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Category: LiteraturaConteúdo sindicalizado

Gustavo Corção, animal-professor, escritor genial

Dom Lourenço Fleichman, OSB

O texto sobre Gustavo Corção que publicamos aqui foi escrito para a Revista citada no artigo em 2010. Vale notar que as publicações da Permanência sobre Gustavo Corção, seus artigos publicados no site e depois em livros de coletâneas, atraíram a atenção de alguns poucos estudiosos e pensadores. Foi assim que algumas teses acadêmicas foram escritas, e livros publicados. Hoje já é mais fácil encontrar Gustavo Corção nas livrarias do que na época em que escrevi esse artigo.

Se a Revista Conhecimento Prático de Literatura fizesse uma pesquisa junto a seus leitores com as seguintes perguntas:

- qual o autor brasileiro que foi considerado sucessor de Machado de Assis?
- qual o autor brasileiro que teve seu primeiro livro esgotado em menos de um mês?
- qual o escritor nacional que foi indicado por Manuel Bandeira para o Premio Nobel de Literatura?

Quem pensaria em Gustavo Corção? Pode-se dizer que Corção é um ilustre desconhecido, tendo sido esquecido e abandonado pelo mundo dos intelectuais. Hoje dificilmente se imagina a importância desse escritor nos vinte e cinco anos de sua carreira literária. Seu pensamento é de tal personalidade e profundidade que atraiu a atenção e a amizade dos grandes que o precederam. Vejam o que dizia dele o grande crítico Oswaldo de Andrade:

“Não me lembro de em toda a minha vida ter conhecido, entre artistas e literatos, uma figura tão impressionante como a de Gustavo Corção. Privei com Inglês de Souza, que era meu tio, conheci de perto João Ribeiro, Alberto de Oliveira e o nobre Emílio de Menezes. Fui íntimo de Villa-Lobos e Mário de Andrade. Na Europa me liguei a Picasso e Leger, Cocteau e Cendras, a esse original e magnífico Valéry Larbaud, a Supervielle e Romains, enfim, a toda uma geração revolucionária do começo do século. E apenas, com outro tom, mas a mesma doçura sarcástica, alguém me lembra o autor excelso de Lições de Abismo. Era um velho de 70 anos e tinha sido cruelmente abandonado por todos os seus amigos, quando o encontrei, no Quartier Latin. Chamou-se Eric Satie. E talvez venha a ser um dia considerado o maior gênio musical do século XX.

O que caracteriza essas naturezas que vão do doce ao amargo sem contraste é o que nelas há de inquebrável. Gustavo Corção é um inquebrável — faca de dois gumes. E isso muito se liga às virtudes intelectuais que o fazem, sem dúvida, o nosso maior romancista vivo. Nas Lições de Abismo como também na Descoberta do Outro não vejo concessões.
O que vejo é uma extraordinária e lúcida natureza de criador, ou melhor, de restituidor, pois que arte é restituição. Depois de Machado de Assis aparece agora um mestre do romance brasileiro.”
Correio da Manhã
, Rio de Janeiro, 5-4-1952 (Continue a ler)

Sobre Lições de Abismo

[Com satisfação publicamos um escrito inédito de Gustavo Corção sobre o seu romance Lições de Abismo. O texto era na verdade uma carta enviada à escritora Raquel de Queiroz e a reproduzimos pela primeira vez na Revista Permanência 265]. 

 

D. Raquel de Queiroz,

Li com enorme interesse a sua nota sobre o meu livro. Vou mais longe, confesso que li com sofreguidão. A senhora que já teve seus livros me entenderá.  Digam os outros que é vaidade nossa, mas não é; ao contrário, é talvez o melhor de nós, o mais puro de nós, essa avidez pela confirmação daquilo que escrevemos. Será no fundo vaidade, se quiserem, mas uma pobre vaidade, ou uma vaidade de pobre.

Aquele livro, quando o soltei, deu-me mais insônias do que nos dias de trabalho. Escrevera-o com paixão, dias e dias, noites e noites. Andava com ele em mim, comigo nele. Juntara, como num cadinho, a escória de todo um passado fantástico, meio vivido e meio sonhado. Fundira o grosso minério. Cinzelara as pepitas, os lingotes, as barras. E agora, apesar de todas as reprises, da revisão esticada, da refusão dos caprichos ingratos, dos cortes, e finalmente da ortografia — porque a minha nunca se depurou dum hibridismo em que as letras da adolescência se misturam aos acentos circunflexos da velhice — apesar de todo esse nervoso apego eu tinha de largá-lo, como se larga o filho completo e maior. (Continue a ler)

Machado de Assis e o Eclesiastes

Gustavo Corção

 

Num artigo do mês passado, sugeri a leitura de Machado de Assis a quem desejasse apurar o ouvido para o áspero e aflitivo timbre do Eclesiastes. Reciprocamente, sugiro hoje a leitura do livro atribuído a Salomão a quem desejar compreender um pouco melhor o famoso pessimismo de Machado de Assis. “No Eclesiastes há tudo para todos” dizia em 1895 o cronista da Semana. Haverá, pois, para os críticos uma chave que permita abrir os cofres secretos desse mesmo autor que em outra crônica, de 1893, escrevia: “Onde há muitos bens, há muitos que os coma, diz o Eclesiastes, e eu não quero outro manual de sabedoria”

São numerosas as passagens em que Machado se refere a esse manual de sabedoria tão adequado ao seu estilo, mas o que nos autoriza a dizer que o livro sagrado exerceu poderosa influência sobre o autor de Brás Cubas não é a frequência da citação. É antes a profunda, a misteriosa perspicácia com que Machado penetrou o espírito do angustiado Qohelet.

Naquele artigo de janeiro, se o leitor porventura ainda se lembra, seguíamos a hermenêutica traçada por sábios comentadores, pela qual o Eclesiastes seria um livro existencial, uma espécie de filosofia do absurdo, um manual de contrassenso escrito na pauta da limitação marcada pelos horizontes terrenos. Se a sorte do homem é o que se vê, sob o sol, então a vida é absurda. A forte estimulação desse livro consiste na confiança incondicionalmente posta na fé dos mandamentos. Esses, aconteça o que acontecer, não podem ser absurdos. Serão incompreensíveis como os sofrimentos de Jó e como o sacrifício pedido a Abraão. No dinamismo das propulsões negativas, ou melhor, do vácuo produzido por essa bomba pneumática, tira-se a conclusão: a sorte do homem não pode limitar-se ao que se vê. Ou ainda, do que se vê tira-se um prenúncio do que está escondido.

Os autores das modernas filosofias do absurdo optaram pelo absurdo. O que vale dizer que não optaram, que ficaram detidos, imobilizados, sem ímpetos para atravessar o espelho e entrar no mundo das maravilhas. Dessa paralisação da inteligência resulta um pessimismo real, profundo, desconsolado e cínico que não era, de modo algum, o pensamento de Machado de Assis. Melhor do que a maioria de nossos críticos viu o inglês que comentou a tradução de Brás Cubas e que assinalou o pessimismo estimulante do grande brasileiro.

Até seus últimos dias, na desolação da velhice e da viuvez, Machado de Assis conserva intacto o senso moral. Se nos romances parece ter atingido um cansaço de vida e um desconsolo supremo, aí está sua correspondência para nos mostrar o outro lado do homem que persiste em crer no homem e na realidade moral. E a explicação desse dualismo está no Eclesiastes, ou melhor, naquilo que falta ao Eclesiastes que é um livro onde o principal é justamente aquilo que falta: a descoberta da transcendência de nosso destino, a notícia da ressurreição. O princípio da complementariedade que tem tanta importância na física moderna, e que dá uma das regras capitais para a interpretação do Livro Santo, mostra-nos o desolado discurso de Qohelet como um sequioso apelo à outra metade da história que só muito mais tarde será revelada. O sábio louco diz “tenho sede” como o Cristo na Cruz, momentos antes da ressurreição. Sede de complemento, de completação, de consumação. Sede de solução.

