Category: Santo Antônio
Santo franciscano e Doutor da Igreja, nasceu em Lisboa em 1191, morreu em Pádua em 1231.
O sétimo discute–se assim. – Parece que o juramento não tem força obrigatória.
1. – Pois, recorremos ao juramento para confirmar a verdade do que dizemos. Ora, quando afirmamos alguma coisa futura, dizemos verdade, mesmo se ela não se realizar; assim, embora Paulo não tivesse ido a Corinto, como o anunciara, contudo não mentiu. Logo, parece que o juramento não é obrigatório.
2. Demais. – Uma virtude não é contrária a outra, como diz Aristóteles. Ora, o juramento é um ato de virtude. Mas, às vezes, o cumprirmos o que juramos iria contra a virtude ou lhe causaria obstáculo; assim, quem jurasse cometer um pecado ou deixardes praticar alguma obra de virtude. Logo, o juramento nem sempre é obrigatório.
3. Demais. – Às vezes somos compelidos, contra a nossa vontade, a fazer uma promessa sob juramento. Ora, como determina o direito canónico, tais juramentos os Pontífices Romanos os eximem de qualquer força obrigatória. Logo, o juramento nem sempre é obrigatório.
4. Demais. – Ninguém pode ser obrigado a fazer coisas opostas. Ora, às vezes pode acontecer que uma seja a intenção de quem jura e outra e oposta, a de quem recebe o juramento. Logo, o juramento não pode ser sempre obrigatório.
Mas, em contrário, a Escritura: Cumprirás ao Senhor os teus juramentos.
SOLUÇÃO. – A obrigação supõe um ato que devemos praticar ou omitir. Portanto não constitui juramento assertório o que se refere a um fato presente ou passado; nem o que se baseia em efeitos de causas independentes de quem jura, como se alguém afirmasse sob juramento que amanhã choverá; mas só o que se refere a fatos a serem praticados pela pessoa mesmo que jura.
Ora, assim como o juramento assertório, relativo ao passado ou ao presente, deve ser verdadeiro assim também o deve o que tem por objeto atos futuros nossos. Portanto, um e outro implicam certa obrigação, mas, diversamente. Porque no juramento, que tem por objeto um fato passado ou presente, a obrigação, diz respeito, não a facto já passado ou presente, mas ao ato mesmo de jurar, de modo que juramos o que já é ou foi verdadeiro. Mas, no juramento que fazemos sobre atos que devemos praticar, a obrigação recai, ao contrário, sobre aquilo que afirmamos sob juramento. Assim, estamos obrigados a fazer com que seja verdadeiro o que juramos, pois, se não, faltaria o juramento à verdade.
Se, porém o fato é tal que não dependia do poder de quem jurou. Falta ao juramento o juízo de discernimento; salvo se o que lhe era possível quando jurou veio a se lhe tornar impossível por um evento posterior. Por exemplo, se juramos pagar uma soma de dinheiro que, depois, nos foi subtraída violenta ou subrepticiamente. Pois, então, estamos escusados de cumprir o que juramos, embora estejamos obrigados a fazer o que em nós estiver, para cumpri–lo, como também já o dissemos a respeito da obrigação do voto.
Mas, o juramento claudica contra a justiça, se o ato que juramos praticar, embora possível, não deva sê–lo por mau em si mesmo ou impeditivo de algum bem. Por onde, não devemos cumprir o juramento no caso de implicar pecado ou obstáculo para o bem; pois, em um e outro caso, tem mal resultado.
Por onde, devemos concluir, que quem jura fazer alguma cousa está obrigado a fazê–la para ser o seu juramento verdadeiro; contanto que existam as outras duas condições para ser válido, a saber, o juízo e a justiça.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Uma coisa é dizer simplesmente uma palavra e outra, jurar, implorando o testemunho divino. Para serem verdadeiras as nossas palavras basta anunciar o que propomos fazer; e isso já é verdade na sua causa, isto é, no propósito assentado. Ao passo que ao juramento não devemos recorrer senão em matéria de que temos toda certeza. Portanto, desde que a ele recorremos, estamos obrigados, pela reverência devida ao testemunho divino invocado, a cumprir verdadeiramente o que juramos, na medida do nosso possível, salvo se esse cumprimento implicar algum mal, como dissemos.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Pode ser mal cumprir um juramento, de dois modos. – Ou porque era mau desde o princípio. E isso, em si mesmo; como quando alguém jura haver de cometer um adultério. Ou por impedir um bem maior, como quando jura que não entrará em religião, ou não se ordenará sacerdote, ou não receberá dignidades eclesiásticas em caso em que as deva receber, ou em casos semelhantes. Ora, juramentos dessa espécie são ilícitos, desde o princípio, mas diferentemente. Pois, quem jurou haver de cometer um pecado, já pecou ao jurar e peca ao cumprir o juramento. Mas, quem jura não haver de praticar um bem maior, a que contudo não está obrigado, peca ao jurar porque opõe óbices ao Espírito Santo, inspirador dos bons propósitos; embora porém, não peque cumprindo o juramento, muito melhor andará não o cumprindo. – De outro modo, pode ser mal cumprir um juramento por algum acontecimento sobreveniente, imprevisto. Tal o caso de Herodes quando jurou dar à dançarina o que ela lhe pedisse; pois, este juramento podia ser a principio lícito, suposta a condição devida de pedir ela o que fosse conveniente; mas. o cumprimento dele foi ilícito. Por isso diz Ambrósio: Às vezes é contra o dever cumprir o prometido, guardar o juramento, como aconteceu com Herodes, que mandou matar João para não faltar ao prometido.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O juramento que fazemos coagido implica dupla obrigação. – Uma que nos obriga para com a pessoa a quem prometemos. Essa obrigação desaparece com a coação: porque quem se serviu desta merece que não se lhe cumpra o prometido. – Mas, outra é a obrigação pela qual nos obrigamos para com Deus a cumprir o que em nome dele prometemos. E essa não desaparece, no foro da consciência; porque devemos antes sofrer um dano temporal que violar o nosso juramento. Mas, podemos repetir em juízo o que demos; ou fazer uma denúncia ao Prelado, embora jurássemos o contrário. Porque tal juramento seria mal cumpri–lo, por colidir com a justiça pública. – E se os Romanos Pontífices desligaram por vezes os fiéis, desses juramentos, não quiseram com isso determinar a não obrigatoriedade deles, mas relaxá–la, por uma justa causa.
RESPOSTA À QUARTA. – Quando quem jura não tem a mesma intenção que quem recebe o juramento, se for por dolo do primeiro, deve este cumpri–Ia, conforme à boa interpretação daquele a quem foi feito. Por isso Isidoro diz: Seja qual for a argúcia verbal com que juremos, Deus, que é testemunha da consciência, toma as palavras conto as entende aquela a quem o juramento foi feito. E que isto se entende do juramento doloso é claro, pelo que acrescenta: Torna–se duas vezes réu quem usa em vão do nome de Deus e arma ciladas ao próximo. Mas, se quem jurou não usou de dolo, obriga–se de conformidade com a sua intenção. Por isso Gregório diz: Os ouvidos dos homens julgam das nossas palavras de acordo com o que soam; mas o juízo divino os ouve tais quais brotam do nosso coração.
Exórdio. Sermão aos pregadores ou aos prelados
1. Qual de vós me argüirá de pecado? Se vos digo a verdade, porque não me credes?
Aos pregadores fala Jeremias: Armai-vos de fortaleza, filhos de Benjamim, no meio de Jerusalém e fazei soar a trombeta em Técua e levantai o estandarte em Betacarém. Benjamim interpreta-se filho da direita; Jerusalém, visão da paz; Técua, trombeta; Betacarém, casa estéril. Armai-vos, portanto, de fortaleza e não temais, ó pregadores, filhos de Benjamim, isto é, da direita, ou seja, da vida eterna, da qual se escreve nas Parábolas: Na sua direita está uma larga vida. Armai-vos de fortaleza no meio de Jerusalém. Jerusalém é a Igreja militante, na qual há visão de paz, ou seja, a reconciliação do pecador. E diz-se bem: no meio. O meio da Igreja é a caridade, que se estende ao amigo e ao inimigo. Para conseguir este meio deve o pregador armar de fortaleza os fiéis da Igreja. E fazei soar a trombeta da pregação em Técua, isto é, entre aqueles que, quando praticam alguma obra boa, como os hipócritas, tocam a trombeta diante de si – comprazem-se, como se diz no livro da Sabedoria, em ter debaixo de si muitas nações –,para que, ao ouvir a trombeta, como diz Jeremias, exclamem: Ai de nós, Senhor, porque pecamos. E em Betacarém, casa estéril daqueles que são áridos da umidade da graça, estéreis de boas obras, cuja terra, o entendimento, não recebe gota de sangue do corpo de Cristo, levantai o estandarte da cruz, pregai a Paixão do Filho de Deus, porque chegou o tempo da Paixão, anunciai aos mortos que ressurjam na morte de Jesus Cristo, que afirma às turbas dos Judeus no Evangelho de hoje: Qual de vis me argüirá de pecado?
2. Observa que neste Evangelho há sete pontos: Primeiro, a inocência de Jesus Cristo, ao dizer: Qual de vós me argüirá? Segundo, a atenta audição da sua palavra, ao juntar: Quem é de Deus ouve as palavras de Deus etc. Terceiro, a blasfêmia dos Judeus: Porventura não dizemos nós bem que tu és Samaritano e tens demônio? Quarto, a glória da vida eterna ao cumpridor da sua palavra: Em verdade, em verdade vos digo, se alguém guardar a minha palavra, não experimentará a morte eternamente. Quinto, a glorificação do Pai: É meu Pai quem me glorifica. Sexto, a alegria de Abraão: Abraão, vosso Pai, exultou ao ver o meu dia. Sétimo, a voluntária lapidação dos Judeus e a ocultação de Jesus Cristo: Pegaram em pedras para lhas atirarem etc.
Nota ainda que neste domingo e no seguinte se lê Jeremias e se cantam os responsórios: Estes são os dias, juntamente com os restantes, em que se não diz o Glória ao Pai.
I – A inocência de Jesus Cristo
3. Assim fale o cordeiro inocente, que tirou o pecado do mundo, que não pecou nem se encontrou engano na sua boca, que tomou sobre si os pecados de muitos, como diz Isaías, e intercedeu pelos pecadores. Qual de vós me argüirá, isto é, acusará ou convencerá, de pecado? Certo, ninguém. Como poderia alguém argüir de pecado quem viera perdoar os pecados e dar a vida eterna? Por isso, o Apóstolo refere na Epístola de hoje aos Hebreus: Cristo intervém como pontífice dos bens futuros etc. Intervir significa ajudar ou obedecer. Cristo interveio, isto é, ajudou-nos. Donde o Profeta: Ajudou o pobre a sair da sua miséria. O gênero humano era pobre, porque espoliado dos dons gratuitos, vulnerado nos naturais; estava sem o recurso e sem o auxílio de ninguém. Veio Cristo: assistiu-lhe, ajudou-o, quando lhe perdoou os pecados. Cristo também obedeceu a Deus Pai até à morte, e morte de cruz. Nela ofereceu a Deus Pai, em reconciliação do gênero humano, não o sangue de bodes ou bezerros, mas o próprio sangue, para purificar a nossa consciência das obras mortas, para servir a Deus vivo. Chama-se-lhe Pontífice dos bens futuros. Pontífice é o que estabelece uma ponte, para dar passagem aos viandantes. Havia duas margens, a da mortalidade e a da imortalidade, entre as quais deslizava um rio intransponível, o rio das nossas iniqüidades e misérias. Delas escreve Isaías: As vossas iniqüidades abriram um abismo entre vós e o vosso Deus, e os vossos pecados esconderam de vós a sua face, para não vos ouvir.
