da idéia minha, ou quase minha, estavam os dois termos principais da mensagem de Santa Catarina de Sena: “Conhece-te a ti mesmo” e “no Sangue”. Já havia escrito algumas reflexões sobre esse tema. Já pronunciara, no Convento dos Frades Dominicanos, uma conferência sobre essa doutrina mística, e muitas páginas foram trazidas para o plano da mística natural em que transcorre a história de José Maria. Os outros motivos vieram incorporar-se à idéia. O primeiro, a Mulher, tinha uma exigência, uma força de invasão que eu não podia deter. A Mulher entrou sem pedir licença e instalou-se no centro da idéia. Três rosas que por acaso morriam numa jarra, diante de mim, trouxeram a lembrança das mulheres flores de Wagner. E a Morte, que já estava no fundo da idéia, tornou-se feminina, e revestiu-se do sortilégio de Kundry, a mulher eterna de Wagner, ambivalente, letal e salvífica, sedutora e corredentora.

O meu personagem delineava-se, magro, melancólico, no caos feminino, no confuso fogo de cores e perfumes. E eu o via de costas, ombro curvado, a despedir-se, a despedir-se...

Faltava a lógica mortal, o silogismo, e faltava a doença. A página de Tolstoi veio ao meu encontro — já a citara em aula — e sai então a procurar a doença. Ora, neste ponto fui servido por uma extraordinária coincidência: o amigo que me deu a doença, com seus detalhes, escolheu aquela, a única que serviu, para exprimir ao vivo o centro mesmo da idéia. Deu-me uma doença que consiste na falsificação do sangue! Nesse dia, com grande exultação senti que tinha naquela doença um dos personagens do meu drama. Porque convém aqui assinalar uma coisa: seguindo a influência de Wagner, eu levava meu personagem a mover-se entre leitmotives, espécies de símbolos, espécies de personagens, transubstanciados. As rosas são evidentemente as mulheres encantadas que Kundry comandava. A Morte, o Sangue, o Relógio quebrado, Aldebarão, outros tantos personagens, e os rubis nasceram do conúbio do sangue com a poesia.

Estava eu nesse ponto, com meio-caos e meia-obra, ainda preso pelo fígado a um heterônimo comprometedor e pouco livre, quando um dia, na rua, vi passar o José Maria.

Estranho personagem! Alto, magro, vestido de escuro, meio curvado, com um ombro um pouco mais alto do que o outro, braços caídos, moles e disponíveis, ele passou diante de mim, e eu notei no seu rosto de anjo falhado, ainda moço, uma mecha de cabelo apenas grisalho caído sobre a fina sobrancelha em arco interrogativo; e eu vi um olhar de sombra, ardente, agudo, a procurar ao longe alguma coisa perdida — saudade? esperança? A procurar aquela alguma coisa — Eunice? — que lhe punha no rosto a sombra de um sorriso frágil e triste.

Estive para chamá-lo baixinho, pelo nome José Maria! Para travar-lhe o braço, e ir dali conversando, ouvindo a história que lhe sombreava o rosto fino. Mas a rua levou meu personagem, como um rio grosso leva baldeado, troncos, flores, e objetos roubados às margens, cadáveres de objetos roubados. Vi-o ainda uma vez, longe, ombro curvado, braços disponíveis, andar vacilante e leve...

Tinha o meu personagem. Existia agora fora de mim. Somewhere. Já não era somente um fantoche composto com meus restos. Conseguiria exprimi-lo? Conseguiria traduzi-lo? Não sabia. E até hoje não sei.

Digo mais, se a senhora está certa no que disse de meu personagem, então estou eu erradíssimo, estou em falta de traição. Assusta-me a idéia, D. Raquel de Queiroz, de que um de nós dois se tenha enganado de um modo tão colossal. Serei eu? Será a senhora? Terei eu fabricado moeda falsa? Terá a senhora interposto algum filtro de luz na leitura, o bastante para cortar as raias do generoso vermelho, os traços de sangue e amor — finos traços, mas vivos e palpitantes — que julgo eu ter conservado no que disse por procuração, no que atribui àquela testa clara e alta de topete grisalho àquele fino olhar perdido e ardente?

