Exórdio. Deserto de Engadi.
1. Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo demônio, etc.
Diz-se no primeiro livro dos Reis que David habitou no deserto de Engadi. David interpreta-se forte de mão, e significa Jesus Cristo, que debelou as potestades aéreas com as mãos pregadas à cruz. Eis que admirável fortaleza: vencer o próprio inimigo com as mãos ligadas! Habitou no deserto de Engadi, que se interpreta olho da tentação. Nota que o olho da tentação é triplo. O primeiro é o da gula, de que se escreve no Gênesis: Viu a mulher que o fruto da árvore era bom para comer, formoso aos olhos e de aspecto agradável; e tirou do fruto dela, e comeu e deu a seu marido. O segundo é o da soberba e vanglória, de que diz Job, falando do diabo: Vê tudo o que é elevado; ele é o rei de todos os filhos da soberba. O terceiro é o da avareza, do qual escreve Zacarias: Este é o olho deles em toda a terra. Cristo, portanto, habitou no deserto de Engadi quarenta dias e quarenta noites, em que sofreu do diabo a tentação da gula, da vanglória e da avareza.
2. Por isso, diz-se no Evangelho de hoje: Jesus foi conduzido ao deserto etc. Nota que é triplo o deserto, a qualquer dos quais foi conduzido Jesus. O primeiro é o ventre da Virgem, o segundo o referido no presente Evangelho, o terceiro o patíbulo da cruz. Ao primeiro foi conduzido só por misericórdia, ao segundo para nosso exemplo, ao terceiro por obediência ao Pai.
Do primeiro diz Isaías: Envia, Senhor, o cordeiro dominador da terra, mandado da pedra do deserto ao monte da filha de Sião. Ó Senhor Pai, envia um cordeiro, não um leão, um dominador, não um devastador; da pedra do deserto, isto é, da Santíssima Virgem, chamada pedra do deserto: pedra, por causa do firme propósito da virgindade donde a resposta dada ao anjo: Como se fará isto, pois eu não conheço varão? , ou seja, propus firmemente não o conhecer; do deserto, porque não arável, pois permaneceu virgem antes do parto, no parto e depois do parto. Envia, digo, ao monte da filha de Sião, ou seja, à excelência da Igreja, a Jerusalém celeste.
Do segundo escreve S. Mateus: Jesus foi conduzido ao deserto etc.
Do terceiro S. João Batista diz em S. João: Eu sou a voz do que brada no deserto. S. João chama-se voz, porque assim como a voz precede a palavra, assim ele precedeu o Filho de Deus. Eu sou a voz de Cristo a bradar no deserto, ou seja, no patíbulo da cruz: Pai, nas tuas mãos etc. Neste deserto esteve todo cercado de espinhos e destituído de todo o auxílio humano.
A tríplice tentação de Adão e de Jesus Cristo.
3. Digamos, portanto: Jesus foi conduzido ao deserto pelo Espírito. Costuma perguntar-se por quem. S. Lucas mostra clarissimamente por quem foi conduzido: Jesus, cheio do Espírito Santo, regressou do Jordão e era conduzido pelo Espírito ao deserto. Foi conduzido por aquilo de que estava cheio. A seu respeito disse ele mesmo em Isaías: O Espírito do Senhor está sobre mim, por me ter ungido. Por aquele espírito como que foi ungido de preferência aos seus companheiros, por ele mesmo foi conduzido ao deserto para ser tentado pelo diabo. Porque o Filho de Deus, o nosso Zorobabel, que e interpreta mestre de Babilônia, viera restaurar o mundo desfigurado pelos pecados, e, como médico, sarar os doentes, convinha curasse os contrários com os contrários, tal como sucede à arte da medicina em que as coisas frias se curam com as quentes e as quentes com as frias.
O pecado de Adão foi a destruição e a enfermidade do gênero humano. Consiste ele em três coisas: Gula, vanglória e avareza. Donde o verso: A vanglória, a gula e a concupiscência venceram o velho Adão. Estes três vícios aparecem no Gênesis: Disse a serpente à mulher: no dia em que dele comeres, abrir-se-ão os vossos olhos, eis a gula; sereis como deuses, eis a vanglória; conhecendo o bem e o mal, eis a avareza. Estas foram aquelas três lanças com que Adão foi morto juntamente com seus filhos.
