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Reflexões sobre a CNBB

Gustavo Corção

 

No artigo de quinta-feira mostramos que as Conferências Episcopais, no mundo inteiro, se hipertrofiaram em relação ao que delas esperavam os padres conciliares com um otimismo que infelizmente não foi correspondido pela marcha dos acontecimentos. Dessa deformação resultaram a diminuição e até o amordaçamento da autoridade episcopal que forma, em ligação com o Sumo Pontífice, a verdadeira estrutura hierárquica de direito divino da Igreja de Cristo.

De antemão poderíamos prever as exorbitâncias e os aberrantes pronunciamentos, porque sabemos que as coisas agem segundo sua natureza e seu estado: operatio sequitur esse. Em tempos normais seriam descabidas as apreciações críticas de um leigo que, normalmente, deveria ouvir com obediência com e respeito os pronunciamentos de seus pastores; mas os tempos em que vivemos se afastaram demais da normalidade e nos obrigam a atitudes e protestos que só fazemos com lágrimas do mais profundo desgosto. E aqui não preciso lembrar os estímulos que os leigos receberam do Concílio Vaticano II (Lumen Gentium, Cap. IV) para uma participação maior nas obras do apostolado. Muito antes do Concílio, desde o dia bendito em que voltei à Fé de meu batismo, não faço coisa alguma com mais empenho e fervor do que estudar a Sagrada Doutrina, e logo ensiná-la aos que há mais de trinta anos me procuram, como guia sem diplomas, ou como hostiário da Casa Luminosa, hostiário sem ordens, mas também sem aposentadoria. E agora Deus sabe que não minto se disser que não há para mim maior aflição do que a dos descalabros que cercam, escurecem, ocultam, desfiguram a mais bela das esposas como aquela Jerusalém que João viu descer dos céus ornada e paramentada para seu Esposo (Ap. XXI, 2). E a aflição se torna exponencial, lancinante e quase insuportável quando leio ou ouço dizer "que eu estou atacando a Igreja!!!" Como se a Igreja de Cristo assumisse em sua santa e impenetrável substância todos os disparates de seus membros, e com eles se identificasse. Quereriam, se bem entendi, que meus protestos fossem mais aveludados, que minha indignação fosse sempre dominada e vencida pela suavidade do tom. Seria tal coisa uma perfeição exigida pela Caridade? Não haverá debaixo da grande cúpula da maior das virtudes teologais lugar para todas as paixões da alma? Não haverá uma alegria caridosa? Uma tristeza caridosa? Não haverá também uma cólera caridosa?

Santa Catarina de Sena, a "dolce mamma" que à imagem da Mãe de Deus foi mãe e virgem, mãe solícita e virgem intransigente, escrevia a três cardeais italianos, nos tempos em que a Igreja não chegara à metade ou à décima parte do que hoje padece: "Desgraçados! As trevas do amor próprio vos impedem de ver a verdade... sois ingratos, sois vendidos; em vez de serdes os escudos da Igreja, vós a perseguis. E em vez de flores perfumadas da Casa de Deus, tornastes-vos podridão que envenena o mundo. E em vez de anjos da terra tomastes o oficio dos demônios... falo-vos sem respeito porque já não sois dignos do respeito." (Ste. Catherine de Sienne, Catholique romaine, par J. Leclereq, Lethielleux, 1522, p. 87.)

Não ousarei imitar a cólera daquela que não pude e nem de longe cheguei a imitar na santidade.

Tratarei de graduar o tom de minhas apóstrofes, não por um convencional e diplomático respeito que não merecem os vendilhões do templo, mas por um reconhecimento de minha pequenez e da infinita tristeza de não ser santo. Mas esse reconhecimento não me levará à capitulação e ao silêncio.

Procuremos, leitor amigo, um tom que seja verdadeiro sem deixar de ser áspero se a aspereza estiver nas próprias arestas da verdade; procuremos um tom que seja mais serviço do que desabafo, que sempre seja mais voltado para a glória de Deus do que para as conveniências dos homens.

E volto a reafirmar o que outros, em vários tons, estão dizendo na França, na Itália, na Espanha e nos demais países onde ainda subsiste a cristandade. Volto a dizer que as Conferências Episcopais se hipertrofiaram, se deformaram, e assim desnaturadas passaram a dar maus e abundantes frutos. Já disse atrás o que é de uma solar evidência: as Conferências estão permitindo que alguns poucos atrevidos, e às vezes um só, multipliquem pelos jornais pronunciamentos que recaem sobre a honra de outros bispos que, por sua vez, não têm coragem de desmentir e de protestar, porque espalhou-se no ar o mau e falso princípio de que acima de tudo devemos salvar as aparências de uma unidade que mais se fundamenta nas conveniências do mundo do que na Verdade de Deus de que a Igreja é guardiã virginal e intolerante.

Vê-se assim que as Conferências, no grau de deformação a que chegaram, são instrumentos perfeitos para o atrevimento de uma minoria ativa que já não merece o respeito de ninguém, e para a passividade timorata de uma maioria que destarte acabará perdendo também o direito ao respeito. A esse defeito de estrutura acrescentemos da incontinência verbal: as Conferências falam demais, estão demais nos boletins, estão todos os dias nos jornais.

E além de tudo isto cabe aqui a pergunta: como pode uma Assembleia deliberativa e executiva funcionar sem a reunião constante de seus membros? Pode alguém imaginar uma Câmara ou um Senado cujos membros residissem nos Estados e nas cidades que o elegeram? Tal Assembleia, para parecer que é Assembleia e para funcionar com membros esparsos, só teria uma solução: fazer-se representar por uma Comissão Central, ou por quatro secretários e peritos. E aqui voltamos ao defeito fundamental: a autoridade dos Bispos, em pronunciamentos e decisões gravíssimos, como por exemplo as que se referem à pastoral catequética, se omite, se dissolve, e se entrega aos "peritos" de que se queixaram os Bispos de Minas Gerais.

 

(O Globo, 03/07/1971)

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