Ora, há uma passagem onde se vê claramente que Machado de Assis compreendeu essa complementariedade dos mistérios de Cristo, e onde, ao Eclesiastes contrapõe o Sermão da Montanha. Em 25 de março de 1894, o cronista da Semana, disfarçando com guizos de frivolidade sua sabedoria, entra a descrever um Ofício da Paixão a que assistira. E termina assim a crônica com aquele seu ar de quem não sabe que está dizendo coisas enormes:

“Soou o cantochão. Chegou-me o incenso. A imaginação deixou-se-me embalar pela música e inebriar pelo aroma, duas fortes asas que a levaram de oeste a leste. Atrás dela foi o coração, tornado à simpleza antiga. E eu ressurgi, antes de Jesus. E Jesus apareceu-me antes de morto e ressuscitado, como nos dias em que rodeava a Galileia, e, abrindo os lábios, disse-me que a sua palavra dá solução a tudo.

— Senhor, disse eu então, a vida é aflitiva, e aí está o Eclesiastes que diz ter visto as lágrimas dos inocentes, e que ninguém os consolava.

— Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados.

— Vede a injustiça do mundo. “Nem sempre o prêmio é dos que melhor correm, diz ainda o Eclesiastes, e tudo se faz por encontro e casualidade”

— Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos.

— Mas é ainda o Eclesiastes que proclama haver justos, aos quais provêm males...

— Bem-aventurados os que são perseguidos por amor da justiça, porque deles é o Reino do Céu.

E assim por diante. A cada palavra de lástima respondia Jesus com uma palavra de esperança. Mas já então não era Ele que me aparecia, era eu que estava na própria Galileia, diante da Montanha, ouvindo com o povo. E o Sermão continuava. Bem-aventurados os pacíficos. Bem-aventurados os mansos...”

Como se explica, pergunto eu, sem apelos ao acaso, essa aproximação que tem finuras de sutil hermenêutica. Nós outros, depois de ler muitos sábios exegetas, chegamos à essa mesma conclusão. Depois de vivermos longos anos no convívio dos Doutores, conseguimos entrever as escondidas intenções do antigo escritor inspirado. Machado de Assis achou aquilo sozinho, talvez na Rua do Ouvidor, na mesma onde teve notícia do 15 de novembro: “Disseram-me na Rua do Ouvidor que os militares proclamaram a República...”

Como se explica tal acuidade que faltou aos perseverantes exegetas que procuram no Eclesiastes não sei que filosofia do moderado meio termo? Como se explica a intuição que teve ele, Machado, na sede de complemento que é a negativa substância do grande livro? Se aqui lembramos ao leitor que o Sermão da Montanha é o programa dos ressurrectos, ou o manifesto que vinha dilatar os horizontes do humano destino, e dizer que muito mais existe do que tudo o que se vê sob o sol, então o contraponto que Machado improvisou ganha a majestade de uma grande lição espiritual. Como se explica isto?

O gênio, por si só, explica muita coisa. Mas no caso é preciso acrescentar ao gênio a ressonância íntima, a assimilação perfeita que só pode vir de uma profunda conaturalidade.  As almas irmãs se encontram por cima dos mares e das idades. Machado de Assis encontrou na Rua do Ouvidor o antigo judeu, e completou-lhe o discurso com aquele outro discurso que apesar da secura dos tempos não lhe fugira da alma.

Tudo isto prova que o pessimismo de Machado de Assis é de espécie totalmente diversa daquele moderno que leva à imobilização e ao cinismo. É o pessimismo condicional do Eclesiastes, é o “stimulating pessimism” que o inglês descobriu.  A miséria do homem presta-se às lágrimas ou ao riso. “Eu fosse ela preferia que rissem...”. Riu ele de tudo ou quase tudo, mas esse riso que a miséria das coisas e dos homens lhe ditava, trazia disfarçado o riso do fim dos tempos. E eu creio não estar forçando a simpatia se disser que há na obra de Machado de Assis, como no seu manual de sabedoria, uma escondida gata borralheira que sofre os prestígios do mundo à espera das transfigurações.

 

(Diário de Notícias, 13/02/1955)

Romeu e Julieta

Pe. Luis Cláudio Camargo, FSSPX

 

[Nota da Permanência: O texto seguinte é a transcrição de uma conferência do autor dada na Capela Nossa Senhora da Conceição, Pendotiba/RJ, em 24 de novembro de 2012, sobre a natureza do homem e da mulher na obra "Romeu e Julieta". Optamos por conservar o estilo oral]

 

Breve introdução sobre o catolicismo de Shakespeare

Por que Shakespeare? Shakespeare foi um católico que viveu no período da perseguição anglicana. Não terei tempo aqui para apresentar as provas do seu catolicismo, mas acreditem em mim. Chegou-se a dizer que ele foi um católico covarde; isso não é verdade. A sua família, tanto paterna como materna, está no centro da resistência católica contra a rainha Isabel I, “A Sangrenta”. Shakespeare presenciou a execução de seu confessor, o jesuíta São Roberto Southwell, que fora preso. Naquele período, ser católico era crime de alta traição (lesa-majestade), cujo castigo era a pena máxima denominada Hanged, drawn and quartered. Primeiro as vítimas eram enforcadas – mas sem que o condenado morresse –, em seguida lhes abriam o ventre, arrancavam as vísceras e depois cortavam os braços e as pernas. Era uma técnica satânica em que se tentava manter a pessoa viva com o intuito de que sofresse o máximo possível. Por fim, somente depois de a vítima estar morta, cortavam-lhe a cabeça. Era essa a pena aplicada aos católicos. A quantidade dos mártires isabelinos é enorme. A tortura, o grau de horror que sofreram foi algo terrível. Shakespeare pertencia a uma família de resistentes católicos. Seu pai fora preso por ser católico e não frequentar o rito reformado. Os católicos viviam clandestinamente, e na casa de Shakespeare celebrava-se uma das missas clandestinas de Londres.

 

Linhas de interpretação nas obras de Shakespeare

Nas obras de Shakespeare há quatro linhas de interpretação.

A primeira linha incide sobre a maneira como que ele escreve. Todos os grandes autores se deslumbram com a perfeição do movimento das linhas do enredo, a harmonia, o ritmo com o qual ele conduz as linhas do drama apresentado, a fineza da ironia nas palavras utilizadas. Shakespeare é intraduzível, pois usava muito o recurso que em inglês se chama pun, isto é, jogo de palavras. Ele é um mestre no uso desses jogos.

A segunda linha de interpretação incide sobre o que podemos chamar de drama humano, as considerações mais altas da vida do homem. Um dos temas mais recorrentes são os mecanismos que usamos para nos esconder, os mecanismos de hipocrisia com os quais enganamos o próximo e a nós mesmos. A fineza com que analisa essa série de mecanismos gera uma identificação do leitor com os personagens. Tomamos um susto quando nos vemos caricaturados no papel, pois as descrições são muito finas, claras, evidentes, e demonstram que o autor tinha um conhecimento incomum da alma humana, muito elevado e profundo. Ele trata da nobreza, do heroísmo, do amor verdadeiro, do amor falso, da sensualidade, da humildade verdadeira e de todas as grandes virtudes.

A terceira linha de interpretação das obras de Shakespeare, a mais velada, porém evidente para os católicos que sofriam a perseguição naquele momento, diz respeito à história da Inglaterra durante as perseguições. Os católicos entendiam perfeitamente a linguagem figurada e metafórica que o autor usava.

A quarta linha de interpretação é uma autobiografia. Ele se retrata, mostra e revela nos seus livros. Quem conhece a sua biografia e as circunstâncias histórias e lê as obras percebe que ele faz uma confissão, conta a sua vida, pecados e virtudes. É admirável. Ele consegue colocar essas quatro linhas de inteligência na mesma obra, e fazer com que as palavras se encaixem exatamente para cada uma delas, demonstrando genialidade sem igual. Comparo essa genialidade literária à genialidade musical de Bach.

Shakespeare portanto não é um autor fácil. Em razão da complexidade dos textos o leitor pode equivocar-se facilmente: por ex., na terceira linha de interpretação, a sua intenção é enganar os leitores não católicos. Ele escreve ao modo renascentista, utilizando-se de todas as más inclinações e a aparente futilidade renascentista. Nosso Senhor, citando Isaías, diz: “Para que vendo, não vejam e, ouvindo, não ouçam nem compreendam1”. Shakespeare consegue concretizar tal ideia: ele raramente cria um enredo original – algo que certamente poderia fazer, pois era dotado de genialidade extraordinária – mas preferia sempre histórias que estavam “na moda” (contos, histórias antigas), a fim de não chamar atenção, pois às vezes queria denunciar algo terrível; quanto menos chamasse a atenção sobre o que estava dizendo, melhor. Romeu e Julieta, por ex., é uma obra que já existia, emprestando-a de um autor italiano, se não me engano. Juntamente às linhas de interpretação, estão os períodos da vida de Shakespeare.