Daí o dizer-se no segundo livro dos Reis: Tomou, pois, Joab três lanças, e traspassou com elas o coração de Absalão. Joab interpreta-se inimigo e significa bem o diabo, inimigo do gênero humano. Este tomou na mão da falsa promessa três lanças, isto é, a gula, a vanglória e a avareza, e traspassou com elas o coração, no qual está a fonte do calor e a vida do homem. Dele, escreve Salomão, procede a vida. O diabo traspassa-o, a fim de extinguir o calor do amor divino e tirar de todo a vida. Traspassou o coração de Absalão, que se interpreta paz do pai. este foi Adão, posto de propósito em lugar de paz e de delícias, para que conservasse eternamente a paz do pai, obedecendo-lhe. Mas depois de se recusar a obedecer a Deus Pai, perdeu a paz, e o diabo traspassou-lhe o coração com três espadas, e privou-o inteiramente da vida.
4. Veio, portanto, o Filho de Deus em tempo aceitável. Obedecendo a Deus Pai, restaurou o perdido, curou os contrários com os contrários. Adão foi posto no paraíso, onde, rodeado de delícias, caiu. Jesus foi conduzido ao deserto, onde, insistindo nos jejuns, venceu o diabo. Vede o acordo entre ambas as tentações no Gênesis e em S. Mateus: Disse a serpente: No dia em que comeres. E aproximando-se o tentador, disse-lhe: Se és Filho de Deus, diz a estas pedras que se transformem em pães: eis a gula. Depois: Sereis como deuses. Então o demônio transportou-o à cidade santa, e pô-lo sobre o pináculo do templo: eis a vanglória. Finalmente: Conhecendo o bem e o mal. De novo o demônio o transportou a um monte muito alto, e mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a sua magnificência, e disse-lhe: Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares. Quanto ele tem de perverso, tanto ele perversamente falou: eis a avareza. A sabedoria, porém, porque sempre age sapientemente, superou a tríplice tentação do demônio com a tríplice sentença do Deuteronômio.
Quando o diabo tentou com a gula, Jesus respondeu-lhe: Não só de pão vive o homem; como se dissesse: Assim como o homem exterior vive do pão material, assim o interior vive do pão celeste, que é a palavra de Deus. A palavra de Deus é o Filho, Sabedoria que procedeu da boca do Altíssimo. Sabedoria vem de sabor; portanto, o pão da alma é o sabor da sabedoria, com que saboreia os bens do Senhor e experimenta quão suave é o mesmo Senhor. Deste pão se diz no livro da Sabedoria: Deste-lhe pão vindo do céu, que tinha em si toda a delícia e a suavidade de todo o sabor. É isto o que se diz: Mas de toda a palavra que procede da boca de Deus. Diz de toda, porque a Palavra, o Verbo e Sabedoria de Deus, contém a suavidade de todo o sabor: o seu sabor torna insípido o deleite da gula. Porque Adão se enfastiou deste pão, cedeu à tentação da gula. Com razão se diz, portanto: Não só de pão etc.
Depois, quando ele o tentou com a vanglória, Jesus respondeu: Não tentarás o Senhor teu Deus. Jesus Cristo é Senhor pela criação, Deus pela eternidade. O diabo tentou-o, quando o persuadiu a ele, criador do templo, a deitar-se abaixo do pináculo do templo, e prometeu ao Deus de todos os poderes celestes o auxílio dos anjos. Não tentarás, portanto, o Senhor teu Deus. Adão também tentou o Senhor Deus, quando não respeitou a Deus e o seu preceito, mas de ânimo leve anuiu à falsa promessa: Sereis como deuses. Ó quanta vanglória acreditar alguém que se possa fazer Deus! Ó miserável! Por vãmente te quereres elevar acima de ti, miseravelmente te precipitarás por debaixo de ti! Não tentarás, portanto, o Senhor teu Deus.
Finalmente, quando o tentou com a avareza, Jesus respondeu-lhe: Adorarás o Senhor teu Deus, e a ele só servirás. Todos os que amam o dinheiro ou a glória do mundo, prostrados adoram o diabo. Mas nós, por quem Jesus Cristo desceu ao ventre duma Virgem e suportou o patíbulo duma cruz, instruídos por seu exemplo, vamos ao deserto da penitência e com o seu auxílio reprimamos o ímpeto da gula, o vento da vanglória, o incêndio da avareza. Adoremos aquele que os arcanjos adoram; sirvamos aquele a quem os anjos servem. Ele é bendito, glorioso, louvável e excelso por séculos eternos. Diga toda a criatura: Assim seja.
Fonte: SANTO ANTÔNIO DE LISBOA. Obras Completas. Sermões Dominicais e Festivos (Vol. I)
Introdução, tradução e notas por Henrique Pinto Rema.
Lello e Irmão Editores, Porto, 1987; págs 80-85.