Veio, portanto, Cristo, como Pontífice; fez-se ponte que vai da margem da nossa mortalidade à margem da sua imortalidade. Por ele, como prancha de madeira lançada entre as duas margens, passaríamos a possuir os bens futuros. Esta a razão por que se diz Pontífice dos bens futuros, não dos presentes, que não prometeu aos seus amigos, antes diz: Haveis de ter aflições no mundo. Cristo, portanto, intervém no perdão dos nossos pecados, como Pontífice dos bens futuros, para nos dar os bens eternos. Quem, portanto, o pode argüir de pecado? Que é o pecado senão a transgressão da Leo divina e a desobediência aos mandamentos celestes? Quem, pois, o pode argüir de pecado, cuja vontade esteve na lei do Senhor, que obedeceu, não só ao Pai celeste, mas ainda à Mãe pobrezinha? Qual de vós, portanto, me argüirá de pecado? Se eu vos digo a verdade, porque não me credes? Não criam na verdade, porque eram filhos do diabo, que é mentiroso e pai da mesma mentira, por ele inventada.
II – A audição da palavra de Cristo
4. Segue o segundo. Quem é de Deus, ouve as palavras de Deus; vós não as ouvis porque não sois de Deus. Deus, em hebraico, que dizer temor. É de Deus aquele que teme a Deus; a quem teme a Deus, ouve as suas palavras. Por isso, diz o Senhor por Jeremias: Levanta-te e desce à casa do oleiro, e ao ouvirás as minhas palavras. Levanta-te aquele que, tomado pelo temor, se arrepende de ter praticado o mal; e desce à casa do oleiro ao reconhecer-se lodo, temendo que o Senhor o quebre como vaso de barro; e desta forma ouve aí as palavras do Senhor, porque é de Deus, porque teme a Deus. Diz S. Jerônimo: É grande sinal de predestinação ouvir de bom grado as palavra de Deus e ouvir notícias da pátria celeste, como alguém que gosta de ouvir notícias da pátria terrena. E o contrário é sinal de obstinação. Por isso, ajunta-se: Vós não ouvis porque não sois de Deus, como se dissesse: Não ouvis as suas palavras porque não o temeis. Daí a fala de Jeremias: A quem falarei eu? A quem conjurarei eu que me ouça? Eis que os seus ouvidos estão incircuncidados e não podem ouvir; eis que a palavra do Senhor se tornou para eles motivo de opróbrio, e não a receberão. E noutra parte refere: Eis o que diz o Senhor: Farei apodrecer a soberba de Judá, isto é, dos clérigos, e o grande orgulho de Jerusalém, isto é, dos religiosos. Este povo perversíssimo, a saber, o povo dos leigos, não quer ouvir as minhas palavras e anda na maldade do seu coração. Acerca destes escreve ainda noutro sítio: Engordaram e engrossaram, e transgrediram pervesissimanente os meus preceitos. Não defenderam a causa da viúva. Porventura não hei-de eu punir estes excessos, diz o Senhor? Ou a minha alma não se há-de vingar duma tal gente? E noutra passagem: Eis que eu farei cair calamidades sobre este ovo, fruto dos seus desígnios, porque não ouviram as minhas palavras e rejeitaram a minha lei. Para que me trazeis vós incenso de Sabá e cana de suave cheiro de terra longínqua? Os vossos holocaustos não me são agradáveis, nem as vossas vítimas me agradaram, diz o Senhor.
Sabá interpreta-se rede ou cativa. O incenso designa a oração; a cana, a confissão do crime ou do louvor. Quem não ouve as palavras de Deus e não conhece a sua lei, que é a caridade, porque o amor é a plenitude da lei, queima baldadamente o incenso da oração. O incenso vem de Sabá, vaidade do mundo. A vaidade retém o homem enredado e cativo. Traz ao Senhor ainda a cana da confissão, que é de suave cheiro, se for feita em caridade; trá-la de terra longínqua, isto é, da imundície do espírito, que separa o homem de Deus. Os vossos holocaustos, isto é, as vossas abstinências, não me são agradáveis; e as vítimas, isto é, as vossas esmolas, não me agradaram, diz o Senhor, porque lançastes fora a caridade. Que mais? Todas as nossas obras são inúteis para a vida eterna se não são condimentadas com o bálsamo da caridade.
III – A blasfêmia dos Judeus contra Cristo
5. Segue o terceiro: Responderam os judeus e disseram-lhe: Não dizemos nós com razão que tu és um samaritano e que tens demônio? Jesus respondeu: Eu não tenho demônio, mas honro o meu Pai, e vós a mim desonrastes-me. E eu não busco a minha glória; há quem a busque e quem fará justiça. Os samaritanos, transferidos pelos Assírios, adotaram em parte o rito dos Israelitas e em parte o rito dos gentios Os judeus não mantinham relações com eles, por os reputarem impuros, por isso, a quem queriam insultar chamavam samaritano. Samaritanos interpretam-se guardas, por terem sido colocados pelos babilônios na guarda dos Judeus. Dizem portanto: Não dizemos nós com razão que tu és um samaritano? Isto aceita o Senhor sem o negar, porque é guarda. Não dorme nem dormita quem guarda a Israel e vigia sobre o seu rebanho. Daí a afirmação do Senhor a Jeremias: Que vês tu, Jeremias? E ele disse: uma vara vigilante, ou segundo outra tradução, uma vara de nogueira ou de amendoeira, estou eu a ver. E disse-me o Senhor: Viste bem, e eu vigiarei sobre a minha palavra para a realizar.A vara, assim chamada de virtude ou verdura ou porque com ela os homens governam, significa Jesus Cristo, virtude de Deus; plantada junto do curso das águas, isto é, junto da abundância das graças, permanece verde, ou seja, imune de todo o pecado. Ele de si próprio diz em S. Lucas: Se fazem isto no lenho verde, que acontecerá no seco? A ele disse o Pai: Governa-os com vara de ferro, isto é, com justiça inflexível. Esta vara vigiou sobre a sua palavra para a realizar, porque mostrou com fatos o que pregou de palavra. Vigia sobre a sua palavra quem pratica o que prega por palavra.
6. Ou então, Cristo chama-se vara vigilante, porque assim como o ladrão, desperto durante a noite, rouba objetos da casa dos qie dormem com uma vara munida de gancho, também Cristo, com a vara da sua humanidade e o gancho da santa Cruz roubou as almas ao diabo. Por isso, disse: Quando for exaltado da terra, tudo atrairei a mim, com o gancho da santa Cruz. De fato, o dia do Senhor virá como o ladrão durante a noite. E no Apocalipse diz: Se não vigiares, virei a ti como o ladrão.
Igualmente se chama Cisto vara de nogueira ou de amendoeira. Nota que na nogueira ou na amendoeira a amêndoa é doce, o caroço rijo, a casca amarga. A amêndoa doce designa a divindade de Cristo; o caroço rijo, a alma; a casca amarga, a carne, que suportou a amargura da Paixão. Vigiou sobre a palavra do Pai, que é chamada sua, porque faz um só com o Pai, para a realizar. Daí o dizer: Como o Pai me mandou, assim o faço. portanto, não tenho demônio, porque cumpro as ordens do Pai. Por conseguinte, blasfemam em verdade os falsos judeus: Tens demônio. Desta blasfêmia contra a pessoa de Cristo refere Jeremias: Ai de mim, minha mãe! Porque me geraste homem de rixa e de discórdia em toda a terra? Nunca lhes dei dinheiro a usura, nem a mim mo deu ninguém; todos me amaldiçoam, diz o Senhor.
Nota que há um duplo ai: o da culpa e o da pena. Cristo teve o ai da pena, mas não o da culpa. Ai, portanto, de mm, minha mãe! Porque me geraste para tamanha pena homem de rixa e homem de discórdia? Rixa é o que se comente entre muitos. Por isso, rixoso quer dizer ricto canino, porque sempre pronto a contradizer. A discórdia quer dizer coração diverso. Discordar é possuir um coração diverso. Assim entre os judeus havia rixa por causa das palavra de Cristo. Com efeito, os judeus estavam sempre prontos a ladrar e a contradizer como se foram cães. Tinham opiniões diferentes. Alguns efetivamente diziam: é bom; outros, pelo contrário: Não é, mas seduz as multidões. Nunca dei dinheiro a usura, nem a mim mo deu ninguém. Usurário chama-se não só o que empresta mas também o que recebe. Cristo, portanto, não deu dinheiro a usura, porque não encontrou dentre os judeus a quem emprestasse o dinheiro da sua doutrina. E não lhe deu ninguém dinheiro a usura, porque não quiseram multiplicar com boas obras a moeda da doutrina, antes todos o amaldiçoavam dizendo: És samaritano e tens demônio. Respondeu Jesus: Eu não tenho demônio. Refuta a calúnia, mas, paciente, não retorna a injúria. Honro o meu Pai, dando-lhe a honra devida, atribuindo-lhe tudo, e vós desonrastes-me. Por isso, na pessoa de Cristo diz Jeremias nos Trenos: Estou feito objeto de escárnio para o meu povo ao longo de todo o dia. E noutro lugar: Oferecerá a face a quem lhe bater, será saturado de opróbrios. Eu, porém, não procuro a minha glória, como os homens, que às afrontas sofridas retribuem com afrontas, mas reservo-a ao Pai. Donde ajuntar: Há quem a procure e quem faça justiça. É o que diz em Jeremias: Mas tu, Senhor dos exércitos, que julgas segundo a equidade e que sondas os afetos e os corações, faz que eu veja as vinganças que deles tomarás.
E nota que há duplo juízo: um de condenação, do qual se escreve: O Pai não julga ninguém, mas confiou todo o juízo ao Filho; outro de separação. Dele diz o Filho no Intróito da missa de hoje: Julga-,e, ó Deus, e separa a minha causa de uma gente não santa etc. É ainda neste sentido que ele diz: É o Pai quem procura a minha glória e separa a minha glória da vossa. Vós gloriais-vos segundo o século, não eu; a minha glória é aquela que tive junto do Pai antes que o mundo existisse, diferente do orgulho dos homens.
7. Sentido moral. Tens demônio. Demônio, do grego daimonion, quer dizer perito e conhecedor de fatos. O vocábulo grego daimon significa muito ciente. Quando, portanto, alguém, por adulação ou aplauso, te diz: És perito e sabes muito, diz-te: Tens demônio. E tu imediatamente deves responder com Cristo: Eu não tenho demônio. De mim mesmo nada sei, nada tenho de bom, mas honro o meu Pai. A ele atribuo tudo; a ele dou graças; dele provém toda a sabedoria, toda a perícia e ciência. Eu não busco a minha glória. Diz com S. Bernardo: Não me toques, palavra de vanglória, pois é só devida a glória a quem se reza: Glória ao Pai e ai Filho e ao Espírito Santo. Diz igualmente: O anjo, no céu, não busca do anjo a glória; e o homem, na terra, deseja ser louvado pelo homem.