 

Períodos da vida de Shakespeare

Podemos marcar três períodos muito claros na vida de Shakespeare.

O primeiro período (1590-1601) é o da adolescência e começo da vida adulta, em que se nota um catolicismo muito valente, no entanto há uma euforia ingênua, como se dissesse: “Já vencemos, tudo é fácil”. Romeu e Julieta data dessa época. A história dos jovens vencidos, que venceram apesar de perseguidos, e cuja morte motivou a união das duas famílias inimigas, transmite uma mensagem aos católicos: “Não se preocupem, em breve retomaremos o poder, e recuperaremos a coroa, estamos sendo perseguidos, muitos dos nossos estão sendo executados, mas isso é bobagem, em breve tudo ficará bem, já vencemos, já ganhamos.”

Por ser muito brilhante e suas obras muito admiradas, ele foi rapidamente associado à Companhia de Teatro Real (The King’s Men). A rainha percebeu que ele era católico, mas o achou inofensivo. Ela admirava tanto as obras dele que não conseguia lhe fazer mal. Quem estuda com cuidado a vida da rainha Isabel I percebe que ela dava sinais claros de possessão diabólica, era uma figura terrível. Poderíamos dizer que esse primeiro período é um pouco mais humanista que os seguintes e um pouco mais otimista, semelhante ao otimismo de um noviço que entra no mosteiro e pensa: “Já cheguei à sétima morada.” Desse período são as obras Henrique VIIIA comédia dos errosA megera domadaOs dois fidalgos de VeronaRicardo IIIRei JoãoTito AndrônicoTrabalhos de amor perdidosRomeu e JulietaRicardo IIHenrique IVHenrique V, e Sonhos de uma noite de verão – obra esta que despertou a atenção de Isabel, que começava a suspeitar dele, após o que Shakespeare escreve a sua obra mais renascentista, que é quase uma adulação à rainha, a fim de desviar as suspeitas.

O segundo período (1601-1608), podemos dizer que é o período da crise. A perseguição não terminava, o número de mártires só aumentava e os católicos começavam a se cansar. Morre a rainha Isabel e há certa tranquilidade. Sobe ao trono Jaime I, casado com uma católica, e os católicos sentem-se aliviados. É desse período a obra Tudo bem quando termina bem; o título evidencia o alívio sentido após a morte da rainha. Mas os calvinistas puritanos se lançam contra Jaime I, o qual, diante da instabilidade do trono, retoma a perseguição aos católicos de forma ainda mais violenta que Isabel. É um período de perplexidade e desânimo entre os católicos, que chegam à pobreza, à miséria, perdendo os bens; são despojados e desamparados. Dois tios de Shakespeare, irmãos de sua mãe, são executados como traidores da pátria, por se terem envolvido na Conspiração da Pólvora, uma armadilha preparada pelo governo inglês, com o intuito de que os católicos tentassem assassinar o rei e assim a coroa pudesse ter a oportunidade de retomar as perseguições. Os católicos caíram como bobos. Até hoje se celebra o dia da Conspiração da Pólvora, em que o rei se salvou dos “pérfidos” católicos.

A obra emblemática desse período é Hamlet. O príncipe Hamlet é o próprio Shakespeare, que se pergunta: por que lutar contra a corrupção do reino da Dinamarca? A minha mãe (a Inglaterra) abandonou meu verdadeiro pai (a monarquia católica) e se juntou a essa monarquia corrupta e vil. Os reis são irmãos (Rei Hamlet e Rei Cláudio), mas há uma diferença infinita entre os dois, pois um deles é assassino e perverso. Eu, filho da pátria inglesa, que devo fazer? O espírito do meu pai pede que eu ponha as coisas no lugar, que devo fazer? “The time is out of joint/ O cursed spite, That ever I was born to set it right: O tempo está fora do seu eixo/ Ó desgraçada ventura de ter nascido para colocá-lo de volta no lugar.” Parece-me a descrição da vida de Monsenhor Lefèbvre, mas se trata dele, da tentação de suicídio que ele sofre – é autobiográfico.

Em Otelo, a esposa fiel ama o marido, no entanto, movido pelo pérfido Iago, o marido começa a se deixar influenciar até que a mata. Nessa obra ele mostra a fidelidade dos católicos, fiéis à Igreja, fiéis à Inglaterra, e que morrem fiéis. Desse período são também Antônio e Cleópatra e Coriolano.

O terceiro período (1609- 1623), a sua última época, pode ser chamado de o período da virtude teologal da esperança. A obra emblemática desse período é A tempestade, na qual um rei traído e abandonado tem a ocasião de se vingar e, no entanto, perdoa. É uma mensagem para os católicos: “Prestem atenção, a nossa solução é sobrenatural, não vamos recuperar o reino com a força dos braços, mas que a nossa resistência não nos faça perder o céu; resistamos, mas façamo-lo com as armas mais altas, não devemos cometer o mesmo erro que eles; se nos odeiam, nós os perdoamos.” Essa é a grande solução dele, é quando o seu coração descansa. Ele morre como católico fervoroso.

 

Romeu e Julieta

Essa obra está mais centrada nas duas primeiras linhas de interpretação. A briga entre as famílias é aparentemente o seu aspecto central, por ser a causa da morte dos jovens esposos, mas na verdade é um problema secundário, a tela de fundo.

A ideia central que Shakespeare quer abordar em Romeu e Julieta é uma comparação entre três homens: Frei Lourenço, Romeu, e Mercúcio. Frei Lourenço é a figura do homem sábio, Romeu é a figura do homem afetivo e Mercúcio a figura do homem carnal. São descritos de modo exímio.

Mercúcio, jovem rico e inteligente, parente do príncipe, parece estar afastado do antagonismo das duas famílias de Verona e, no entanto, é a primeira vítima da obra. As suas qualidades, como nobre que era, não lhe dissimulam os vícios profundos. Desbocado e libertino, contente com a vida viciosa, olha a mulher como simples ocasião de prazer; é cínico e burlesco, consegue desprezar absolutamente tudo ao redor, leva a desordem até a morte, e morre insultando. A morte dele é uma morte impenitente: a morte de um homem carnal.

Romeu é a figura do homem afetivo: trata-se dos sentimentos, pois estamos no campo das paixões. Certo, não é um homem carnal, mas ainda não é um homem sábio. Seus afetos são nobres, normalmente, mas ele é capaz de ira irracional, medo irracional e amor irracional, embora o seu amor seja apresentado com nobreza.

O campo dos afetos é enorme, é um mar infinito e sem fundo. É possível que o homem afetivo se mantenha flutuando na altura de sentimentos nobres, mas qualquer movimento, qualquer correnteza forte arrasta-o para tal ou qual paixão. Tanto o homem carnal como o homem afetivo não alcançam a realidade, não conseguem descobrir as coisas como são. O desespero de Frei Lourenço consistia em tentar fazer Romeu entendê-lo, mas Romeu não o entendia, não era capaz de fazê-lo.

Frei Lourenço é a figura do homem medieval: um frade franciscano, sábio, conhecedor dos segredos das ervas, do drama de seu povo, profundo entendedor das almas, da situação histórica e das famílias. Ele é admirado, mas não é seguido. Pedem-lhe conselhos, mas não lhe obedecem. É o Renascimento diante da Idade Média, o qual olha esta com certa admiração, mas lhe diz: “Já passou, agora estamos em nível mais alto.” Romeu é a figura do homem renascentista.

Tendo em mãos essa chave de leitura, é muito interessante notar a relação entre os três personagens. Frei Lourenço, por exemplo, nunca fala com Mercúcio, e Mercúcio não faz nenhuma alusão a Frei Lourenço. Romeu fala com Frei Lourenço, Frei Lourenço fala com Romeu, Romeu fala com Mercúcio e Mercúcio fala com Romeu.