Que posso eu fazer agora? Emendar, corrigir o livro? “Quod scripsi, scripsi”. Dura lei do objeto. Dura contingência das empresas editoriais que talha em guilhotinas engenhosas um tijolo de papel a que nada se pode acrescentar!

Mas posso escrever uma glosa, um post-scriptum, uma explicação que será uma retratação se não houver continuidade e proporção entre os traços de hoje e o perfil de ontem. O seu curto bilhete, D. Raquel de Queiroz, contém três ou quatro observações que, para resposta adequada, exigiria de mim outro livro. Melhor, exigiriam dez livros, exigiria uma Suma, uma viagem de circunavegação pelo hiperbólico mundo da comédia e da tragédia. Se quiser, partamos juntos para essa esquisita viagem, e na volta conversaremos para saber quem está com a razão.

Houve tempo, um tempo assaz estúpido se quiser, em que se pensava que o personagem de um romance devia necessariamente ser um personagem excepcional. Mais tarde, porém, veio outro tempo, ainda mais estúpido, em que se decretou que o personagem do romance, para ser autêntico, devia necessariamente ser um personagem vulgar. Em qualquer dessas épocas fará escândalo quem afrontar as regras fixadas por decretos da moda. Ontem escandalizaria quem tomasse um simples boticário, hoje escandalizará quem escolher um descendente de Pascal.

Não me passou pela idéia afrontar as normas de nosso tempo. Se o fiz foi por acaso. Mas é evidente que o meu personagem precisava ter a sensibilidade dos mais finos sismógrafos para traduzir a experiência que todos vivem, confusamente, angustiosamente, mas nem todos podem exprimir.

Neste ponto precisamos firmar alguns conceitos que nos separam. Entre eles tomo em primeiro lugar o conceito de humano com que a senhora arma para maltratar meu José Maria.

Que quer dizer “humano”?

Estamos aqui no centro mesmo da questão. É nesse ponto, creio eu, que se situa o nosso desentendimento é nesse ponto que pode resolver-se ou agravar-se o mal-entendido entre a senhora e José Maria.

De mim mesmo disse a senhora que sou mais desumanizado do que os outros, porque “mais trabalhado por outras culturas, por emoções intelectuais refinadas”. Donde se conclui que a humanização e a cultura são antagônicas, e que o homem mais se define pelos pés do que pela cabeça.

Há sem dúvida um risco de angelismo quando a gente esquece os pés do homem, mas não é com o naturalismo, com a filosofia da complacência e da mediocridade, que se cortam as asas do homem. Erraria eu se atribuísse ao vulgar, ao homem humilde e ignorante, uma diminuição essencial de sua humanidade. Mas erra mais, no sentido oposto aquilo com que o homem se define, quem atribuir uma essencial diminuição ao poeta, ao filósofo, ao alpinista das idéias ermas e nevadas. O que é que nós reverenciamos no homem comum senão essa espontaneidade. Ele não a sabe exprimir. Sem dúvida. Mas será essa incapacidade, esse “não saber exprimir” que constitui o título máximo do homem comum, merecedor de nossa reverência? Seria esquisito, não acha?, que o objeto de reverência fosse exatamente essa incapacidade acidental de dizer, e não aquela realidade substancial. E o poeta? Reverenciamos nele a habilidade, a jogralidade, a custa de lhe diminuir os títulos da essencial humanidade? Seria ainda mais esquisito, não acha?

Não. Dissociemos desde já, por favor, essas duas idéias de cultura e desumanização que a senhora conjugou. Serei eu o monstro que a senhora esboçou com talento. Mas então eu o serei não pela cultura, mas pelo fato de não a ter assimilado, pelo fato de a tê-la nos ombros mais do que na alma, fardão vistoso mais do que dilatação da inteligência. Veja bem, D. Raquel de Queiroz, que não me esquivo de sua acusação. Quero-a porém mais fundamentada e mais perfeita. Porque se a cultura traz desumanização, devemos fechar as escolas, devemos soltar vivas ao primarismo populista dos governantes de fancaria, e insensivelmente devemos voltar à árvore.