IV – Glória eterna para o servidor da palavra de Cristo
8. Segue o quarto: Em verdade, em verdade vos digo: quem guardar a minha palavra, não verá a morte eternamente. Disseram-lhe, pois, os judeus: Agora reconhecemos que tens demônio. Abraão morreu e os Profetas, e tu dizes: Quem guarda a minha palavra não verá a morte eternamente. Porventura és maior do que o nosso pai Abraão, que morreu? E os Profetas morreram. Que pretendes tu ser? Respondeu Jesus: Se eu me glorifico a mim mesmo, não é nada a minha glória. Ámen significa: verdadeiramente, fielmente, ou faça-se. É vocábulo hebraico como aleluia. E assim como no céu S. João ouviu ámen e aleluia, conforme refere no Apocalipse, assim na terra estas duas palavras foram entregues pelos Apóstolos para serem pronunciadas por todos os povos: Em verdade, em verdade vos digo: quem guardar a minha palavra, não verá a morte eternamente. Morte vem da mordedura do primeiro homem, porque ao morder o pomo da árvore proibida incorreu na morte. Se tivesse guardado a palavra do Senhor: Come de toda a árvore do paraíso, mas não comas da árvore da ciência do bem e do mal, não teria experimentado a morte eternamente; mas porque não a guardou, experimentou a morte e pereceu juntamente com toda a sua posteridade. Daí a fala de Jeremias: O Senhor pôs-te o nome de oliveira fecunda, formosa, fértil, vistosa; à voz da sua palavra grandíloqua, acendeu-se nela o fogo e queimaram-se os seus ramos.
A natureza humana antes do pecado foi oliveira na criação e criada no campo damasceno, mas plantada, por assim dizer, no paraíso de delícias; fecunda nos dons gratuitos, formosa nos naturais, fértil no gozo da eterna felicidade, vistosa na sua pureza. Mas ai! à voz da sua palavra grandíloqua, isto é, da sugestão diabólica a prometer grandes coisas: Sereis como deuses, acendeu-se nela o fogo da vanglória e da avareza e desta forma foram queimados os seus ramos, ou seja, toda a sua posteridade. Ó filho de Adão, não imiteis os vossos pais, que não guardaram a palavra do Senhor, e por isso pereceram, mas guardai-a: Em verdade, em verdade vos digo que se guardardes a minha palavra, não vereis a morte eternamente. Ver, neste lugar, é o mesmo que experimentar.
9. Segue. Disseram, pois, os judeus: Agora reconhecemos que tens demônio. Ó desatino de espírito imbecil! Ó perfídia de gente demoníaca! Não vos basta uma vez só blasfemar do inocente, imune de todo o pecado, de modo tão horrível, com ultraje tão ignominioso, senão que repetis segunda vez: Agora reconhecemos que tens demônio. Ó cegos, se conhecêsseis que ele não tinha demônio, mas crêsseis no Senhor Filho de Deus!
Abraão morreu, não com aquela morte que o Senhor disse, mas de morte corporal, da qual se escreve no Gênesis: Foram os dias de Abraão cento e setenta e cinco anos; e faltando-lhe as forças, morreu numa ditosa velhice e em avançada idade e cheio de dias; e foi unir-se ao seu povo. E Isaac e Ismael, seus filhos, sepultaram-no na dupla caverna.
10. Sentido moral. Abraão significa o justo, cuja vida deve constar de cento e setenta e cinco anos. O número centenário, número perfeito, designa toda a perfeição do justo; o septuagenário, que consta de sete e de dez, a infusão da graça septiforme e o cumprimento do decálogo; no quinário, a vida limpa dos cinco sentidos. Portanto, a vida do justo deve ser perfeita pela infusão da graça septiforme e pelo cumprimento do decálogo e pelo porte limpo dos cinco sentidos; e desta maneira abandonará o amor mundano e morrerá para o pecado, cheio, não vazio, de dias e reunido ao seu povo. Deste diz o Senhor em Isaías: Os dias do meu povo serão como dias da árvore, isto é, de Jesus Cristo, porque assim como ele viverá eternamente, também o meu povo viverá e reinará com ele sempiternamente. Daí a palavra do Evangelho: Eu vivo, e vós vivereis.
E Isaa e Ismael, seus filhos, sepultaram-no na dupla caverna. Isaac interpreta-se gozo, Ismael interpreta-se audição de Deus. O gozo da esperança dos bens celestes e a audição dos divinos preceitos sepultam o justo na dupla caverna da vida ativa e contemplativa, a fim de que, escondido da perturbação dos homens no secreto da face do Senhor, se proteja das línguas maldizentes. Destas ainda se ajunta: Que pretendes tu ser? Segundo eles, pretendia passar por Filho de Deus, igual a Deus, como se o não fosse. Mas não se fazia: era-o verdadeiramente. Donde a afirmação do Apóstolo: Não considerou ser rapina ao fazer-se igual a Deus. Por isso, não diziam: Que és, mas: Que pretendes tu ser? Se eu me glorifico a mim mesmo, a minha glória não é nada. Contra o que dizem: Que pretendes tu ser?, refere a sua glória ao Pai. Dele é que tira o ser Deus.
V – Cristo a glorificar pelo Pai
11. Segue o quinto: É o Pai quem me glorifica, aquele que vós dizeis ser o vosso Deus; mas vós não o conhecestes; eu, porém, conheço-o; e se disser que o não conheço, serei mentiroso como vós. Mas eu conheço-o e guardo a sua palavra. Nota que o Pai glorificou o seu Filho no nascimento, ao fazê-lo nascer duma Virgem; no rio Jordão e num monte, quando disse: Este é o meu filho amado. Glorificou-o ainda na ressuscitação de Lázaro, na Ressurreição e na Ascensão. Por isso, disse em S. João: Pai, glorifica o teu nome. Veio, pois, uma voz do céu, dizendo: E glorifiquei-o, na ressurreição de Lázaro; e de novo o glorificarei na Ressurreição e na Ascensão. É, pois, o Pai quem me glorifica, o qual vós dizeis ser o vosso Deus. Aqui está abertamente um testemunho contra os hereges, que afirmam ter sido dada a Lei a Moisés pelo deus das trevas. Mas o Deus dos judeus, que deu a Lei a Moisés, é o Pai de Jesus Cristo; portanto, o Pai de Jesus Cristo deu a Lei a Moisés. E vós não o conheceis espiritualmente, quando servis os bens terrenos. Eu, porém, conheço-o, porque sou um com ele. E se disser que não o conheço, quando o conheço, serei mentiroso como vós, que dizíeis conhecê-lo, quando não o conheceis. Mas eu conheço-o e guardo a sua palavra. Como Filho, exprimia a palavra do Pai; e ele mesmo era a Palavra do Pai, Ele que fala aos homens. Guarda-se a si mesmo, isto é, guarda a divindade em si.
VI – A alegria de Abraão
12. Segue o sexto. O vosso pai Abraão suspirou por ver o meu dia; viu-o e ficou cheio de gozo. Disseram-lhe, por isso, os Judeus: Tu ainda não tens cinqüenta anos e viste Abraão? Disse-lhe Jesus: Em verdade, em verdade vos digo, antes que Abraão fosse feito, eu sou. Nota as três palavras: suspirou, viu e alegrou-se. Nota ainda que é triplo do dia do Senhor: o do Natal, o da Paixão e o da Ressurreição. Sobre o primeiro escreve Joel: Naquele dia sairá uma fonte da casa do Senhor e irrigará uma torrente de espinhos. No dia de Natal, uma fonte, isto é, Cristo, sairá da casa de David, isto é, do útero da Santíssima Virgem, e irrigará uma torrente de espinhos, isto é, refrigerará a abundância das nossas misérias, com que todos os dias somos atormentados e feridos.
Acerca do segundo, diz Isaías: Meditou no seu espírito duro, para o dia da ardência. No dia da Paixão, em que o Senhor suportou a ardência dos trabalhos e da dor no seu espírito duro, enquanto pendia na cruz, meditou no modo de condenar o diabo e libertar de suas mãos o gênero humano.
A respeito do terceiro, diz Oséias: Ao terceiro dia ressuscitará, e nós viveremos na sua presença: entraremos na ciência do Senhor e o seguiremos a fim de o conhecer. Ao terceiro dia, Cristo, ressurgindo dos mortos, ressuscitou-nos juntamente com ele, isto é, conformes com a sua ressurreição, porque assim como ele ressuscitou, também nós acreditamos que havemos de ressuscitar na ressurreição geral. E então viveremos, entraremos na sua ciência e o seguiremos, a fim de o conhecer. Nestes quatro verbos entendemos os quatro dotes do corpo glorioso: viveremos: eis a imortalidade; entraremos na sua ciência: eis a sutileza; o seguiremos: eis a agilidade; a fim e conhecermos o Senhor: eis a claridade.
Abraão, pois, isto é, o justo, exulta no dia do nascimento do Verbo Encarnado; com a visão da fé, vê-o suspenso no patíbulo da cruz; com ele, já imortal, gozará no reino celeste.
Disseram-lhe os judeus, olhando nele só para a idade da carne, sem considerar a natureza divina: Ainda não tens cinqüenta anos e viste Abraão? Com trinta e um ou talvez trinta e dois anos, pro causa do demasiado trabalho e instância da pregação, o Senhor parecia ser mais velho. Disse-lhes Jesus: Antes que Abrão fosse feito, eu sou. Não disse: fosse. Mas: fosse feito, porque criatura; não disse, feito, mas: sou, porque criador.
VII – A ocultação de Jesus dos Judeus que o queriam lapidar
13. Segue o sétimo: Então pegaram em pedras para lhe atirarem; mas Jesus encobriu-se, e saiu do templo. Os apedrejadores recorrem a pedras para lapidar a pedra angular. Em si juntou as duas paredes: o povo judaico e o povo gentio, que vinham de parte contrária. Os judeus, imitadores da malícia de seus antepassados, quiseram lapidar o Senhor dos profetas. Seus pais apedrejaram o profeta Jeremias no Egito. Por isso, diz-lhes o Senhor em S. Mateus: Sois filhos daqueles que mataram os profetas, e vós enchei a medida dos vosso pais.
14. Sentido moral. Os falsos cristãos, filhos estranhos, filhos do diabo, que mentiram ao Senhor, violando o pacto feito no Batismo, apedrejam todos os dias, quanto deles depende, com as duras pedras dos seus pecados, o seu pai e Senhor Jesus Cristo, do qual tiraram o nome de cristãos, e se esforçam por matá-lo, por matar a fé nele. Assemelham-se aos filhos do abutre, que deixam o pai morrer de fome. Não são como os filhos do grou, que se expõem à morte pelo pai, quando o abutre lhes persegue o pai; já envelhecido, alimentam-no, por já não poder caçar. O nosso pai, como pai faminto, bate à porta, para que lha abramos e lhe demos, se não uma ceia, ao menos um bocado de pão. Eu, diz no Apocalipse, estou à porta e bato; se alguém me abrir, entrarei na casa dele e cearei com ele e ele comigo. Nós, porém, filhos degenerados, como os do abutre, deixamos morrer de fome o nosso pai. Por isso, ele queixa-se de nós por boca de Jeremias: Porventura tenho eu sido para Israel um deserto ou terra de trevas? Porque disse, pois, o meu povo: Nós nos retiramos, não tornaremos mais a ti? Porventura esquecer-se-á a donzela do seu ornato, ou a esposa da faixa que lhe cinge o peito? Mas o meu povo esqueceu-se de mim durante dias sem número. O Senhor não é deserto ou terra de trevas, que não dão fruto algum ou dão pouco fruto, mas é paraíso de delícias e terá de bênção, na qual recebemos o cêntuplo de tudo o que tivermos semeado.
Qual a razão, pois, por que, miseráveis, nos afastamos dele e dele nos esquecemos por tão longo tempo? Mas a alma, esposa de Cristo, donzela pela fé e pela caridade, não pode esquecer-se do seu ornato, isto é, do amor divino, de que anda adornada, e da faixa que lhe cinge o peito, ou seja, da consciência pura, sob a qual vive segura.
Sejamos, por favor, irmãos caríssimos, como os filhos do grou, a fim de que, se for necessário, afrontemos a morte pelo nosso pai, isto é, pela fé do nosso pai, e restauremos, com boas obras, este mundo, já envelhecido e que depressa cairá na ruína, para que não nos suceda o que se ajunta: Jesus, porém, encobriu-se e saiu do templo. E, por esta causa, dede o presente domingo, que se intitula Paixão do Senhor, nos responsórios não se diz Glória ao Pai. Todavia, não há completo silêncio, porque o Senhor ainda não fora entregue nas mãos dos lanistas.