Outro ponto interessante, sublinhado na obra, é que Frei Lourenço entende muito bem Romeu e Mercúcio, ou seja, de cima para baixo o entendimento é possível. Porque está acima, Frei Lourenço entende-os, compreende os afetos de Romeu, quer conduzi-lo, protegê-lo e salvá-lo, mas Romeu não entende Frei Lourenço. De baixo para cima não é possível entendê-lo. Romeu não consegue sentir a sabedoria de Frei Lourenço, mas Frei Lourenço consegue entender os afetos de Romeu.

Romeu olha Mercúcio com benignidade e amabilidade, mas nunca entra no seu campo. Romeu é nobre, e a nobreza dos seus sentimentos – superiores aos sentimentos de um homem carnal – convence-o de que está à altura de Julieta. Shakespeare queria mostrar justamente que Romeu não estava à altura de Julieta. Romeu era um homem afetivo, e só o afeto não basta para que um homem alcance a sua esposa. Nem o homem carnal nem o homem afetivo são capazes de alcançar a esposa.

A insensatez de Romeu diante de Frei Lourenço é muito impressionante. Romeu merecia uma surra, não é um herói de modo algum. O cinema o retrata como galã de cabelo ao vento, mas é um homem desprezível, pois não chegou a ser homem, e é isso o que Frei Lourenço vai afirmar quando, de pé, diz a Romeu, que está jogado no chão tentando suicidar-se, que a solução para os seus dramas é a filosofia; estas são as palavras centrais da obra. Etimologicamente, filosofia significa amor à sabedoria, ou seja, sair do campo afetivo e chegar a ser homem verdadeiro, alcançar a altura da natureza humana. E a resposta de Romeu para Frei Lourenço é esta:

“Põe a filosofia numa forca, a menos que a filosofia possa fazer uma Julieta, uma cidade mudar, ou deixar írrito um decreto. Se não, de nada vale, para nada pode servir-me. Não me fales nisso (...) Falar não podes sobre o que não sentes 2.”

(É claro que se pode falar do que não se sente; não se pode é sentir aquilo que não se pensa. Justamente por não sentir os afetos de Romeu e por saber domar os próprios afetos, Frei Lourenço lhe entende perfeitamente.)

“Se, como eu, fosses moço; se Julieta te pertencesse, por se ter tornado tua esposa há uma hora; se tivesses morto Tebaldo, e louco, apaixonado como eu te visses: bem, assim podias falar, arrepelar a cabeleira, jogar-te ao solo como o faço agora, para dar a medida de uma cova que ainda vai ser aberta.”3

Frei Lourenço lhe responde:

“Detém essa desesperada mão. Acaso és homem? Tua postura o afirma, mas as lágrimas são de mulher, mostrando esses teus atos desesperados o furor selvagem dos próprios animais. Ó deformada mulher, sob a aparência de um mancebo, ó animal deturpado, sob a  forma de ambos: pasmado estou. Pela minha ordem sagrada: sempre fiz outro juízo de teu temperamento. Não mataste Tebaldo? Agora queres suicidar-te e, assim, matar a tua própria esposa, que de tua vida vive, revertendo contra ti próprio esse ódio amaldiçoado?”4

Essa resposta de Frei Lourenço é a demonstração de como o homem sábio enxerga o homem afetivo. Nós somos indulgentes demais: não sendo homem carnal parece-nos que já basta, parece-nos que já se é homem. Não é verdade.

Aqui tocamos o ponto central desta conferência: a obra do homem e a obra da mulher. A ideia é muito clara: a esposa vive dentro da alma do esposo, e a esposa vai estar na altura em que o esposo estiver. Se o esposo se matar, ele matará também a esposa. De fato, Julieta se suicida.

“(...) Por que insultas o berço, o céu e a terra? O berço, o céu e a terra unidos se acham em ti, e de uma vez perdê-los queres? Ora, envergonhas tua forma, o espírito, amor, que em barda tens, como  usurário, sem que nada uses no seu vero emprego para te ornar a forma, o amor, o espírito. Tua nobre figura é como imagem de cera, se o vigor viril lhe falta; teu amor tão prezado, oco perjúrio que mata o amor que proteger juraste; espírito, esse ornato da postura, como do amor, se encontra deformado pela conduta de ambos, como pólvora no frasco de um soldado inexperiente (...)”5

A razão está submetida aos afetos, e é capaz de explodir e lhe conduzir à morte.

“(...) que por tua própria ignorância explode, com tuas próprias armas desmembrando-te. Vamos, homem: levanta-te! Está viva tua Julieta, por quem te achas quase no ponto de morrer. Estás com sorte. Tebaldo quis matar-te; a morte deste-lhe. Nisso foste também mui venturoso. A lei se mostra tua amiga, a pena de morte atenuando para exílio: outra ventura. Sobre o dorso um fardo de bênçãos te caiu. Com seus mais ricos atavios te vem fazendo a corte sempre a felicidade; mas no jeito de um rapaz não polido e caprichoso, com a sorte e o amor amuado te revelas. Toma cuidado! Quem assim procede, acaba sempre mal."6

Shakespeare consegue descrever a estrutura da alma humana e a grande obra do homem. É necessário chegar à sabedoria para chegar a ser homem, eis o ponto central de Romeu e Julieta. Só quem chega à verdadeira sabedoria merece o título de homem. Somente na sabedoria é possível buscar a esposa. É necessário subir a rude escada do balcão de Julieta para estar à altura dela.

A mulher, se me permitem a expressão, tem uma natureza que poderíamos chamar de espelho. Como o que define a mulher é a sua maternidade, quer física ou espiritual, há nela um aumento do campo afetivo, pois este é um elemento necessário para o cumprimento da sua obra. A mulher tem, em razão dessa natureza afetiva, uma capacidade de percepção do particular, do concreto, muito superior ao homem – abstrato.

O homem deve vencer os seus afetos e alcançar a abstração. Se o homem não transcender o concreto e o particular, não realiza a sua obra. A mulher, por sua vez, deve, tal como um espelho, refletir o abstrato em concreto e particular.

O homem tem uma visão do fim muito mais clara que a mulher, que enxerga com mais clareza os meios. A grande obra do homem, depois de chegar à sabedoria, é transmiti-la. O grande meio de transmissão dessa sabedoria é a esposa, é a natureza feminina, que consegue transformar o que vê no esposo em instituições concretas e tangíveis.

O esposo tem uma ideia abstrata do que é a autoridade paterna ou a relação familiar. A esposa deve pensar em que lugar da casa a mesa vai estar para que a relação familiar funcione, que lugar ela vai ocupar na mesa para que a autoridade paterna seja exercida quando a família estiver reunida, ou seja, ela precisa transformar os ideais do marido em instituições práticas. É nesse sentido que Frei Lourenço diz que a esposa estava dentro de Romeu.

Vocês poderiam acusar-me de estar diminuindo a atividade feminina. Não, de modo algum. O homem é incapaz da sua obra sem a mulher. E a mulher é incapaz da sua obra sem o homem.

Poderiam perguntar-me: “E quanto ao sacerdócio?” Pois bem, a Igreja é feminina. Diz-nos o direito canônico: “Não se pode usar a batina suja; é preciso barbear-se, etc.”; esta expressão é a mais feminina possível da Esposa de Cristo, que transforma o que vê na alma do Esposo em costumes, instituições e obras. Mas é preciso que a ideia do esposo seja clara, específica, explícita, que ele saiba o papel que a esposa deve cumprir, o que é o meio, o que vai em direção ao fim e o que desvia do fim; assim, ele deve pronunciar-se: “Isso sim, isso não.” É preciso que o fim ilumine constantemente os meios, ou seja, é preciso olhar o fim e concretizar os em meios. A grande obra são os filhos: a transmissão por meio da esposa.

A mulher consegue facilmente perceber o que está acontecendo na alma do filho. Todavia, se perde de vista o fim, ela como que acelera em ponto morto, porque os meios não passam de meios, e perdem importância, se o fim não os ilumina. Se se perde a referência do fim e deixa-se de ser iluminado por ele, bem, tudo passa a ser igual. E, quando há ausência da iluminação do fim, o mecanismo de defesa feminino é a multiplicação dos meios.