Há no seu bilhete um trágico sinal dos tempos: uma desconfiança da inteligência. A mulher mais inteligente que eu conheço bate com o pé no chão, envolve-se em defesas femininas e temperamentais, apega-se aos poros da carne, às gorduras, à morrinha da carne, para ferir alto, para matar a estrela que brilha nas testas dos homens.

Como se explica que a inteligência choque a inteligência? Como se compreende que dois alpinistas que se encontram, com suas cordas e seus pés-ferrados nas alturas perigosas não tenham alegria do encontro, e não gritem um para o outro numa sonora saudação de fraternidade e de aventura?

Ah! Bem sei que me vais falar no diabólico orgulho que mora nos anjos falhados. Sim, há o orgulho. Bem sei. Há o orgulho, esse vício capital que mais do que tudo pesa no mundo do homem. Vício geral, vício universal, apego do eu, desregrada estima de sua própria excelência, erro interior, falsa avaliação do próprio ser, afronta a Deus único e perfeito.

Se nós escrevemos num papel amassado “orgulhoso” e o soltássemos dum oitavo andar da Avenida Rio Branco, ele cairia certo, em cima de rico ou de pobre, de sábio ou de néscio. Certíssimo. Luva para qualquer alma. Adjetivo para qualquer humano substantivo.

O orgulho é o primeiro e último vício, o mais persistente, o mais difundido. Não há idade que lhe resista; não há condição social que dele se defenda. A concupiscência tem momentos de pacificação. Arde em desejos quando não possui, mas pacifica-se, neutraliza-se quando atinge o bem cobiçado. O orgulho, não. Quanto mais servido mais ampliado fica. É uma fome inextinguível. Quando parece estar pacificado é justamente quando está mais exasperado. O orgulho é uma coisa feia. É sobretudo uma coisa transcendentalmente ridícula. É a mais comumente merecida das acusações, mas é também a mais grave. O primeiro equívoco que a seu respeito se comete — e que a senhora cometeu — é o da sem-cerimônia com que, cortesmente, educadamente, se atribui ao outro esse vício mortal. A senhora não disse de mim, sem cuidadosas averiguações, que eu ando nos lugares de perdição. Não disse de mim, sem certeza metafísica, sem ter visto com os olhos, que eu sou um beberrão. Mas insinuou que sou orgulhoso, e de meu personagem não teve dúvida de dizer que é diabolicamente orgulhoso. Por quê?

Aqui entramos noutro assunto, isto é, noutro equívoco que precisamos esclarecer: a senhora deixou-se levar por um lugar comum que atribui certa proporcionalidade entre a inteligência e o orgulho. E aqui estamos, novamente, em posição tomada contra a inteligência. E conseqüentemente aqui estamos nós, D. Raquel de Queiroz, a redigir com sua graça e seu talento um grande convite à festa da mediocridade.

Ora, eu não creio que uma pessoa inteligente, com um minuto de reflexão, possa persistir nesse lugar comum. O orgulho é um movimento da vontade, e procede de um erro, de um equívoco central. Sua composição é pois em tudo contrária à luz: é uma teimosia em campo obscuro, alimenta-se de erro, e desenvolve-se na medida em que a vontade não consulta a sua regra. Tanto pode ocorrer num homem de estudo como num homem iletrado, mas é mais provável que se desenvolva naquele que se nutre de mentiras vitais e que não se examina. O que se pode sensatamente dizer do homem muito lúcido, do poeta, do filósofo, é que a sua parcela de orgulho fica mais pública, mais visível. Mas não se pode dizer que essa parcela existe nele por causa da lucidez, da poesia e da filosofia. Não. Anda por aí muito orgulhoso calado, muito orgulhoso sem armas, muito orgulhoso que inventa seu próprio universo moral, que acha sozinho, na latrina talvez, a sua própria filosofia, a sua própria religião. Como porém esse homem é materialmente modesto, diz-se que é humilde. O bombeiro hidráulico que anda inventando o moto-contínuo é humilde. Mas o homem que esperou calado, quieto, inédito, uma religião dada por Deus e uma filosofia construída em 2.500 anos pelo gênio de seus antepassados é orgulhoso. A mocinha divorcista que chama de amor o que é comédia; que não sabe o que é casamento; o que é homem; o que é uma sociedade de homens; e quais são as exigências que decorrem da natureza das coisas, e que fala alto do que nunca pensou, e que tira argumentos das glândulas, essa é humilde. Ao contrário, quem procurou destrinchar o fio confuso da grande lei natural, quem faz de sua inteligência o espelho das coisas, quem estuda, quem lê, quem ouve, quem passa anos calado, debruçado, atento, esse é orgulhoso. E quanto mais lógico mais orgulhoso.