Roguemos, portanto, e com lágrimas peçamos ao Senhor Jesus Cristo que não nos encubra a sua face e não saia do templo do nosso coração, e não nos argua de pecado no seu juízo; antes nos infunda a sua graça, para que diligentemente ouçamos a sua palavra; nos conceda paciência na injúria sofrida; nos livre da morte eterna; nos glorifique no seu reino, a fim de merecermos ver o dia da sua eternidade juntamente com Abraão, Isaac e Jacob. Ajude-nos ele mesmo, ao qual é devida honra e poder, decoro e império pelos séculos eternos. Diga toda a Igreja: Assim seja.
Fonte: SANTO ANTÔNIO DE LISBOA. Obras Completas. Sermões Dominicais e Festivos (Vol. I)
Introdução, tradução e notas por Henrique Pinto Rema.
Lello e Irmão Editores, Porto, 1987; págs 228-247.
Exórdio. Sermão aos pregadores.
1. Com cinco pães e dois peixes saciou o Senhor cinco mil homens etc.
Aos pregadores fala Salomão no Eclesiastes: Lança o teu pão sobre as águas que passam, e depois de muito tempo o acharás. As águas que passam são os povos a correr para a morte. Por isso, diz a mulher de Técua no segundo livro dos Reis: Todos corremos como água. Escreve Isaías: Este povo rejeitou as águas de Siloé, que correm em silêncio, e preferiu apoiar-se em Rasim e em Face, filho de Romélia. Siloé interpreta-se enviado; portanto, as águas de Siloé são a doutrina de Jesus Cristo, enviado do Pai. Rejeitam esta água os que se perdem em desejos terrenos e se apóiam em Rasim, isto é, no espírito soberbo, e em Face, ou seja, na imundície da luxúria. E por esta razão correm como água para o profundo da Geena. Portanto, sobre as águas que passam, ó pregador, lança o teu pão, o pão da palavra de Deus, do qual se diz: Não só de pão etc. E Isaías: Foi-lhe, isto é, ao justo, dado o pão; depois de muito tempo, no dia do juízo, achá-lo-ás, ou seja,encontrarás o que te dará em troca dele. Em nome do Senhor, lançarei o pão sobre as águas, compondo por vosso amor, sobre os cinco pães e dois peixes, um pequeno sermão.
Os cinco pães e os dois peixes.
2. Digamos, portanto: Com cinco pães e dois peixes etc. Os cinco pães são os cinco livros de Moisés, em que se encontram as cinco refeições da alma. O primeiro pão é detestar o pecado na contrição; o segundo é revelá-lo na confissão; o terceiro é a miséria e humilhação de si mesmo na satisfação; o quarto é o zelo das almas na pregação; o quinto é a doçura da pátria celeste na contemplação.
Acerca do primeiro pão lê-se no primeiro livro, no Gênesis, que Judá mandou um cabrito a Tamar pelo seu pastor Odalamita. Judá interpreta-se o que se confessa e significa o penitente, que deve enviar o cabrito, isto é, a detestação do pecado. Tamar, que se interpreta amarga, trocada, palmeira, é a alma penitente, em cuja tripla interpretação se designa o triplo estado dos penitentes. Chama-se amarga relativamente ao estado dos incipientes; trocada, dos proficientes; palmeira, dos perfeitos. Odolamita interpreta-se testemunho pela água e significa a compunção das lágrimas pelas quais o penitente testemunha que detesta o pecado e promete não voltar a cometê-lo. E assim desta Tamar, como diz S. Mateus, poderá Judá gerar Farés e Zara. Farés interpreta-se divisão; Zara, oriente. O penitente deve antes separar-se do pecado e depois tender à iluminação das boas obras. Declina, diz o Profeta, do mal: eis Farés; e faz o bem: Eis Zara.
Acerca do segundo pão lê-se no segundo livro de Moisés, no Êxodo, que Moisés escondeu debaixo da areia o egípcio morto. Moisés interpreta-se aquático e significa o penitente, flutuando nas água da compunção. Ele deve matar o egípcio, isto é, o pecado mortal, na contrição, e escondê-lo debaixo da areia na confissão. Escreve, pois, S. Agostinho: Se tu te descobres, Deus cobre-te; se tu te cobres, Deus descobre-te. Esconde, portanto, o egípcio quem descobre o seu pecado. Esconde-o para Deus e descobre-o ao sacerdote. Daí o dizer-se no Gênesis que Raquel escondeu os ídolos de Labão. Raquel interpreta-se ovelha. Esta é a alma penitente, que deve esconder os ídolos, isto é, os pecados mortais, de Labão, ou seja, do diabo. Bem-aventurados aqueles, diz o Profeta, cujos pecados foram cobertos.
Acerca do terceiro pão lê-se no terceiro livro de Moisés, no Levítico, onde se manda aos sacerdotes: O papo e as penas lançá-los-ás no lugar das cinzas para o lado do Oriente. O papo simboliza o ardor e a sede da avareza, da qual escreve Job: Uma sede ardente atormentará o avarento. A pena designa a leveza da soberba. A pena, escreve Job, do avestruz, isto é, do hipócrita, é semelhante às penas da cegonha e do falcão, isto é, do varão contemplativo. São lançadas no lugar das cinzas quando pensamos de coração compungido na palavra da maldição: És cinza, e à cinza hás-de voltar. O lado do Oriente é a vida eterna, da qual nos separamos por causa dos primeiros pais. Humilha-se, portanto, o penitente na satisfação e lança fora de si o papo da avareza e a pena da soberba quando traz à memória o eulógio da primeira maldição e geme todos os dias, prostrado diante dos olhos de Deus.
Acerca do quarto pão lê-se no quarto livro, o dos Números, que Finéias, tomando um punhal, atravessou os dois fornicadores pelas partes genitais. Finéias é o pregador, que tomando o punhal, isto é, a palavra da pregação, deve atravessar os fornicadores nas partes genitais, para que, descoberta e como que lançada em rosto a sua torpeza, se envergonhem do crime cometido. Revelarei, diz o Senhor por boca do seu Profeta, diante da tua face as partes vergonhosas. Cobre os seus rostos de ignomínia, diz David.
Acerca do quinto pão lê-se no quinto livro, o Deuteronômio, que Moisés subiu das planícies do Moab ao monte Abarim e aí morreu diante de Deus. Moisés é o penitente. Sobe das planícies de Moab, que se interpreta do pai. Quer dizer, deve deixar a vida dos carnais, provenientes do pai diabo, e subir ao monte Abarim, que se interpreta passagem, ou seja, a excelência da contemplação, para que passe deste mundo ao Pai.
Estes são os cinco pães de que se diz: Com cinco pães e dois peixes.
3. Estes são os cinco côvados da mirra. Escreve Solino que na Arábia há uma árvore chamada mirra, de cinco côvados de altura. Arábia interpreta-se sagrada e significa a santa Igreja, na qual há a mirra da penitência que eleva o homem das coisas terrenas cinco côvados, que são os cinco pães evangélicos. Estes são os cinco irmãos de Judá, a respeito dos quais diz Jacob no Gênesis: Judá, louvar-te-ão os teus irmãos; são eles: Ruben, Simeão, Levi, Issacar, Zabulão. Ruben interpreta-se vidente; Simeão, audição; Levi, ajuntado; Issacar, recompensa; Zabulão, casa de fortaleza.
Tenha, portanto, Judá um irmão chamado Ruben, para que veja na contrição com aqueles sete olhos a que se refere Zacarias: Numa só pedra, ou seja, no penitente, que deve ser pedra pela constância e um só pela unidade da fé, havia sete olhos. Com o primeiro deles deve ver o passado, para o chorar; com o segundo, o futuro, para dele se acautelar; com o terceiro, as coisas prósperas, para não o ensoberbecerem; com o quarto, as adversas, para não o deprimirem; com o quinto, as coisas superiores, para as saborear; com o sexto, as inferiores, para as tornar insípidas; com o sétimo, as interiores, para se comprazer em Deus.
Tenha, portanto, um segundo irmão de nome Simeão ao confessar-se, para que o Senhor ouça a sua voz, como diz Moisés no Deuteronômio: Ouve, Senhor, a voz de Judá. Dela se lê nos Cânticos: Ressoe a tua voz aos meus ouvidos, pois que a tua voz é doce.
À contrição e à confusão se ajunte o terceiro irmão, Levi, na satisfação, a fim de que a medida da pena corresponda à culpa. Fazei, diz, dignos frutos de penitência. No Sinai, de fato, que se interpreta medida, foi dada a lei. A lei da graça é dada àquele cuja penitência se mede de conformidade à culpa.
Tenha ainda um quarto irmão, Issacar, para que, incendiado pelo zelo das almas, receba a recompensa da eterna felicidade. Mas o tronco inútil, a ocupar terreno, e o fátuo idiota, a entravar um lugar na Igreja, receba, não a recompensa da vida eterna, mas a amargura da morte eterna.
Todavia, por favor, tenha um quinto irmão, Zebulão, para que, habitando na casa da contemplação, juntamente com o simples Jacob, mereça tomar gosto à doçura celeste.
Estes são os cinco pães, de que diz: Com cinco pães e dois peixes etc.
4. Os dois peixes representam a inteligência e a memória, que devem servir de condimento aos cinco livros de Moisés, para que entendas o que lês e confies ao tesouro da memória o que entendes. Ou então, os dois peixes, tirados da profundeza do mar para a mesa do rei, são Moisés e Pedro. O nome Moisés vem da água de que fora tirado; e Pedro o pescador é elevado à dignidade de Apóstolo. A Sinagoga foi encomendada àquele; a Igreja, a este. A Sinagoga e a Igreja são Sara e Agar, das quais se escreve na Epístola de hoje:Está escrito que Abraão teve dois filhos etc. A escrava Agar, que se interpreta solene, significa a Sinagoga, que se gloriava na observância da lei, como se foram coisas solenes. Sara, que se interpreta carvão, significa a santa Igreja, inflamada no dia de Pentecostes pelo fogo do Espírito Santo. O filho de Agar é o povo judeu, que luta com o filho de Sara, o povo dos crentes.
Por outras palavras, Sara, que se interpreta princesa, é a parte superior da razão, que deve comandar, como a senhora manda na escrava. A escrava é a sensualidade, representada por Agar, que se interpreta abutre. Com efeito, a sensualidade, qual abutre, segue os cadáveres dos desejos carnais. O filho de Agar, isto é, o movimento da carne, persegie o filho de Sara, ou seja, o movimento da razão. E isto é o que diz o Apóstolo: A carne deseja contra o espírito e o espírito contra a carne, de forma a pô-la fora juntamente com o seu filho. Por isso, diz-se: Põe fora a escrava e o seu filho. Efetivamente, a carne, carregada com os bens da natureza e opulenta com as vantagens temporais, insurge-se contra a senhora. Sucede então o que diz Salomão nas Parábolas: A terra estremece com três coisas e uma quarta não a pode suportar: com um escravo que chega a reinar; com um insensato farto de alimento, com uma mulher odiosa que um homem desposou, e com uma escrava que se torna herdeira de sua senhora. O escravo que chega a reinar é o corpo recalcitrante. O insensato farto de alimento é a alma inebriada de delícias. A mulher odiosa são as más obras; é recebida em matrimônio quando o pecador cai na cilada do mai hábito. E desta forma a escrava Agar, a sensualidade, torna-se herdeira da sua senhora, a razão. Mas para que este domínio infeliz acabe, com cinco pães e dois peixes saciou o Senhor cinco mil homens.