O grande perigo do homem é não alcançar à sabedoria, e o grande perigo da mulher é a destruição e deformação do campo afetivo, é a perda da fineza afetiva, por carência de virtude e descontrole dos afetos. Que o homem não tenha afeto é uma deformação, e é errado, porém não é tão grave. Uma moça que destruiu os próprios afetos sofreu o que podemos chamar “masculinização”. Na sociedade atual há a destruição dos afetos ou a exacerbação deles, de tal modo que não podem ser iluminados pela razão. Há portanto destruição de ambos os lados.

Iluminados pela sabedoria, os afetos encontram o lugar e o sentido verdadeiros, são domados; os afetos são como cavalos puxando a carruagem, mas sem a iluminação superior da inteligência, são como cavalos selvagens, não domados, que seguem direções opostas: é a destruição da pessoa.

(Originalmente publicado na Revista Permanência, 270)

  1. 1. Mt 13,13.
  2. 2. Romeu e Julieta, ato III, cena III. Tradução de Carlos Alberto Nunes, Ediouro, 1998, pág. 72.
  3. 3. Ibid.
  4. 4. Ibid. pág.74.
  5. 5. Ibid.
  6. 6. Ibid. pág. 75.

A Cultura e Hamlet

Niilismo e crença na peça Hamlet, de Shakespeare

 

O prof. David Allen White, como insistia nas suas aulas e conferências, apontou que as ideias inscritas em Hamlet, de Shakespeare, foram o começo do mundo moderno. A peça, escrita por volta de 1600, dramatiza o conflito entre a rica cultura católica da Idade Média e o ascendente individualismo dos inícios da idade moderna, uma das mais profundas mudanças de paradigma da civilização ocidental, e cujos efeitos persistem até os nossos tempos pós-modernos. Uma imagem útil dessa mudança vem do filósofo Eric Voegelin, que percebeu que o homem moderno deixou de considerar-se um elo na cadeia hierárquica que se origina em Deus e passou a ser ele mesmo o centro do universo e de todo o significado – uma visão “macroantrópica”, nos termos de Voegelin. Um fato notável é a ressurreição, por obra dos humanistas da Renascença, da frase de Protágoras: “O homem é a medida de todas as coisas”. Um dos eixos da ação de Hamlet é a dúvida que corrói as velhas certezas e que permite que o príncipe das vestes negras procure de per si o significado das coisas e confie no seu raciocínio e na sua melancolia a fim de atuar no podre reino da Dinamarca. Embora a tragédia se encerre com múltiplas mortes, Shakespeare durante o curso da trama dá uma resposta e uma solução às dúvidas de Hamlet, com um resultado angustiante; essa resposta estabelece as bases para uma restauração da tradição perene, e dá uma das maiores contribuições a ela.

 

As dúvidas corrosivas de Hamlet

Um breve porém significante momento no Ato 2, Cena 2 da peça identifica o problema central desse primevo homem moderno. Na tentativa de explicar o comportamento estranho de Hamlet, o conselheiro da corte Polônio lê para o rei e a rainha uma carta de amor que Hamlet enviara à sua filha Ofélia. Escrita num tempo anterior à narrativa, enquanto ainda estudava na Universidade de Wittenberg – célebre por ser o lugar onde Lutero produzira as 95 teses e como que o nascedouro do Protestantismo – a carta de Hamlet expressa as dúvidas corrosivas que envolviam o início da cultura moderna:

 

          Duvides [isto é, suspeites] que a estrela é ardente,

          Divides que o astro-rei irá se pôr,

          Duvides [isto é, suspeites] que a verdade sempre mente,

          Mas não duvides tu do meu amor.

 

Ó querida Ofélia, enojam-me esses números [isto é, versos]. Falta-me a arte de expressar os meus gemidos. Mas amo-te bem mais que a eles. Oh, muito mais, acredites. Adeus.

          Sempre mais teu, caríssima senhora,

          Enquanto nele durar esta máquina,

          Hamlet.

 

É interessante que os dois primeiros versos do poema envolvem dúvidas sobre a visão tradicional do universo: pensar que as estrelas são ardentes significa que elas não são feitas de matéria celestial como se pensava; duvidar do movimento do sol indica a crença no movimento heliocêntrico em oposição ao modelo geocêntrico de Ptolomeu. Mais importante ainda é como esse modo de ver as coisas se universaliza no terceiro verso: Ofélia deve suspeitar que a mesma verdade é falsa. O jovem desnorteado só pode ter certeza duma coisa: do seu íntimo sentimento pessoal de amor por Ofélia. O ácido corrosivo da dúvida dissolveu tudo exceto a emoção, e o lance subsequente mostra que os sentimentos, ainda que se expressem de forma apaixonada, podem mudar. Ataques de melancolia – Hamlet é o que hoje em dia chamaríamos de depressivo diagnosticado – misturam-se com a incerteza e a angústia, quiçá também a loucura oprima o príncipe; ele despenca no abismo do niilismo, ao rejeitar quase tudo e quase todos ao seu redor, inclusive Ofélia na terrível cena logo após o famoso discurso “Ser, ou não ser”.

Depois de quatro atos de confusão, angústia, e até assassinato, o ato final começa no local para onde se inclina a peça inteira: no cemitério. A Cena 5, Ato 1 é o passo mais importante do drama moderno; ele não apenas recapitula o tema do niilismo mas também dá uma resposta a ele. Já de volta à Dinamarca, após sobreviver providencialmente a uma tentativa de assassinato, Hamlet, com o seu amigo Horácio, aproximam-se de dois homens cavando uma cova. Uma vez que por falta de espaço reutilizam-se as covas, o coveiro e o seu assistente estão empurrando vários ossos para o lado enquanto Hamlet prepara a cena. Começa o diálogo com um gracejo entre os coveiros e depois entre eles e Hamlet; a comédia recorda o homem da sua natureza humana e coloca-lhe os pés no chão, de molde que ela é relevantemente apropriada a uma cena cujo tema é o final de cada um dos homens. Os coveiros pedem a Hamlet que identifique um crânio em particular, mas porque a morte é uma grande niveladora Hamlet é incapaz de fazê-lo. Enfim, diz o coveiro que o crânio pertencia ao antigo bobo da corte, Yorick. O que se segue é um dos mais icônicos momentos da história do drama: Hamlet segura o crânio dum comediante, “um tipo de graça infinita e de incomparável fantasia”, que outrora produzira “gracejos que faziam os convivas cair na gargalhada”. Nada disso importa, contudo, pois tudo se encaminha à dissolução, retorna ao pó. Hamlet pede ao crânio que se dirija ao “quarto da minha dama e diga-lhe” que ainda que ela emboce o rosto com uma polegada de maquiagem, ao cabo também ela transformar-se-á numa caveira. No abismo niilístico de Hamlet, não existe significado real: Yorick, uma bela dama, Alexandre o Grande, “o imperioso César, morto e tornado em lama”, tudo se transfigura em caveiras fétidas a apodrecerem na terra. Imediatamente após esses momentos, que antecipam o drama ateísta do século XX, chega a procissão fúnebre de Ofélia: enquanto Hamlet estava fora, a virtuosa moça enlouquece e afoga-se. Imagens da beleza pousam no cemitério niilístico: “a carne bela e impoluta” de Ofélia e as violetas são símbolos da castidade e da fidelidade. Hamlet, espantado, apresenta-se e faz um anúncio decisivo:

 

          Este sou eu,

          Hamlet o Danês,

          Amei Ofélia. Nem quarenta mil irmãos,

          Some-se embora todo o seu amor,

          Seriam páreos ao meu.

         

 

Amor, e não falta de sentido

No abismo do túmulo, quando lhe morrera alguém próximo, Hamlet não encontra a falta de sentido, mas a força mais poderosa do universo: o amor. Com a reafirmação do sentido, pode Hamlet novamente ser uma pessoa completa – por isso, ao dar o passo à frente, diz o seu nome e apresenta o seu título real – mas na tragédia é significativo que tal fato ocorra apenas após a morte de Ofélia. Nas palavras de Charles Boyer, apenas depois de ser ela destruída durante um lance trágico o herói consegue perceber “o que se perdeu em razão da sua visão equivocada do mundo”. Com a proximidade da sua própria morte, na cena seguinte, a última da peça, Hamlet expressa de contínuo a sua crença na velha ordem. Diz ele a Horácio que “Há uma divindade que ao fim nosso molda / Mui distinto do que ansiamos”, que “Na queda dum pardal / Especial providência existe”, numa resposta clara à mais célebre fala da peça, “A prontidão é tudo… deixa estar”. Eis o conhecimento adquirido pela dor, que é um dos distintivos da tragédia.

