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Redemocratização

Gustavo Corção

Não cabendo nos limites de um artigo um retrospecto da história dos regimes políticos, ainda que abusássemos da paciência do leitor e da liberalidade do jornal, tentaremos, entretanto, esboçar a figura peculiar dessa história: em contraste com o desenrolar de outros progressos humanos, notadamente no plano da ciência e da técnica, a soma de experiências e especulações realizadas pelo homem, na procura do regime mais conveniente, ou menos inconveniente, processou-se de um modo sinuoso e cambaleante, com avanços e recuos, sem que possamos dizer com segurança que este ou aquele regime representa uma decisiva e irreversível conquista do animal-político de Aristóteles.

Aliás, o próprio Aristóteles, quando genialmente reconhece que ao homem não convém propor somente o humano, já nos deixa entrever que a procura do melhor regime de organização da Pólis nos levaria irresistivelmente, como de fato nos levou, a uma reconsideração no modo de armar e propor o problema.

O Cristianismo nos trouxe uma nova posição de toda a problemática do homem neste mundo, imperada por princípios e normas que não são deste mundo. E os mesmos evangelhos que nos anunciam a Incarnação do Verbo “para nós homens e para a nossa salvação”, assim pregando uma igualdade que será reclamada mais tarde pelos portadores da bandeira da Democracia, e até da Revolução, também nos trazem um singular reforço de ideia do senhorio de Deus, que foi inspiradora do regime monárquico durante todo o milagroso e maravilhoso milênio medieval.

Os antigos sábios, quando diziam que não convém propor somente o humano ao homem, certamente suspeitavam a grandeza de um destino mais alto, em desproporção gritante com os pés de barro tão facilmente observáveis na marcha diária ou secular desse animal-racional tão pouco razoável, mas também frequentemente tão pouco animal.

O Cristianismo nos traz a chave dos dois grandes segredos da sorte humana, a chave do paraíso perdido, e a chave do céu trazida pelo Salvador. O problema e mistério da sorte humana impera do alto a política, a economia, e toda a emaranhada problemática do mundo.

Com a tragédia que encerra a história da civilização cristã, numa reprise do percado original em proporções civilizacionais, surge no mundo, com o pseudônimo de “humanismo” um anticristianismo essencialmente anárquico, porque desde logo fundado na autonomia do homem, que será sua própria lei e que, com maior ou menor violência, chegará a afrontar o senhorio de Deus.

Os antigos, de Aristóteles até Santo Tomás, já haviam dito, dos regimes de governo, que cada um tem sua fraqueza congênita – já que pela intuição pagã ou pela sabedoria cristã, todos suspeitavam ou sabiam que o homem, por suas próprias forças, era um animal ingovernável. No esquema clássico das perfeições e misérias dos regimes de governo, era sabido que o regime democrático (que mais tarde será pomposamente definido como “governo do povo, para o povo”) tinha uma congênita tendência à anarquia.

Ora, nos tempos modernos, marcados pela antítese formada pelo Cristianismo e pelo humanismo anárquico, vemos reviravoltar-se a colocação do problema dos regimes. E hoje diríamos vendo o problema de uma altura maior, que já não é a democracia, aqui ou ali experimentada, que tende para o anarquismo. Ao contrário, hoje é o anarquismo que marca toda uma civilização progressivamente anticristã, é essa religião do homem que agora reclama a bandeira da “democracia”, com cujo tênue véu cobrirá a nudez feia do orgulho do homem. Depois de especulações e experiências ora trágicas, ora cômicas, a Revolução humanista, anticristã, chegará ao século XX, estuário de erros e imposturas e então, provocadas pelo surgimento de dois regimes ditos “totalitários”, as nações ditas “liberais” são compelidas a aceitar a guerra que logo tomou proporções planetárias. E foi nessa guerra mal começada e ainda mais desastrosamente acabada para os vencedores, que aqui invertem a frase de Breno: “Ai dos vencidos”. A II Guerra Mundial terminou com este grito: “Ai dos vencedores”. Passemos, antes que, apesar da idade, eu monte num pégaso azul e saia galopando, ou voando em todas as direções, porque a história dos desastres da França e da Inglaterra, nesse absurdo episódio, faz-me perder a última reserva de serenidade. Mas antes de virar esta ridícula página da história registremos um fato: foi especialmente nesses anos de guerra que a bandeira da Democracia ganhou um prestígio imenso, e uma significação muito mais ampla do que a de um simples regime ou forma de governo. Democracia passou a ser um ideal supremo, uma “weltaschauung” e, por que não?, religião.

Naquele tempo em todo o ocidente, prejudicado pela queda da França traída por todos os que chamaram Charles Maurras e Brasillac de traidores, e mal dirigido pelos povos de língua inglesa, os lutadoes julgavam-se os paladinos da Democracia. E por que não os cruzados da religião do homem que se fez Deus? Democracy, democracia, democrácia, democratie. Bilhões de vezes por dia seu santo nome foi invocado. E quando Hitler praticava com satânica crueldade algum feito de genocídio, a consciência ocidental via naquele horror não uma ofensa a Deus e ao próximo, mas um monstruoso ato antidemocrático.

E graças a essa brutal e estúpida simplificação mental, o governo da Espanha católica, por ser ditatorial, e portanto antidemocrático como regime, passou a ser apontado como antidemocrático no novo sentido, e quase tão repulsivo como o massacre dos judeus na Alemanha e na URSS ou como o massacre dos poloneses em Katyn. Um só homem em toda a Inglaterra, repelia energicamente a fórmula que explicava a heróica resistência de Londres: -- Não! A Inglaterra não combate em defesa da Democracia, ela se levantou e lutará até o fim em defesa da Civilização. E por que não em defesa da Religião do Verbo Incarnado? Esse homem foi Hilaire Belloc, o grande amigo de Chesterton, e o constante leitor de L´Action Française.

No Brasil, a infeliz ditadura de Vargas contribuiu eficazmente para aderirmos à estupidez universal. Penitencio-me pela minha generosa contribuição trazida ao Banco das Asneiras do Século. Mea culpa! Mas hoje, depois de ter assistido ao espetáculo oferecido pelas “democracias” no arremate da guerra e as “tournées” especialmente degradantes da democracia cristã, na França, no Brasil, no Chile e na Itália, podemos dizer: -- Democracia? Pagamos para ver.

E quando nos falam em redemocratização penso na imagem muito usada por Santa Catarina de Sena: a dos cães que vomitam o mal que comeram, mas que depois de andar alguns passos voltam atrás e tomam a comer o vômito.

(O Globo, 12/2/77)

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