É possível que um certo orgulho, um certo apego de si mesmo produza no homem estudioso um movimento de irritação diante da estúpida soberba que encontra na mediocridade. É possível que sua intolerância tenha um zelo amargo quando vê o alegre desembaraço com que a estultice anda no mundo. Mas será razoável tirar dessa intolerância um sinal de orgulho? Não ocorre que possa nascer do imperativo das evidências vistas, contempladas, veneradas. Para muita gente — e este é outro lugar comum que precisa ser re-examinado — a intolerância é correlata do orgulho.

Ora, eu creio e afirmo, intolerantemente, que o quadrado da hipotenusa é a soma do quadrado dos catetos. Essa pequena verdade geométrica, uma vez vista, obriga, necessita a inteligência. E toda a dignidade humana repousa sobre essa docilidade da inteligência às coisas. Se vi, vi. Haja o que houver, chova ou faça sol, prendam-me, torturem-me, chamem-me de tudo: o quadrado da hipotenusa continuará a ser a soma do quadrado dos catetos, e eu trairei a minha alma se renegar o teorema. 

Posso tolerar que outros homens não saibam geometria; mas não posso tolerar que a ignorância deles seja uma virtude mais alta, e que reclamem o elevado direito de transformar o mundo dos triângulos.

Não, D. Raquel, não é na perspicácia e na lucidez que o orgulho escolhe seu abrigo dileto. É antes na obscuridade e na estupidez. Um homem extraordinário, como por exemplo um Einstein, ou um Bérgson, poderá ser orgulhoso. Mas eu diria que o é por não ser bastante inteligente. Todos nós temos nossas zonas obscuras, todos nós, mal ou bem, pagamos o imposto da burrice, e é nessa mesma medida que seremos orgulhosos.

É um lugar comum, um bom lugar comum, o que diz que o homem quanto mais estuda mais sabe o que ignora. Creio que foi Pascal que teve a idéia de representar a conquista intelectual do homem por um círculo. A área do círculo é a ciência, o perímetro da circunferência é a fronteira do ignoto e portanto a medida da ignorância. Ao contrário, o tolo que folheou um almanaque julga-se possuidor dos mais transcendentes arcanos. 

Torno a dizer que é possível encontrar um grande orgulho numa grande inteligência. Esse conúbio é trágico para quem o carrega, e para o mundo. Faz medo. É terrível. Tudo isto é exato, mas nunca eu diria, nem insinuaria que uma coisa acompanha outra, ou que seja nos sinais de inteligência que se deva buscar a revelação do orgulho.

Hoje, na confusão, no caos de opiniões abortivas em que nos movemos, quem tiver convicções tiradas da evidência aritmética ou filosófica, será considerado intolerante e orgulhoso. A humildade, ao contrário, nessa feira livre de idéias apodrecidas, tornou-se sinônimo de tolerância, de complacência. Tornou-se, desculpe-me a expressão, uma blandiciosa cafetina das idéias baratas.

E a luz, e a luz, D. Raquel?

A inteligência vive da luz, come luz, bebe luz, e tem arestos duros de diamante para espargir as cintilações da luz. Deverei lembrar-lhe que Santa Tereza, em cuja história a senhora esteve empenhada, disse que a humildade é verdade?

Humildade é verdade. É claro que subsiste um modo orgulhoso de falar na verdade; mas isto só prova que existe um modo de trair a verdade usando o seu santo nome. Como também existe a estultice que chama de deus o que não é Deus. Mas humildade é verdade, o orgulho é mentira. Mentira encravada entre o eu e o eu. Mentira última, profunda, difícil. Mentira quase substancial. Mentira minha. Mentira entre a alma e a alma.