Em The Death of Christian Culture [A Morte da Cultura Cristã], John Senior escreve que “a literatura é o boi de carroça da cultura, e a sua besta de carga”. Na literatura, as ideias e os valores da cultura se transmitem indiretamente enquanto o leitor vivencia a história ao lado das personagens. O conflito de Hamlet se torna o nosso conflito, assim como é nossa a peregrinação de Dante e nossa a viagem de Ulisses. Nesse sentido os grandes autores não são apenas “as breves crônicas abstratas do nosso tempo” mas os arquitetos da mesma civilização. Citando novamente Senior:

“A cultura, como em ‘agricultura’, é o cultivo da alma a partir do qual o homem cresce. Para que se estabeleçam os métodos adequados, devemos ter ideias claras acerca da colheita. ‘Que é o homem?’, pergunta o Catecismo de Um Vintém [The Penny Catechism], que responde: ‘Uma criatura feita à imagem e semelhança de Deus, para conhecê-Lo, amá-Lo e servi-Lo’. A cultura, portanto, tem claramente essa simples finalidade, a despeito da complexidade e a dificuldade dos meios.”

Por isso, a cultura sempre repetirá as mesmas verdades sob distintas expressões no decorrer do tempo, pois sempre haverá a necessidade de relembrar os homens daquilo que já conhecem mas esqueceram, e daquilo que amam, para que esse amor seja novamente acalentado.

 

(The Angelus - tradução: Permanência)

Começando a ler Chesterton

Wojciech Golonka

Gilbert Keith Chesterton (1874-1936) é justamente louvado pelos católicos pela sua grande contribuição à defesa da Fé e da Igreja Católica. Ele, de fato, foi um “prodigioso defensor da fé”, como o Cardeal Eugenio Pacelli, que veio a se tornar o Papa Pio XII, afirmou em um telegrama de condolências enviado ao Arcebispo de Westminster quando Chesterton faleceu. Na verdade, a Santa Sé já o havia reconhecido como tal antes mesmo de sua morte, pois ele, juntamente com Hilaire Belloc, foi premiado com a Ordem de São Gregório Magno pelos serviços que prestaram à causa católica. Portanto, Chesterton deveria ser lido até mais do que se alega, e, ainda assim, alguns leitores podem achá-lo complicado e um pouco excêntrico. Eles provavelmente têm razão de pensarem assim.

Então como começar a ler Chesterton sem perder o ânimo? Claro, você pode tentar ler um de seus livros, talvez fique viciado em Chesterton, como ocorre com muitos que o descobrem -- nesse caso, estará pronto para atravessar suas leituras e passagens mais difíceis. Mas também pode ser repelido ainda no começo; e, então, o que fazer? Permita-me tentar criar um “manual de instruções” para quem quer se aproximar da obra de Chesterton, antecedido de uma breve análise de sua evolução literária e religiosa.

Chesterton foi, acima de tudo, um observador buscando a verdade sobre o homem e seu destino. Um honesto, porém autônomo e auto educado gênio, levou muito tempo até que finalmente chegasse à Igreja Católica e fosse profundamente influenciado pela clareza de sua doutrina. Essa transformação é evidente nos seus escritos. Educado em uma família vagamente cristã, ele, primeiramente, tornou-se agnóstico na adolescência. Então, ao se apaixonar por Frances Blogg no final do Século XIX, que era uma garota educada por freiras anglocatólicas e sinceramente cristã, embora protestante, isso o ajudou a redescobrir o credo cristão tal como definido pelo Concílio de Nicéia, embora sem que ainda aderisse a alguma instituição em particular, especialmente a Igreja Católica. Naquele tempo, a heresia modernista estava atacando não apenas a Igreja Católica, mas também os setores mais conservadores dentro do protestantismo, aos quais Chesterton, formalmente, aderia. Mas, como ele tinha uma compreensão católica do credo, rejeitava interpretações da Escritura que levassem ao afastamento da historicidade dos milagres, alegações de que o dogma tinha origens puramente humanas ou a evolução da moral baseada em mudanças na consciência humana ao longo do tempo. Ao mesmo tempo, combatia os grandes erros de seu tempo – o marxismo, que direcionava todas as atividades humanas a fins materiais; o determinismo, que alegava que o homem não tem livre-arbítrio; o racionalismo e o positivismo, que negava qualquer intervenção de Deus na história humana, especialmente através dos milagres; mas também o imperialismo (hoje se diria “globalismo”) e até mesmo o racismo. Seu conflito com esses erros – e aqueles que os espalharam – resultaram na sua primeira grande obra, Hereges (1905). Então, pressionado por seus adversários a esclarecer quais eram suas visões, três anos mais tarde ele publicou Ortodoxia, expondo suas crenças sobre a natureza humana, o mundo e o Cristianismo.

Ambos os livros trazem descrições jocosas de seus oponentes e algumas intuições brilhantes sobre os temas desenvolvidos. Ainda assim, é possível que o leitor considere Chesterton um pouco complicado quanto se trata de desenvolver essas ideias na forma de um tratado. A sua conversão ao Catolicismo mudou alguma coisa naquele ponto? Primeiro, é preciso deixar claro que ele já estava a caminho da Igreja Católica em 1911, pois “estava mais inclinado que nunca a crer, embora não tivesse ainda admitido que as teses das Igrejas Anglicana e Grega1 estavam menos próximas da verdade que as da Igreja Católica Romana” (William Odie, Chesterton and the Romance of Orthodoxy: The Making of GKC, 1874-1908, Oxford University Press, p. 382). Ele também, ao mesmo tempo, travou amizades com alguns padres católicos romanos e admirava seu profundo conhecimento da psicologia humana. Recebeu forte influência deles, embora só tenha abraçado o Catolicismo em 1922. Então, tenha paciência se você estiver rezando pela conversão de um conhecido bom e honesto, pois Chesterton já foi um deles. Embora, como ele mesmo admitia, a fé e o pensamento católicos abria-lhe grandes perspectivas intelectuais, esse processo de esclarecimento e iluminação de sua mente também levou algum tempo.

Por exemplo, O Homem Eterno, publicado em 1925, é sua grande obra-prima apologética em defesa da divindade de Cristo e contém duas simples intuições: o homem não pode ser apenas um animal, pois ele dá sinais de ser espírito; Cristo não pode ser apenas um homem, pois ele dá sinais de ser uma divindade. Apesar dessa simplicidade, o processo de deduzir essas duas ideias claras através de uma demonstração longa e complicada pode ser assustador para os leitores.

Agora, olhemos para seus ensaios polêmicos com os modernistas e protestantes dos anos 1920 e 1930, como aqueles publicados em dois livros apologéticos: A Coisa: Por que sou católico (1929) e The Well and the Shallows (1935). Eles são mais fáceis que O Homem Eterno. Isso significa, penso, que, se o leitor quiser se beneficiar do gênio apologético de Chesterton, é muito melhor começar com os livros que escreveu na última década de sua vida, quando ele já estava sob influência do Catolicismo. Também recomendo meu livreto Protestantism as Seen by G.K. Chesterton. 80% do seu texto é composto de citações extraídas de vários de seus livros e, acima de todos, de A Coisa e The Well and the Shallows. Não que eu queira recomendar meu próprio trabalho, mas, como um estudioso que dedicou vários anos aos seus escritos, recomendo-lhe seu pensamento apresentado em uma síntese que lhe traz o melhor de sua polêmica sobre o tema. Além disso, essa obra expõe a evolução do protestantismo ao longo dos séculos e também explica como ele, eventualmente, transformou-se em modernismo e rejeitou completamente o credo cristão, que, na atual crise da fé, é um perigo ainda maior que no tempo das polêmicas de Chesterton.