5. Acerca deste assunto há concordância no Intróito da missa: Alegra-te, Jerusalém, e reuni-vos etc. Nota que para o número de cinco mil homens há cinco reuniões. A primeira foi celebrada no céu; a segunda, no paraíso; a terceira, no monte das Oliveiras; a quarta, em Jerusalém; a quinta, em Corinto.
Na primeira reunião nasceu a discórdia. Com efeito, o primeiro anjo, antes monge branco, depois monge negro, porque primeiro lúcifer, depois tenebrífero, semeou a cizânia da discórdia nas fileiras dos seus irmãos. No corro da concórdia, de fato, começou a cantar a antífona da soberba, partindo do mais alto, em vez do mais baixo. Subirei, diz, ao céu, para aí ser igual ao Pai, e serei semelhante ao Altíssimo, isto é, ao Filho. E enquanto desta forma cantava altaneiramente e entumecia as veias do coração, caiu irrecuperavelmente: o firmamento não pôde suster a sua soberba.
Na segunda reunião do paraíso nasceu a desobediência, por causa da qual os protoparentes foram lançados à miséria deste exílio.
Na terceira, nasceu a simonia. Consiste ela em comprar ou vender o espiritual ou o que é anexo ao espiritual. Ora, que coisa mais espiritual e mais santa do que Cristo? Cremos que Judas, ao vendê-lo, incorreu no pecado de simonia, e por isso, suspenso dum laço rebentou o ventre. Assim todo o simoníaco, se não se sujeitar e fazer verdadeira penitência, suspenso do laço da eterna condenação, arrebentará o ventre pelo meio.
Na quarta reunião, a pobreza foi desonrada, quando Ananias e Safira subtraíram para eles parte do preço do campo vendido, mentido ao Espírito Santo. E por isso imediatamente sofreram a sentença do manifesto ultraje. Desta maneira, se os que tiverem renunciado aos próprios bens, marcando-se com o selo da santa pobreza, quiserem reedificar a Jericó destruída, sofrerão eternamente o impropério da maldição.
Na quinta, foi lesada a castidade. Lê-se na epístola aos Coríntios que Paulo não duvidou ferir, para morte da carne, com a sentença de excomunhão aquele fornicador que tomara a mulher do pai.
Vós, porém, membros da Igreja, cidadãos da Jerusalém celeste, fazei uma reunião dividida em cinco partes, de que serão banidos estes cinco crimes: a cizânia da discórdia, a loucura da desobediência, a concupiscência da simonia, a lepra da avareza e a imundície da luxúria. Assim merecereis ser saciados com cinco pães e dois peixes entre cinco mil homens e gozar da perfeição do número milenário. Ajude-nos aquele que é bendito por séculos de séculos. Assim seja.
Fonte: SANTO ANTÔNIO DE LISBOA. Obras Completas. Sermões Dominicais e Festivos (Vol. I)
Introdução, tradução e notas por Henrique Pinto Rema.
Lello e Irmão Editores, Porto, 1987; págs 217-226.
Em louvor da Santíssima Virgem Maria.
1. Naquele tempo, levantando a voz uma mulher do meio da multidão, disse-lhe: Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos a que foste amamentado etc.
O esposo fala à esposa nos Cânticos: Ressoe a tua voz aos meus ouvidos, porque a tua voz é doce. A voz doce é o louvor que se tributa à gloriosa Virgem, que nos soa dulcíssima aos ouvidos do Esposo, isto é, de Jesus Cristo, Filho da mesma Virgem. Levantemos, portanto, todos e cada um a voz em louvor da Santíssima Virgem e digamos ao seu Filho: Bem-aventurado o centre que te trouxe e os peitos a que foste amamentado.
2. Bem-aventurado quer dizer bem aumentado. Bem-aventurado é aquele que possui tudo o que quer e não quer nada de mal Bem-aventurado é aquele a quem sucede tudo segundo os seus desejos. Bem-aventurado, portanto, o ventre da gloriosa Virgem, que mereceu trazer por nove meses todo o bem, o sumo bem, a felicidade dos anjos, a reconciliação dos pecadores. Por isso, diz S. Agostinho: Fomos reconciliados só pelo Filho segundo a carne, mas não fomos reconciliados só com o Filho, enquanto Deus. De fato, a Trindade reconciliou-nos consigo enquanto a mesma Trindade provocou a Encarnação só do Verbo. Bem-aventurado, portanto, o ventre da gloriosa Virgem, da qual escreve S. Agostinho no livro De Natura et Gratia: Quando se trata de pecados, excetuo a Santíssima Virgem, da qual, por honra do Senhor, não quero absolutamente se faça questão alguma. De fato, sabemos que lhe foi conferida mais graça para vencer o pecado, em todos os aspectos, de maneira que merecei conceber e dar à luz aquele que seguramente não teve pecado algum. Excetuada, portanto, esta Virgem, se todos os santos e santas pudessem reunir-se e lhes fosse perguntado se tinham pecado, que responderiam senão o que diz São João: Se dissermos que não temos pecado, a nós mesmos nos enganamos, e não está em nós a verdade? – Porém, aquela Virgem gloriosa foi prevenida e cheia de graça singular, para que tivesse como fruto do seu ventre aquele mesmo que de início o universo teve como Senhor.
3. Bem-aventurado, portanto, o ventre. Dele, em louvor de sua Mãe, diz o Filho nos Cânticos: O teu ventre é como um monte de trigo, cercado de lírios. O ventre da Virgem gloriosa foi como um monte de trigo: monte, porque nele foram reunidas todas as prerrogativas dos méritos e prêmios; de trigo, porque nele, como em celeiro, por diligência do verdadeiro José, foi posto trigo, para não perecer de fome todo o Egito. O trigo, assim chamado por se enceleirar quando está puríssimo, ou porque se mói e esmaga o seu grão, que é alvo no interior e avermelhado no exterior, significa Jesus Cristo, escondido, durante nove meses, no celeiro do santíssimo ventre da Virgem gloriosa, na mó da cruz esmagado po nossa causa, cândido pela inocência da vida, avermelhado pelo derramamento de sangue. Este bem-aventurado ventre foi cercado de lírios. Lírio, vocábulo parecido ao de leite, simboliza, por causa do seu candor, a Virgindade da Santíssima Virgem. O seu útero foi cercado de lírios, isto é, cingido pelo vale da humildade. Estes lírios são a dupla virgindade, interior e exterior. Donde o dizer de S. Agostinho: O Deus unigênito, ao ser concebido, recebeu verdadeira carne da Virgem, e, ao nascer, guardou na Mãe a integridade da virgindade. Bem-aventurado, portanto, o ventre que te trouxe.
É na verdade bem-aventurado quem te trouxe a ti, Deus e Filho de Deus, Senhor dos anjos, criador do céu e da terra, redentor do mundo. A Filha trouxe o Pai, a Virgem pobrezinha trouxe o Filho. Ó Querubins, ó Serafins, ó Anjos e Arcanjos, adorai reverentemente de rosto baixo e cabeça inclinada o templo do Filho de Deus, o sacrário do Espírito Santo, o bem-aventurado ventre cercado de lírios, dizendo: Bem-aventurado o ventre que te trouxe. Ó terrenais filhos de Adão, a quem esta graça, esta especial prerrogativa foi concedida, compenetrados da fé, compungidos no espírito, prostrados em terra, adorai o trono ebúrneo do verdadeiro Salomão, excelso e elevado, o trono do nosso Isaías, dizendo: Bem-aventurado o ventre que te trouxe.
4. Segue: E os seios a que foste amamentado. Deles escreve Salomão nas Parábolas: Seja para ti como uma corça caríssima e como um veado cheio de graça: os seus seios te inebriem em todo o tempo; no seu amor busca sempre as tuas delícias. Nota que a corça, como se diz em ciências naturais, dá à luz em caminho trilhado, sabendo que o lobo evita o caminho trilhado por causa dos homens. a corça caríssima é Maria Santíssima, que em caminho trilhado, isto é, numa estalagem, deu à luz um veado cheio de graça, porque nos deu gratuitamente e em tempo agradável um filhinho. Por isso, lemos em S. Lucas: Deu à luz o seu filho e envolveu-o em panos, para que recebêssemos a estola da imortalidade, e reclinou-o num presépio, porque não havia lugar pra ele na estalagem. Comentário da Glossa: Não encontra lugar na estalagem, para que tenhamos várias mansões no céu. Os seis desta corça, caríssima ao mundo inteiro, hão-de inebriar-te, ó cristão, em todo o tempo, a fim de que, esquecido de tudo o que é temporal, como inebriado, te lances para o que antes de ti existiu. Mas é muito de admirar que tivesse dito: inebriar-te-ão, quando nos seios não há vinho que inebrie, mas leite agradabilíssimo. Ouve o porquê: O Esposo seu Filho, louvando-a nos Cânticos, diz: Quão formosa e encantadora és, ó caríssima, entre as delícias! A tua estatura é semelhante a uma palmeira e os teus seios a dois cachos de uvas. Quão formosa és de entendimento, quão encantadora és de corpo, minha mãe, esposa minha, corça caríssima, entre delícias, isto é, entre os prêmios da vida eterna.
5. A tua estatura é semelhante a uma palmeira. Nota que a palmeira em baixo é áspera por causa de sua casca, na parte superior é bela à vista e pelo fruto, e, como diz Isidoro, dá fruto quando centenária. Assim a Virgem Maria neste mundo foi áspera na casca da pobreza, mas no céu é bela e gloriosa, porque rainha dos anjos. E mereceu alcançar o fruto centésimo, que se dá às virgens, ela a Virgem das virgens, acima de todas as virgens. Com razão se diz portanto: A tua estatura é semelhante a uma palmeira e os teus seis a dois cachos de uvas.
O conjunto de frutos reunidos fazem o cacho, por exemplo, de uvas, que nasce, na videira. Desta, na história de José, no Gênesis, diz o copeiro do rei: Eu via diante de mim uma cepa, na qual havia três varas a crescerem pouco a pouco em gomos e, depois das flores, as uvas amadurecem. Nesta sentença, há sete coisas: a cepa, três varas, gomos, flores e uvas. Vejamos de que modo estas sete coisas convêm egregiamente a Maria Nossa Senhora. A cepa, assim chamada por ter força de ganhar raízes mais depressa, ou por se entrelaçar, é Maria Santíssima, que, entre os outros, ganhou raízes mais depressa e subiu mais alto no amor de Deus, e de modo inseparável se entrelaçou à verdadeira cepa, ao seu Filho, que disse: Eu sou a verdadeira cepa. De si mesma disse no Eclesiástico: Como a cepa, lancei flores de agradável cheiro. O parto da Santíssima Virgem não tem exemplo no sexo das mulheres, mas tem semelhança na natureza das coisas. Perguntas como a Virgem gerou o Salvador. Encontrarás incorrupta a flor da cepa depois de fornecer o cheiro; também crê inviolado o pudor da Virgem por ter dado à luz o Salvador. Que é a flor da virgindade senão a suavidade do cheiro?
As três varas desta cepa foram a saudação angélica, a vinda do Espírito Santo e a concepção inenarrável do Filho de Deus. Destas três varas propaga-se, isto é, multiplica-se, pela fé, todos os dias, em todo o mundo, prole sempre renovada de fiéis. Os gomos na cepa são a humildade e a virgindade de Maria Santíssima. As flores são a fecundidade sem corrupção, o parto sem dor. Os três cachos de uvas na cepa são a pobreza, a paciência e a abstinência na Virgem Santíssima; estas são as uvas maduras de que provém o vinho maduro e odorífero, que inebria e, inebriando, torna sóbrios os corações dos fiéis. Com razão se diz, portanto: Os seus seios te inebriem em todo o tempo; e no seu amor busca sempre as tuas delícias, a fim de com o seu amor consigas desprezar o falso deleite do mundo e conculcar a concupiscência da carne.