Os nossos grandes mestres espirituais, que bem sabiam o que é o orgulho, o que é a humildade, deixaram a esse respeito um depoimento unânime. Veja a grande mulher que foi Santa Catarina de Sena. Veja São Bernardo, o asceta, o intolerante, o lúcido polemista, o terno comentador do Cântico dos Cânticos. Deixou-nos ele um tratado sobre os graus do orgulho. O primeiro grau é a curiosidade, a inquietação da inteligência. Poderíamos reconhecer nesse primeiro grau os insólitos gestos do meu José Maria, o curioso, o inquieto. Mas sabe a senhora qual é o décimo segundo grau do orgulho na escada do Santo Doutor? É o hábito do pecado, a insensibilidade adquirida, a tolerância, a indiferença benigna. São os inocentes do Leblon. São os homens que não fazem questão que dois e dois sejam quatro, e que admitem que cada um tenha as opiniões que quiserem. O décimo segundo grau do orgulho é o relativismo, que já não discute, que já não exige. O décimo segundo grau o orgulho é a complacência do mundo.

Diz ainda a senhora em um artigo que o meu personagem está cheio de angústia metafísica, puramente metafísica, e não de sangue e de lágrimas como a nossa.

Como assim? Há aí, D. Raquel, uma falsa idéia do que seja a metafísica, com alias já notei na pena de outro crítico. Quem lhe diz que suas angústias não são metafísicas? Convém precisar melhor os termos. No sentido exato a metafísica é a ciência especulativa do ser enquanto ser. No sentido metafórico, diz-se experiência metafísica, ou angústia metafísica, do que se refere ao drama vivido pela inteligência, obscuramente experimentado, e isso é comum a todos os homens. A poesia é privilégio de poucos, mas a experiência poética é comum. Assim também o que chamaríamos experiência metafísica. E essas experiências são trivialíssimas, vulgaríssimas, e surgem mil vezes por dia na mais obscura das vidas. Uma criança de seis anos já tem experiências metafísicas. Uma cozinheira quer ir ao carnaval por motivos de inteligência, isto é, metafísicos. O erro está em pensar que a filosofia não se comunica com a vida comum, permanecendo num firmamento de essências. O meu personagem, sem o menor vislumbre de ironia, ao contrário, com uma ternura quase manifesta demais, vê nos projetos de Jandira, a austera cozinheira, a mesma raiz comum, o horror ao nada. Falarei mais adiante desse problema. No momento quero assinalar, D. Raquel, que as angústias do meu personagem são, confessadamente, as mesmas, em suas raízes, que os de sua cozinheira.

Foi assim, ao menos, que entendi o que disse José Maria sobre o carnaval de Jandira. E se assim é, não poderão ser suas, D. Raquel, as angústias humildes de uma cozinheira?

Um outro crítico estranhou que José Maria, depois de falar em ciúme metafísico, viesse cantar uma banalíssimo ciúme de todos os dias. Imaginaria ele que o ciúme do filósofo seja em latim ou em grego? Ou pior, pensa o crítico que não existem, atrás dos fatos mais triviais, as causas mais profundas.

A rigor eu diria que meu personagem poderia convencer que não existe a banalidade. É um engano, e não pequeno, imaginar que o mundo das realidades se divide em dois, de um lado o trivial, inclusive o trivial fino dos escritores de talento, e de outro lado o profundo dos filósofos. Tudo é trivial, D. Raquel, e o nosso olhar se contenta com a pele cansada dos fatos quotidianos. Mas tudo é profundo, metafísico, religioso, se o olhar procurar o mistério. Santo Agostinho tem uma grande frase em que diz que os grandes mistérios se tornam banais pela repetição, ou pela desatenção do olhar. Pois é isto uma das coisas que o meu personagem mais procura exprimir. Tudo, tudo, absolutamente tudo, tem raízes que vão até as causas primeiras, até a mão de Deus.

Foi assim que entendi o que disse José Maria, da cozinheira, das rosas, da trágica frivolidade da sombra feminina que o persegue.

A experiência metafísica, que poderíamos chamar com mais propriedade de mística natural, não precisa de laboratórios como uma experiência química ou genética. Tudo o que existe é matéria para essa universal experiência. E suas repercussões vão até o sangue e à lágrima porque o homem, apesar de tudo, é um só.

(Revista Permanência - 

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