Também há outro approach, mais cronológico, ao seu pensamento apologético que não expõe o leitor ao risco de se assustar com a dificuldade do texto. Ele também escreveu pequenos romances, e eles são simples, têm um senso de humor irresistível e, ainda que tenham alguns defeitos do ponto de vista literário (as pessoas normalmente se decepcionam com o final deles), trazem diálogos vívidos nos campos da religião, da política e da moralidade. Enquanto The Ball and the Cross (1909) representa um conflito muito curioso entre a fé e a descrença, o Flying Inn (1914) é uma profecia inacreditável sobre o islamismo invadindo o mundo ocidental. O Homem que era Quinta-Feira traz uma sólida axiologia na qual se demonstra que a heresia é o pior de todos os pecados. Manalive (1912) é um grande antídoto ao veneno puritano destilado pelo calvinismo nos países anglo-saxões. Você não vai desperdiçar seu tempo com essas leituras, pois essas histórias cômicas sempre trazem miniensaios escondidos, disfarçados sob a forma de diálogos.

Para encerrar, podemos dizer que, ao recomendar suas obras em geral, a Igreja acha bom e proveitoso ler Chesterton. Pessoalmente, eu acho que, embora alguns de seus livros escritos antes de sua conversão contenham alguns erros doutrinários ou inexatidões, como demonstrado pelo padre tomista francês, Joseph de Tonquédec, não são erros perigosos para os leitores. Mas a coisa mais importante a se enfatizar é o fato de que ele, de algum modo, previu os erros com os quais a humanidade se confrontaria. Muitos já estavam presentes, na forma de falsos princípios, na sua época.

Portanto, pode-se aplicar a ele o que ele mesmo dizia de William Cobbett: “Em uma palavra, ele enxergou o que nós enxergamos, mas ele enxergou quando nada estava lá. E alguns não conseguem enxergar – mesmo quando tudo já está lá. É o paradoxo de sua vida que ele amava o passado, e era o único que vivia o verdadeiro futuro. O futuro era nebuloso, como sempre é; e, de algumas maneiras, sua inteligência, largamente instintiva, era suficientemente nebulosa quanto a ele”. E, em segundo lugar, não apenas Chesterton previu esses erros, mas ele também os refutou de uma maneira compreensível ao homem comum. Aqui, novamente, o que ele dizia de Chaucer, outro gênio de tempos passados, também se aplica a si mesmo: “Eles não se deram o trabalho de inventar uma nova filosofia, mas, ao invés, herdaram uma grande filosofia. Ela é, na maioria dos casos, uma filosofia que muitos grandes homens têm em comum com homens muito ordinários… O grande poeta apenas professa expressar o pensamento que todo mundo sempre teve”. Esse pensamento, que todo mundo sempre teve, tem um nome em especial: Tradição. Ler Chesterton vai lhe trazer um conhecimento melhor dos seus princípios.

(The Angelus, set-out/2020 - tradução: Permanência)

  1. 1. Aqui, o autor, naturalmente, está se referindo à Igreja cismática grega (Igreja “Ortodoxa”), não a toda e qualquer Igreja Grega (como as Igrejas Católicas Bizantinas, que estão em união com Roma e são tão católicas quanto a nossa Igreja Católica Romana).

Hamlet - um olhar católico

Em 23 de fevereiro de 2002, Mons. Richard Williamson apresentou uma conferência sobre Hamlet aos professores da Escola Sainte-Famille, em Lévis, no Quebec. Publicamos o resumo feito por Jean-Claude Dupuis no boletim Long-Sault, número 2 (primavera de 2002), págs. 14-18. -- Le Sel de la Terre

  

William Shakespeare (1564-1616) é o escritor mais famoso de língua inglesa. Sua peça de teatro Hamlet (1600) permanece como uma das mais conhecidas e apreciadas do mondo anglo-saxão. Mons. Williamson precisa que Shakespeare não era nem teólogo nem filósofo. Era um artista, um dos maiores de todos os tempos, diz. E como todo artista, sua obra é marcada por uma relativa imprecisão. Shakespeare reflete a passagem da mentalidade medieval para a mentalidade moderna, a passagem de um sociedade cristã à uma sociedade apóstata. Sua obra traz, a um tempo, algo do teatro moralizador da Idade Média e algo do drama psicológico moderno. Podemos, portanto, fazer uma leitura cristã e tradicional ou, ao contrário, uma leitura romântica e revolucionária, que Mons. Williamson qualifica de hollywoodiana. Naturalmente, é esta última que prevalece em nossos dias. Mas, um católico pode encontrar em Shakespeare interessantes reflexões sobre o problema do mal.

Mons. Williamson lembra que a Bíblia contém tudo o que é necessário para compreender a natureza satânica do mundo moderno e para aprender a resistir a ele. Não obstante, a literatura profana pode por vezes nos ajudar a ilustrar os princípios católicos em uma linguagem mais acessível aos nossos contemporâneos e, sobretudo, aos jovens que infelizmente são demasiadamente marcados por uma visão cinematográfica da vida. Os clássicos literários, diz o Bispo, nos desvendam a profundeza da natureza humana e as causas da sociedade moderna.

O problema da apostasia constitui a trama de fundo da obra de Shakespeare. Seus heróis lutam contra uma insurreição interior da alma, conseqüência do eterno conflito entre o Bem e o Mal, o Amor e o Ódio. O herói shakespeariano é inicialmente nobre, mas entretém uma fraqueza que o fará sucumbir à tentação. Assim é a ambição para Macbeth, o ciúme, para Otelo e o puritanismo, para Ângelo. O herói cai. Ele rejeita o amor para satisfazer sua paixão desregrada cometendo um assassinato. Em seguida, toma consciência do mal que fez e que se fez, mas ele não pode resolver o conflito senão por uma fuga desesperada para a morte. O herói shakespeariano é um idealista que se perde no niilismo por não encontrar resposta às suas questões. Com efeito, falta-lhe a graça divina. Não é ele a imagem do mundo moderno?

Mons. Williamson analisa a peça à luz desta dupla leitura, católica e moderna. A história se passa na Dinamarca. O rei é envenenado furtivamente por seu irmão Cláudio, que usurpa a coroa e desposa sua cunhada Gertrudes, mãe do herói Hamlet. O espectro do rei assassinado aparece a Hamlet. Ele revela a seu filho as circunstâncias de sua morte e pede a ele de o vingar. Hamlet é um homem jovem de coração puro que denuncia a corrupção da corte (Há algo de podre no reino da Dinamarca) e ama sinceramente a filha do lorde camareiro Polônio, Ofélia. Entretanto, ele sofre de melancolia (hoje dir-se-ia: depressão) e pensa até em suicídio. A aparição do espectro de seu pai transforma suas nobres aspirações em paixões odientas. Ele repele o amor de Ofélia, cujo pai ele mata por acidente, mas sem remorso. Sua noiva perde a razão e se mata, talvez voluntariamente. Hamlet tem a oportunidade de matar Cláudio enquanto ele reza; mas renuncia a isto para não enviar seu tio para o céu. Seu desejo de vingança não tem mais limite. Contudo, a melancolia e uma certa crença o paralisam. Hamlet pergunta a si mesmo se mais vale combater o Mal ou fugir dele pela morte. 

Ser ou não ser, essa é que é a questão: Será mais nobre suportar na mente as flechadas da trágica fortuna ou tomar armas contra um mar de escolhos e, enfrentando-os, vencer? Morrer — Dormir: Nada mais; e dizer que pelo sono findam as dores, como os mil abalos inerentes à carne — é a conclusão que devemos buscar. Morrer — Dormir. Dormir! Talvez sonhar — eis o problema, pois os sonhos que vieram nesse sono de morte, uma vez livres deste invólucro mortal, fazem cismar. Esse é o motivo que prolonga a desdita desta vida. [...] Quem carregara suando o fardo da pesada vida se o medo do que depois da morte —o país ignorado de onde nunca ninguém voltou — não nos turbasse a mente e nos fizesse arcar c'o mal que temos em vez de voar para esse, que ignoramos?1 

Enquanto que Hamlet se interroga sobre o sentido da vida e da morte, Cláudio conspira com o irmão de Ofélia, Laertes, para fazer com que ele perca a vida na ponta de um florete envenenado, durante uma competição de esgrima. Hamlet pressente a cilada. Ele poderia facilmente evitar a competição, mas ele não está mais interessado na vida, e se deixa conduzir por um sombrio pessimismo.