6. Refugia-te nela, ó pecador, porque ela é cidade de refúgio. Com efeito, assim como outrora, o Senhor, como se diz no livro dos Números, separou cidades de refúgio, para nelas se refugiar quem tivesse perpetrado o homicídio involuntário, também agora a misericórdia ao nome de Maria até para os homicídios voluntários. Torre fortíssima é o nome da Senhora. Refugie-se nela o pecador e salvar-se-á. Nome doce, nome que conforta o pecador, nome de bem-aventurada esperança. Senhora, o teu nome está no desejo da minha alma. E o nome da Virgem, diz S. Lucas, era Maria. O teu nome é óleo derramado. o nome de Maria é júbilo no coração, mel na boca, melodia no ouvido. Egregiamente, portanto, em louvor da mesma Virgem, se diz: Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos a que foste amamentado.
Nota que mamar, em latim, sugere, vem de sumendo agere, porque, enquanto Cristo tomava leite, trabalhava na nossa salvação. A nossa salvação foi o seu sofrimento: susteve o sofrimento corporal, por ter sido alimentado com leite duma Virgem. Por isso, ele mesmo diz nos Cânticos: Bebi o meu vinho com o meu leite. Por que razão não disseste, Senhor Jesus: Bebi vinagre com o meu leite? Foste aleitado em seios virginais e deram-te a beber fel e vinagre. A doçura do leite transformou-se em amargor de fel, a fim de que o seu amargor nos proporcionasse eterna doçura. Mamou nos seios quem no monte Calvário quis ser lanceado no seio, para que seus filhos pequeninos mamassem sangue em vez de leite. Destes escreve Job: Os filhinhos da águia chupam sangue.
7. Segue: Mas ele disse: Antes etc. Comentário da Glossa: Maria não só deve ser louvada por ter trazido no ventre o Verbo de Deus, mas também é bem-aventurada porque realmente guardou os preceitos de Deus.
Rogamos-te, portanto, Senhora nossa, esperança nossa, que Tu, Estrela do mar, irradies luz para nós, feridos pela tempestade deste mar, nos encaminhes para o porto, protejas a nossa morte com a tutela da tua presença, a fim de merecermos sair seguros do cárcere e alegres cheguemos ao gozo infindo. Ajude-nos aquele que trouxeste no teu bem-aventurado ventre, aleitaste nos teus seios sacratíssimos. A ele é devida honra e glória pelos séculos eternos. Assim seja.
Fonte: SANTO ANTÔNIO DE LISBOA. Obras Completas. Sermões Dominicais e Festivos (Vol. I)
Introdução, tradução e notas por Henrique Pinto Rema.
Lello e Irmão Editores, Porto, 1987; págs 207-215.
Exórdio. Sermão aos pregadores.
1. Jesus tomou consigo a Pedro, Tiago e João e levou-os a um monte muito alto etc.
Falou o Senhor a Moisés, dizendo no Êxodo: Sobe para mim ao monte e permanece aí; e eu te darei duas tábuas: a lei e os mandamentos, que eu escrevi, para os ensinares aos filhos de Israel. Moisés interpreta-se aquático, e significa o pregador que rega os espíritos dos fiéis com a água da doutrina que salta para a vida eterna. A este diz o Senhor: Sobe para mim ao monte. O monte, por causa da sua altitude, significa a excelência da vida santa, em que o pregador, deixado o vale dos bens temporais, deve subir pela escada do amor divino, e aí encontrará o Senhor, pois que o Senhor se encontra na excelência da vida santa. Daí a afirmação no Gênesis: No monte o Senhor providenciará, isto é, na excelência da vida santa fará ver e entender quanto deve a Deus e ao próximo.
Dar-te-ei, diz, duas tábuas. As duas tábuas designam a ciência de cada um dos Testamentos, a única capaz de saber e de fazer sábios; só esta ciência ensina a amar a Deus, a desprezar o mundo, a sujeitar a carne. O pregador deve ensinar estas coisas aos filhos de Israel, dos quais depende toda a lei e os profetas. Mas onde se encontra esta tão preciosa ciência? De verdade, no monte: Sobe para mim ao monte e deixa-te estar ali, porque aí há a mudança da dextra do Excelso, a transfiguração do Senhor, a contemplação do verdadeiro gozo. Por isso, do mesmo monte se diz no Evangelho de hoje: Tomou Jesus consigo a Pedro, Tiago e João, etc.
2. Neste Evangelho observam-se cinco coisas muito notáveis: a subida de Jesus ao monte com os três Apóstolos, a sua transfiguração, o aparecimento a Moisés e a Elias, a nuvem resplandecente que os envolveu, e o testemunho da voz do Pai: Este é o meu Filho caríssimo. Vejamos o que significam, no sentido moral, estas cinco coisas, conforme Deus for servido nos inspirar, para sua honra e utilidade de nossas almas.
I – A subida de Jesus Cristo ao monte com três Apóstolos
3. Digamos, portanto: Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João. Estes três Apóstolos e especiais companheiros de Jesus Cristo significam as três virtudes da alma sem as quais ninguém pode subir ao monte da luz, isto é, à excelência da vida santa. Pedro interpreta-se o que reconhece, Tiago o que suplanta, João a graça do Senhor. Tomou, portanto, Jesus consigo a Pedro etc. Toma também tu, que crês em Jesus e de Jesus esperas a salvação, a Pedro, isto é, o reconhecimento do teu pecado, que consiste em três coisas: na soberba do coração, na lascívia da carne, na avareza do mundo. Toma também contigo Tiago, isto é, a suplantação destes vícios, a fim de esmagares debaixo da planta da razão a soberba do teu espírito, e mortificares a lascívia da tua carne, reprimindo a vaidade do mundo enganador. Toma ainda contigo João, isto é, a graça do Senhor, que está à porta e bate, para que te ilumine, faça reconhecer o mal que fizeste e te conserve no bem que começaste.
Estes são aqueles três homens, dos quais disse Samuel a Saul no primeiro livro dos Reis: Ao chegares ao carvalho de Tabor, encontrar-te-ão aí três varões, que vão adorar a Deus em Betel, levando um três cabritos e outro três tortas de pão e outro um barril de vinho. O carvalho e o monte Tabor significam a excelência da vida santa, que bem se diz carvalho e monte Tabor: carvalho, porque é constante e inflexível pela perseverança final; monte, porque alta e sublime pela contemplação de Deus; Tabor, que se interpreta luz que vem, pelo brilho do bom exemplo. Na excelência da vida santa requerem-se estes três predicados: constante em relação a si, contemplativo em relação a Deus, brilhante em relação ao próximo. Ao chegares, portanto, isto é, quando te dispuseres a vir ou subir ao carvalho ou monte Tabor, encontrar-te-ão aí três varões, que vão adorar a Deus em Betel. Estes três varões são Pedro, o que reconhece, Tiago, o que suplanta, e João, a graça do Senhor. Pedro leva três cabritos, Tiago três tortas de pão, João um barril de vinho.
Pedro, isto é, o que se reconhece pecador, leva três cabritos. No cabrito simboliza-se o fedor do pecado; nos três cabritos os três gêneros de pecados em que mais pecamos, a saber, na soberba do coração, na petulância da carne, na avareza do mundo. Quem, portanto, quiser subir ao monte da luz, deve levar estes três cabritos; isto é, reconhecer-se pecador nestas três coisas.
Tiago, isto é, o que suplanta os vícios da carne, leva três tortas de pão. O pão significa a suavidade do entendimento, que consiste na humildade do coração, na castidade do corpo, no amor da pobreza; ninguém poderá possuir esta suavidade se antes não suplantar os vícios. Portanto, leva três tortas de pão, isto é, a tríplice suavidade do entendimento, quem reprime a soberba do coração, refreia a petulância da carne e rejeita a avareza do mundo.
João, isto é, o que conserva fielmente e de ânimo perseverante tudo isto, com a graça proveniente e subseqüente do Senhor, verdadeiramente leva um barril de vinho. O vinho no barril é a graça do Espírito Santo na boa vontade.
Tomou, portanto, Jesus consigo Pedro, Tiago e João. Toma também tu estes três varões e sobe ao monte Tabor.
4. Mas, crede-me, a subida é difícil, porque o monte é alto. Queres, portanto, subir mais facilmente? Toma aquela escada de que se lê e canta na história do presente domingo: Viu Jacob em sonhos uma escada direita, posta sobre a terra, cujo cimo tocava o céu e os anjos de Deus subindo e descendo por ela, e o Senhor apoiado na escada. Observa cada uma das palavras e aparecerá a concordância do Evangelho. Viu: eis o reconhecimento do pecado, de que diz S. Bernardo: Deus não me dê a ver outra visão que não seja o conhecimento dos meus pecados. Jacob tem a mesma interpretação de Tiago: eis a suplantação da carne. Dele disse Esaú: Eis que me suplantou outra vez. Em sonhos: eis a graça do Senhor, que traz consigo o sono da quietude e da paz. O sono assim é descrito pelo Filósofo: O sono é o repouso das virtudes animais com intensificação das naturais. Quando alguém dorme no sono da graça, nele as paixões carnais repousam das suas más obras e intensificam-se as faculdades espirituais; daí o dizer-se no Gênesis: Depois de se ter posto o sol, veio um sono profundo a Abraão, e um horror grande o acometeu. Por sol entende-se aqui o prazer carnal, que, ao sucumbir, um sono profundo, isto é, o êxtase da contemplação, vem sobre nós; e um horror grande nos invade a respeito dos pecados passados e das penas do inferno. Queres ouvir a intensificação das faculdades espirituais juntamente com o perdão das paixões carnais? Eu, diz a Esposa, durmo, isto é, repouso do amor dos bens temporais, e o coração vigia na contemplação das celestes. Com razão, portanto, se diz: Viu Jacob em sonhos uma escada, pela qual podes subir ao monte Tabor.
5. Nota que esta escada tem dois banzos e seus degraus, pelos quais se pode subir. Esta escada significa Jesus Cristo; os dois banzos são a natureza divina e humana; os seis degraus são a sua humildade e pobreza, a sabedoria e misericórdia, a paciência e obediência. Foi humilde ao tomar a nossa natureza, quando olhou para a humildade da sua serva. Pobre no seu nascimento, em que a Virgem pobrezinha, quando deu à luz o próprio Filho de Deus, não teve onde o reclinar, tendo de o envolver em panos e pôr em manjedoura de animais. Foi sábio na sua pregação, porque começou a obrar e ensinar. Foi misericordioso ao receber afavelmente os pecadores: Não vim, diz, chamar os justos mas os pecadores à penitência. Foi paciente no meio dos flagelos, bofetadas e escarros: por isso, ele mesmo diz em Isaías: Ofereci a minha face como uma pedra duríssima. Se se bate numa pedra, não se vinga nem murmura contra quem a quebra. Assim Cristo, quando o amaldiçoaram, não amaldiçoava; sofrendo, não ameaçava. Foi ainda obediente até à morte e morte de cruz. Esta escada apoiava-se sobre a terra, quando Cristo se entregava à pregação e operava milagres; tocava o céu, quando pernoitava, como refere S. Lucas, na oração do Senhor.
