Category: Gustavo Corção
O mundo moderno nos oferece, em todos os seus variadíssimos quadros, um espetáculo de assustador envelhecimento, como se a humanidade houvesse esgotado toda a alegria de viver e toda a esperança de progredir. Um ceticismo profundo, atacando as raízes das mais adiantadas e orgulhosas culturas, manifesta-se à superfície dos acontecimentos de um modo paradoxal que desnorteia os observadores e que os leva a ver, nessas mesmas manifestações profundas do abatimento e da descrença, sinais de vitalidade e ânimo.
O século XIV foi o sombrio e tumultuoso século da peste negra, da guerra de cem anos e da fragorosa ruína da civilização cristã. Nosso bravo século XX, em lugar da sombria nuvem pestífera que pairou cem anos sobre a cristandade agonizante, está sendo flagelado por uma outra nuvem, não menos sombria: a da estupidez satisfeita e otimista. Os físicos, matemáticos, biólogos e astrônomos que operam no nível de saber mais acessível e mais próprio para os trabalhos coletivos, e também para o efeito acumulativo dos resultados, por seus sucessos dificultam a exata apreciação do imenso progresso da burrice humana nas coisas que concernem a vida espiritual.
No dia 30 de abril a Igreja comemora a festa de Santa Catarina, que viveu numa das épocas mais perturbadoras da história do Ocidente tanto para o mundo, que nos fins do século XIV se despedia da civilização medieval e preparava os critérios de uma nova civilização, como para a Igreja, que sofria a divisão, o cisma, a crise do papado, e já começava a sentir as aflições que cem anos mais tarde produziriam a Reforma.
Na semana atrasada o hebdomadário O Pasquim apareceu nas bancas ostentando na capa uma figura convencional de Jesus Cristo, e em letras garrafais o anúncio: Jesus é a Salvação. Mas logo na página 2 descobre-se a chave da pilhéria. Ao lado de outra figura convencional anuncia-se que o humour deve ter nascido da graça divina. E à esquerda, abaixo, lê-se uma entrevista com o padre Ítalo Coelho sobre o movimento turn on to Jesus, surgido nos Estados Unidos entre hippies. O Pasquim pergunta: “A revolução com Jesus pode ser levada a sério?”. E o padre Ítalo, agachado, responde com todo respeito (pelo O Pasquim): “Acho que ela encerra algo de existencial muito profundo (...) Acho que esse novo encontro com Jesus é a única busca válida”. (Grifo nosso).
A Igreja — diz Santo Agostinho — peregrina no mundo entre as aflições dos homens e as consolações de Deus. Nos dias que correm tornaram-se tão graves e cruéis as aflições trazidas pelos homens que mais imperiosa do que nunca se tornou a procura das consolações de Deus.
[TRANSCRIÇÃO DE AULA DE 06/10/1975] Hoje, vou falar a propósito de um tema sobre o qual escrevi ultimamente em um artigo, o problema da Santa Missa e do Pontificado — dois problemas interligados.
TUDO o que venho observando nos caprichos da atualidade, no mundo e na Igreja, leva-me dia a dia, irresistivelmente, à conclusão da mais completa inutilidade de minha obstinação. Ou de minha obsessão. Sim, ao contrário do famoso “homem moderno”, que se habitua a tudo, apelidando de evolucionismo essa passividade por estar sempre disposto a aceitar e a acostumar-se, até quererem todos se acostumar a alguma nova imposição dos acasos — eu vivo fora da época porque sou vagaroso e obsessivo. Para habituar-me ao que fizeram na Igreja, eu precisaria de mais um século de reflexão e de exame de pormenores. Ainda ontem um amigo que me julga em risco de pecar gravemente contra a caridade, nos adjetivos e advérbios, veio prevenir-me de que ando com a obsessão do que escreve Tristão de Athayde. Talvez tivesse razão o amigo que me desaconselhava esses ataques por não os merecer o atacado. Efetivamente sempre achei pouco interessante a literatura de Tristão de Athayde, mas o caso é que o Dr. Alceu Amoroso Lima foi um famoso líder católico de quem recebi favores que não se esquecem; e acontece que não consigo habituar-me às transformações e às frivolidades do personagem.
Cheguei a uma conclusão aterradora: a quase totalidade do mundo que se diz católico ainda não percebeu claramente, dolorosamente e irreversivelmente que existam duas Igrejas com a mesma denominação e com a mesma hierarquia: uma que é Una, intransigente, e outra que é pluralista, múltipla e que, para começar quer envolver a Católica, enrolando-se em torno dela como mata-pau em torno da árvore, cuja seiva deseja absorver; uma que é dogmática e crê firmemente que “passará o céu e a terra, mas as palavras de Jesus não passarão”, e outra, ao contrário, que é progressista, evolucionista, e cuja hierarquia não terá melhor profissão de fé do que a declaração feita na reunião de Itaici por Dom Clemente José Carlos Isnard, Presidente da Comissão Nacional de Liturgia da CNBB: “... não é missão da Comissão Nacional da Liturgia reprimir quaisquer abusos; mas é missão desta entidade incitar e encorajar abusos, ainda que esses abusos cheguem à profanação do Corpo de Deus”. Perdão! O vezo do professor levou-me a dizer com mais clareza exatamente o mesmo que Dom Clemente disse com outras palavras, apresso-me a retificar a citação transcrevendo rigorosamente o que Dom Clemente diz no SEDOC de abril de 75, pág. 978: “ julgo, porém, de meu dever repetir mais uma vez que os abusos em matéria litúrgica não podem ser medidos com a mesma escala. Há transgressões da disciplina vigente que embora ilícitas, estão na linha duma evolução facilmente previsível e que em pouco tempo poderão estar sancionadas por uma legislação proveniente de autoridade competente”.
Dos últimos artigos, em que expandi minha admiração pela vitalidade dos católicos franceses, que aos milhares se revezavam na sala Wagram para assistir à Santa Missa não deformada, algum leitor mais afastado e menos informado poderá concluir, receio-o, que toda a polêmica entre tradicionalistas e progressistas gira em torno do novo "Ordo Missae", e que o caso de Monsenhor Lefebvre tem o mesmo centro de gravidade.
Num recorte de l’Osservatore Romano leio este título que desde o primeiro relance já enjoa: A Reforma Litúrgica no Brasil. E o enjôo aumenta quando lemos os critérios e as motivações que regem tais reformas. Não podiam ser menos espirituais, menos inteligentes, menos católicas.
Eis o que diz l’Osservatore de 7 de Setembro de 1975: "Com o Rito da Penitência já no prelo, conclui-se a publicação em vernáculo dos rituais dos sacramentos". Até que poderíamos ler a noticia com alguma melancólica satisfação, porque nela se anuncia o termo de uma coleção de remeximentos no que devia ser majestosamente estável. Mas, mal anunciam o encerramento de uma série de reformas, já amargamente conhecidas, anunciam: "Começa agora a etapa mais difícil e talvez mais interessante da reforma litúrgica, sob a responsabilidade das Conferências Episcopais".