Se tiver que ser agora, não está para vir; se não estiver para vir, será agora;  e se não for agora, mesmo assim virá. O estar pronto é tudo: se ninguém conhece aquilo que aqui deixa, que importa deixá-lo um pouco antes?2

O drama termina em uma carnificina rocambolesca em que morrem Hamlet, Laertes, Cláudio e Gertrudes. Um rude guerreiro estrangeiro, Fortimbrás, termina por se empossar do trono. A força bruta triunfa sobre as ruínas da corrupção moral (Cláudio) e do niilismo espiritual (Hamlet), dois traços característicos do mundo contemporâneo.

Hamlet é um herói ou criminoso? Os modernos responderiam que Hamlet teve razão de se revoltar contra a corrupção da sociedade encarnada por Cláudio. Ele comete talvez alguns erros grosseiros em sua revolta, como a morte, no fundo justificada, de Polônio ou o quase-suicídio, mais triste, de Ofélia. Mas o rebelde tem todos os direitos e a revolução exige sangue. Cláudio e Laertes, que representam o poder estabelecido (o papai), associam-se para destruir a juventude revolucionária (o adolescente em crise). O herói termina por triunfar e por restabelecer uma certa justiça, mas ao preço de sua vida (o suicídio "interpelante" do adolescente incompreendido). Tudo termina por uma carnificina malsã, cuja responsabilidade é devolvida à ordem social hipócrita. Assim, Hamlet encarna, na ótica moderna, "o drama da ascensão à consciência e à liberdade" (Petit Robert).

Um católico fará, da mesma peça, uma leitura completamente diferente. Hamlet é um nobre príncipe enfraquecido por sua melancolia (a tristeza, primeira armadilha do demônio) que não pode resistir à tentação da vingança. O espectro de seu pai vem certamente do inferno, pois uma alma do purgatório não poderia incitar ao mal. Tendo preferido o ódio ao amor, Hamlet rechaça sua noiva, destrata sua mãe e ataca o rei, do qual é, contudo, o legítimo herdeiro. Hamlet solapa os fundamentos da ordem social: o matrimônio, a piedade filial, a autoridade pública. Sua rebelião odienta arruinará sua vida pessoal, sua família e a paz do reino, mas ele prossegue com vivacidade, como estes jovens burgueses decadentes que se tornam comunistas para acertar suas contas com seus pais. Quem vive da espada, perecerá pela espada. A revolta conduz à morte, tanto a do herói como a de seus inimigos. Ela conduz sobretudo ao desgosto pela vida que Hamlet manifesta aceitando o duelo contra Laertes. Definitivamente, Hamlet não restabeleceu a justiça na Dinamarca; ele simplesmente fez aquele reino cair nas mãos do estrangeiro Fortimbrás.

O drama que aflige a alma de Hamlet é fascinante. Em uma sociedade corrompida, é melhor combater (inutilmente) ou suportar e morrer (também inutilmente)? Notemos que Hamlet não deseja aderir à imoralidade: seu coração é demasiado nobre. Notemos igualmente que os católicos podem por vezes colocar-se a mesma questão: É preciso combater a desordem atual (sem esperança de sucesso) ou se desinteressar dela (o que equivale a morrer espiritualmente)? Resistir é inútil, golpear também. Que fazer?

Segundo Mons. Williamson, Hamlet não encontrou a solução porque não colocou o problema em termos católicos. Hamlet é o filho perturbado de um Shakespeare perturbado, no qual a juventude de nosso tempo se reconhece. Mas, por que Shakespeare era perturbado?

A obra de Hildegard Hammerschmidt-Hummel, The Hidden Existence of William Shakespeare [A Vida Desconhecida de William Shakespeare], pode nos esclarecer. Shakespeare era um católico em uma Inglaterra elisabetana que perseguia severamente os católicos pela violência, mas, sobretudo, pelo ostracismo. Em 1600, ano em que Hamlet foi escrito, o triunfo do protestantismo é absoluto. A maior parte dos ingleses aceitou o cisma e os católicos que ainda sobreviveram não ousam se manifestar muito. Ora, Shakespeare era um destes católicos que escondiam sua fé para se manter na sociedade. Ele recusa tomar o caminho do martírio. Mons. Williamson não o culpa: é preciso, diz ele, ser um verdadeiro mártir antes de apontar o dedo para aqueles que cedem na perseguição. Quantos dentre nós terão a coragem de testemunhar a fé quando as forças do anticristo nos perseguirem violentamente (o que talvez ocorra em breve)? Mas a pusilanimidade de Shakespeare altera sua concepção da vida. Seu meio-catolicismo não o permite resolver os problemas existenciais que ele colocava, por outro lado, muito bem.

Mons. Williamson traça um paralelo entre Hamlet, Shakespeare e a juventude atual.

Hamlet, príncipe herdeiro da Dinamarca, vive exilado em seu próprio reino, abandonado ao mal pela dupla traição de seu tio e de sua mãe. Ele tem razão de reagir contra a corrupção, mas não emprega bons meios. Sua ação termina em um inútil banho de sangue e em uma interrogação niilista: Ser ou não ser?

Ao fim de sua vida, Shakespeare consegue sair do impasse ao redescobrir a resposta cristã ao problema do mal: a redenção pela morte sacrificadora. Em Rei Lear (1606), a heroína regenera o mundo por sua própria oblação, não pela morte dos maus. O Cristo não salvou o mundo caçando os Heródes e os Pilatos, mas oferecendo a si mesmo na cruz. No mundo atual, os católicos devem reagir imitando Nosso Senhor, sacrificando a si mesmos pela oração e pelo dever de estado, como justamente nos ensinou Nossa Senhora de Fátima. Shakespeare recuperou sua paz interior desta maneira. Ele morreu piedosamente, após ter recebido os últimos sacramentos de um monge beneditino.

Mons. Williamson termina sua magistral conferência explicando o objetivo do ensino da literatura clássica em uma escola católica. Os cinco últimos séculos da história ocidental são marcados pela apostasia. A literatura não poderia senão experimentar as conseqüências. Não teríamos o direito, diz ele, de procurar nesta literatura, mesmo na mais clássica, a expressão perfeita dos princípios cristão. Para isso, é preciso ler a Bíblia e os Padres da Igreja. Mas a literatura clássica ilustra uma certa ordem natural. Por exemplos, os homens aí são masculinos e as mulheres, femininas. A obra de Shakespeare é tão ligada à mentalidade tradicional, que quase se passa em silêncio sobre ela nos programas escolares atuais dos países anglófonos. De fato, Shakespeare, assim como tudo o que é clássico, contraria os modernos, uma vez que nos eleva ao nível dos princípios naturais da antiga sociedade. Se não se deve fazer da literatura um fim em si, ao modo dos humanistas ateus, lembremo-nos, contudo, que o sobrenatural tem de se apoiar sobre a natureza e que a fé dificilmente pode se enraizar em uma alma impregnada dos princípios contrários à natureza da cultura moderna. O estudo de Shakespeare pode servir de antídoto contra os grandes danos do espírito hollywoodiano.

  1. 1.  Hamlet e Macbeth, Shakespeare, Nova Fronteira, Rio, 1995.
  2. 2.  ibid.

Falsas Lições sobre Gustavo Corção

 Dom Lourenço Fleichman OSB

 

Quando escrevi o prefácio ao livro O Pensamento de Dom Antônio de Castro Mayer, procurei denunciar a falsificação que seus sucessores e seus padres realizavam ao esconder e abandonar toda referência aos textos do grande bispo, com data a partir da década de 1970. Nesta época tornaram-se mais claras as causas dramáticas da crise da Igreja e por todo o mundo apareceram críticas mais severas ao Concílio Vaticano II e sua obra. LEIA A CONTINUAÇÃO
 

O sentido profundo da obra de Machado de Assis

A mim me repugna toda atitude que desliga o homem de sua obra: isto redunda em tecnicismo, que, no meu entender, é um dos maiores males da época.

Macbeth

Neste artigo, que decididamente não é o de um especialista, quis simplesmente expor algumas anotações feitas durante a leitura de algumas das peças de Shakespeare, especialmente de “Macbeth”.

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