Eis que a escada é direita; porque, pois, não subis? Porque rastejais de mãos e pés sobre a terra? Subi, porque Jacob viu anjos a subir e a descer pela escada. Subi, portanto, ó anjos, ó prelados da Igreja, ó fiéis de Jesus Cristo; subi, digo, a contemplar quão suave é o Senhor; descei a socorrer, a aconselhar, porque disto precisa o próximo. Porque tentais subir por caminho diferente do da escada? Por onde quer que quiserdes subir, depara-se-vos um precipício. Ó estultos e tardos de coração, não digo para crer, porque credes, e os demônios também crêem, mas duros e de pedra para agir! Pensais poder subir por outro caminho ao monte Tabor, ao repouso da luz, à glória da felicidade celeste, sem ser pela escda da humildade, da pobreza, da Paixão do Senhor? Na verdade, não. A palavra do Senhor é clara: Quem quiser vir após de mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. E em Jeremias: Tu me chamarás pai, e não cessarás de andar após de mim. Como refere S. Agostinho, o médico bebe primeiro a poção amarga, para que o doente não tenha medo de a beber. Por meio duma poção amarga, diz S. Gregório, se chega ao gozo de saúde. Para salvar a vida, tens de parecer o ferro e o fogo. Subi, portanto, não temais, porque o Senhor está apoiado à escada, preparado para receber os que sobem. Tomou, portanto, Jesus consigo Pedro, Tiago e João e subiu a um alto monte.
II – A transfiguração de Jesus Cristo.
6. Segue o segundo: E transfigurou-se diante deles. Imprimi-te, como cera mole, nesta figura, a fim de que possas receber a figura de Jesus Cristo, que foi assim: E o seu rosto ficou refulgente como o sol e as suas vestiduras tornaram-se brancas como a neve. Nesta sentença verificam-se quatro coisas: o rosto e o sol, as vestiduras e a neve. Vejamos o eu significam no sentido moral o rosto e o sol, as vestiduras e a neve.
Nota que na parte anterior da cabeça, chamada rosto do homem, há três sentidos ordenados por via e disposição sapientíssima: a vista, o olfato e o gosto. O olfato, na verdade, está colocado, semelhante a uma balança, entre a vista e o gosto. Igualmente no rosto da nossa alma há três sentidos espirituais, dispostos em reta ordem pela sabedoria do sumo artífice: a vista da fé, o olfato da discrição, o gosto da contemplação.
7. Acerca da vista lê-se no Êxodo que Moisés e Aarão, Nadab e Abiu e setenta anciãos de Israel viram o Senhor de Israel; e debaixo de seus pés estava como que uma obra de pedra de safira, que se parecia com o céu quando está sereno. Nesta sentença descrevem-se todos aqueles que vêem e o que devem ver, isto é, crer, com a visão da fé. Moisés e Aarão, etc. Moisés interpreta-se aquático e significa todos os religiosos, que devem ser mergulhados nas águas das lágrimas. De fato, foram tirados do rio do Egito, com o fim de semearem, em lágrimas, nesta solidão horrível, e depois, em júbilo, ceifarem na terra da promissão. E o sumo pontífice Aarão, que se interpreta montanhês, significa todos os prelados maiores da Igreja, constituídos no monte da dignidade. Nadab, que se interpreta espontâneo, todos os súditos, que devem obedecer espontaneamente, não à força. Abiu, que se interpreta pai deles, significa todos aqueles que, segundo o rito da Igreja, se uniram pelo matrimônio para serem pais de filhos. Os setenta anciãos de Israel significam todos os batizados que no batismo receberam o espírito da graça septiforme.
Todos estes vêem, isto é, crêem, e devem ver, isto é, crer no Deus de Israel. E debaixo de seus pés estava como que uma obra de pedra de safira, etc. Quando diz Senhor de Israel: eis a divindade; ao dizer debaixo de seus pés: eis a humanidade de Jesus Cristo, que devemos crer como verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Destes pés diz Moisés no Deuteronômio: Os que se aproximam de seus pés receberão da sua doutrina. Por isso, diz-se em S. Lucas que Maria estava sentada aos pés do Senhor e escutava a sua palavra. Portanto, debaixo dos pés do Senhor, isto é, depois da Encarnação de Jesus Cristo apareceu a obra do Senhor, como que de pedra de safira, que se parecia com o céu quando está sereno. A pedra de safira e o céu sereno são da mesma cor.
E nota que a safira tem quatro propriedades: ostenta em si uma estrela, dá cabo do antraz, é semelhante ao céu sereno, estanca o sangue. A pedra de safira significa a santa Igreja, começada depois da Encarnação de Cristo e que há-de durar até ao fim dos séculos. Esta divide-se em quatro ordens, a saber, apóstolos, mártires, confessores e virgens, que acertadamente entendemos nas quatro propriedades da pedra de safira.
A safira ostenta em si uma estrela, e nisto significa os apóstolos, que primeiro mostraram a estrela matutina da fé aos que jaziam nas trevas e na sombra da morte. a safira, com o seu contato, dá cabo do antraz, que é doença mortal; nisto significa os mártires, que destruíram com o seu martírio o antraz da idolatria. A safira, semelhante à cor celeste, significa os confessores, que, reputando todas as coisas temporais como esterco, se suspenderam na corda do amor divino para contemplar a celeste beatitude, dizendo com o Apóstolo: Somos cidadãos dos céus. Igualmente a safira estanca o sangue, e nisto significa as virgens, que por amor do celeste Esposo estancaram em si por completo o sangue da concupiscência carnal. Esta é a admirável obra da pedra de safira, que apareceu debaixo dos pés do Senhor. Eis claramente o que a tua alma deve ver e o que deve crer com a visão da fé.
8. Do olfato da discrição escreve-se no Cântico do amor: O teu nariz é como a torre do Líbano, que olha para Damasco. Nesta sentença há quatro palavras muito dignas de nota; o nariz, a torre, o Líbano e Damasco. No nariz designa-se a discrição, na torre a humildade, no Líbano, que se interpreta alvura, a castidade, em Damasco, que se interpreta o que bebe sangue, a malícia do diabo. Portanto, o nariz da alma é a virtude da discrição, através da qual, como se fora nariz, deve discernir o bom do mal cheiro, o vício da virtude, e pressentir ainda as coisas postas ao longe, isto é, as futuras tentações do diabo. Por isso, diz Job: Cheira de longe a batalha, a exortação dos capitães e a gritaria do exército. De fato, a alma fiel pressente pelo nariz, isto é, pela virtude da discrição, a batalha da carne e a exortação dos capitães, isto é, as sugestões da razão vã, que são compreendidas por meio dos capitães, para não cair no fosso do mal, sob pretexto de santidade; e a gritaria do exército, isto é, as tentações do demônio, que gritam como bestas, porque gritar é próprio de bestas.
Este nariz da esposa deve ser como a torre do Líbano, pois, na humildade de coração e castidade de corpo consiste sobretudo a virtude da discrição. E bem se diz humildade a torre da castidade, porque assim como a torre defende o castelo, assim a humildade do coração defende a castidade do corpo das setas da fornicação. Se tal for o nariz da esposa, bem poderá olhar para Damasco, isto é, para o diabo, desejoso de beber o sangue das nossas almas, descobrindo a malícia da sua sutileza.
9. Acerca do gozo da contemplação diz o Profeta: Experimentai e vede quão suave é o Senhor. Experimentai, isto é, esmagai com a garganta do vosso espírito e, esmagando, repensai na felicidade daquela Jerusalém celeste, na glorificação das almas santas, na glória inefável da dignidade angélica, na doçura perene da Trindade e Unidade; repensai também quanta será a glória de estar entre os coros dos anjos, louvar a Deus juntamente com eles com voz indefessa, contemplar face a face o rosto de Deus, ver o maná divino na urna de ouro da humanidade! Se saboreardes bem estas coisas, verdadeiramente, sim, vereis quão suave é o Senhor. Feliz aquela alma cujo rosto se adorna e se decora com tais sentimentos.
E nota que o olfato, qual balança, está colocado entre a vista da fé e o gosto da contemplação. Na fé, com efeito, a discrição é necessária, para que não pretendamos aproximar-nos e ver a sarça ardente, desatar a correia do calçado, isto é, desvendar o segredo a Encarnação do Senhor. Crê apenas, e basta. Não está em teu poder desatar a correia do calçado. O que quer sondar a majestade, diz Salomão, será oprimido pela sua glória. Portanto, acreditemos firmemente e confessemos com simplicidade.
Na contemplação também é necessária a discrição, para que não saibamos mais da sabedoria, de sabor celeste, do que importa saber. Donde Salomão nas Parábolas: Filho, achaste mel, isto é, a doçura da contemplação, come o que te basta, para que não suceda que depois de farto o vomites. Vomita o mel quem, não contenta com a graça que lhe foi dada gratuitamente, deseja indagar com a razão humana a doçura da contemplação, não atendendo àquilo que se diz no Gênesis que ao nascer Benjamim morreu Raquel. Por Benjamim designa-se a graça da contemplação, por Raquel a razão humana. Ao nascer, portanto, Benjamim, morre Raquel, porque, quando o entendimento, elevado acima de si mesmo na contemplação, divisa alguma coisa acerca da luz da divindade, toda a razão humana sucumbe. A morte de Raquel é a falta de razão. Por isso, disse alguém: Ninguém chega pela razão humana aonde S. Paulo foi arrebatado
Seja, portanto, o olfato da discrição como balança entre a vista da fé e o gosto da contemplação, para que o rosto da nossa alma resplandeça como o sol.
10. E nota que no sol há três propriedades: claridade, alvura e calor; e vê quão bem elas convêm aos três sobreditos sentidos da alma. A claridade do sol convém à vista da fé, que divisa e crê as coisas invisíveis pela claridade da sua luz. Alvura, isto é, a mundícia ou pureza, convém ao olfato da discrição; e com acerto, porque assim como fechamos e viramos o nariz dum objeto mal cheiroso, assim nos devemos afastar da imundícia do pecado com a virtude da discrição. Também o calor do sol convém ao gosto da contemplação, na qual verdadeiramente há o calor da caridade. Escreve S. Bernardo: É, de fato, impossível ver o sumo bem e não o amar, pois que o próprio Deus é caridade.
Atendei, portanto, caríssimos, e vede quão útil, quão salutar é tomar três companheiros e subir ao monte da luz, porque aí há verdadeira transfiguração da figura deste mundo, que passa, na figura de Deus, que permanece por séculos de séculos. Dela se diz: O seu rosto resplandeceu como o sol. Resplandeça também o rosto da nossa alma como o sol, a fim de que transforme em obras o que vemos pela fé; e o bem que discernimos no interior, o executamos fora, na pureza da obra, com a virtude da discrição; e o que saboreamos na contemplação de Deus, se torne vida no amor do próximo; e desta maneira o nosso rosto resplandecerá como o sol.
11. Segue: E as suas vestiduras tornaram-se alvas como a neve, quais um tintureiro não seria capaz neste mundo de o fazer. As vestiduras da nossa alma são os membros do nosso corpo, que devem ser cândidos. Daí Salomão: As tuas vestiduras sejam cândidas em todo o tempo. Mas de qual candura? Como a neve. Por boca de Isaías promete o Senhor aos pecadores convertidos: Se os vossos pecados forem como o escarlate, tornar-se-ão alvos como a neve. Nota aqui duas palavras: Escarlate e neve. Escarlate é um pano que possui a cor do fogo e do sangue. A neve é fria e alva. O fogo designa o ardor do pecado; o sangue, a imundícia do mesmo; a frigidez da neve, a graça do Espírito Santo; a alvura, a pureza do entendimento. Diz, portanto, o Senhor: Se os vossos pecados forem como o escarlate etc. Como se dissesse: Se vos converterdes a mim, eu infundir-vos-ei a graça do Espírito Santo, que não só extinguirá o ardor do pecado, como também lavará a sua imundícia. Por isso, ele mesmo diz por Ezequiel: Derramarei sobre vós água limpa, e sereis limpos de todas as vossas iniqüidades. As vestiduras, portanto, isto é, os membros do nosso corpo, sejam alvas como a neve, para que frigidez da neve, isto é, a compunção do espírito, extinga o ardor do pecado, e a alvura duma vida santa lave a imundícia do pecado.
Por outras palavras, as vestiduras da nossa alma são as virtudes. Vestida com elas, apareça gloriosa na presença do Senhor. Destes vestidos se diz na história do presente domingo que Rebeca vestiu Jacob de vestidos muito bons, que tinha consigo. Rebeca, isto é, a sabedoria de Deus Pai, vestiu Jacob, isto é, o justo, com os vestidos, isto é, com as virtudes boas, porque feitas com a mão e o artifício da sua sabedoria, as quais ele tem consigo guardadas no tesouro da sua glória. Tem-nas verdadeiramente, porque é o Senhor, dono de tudo; tem-nas verdadeiramente, porque as distribui a quem quer, quando quer e como quer. Estas vestiduras são cândidas, de fato, dado que fazem cândido o homem, não digo como a neve, mas branqueiam-no acima da neve. O tintureiro, isto é, o pregador, na calandra da sua pregação, não pode fazer assim tais vestiduras neste mundo.
III – A aparição a Moisés e a Elias.
12. Segue o terceiro: E Moisés e Elias apareceram a falar com ele. Moisés e Elias aparecem ao justo assim transfigurado,assim iluminado, assim vestido. Por Moisés, que era o mais manso de todos os homens que habitavam sobre a terra, cuja vista, como se diz no Deuteronômio, não diminuiu, nem os dentes se lhe abalaram, entende-se a mansidão da paciência e da misericórdia. Manso quer dizer acostumado à mão. Ele, na verdade, como filho, como animal manso, acostumou-se à mão da divina graça, cuja vista, isto é, a razão, não diminui com a fuligem do ódio nem se ofusca com a nuvem do rancor; os seus dentes não se abalam contra alguém pela murmuração. Nem mordem pela detração.
Por Elias, que, segundo se lê no terceiro livro dos Reis, matou os profetas de Baal na torrente de Cisão, entende-se o zelo da justiça. Baal interpreta-se superior ou devorador; Cisão, a dureza deles. Portanto, o que ferve verdadeiramente com o zelo da justiça, mata com a espada da pregação, da ameaça e da excomunhão os profetas e os escravos da soberba, – a qual se dirige sempre a coisas superiores – da gula e da luxúria, que tudo devoram, a fim de que, mortos ao vício, vivam para Deus. E pratica isto na torrente de Cisão, isto é, na abundância do seu coração duro. Por isso, entesouram ira para o dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus.
Dela diz Deus a Ezequiel: Aqueles a quem te envio são filhos de cerviz dura e de coração indomável. De fato, toda a casa de Israel é de cara desavergonhada e de dura cerviz. Possui cara desavergonhada quem, ao ser corrigido, não só despreza a correção, mas não se envergonha do pecado. a este impropera Jeremias: O descaramento duma mulher meretriz apoderou-se de ti; não quiseste ter vergonha. Moisés, portanto, e Elias, isto é, a mansidão da misericórdia e o zelo da justiça, devem aparecer justos com o justo, já transfigurado no monte da vida santa, a fim de que, à semelhança do Samaritano, derramem vinho e azeite nos cobertos de chagas. O acre do vinho exacerba a brandura do azeite, e abrandura do azeite suaviza o acre do vinho.
Daí o dizer-se em S. Mateus, do anjo que apareceu na ressurreição de Cristo, que o seu aspecto era como o raio e as suas vestiduras como a neve. o raio designa a severidade do juízo; o candor da neve, a brandura da mansidão. O anjo, isto é, o prelado, deve ter o aspecto do raio, para que as mulheres, isto é, os espíritos efeminados, temam o seu olhar ao considerarem a sua vida santa. Desta maneira procedeu Ester, de quem se diz no livro da mesma: Tendo o rei Assuero levantado o rosto e manifestado em seus olhos cintilantes o furor do peito, a rainha desmaiou, e, trocando-se a sua cor em palidez, deixou cair a cabeça vacilante sobre a criada. Mas o prelado, tal como procedeu Assuero, deve apresentar o báculo de ouro da benignidade e revestir-se das vestiduras de neve, para, com piedosa benignidade de mãe, consolar os que corrigiu com austeridade de pai. Donde o dito: Tem azorragues de pai e peitos de mãe.
O prelado deve ser como o pelicano, o qual, segundo se conta, mata os seus filhos, mas depois extrai o sangue do próprio corpo e o derrama sobre os filhos mortos e desta forma os faz reviver. Assim o prelado deve chamar os seus filhos, isto é, os seus súditos, os quais corrige com o flagelo da disciplina e mata com a espada da áspera reprimenda. Deve chamá-los, repito, à penitência, que é vida da alma, com o seu sangue, ou seja, com espírito compungido e com derramamento de lágrimas, sangue da alma, no dizer de S. Agostinho.
IV – O testemunho da voz do Pai: Este é o meu Filho muito amado.
13. E se estas três coisas, a subida ao monte, a transfiguração e o aparecimento a Elias e Moisés, precederam em ti, conseguirás a quarta, de que se acrescenta: eis que uma nuvem resplandecente os envolveu. Lê-se coisa semelhante no fim do Êxodo, onde se diz: Depois de acabadas todas estas coisas, uma nuvem cobriu o tabernáculo do testemunho e a glória do Senhor o encheu.
Nota que no tabernáculo do testemunho havia quatro objetos: o candelabro com sete lâmpadas, a mesa da proposição, a arca do testamento e o altar de ouro. O tabernáculo do testemunho é o justo. É tabernáculo, porque a sua vida é um combate sobre a terra. os soldados em armas costumam desde a sua tenda combater os inimigos e por estes ser combatidos. Também o justo, colocado na linha de batalha, enquanto combate é combatido; daí o dizer-se: O inimigo qye bem combate torna-te bom combatente. O justo é o tabernáculo do testemunho. Tem bom testemunho, não só dos de fora, nem sempre verdadeiro, mas também de si mesmo. A sua glória é o testemunho da própria consciência, não de língua alheia.
Neste tabernáculo do testemunho há o candelabro de ouro batido, com sete lâmpadas; é o áureo coração compungido do justo, batido por múltiplos suspiros, como se foram martelos. As sete lâmpadas deste candelabro são os três cabritos, as três tortas de pão e o barril de vinho, que os sobretidos três companheiros do justo levam. Há ainda no tabernáculo do justo a mesa da proposição, pela qual se entende a excelência da vida santa. Sobre ela devem pôr-se os pães da proposição, isto é, o alimento da palavra divina, que a todos se deve propor. Donde o Apóstolo: Sou devedor de Gregos e Bárbaros. Há também ali a arca do testamento, em que se guardava o maná e a vara. Na arca, isto é, no espírito dp justo, deve existir o maná da mansidão, para que seja Moisés, e a vara da correção, para que seja Elias. Há também aí um altar de ouro, pela qual se entende o firme propósito da perseverança final. Neste altar, todos os dias se oferece o incenso da compunção devota e os perfumes da oração odorífera.
14. Com razão, portanto, se diz: Depois de acabadas todas estas coisas, uma nuvem cobriu o tabernáculo do testemunho. Tal tabernáculo, em que são acabadas todas as coisas atinentes à perfeição, uma nuvem o cobre e a glória do Senhor o enche. Desta se escreve no Evangelho de hoje: E uma nuvem resplandecente os envolveu. A graça do Senhor, de fato, envolve o justo transfigurado no monte da luz, isto é, da vida santa, protegendo-o do ardor da prosperidade mundana, da chuva da concupiscência carnal, da tempestade da perseguição do demônio; e desta forma merecerá ouvir o cicio de tênue aura, a doçura de Deus Pai: Este é o meu Filho caríssimo; ouvi-o. Verdadeiramente é digno de se chamar Filho de Deus quem tomou consigo os três sobreditos companheiros, subiu ao monte, a si mesmo se transfigurou de figura do mundo em figura de Deus, teve por companheiros Moisés e Elias e mereceu ser envolvido por nuvem resplandecente.
Rogamos-te, portanto, Senhor Jesus, que nos faças subir deste vale de miséria ao monte duma vida santa, a fim de que impressos na figura da tua Paixão, fundados na mansidão da misericórdia e no zelo da justiça, mereçamos no dia do juízo ser envolvidos por nuvem transparente e ouvir a voz de gozo, alegria e exultação: Vinde, benditos de meu Pai, que vos abençoou no monte Tabor, recebei o reino que vos foi preparado desde o princípio do mundo. A este reino Ele mesmo se digne conduzir-nos. A Ele pertence a honra e glória, louvor e império, majestade e eternidade pelos séculos dos séculos. Diga todo espírito: Assim seja.
Fonte: SANTO ANTÔNIO DE LISBOA. Obras Completas. Sermões Dominicais e Festivos (Vol. I)
Introdução, tradução e notas por Henrique Pinto Rema.
Lello e Irmão Editores, Porto, 1987; págs 117-138.
Exórdio. Deserto de Engadi.
1. Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo demônio, etc.
Exórdio. Sermão para formar o coração do pecador
1. No princípio criou Deus o céu e a terra .
A Ezequiel, ou seja, ao pregador, fala o Espírito Santo: E tu, filho do homem, pega num tijolo e desenha nele a cidade de Jerusalém. O tijolo, pelas quatro propriedades que possui, significa o coração do pecador. Forma-se de duas tábuas, é levado a uma extensão determinada, consolida-se pelo fogo, torna-se vermelho. Também o coração do pecador deve formar-se entre as duas tábuas de ambos os Testamentos. De fato, no meio dos montes, isto é, dos dois Testamentos, como diz o Profeta, passarão as águas, a saber, as águas da doutrina. E diz bem: forma-se, pois que o pecador, deformado pelo pecado, recebe forma pela pregação de ambos os Testamentos. O tijolo é levado a uma extensão determinada, já que a amplidão da caridade alarga o coração estreito do pecador. Donde a palavra do Salmo: O teu mandamento é imensamente grande; e a caridade é a mais larga do que o oceano. O tijolo consolida-se pelo fogo, uma vez que o espírito, cheio de humores e dissolúvel, através do fogo da tribulação se consolida, a fim de que não se derrame no amor das coisas temporais, porque, na frase de Salomão, o que a fornalha faz ao ouro, a lima ao ferro, o mangual ao grão, isto faz a tribulação ao justo. O tijolo torna-se vermelho. Nisto se nota a audácia do zelo santo, de que fala o Profeta: O zelo da tua casa, isto é, da Igreja ou da alma fiel, devorou-me. E Elias: Ardo de zelo pela casa de Israel.
Exórdio. Sermão aos pregadores.
1. Saiu o semeador a semear.
Aos pregadores fala Isaias: Bem-aventurados vós os que semeais sobre as águas. As águas, como diz S. João no Apocalipse , são os povos. Deles escreve Salomão nas Parábolas: Todos os rios saem o mar e ao mar voltam. Nota que é dupla a amargura, a da culpa original e a da morte corporal. Portanto, todos os rios, isto é, todos os povos saem do mar, isto é, da amargura da culpa original. Por isso, pôde dizer David: Eis que fui concebido na iniqüidade. E o Apóstolo: Todos nascemos filhos da ira. E voltam ao mar, ou seja, à amargura da morte corporal. Daí o dizer do Eclesiástico: Quão pesado jugo está sobre os filhos de Adão desde o dia em que eles saem do ventre de sua mãe; e ainda: Ó morte, quão amarga é a tua memória. Destas duas afirmações diz o Senhor ao pecador: És terra, pela imundície da concepção, e voltarás à terra pela incineração do teu corpo. Bem-aventurados, portanto, vós os que semeais sobre as águas.
Exórdio. Sermão aos pregadores.
1. Estava sentado à borda da estrada um cego. E clamava: Filho de David, tem piedade de mim!