Exórdio. Sermão aos pregadores ou aos prelados
1. Qual de vós me argüirá de pecado? Se vos digo a verdade, porque não me credes?
Aos pregadores fala Jeremias: Armai-vos de fortaleza, filhos de Benjamim, no meio de Jerusalém e fazei soar a trombeta em Técua e levantai o estandarte em Betacarém. Benjamim interpreta-se filho da direita; Jerusalém, visão da paz; Técua, trombeta; Betacarém, casa estéril. Armai-vos, portanto, de fortaleza e não temais, ó pregadores, filhos de Benjamim, isto é, da direita, ou seja, da vida eterna, da qual se escreve nas Parábolas: Na sua direita está uma larga vida. Armai-vos de fortaleza no meio de Jerusalém. Jerusalém é a Igreja militante, na qual há visão de paz, ou seja, a reconciliação do pecador. E diz-se bem: no meio. O meio da Igreja é a caridade, que se estende ao amigo e ao inimigo. Para conseguir este meio deve o pregador armar de fortaleza os fiéis da Igreja. E fazei soar a trombeta da pregação em Técua, isto é, entre aqueles que, quando praticam alguma obra boa, como os hipócritas, tocam a trombeta diante de si – comprazem-se, como se diz no livro da Sabedoria, em ter debaixo de si muitas nações –,para que, ao ouvir a trombeta, como diz Jeremias, exclamem: Ai de nós, Senhor, porque pecamos. E em Betacarém, casa estéril daqueles que são áridos da umidade da graça, estéreis de boas obras, cuja terra, o entendimento, não recebe gota de sangue do corpo de Cristo, levantai o estandarte da cruz, pregai a Paixão do Filho de Deus, porque chegou o tempo da Paixão, anunciai aos mortos que ressurjam na morte de Jesus Cristo, que afirma às turbas dos Judeus no Evangelho de hoje: Qual de vis me argüirá de pecado?
2. Observa que neste Evangelho há sete pontos: Primeiro, a inocência de Jesus Cristo, ao dizer: Qual de vós me argüirá? Segundo, a atenta audição da sua palavra, ao juntar: Quem é de Deus ouve as palavras de Deus etc. Terceiro, a blasfêmia dos Judeus: Porventura não dizemos nós bem que tu és Samaritano e tens demônio? Quarto, a glória da vida eterna ao cumpridor da sua palavra: Em verdade, em verdade vos digo, se alguém guardar a minha palavra, não experimentará a morte eternamente. Quinto, a glorificação do Pai: É meu Pai quem me glorifica. Sexto, a alegria de Abraão: Abraão, vosso Pai, exultou ao ver o meu dia. Sétimo, a voluntária lapidação dos Judeus e a ocultação de Jesus Cristo: Pegaram em pedras para lhas atirarem etc.
Nota ainda que neste domingo e no seguinte se lê Jeremias e se cantam os responsórios: Estes são os dias, juntamente com os restantes, em que se não diz o Glória ao Pai.
I – A inocência de Jesus Cristo
3. Assim fale o cordeiro inocente, que tirou o pecado do mundo, que não pecou nem se encontrou engano na sua boca, que tomou sobre si os pecados de muitos, como diz Isaías, e intercedeu pelos pecadores. Qual de vós me argüirá, isto é, acusará ou convencerá, de pecado? Certo, ninguém. Como poderia alguém argüir de pecado quem viera perdoar os pecados e dar a vida eterna? Por isso, o Apóstolo refere na Epístola de hoje aos Hebreus: Cristo intervém como pontífice dos bens futuros etc. Intervir significa ajudar ou obedecer. Cristo interveio, isto é, ajudou-nos. Donde o Profeta: Ajudou o pobre a sair da sua miséria. O gênero humano era pobre, porque espoliado dos dons gratuitos, vulnerado nos naturais; estava sem o recurso e sem o auxílio de ninguém. Veio Cristo: assistiu-lhe, ajudou-o, quando lhe perdoou os pecados. Cristo também obedeceu a Deus Pai até à morte, e morte de cruz. Nela ofereceu a Deus Pai, em reconciliação do gênero humano, não o sangue de bodes ou bezerros, mas o próprio sangue, para purificar a nossa consciência das obras mortas, para servir a Deus vivo. Chama-se-lhe Pontífice dos bens futuros. Pontífice é o que estabelece uma ponte, para dar passagem aos viandantes. Havia duas margens, a da mortalidade e a da imortalidade, entre as quais deslizava um rio intransponível, o rio das nossas iniqüidades e misérias. Delas escreve Isaías: As vossas iniqüidades abriram um abismo entre vós e o vosso Deus, e os vossos pecados esconderam de vós a sua face, para não vos ouvir.
Veio, portanto, Cristo, como Pontífice; fez-se ponte que vai da margem da nossa mortalidade à margem da sua imortalidade. Por ele, como prancha de madeira lançada entre as duas margens, passaríamos a possuir os bens futuros. Esta a razão por que se diz Pontífice dos bens futuros, não dos presentes, que não prometeu aos seus amigos, antes diz: Haveis de ter aflições no mundo. Cristo, portanto, intervém no perdão dos nossos pecados, como Pontífice dos bens futuros, para nos dar os bens eternos. Quem, portanto, o pode argüir de pecado? Que é o pecado senão a transgressão da Leo divina e a desobediência aos mandamentos celestes? Quem, pois, o pode argüir de pecado, cuja vontade esteve na lei do Senhor, que obedeceu, não só ao Pai celeste, mas ainda à Mãe pobrezinha? Qual de vós, portanto, me argüirá de pecado? Se eu vos digo a verdade, porque não me credes? Não criam na verdade, porque eram filhos do diabo, que é mentiroso e pai da mesma mentira, por ele inventada.
II – A audição da palavra de Cristo
4. Segue o segundo. Quem é de Deus, ouve as palavras de Deus; vós não as ouvis porque não sois de Deus. Deus, em hebraico, que dizer temor. É de Deus aquele que teme a Deus; a quem teme a Deus, ouve as suas palavras. Por isso, diz o Senhor por Jeremias: Levanta-te e desce à casa do oleiro, e ao ouvirás as minhas palavras. Levanta-te aquele que, tomado pelo temor, se arrepende de ter praticado o mal; e desce à casa do oleiro ao reconhecer-se lodo, temendo que o Senhor o quebre como vaso de barro; e desta forma ouve aí as palavras do Senhor, porque é de Deus, porque teme a Deus. Diz S. Jerônimo: É grande sinal de predestinação ouvir de bom grado as palavra de Deus e ouvir notícias da pátria celeste, como alguém que gosta de ouvir notícias da pátria terrena. E o contrário é sinal de obstinação. Por isso, ajunta-se: Vós não ouvis porque não sois de Deus, como se dissesse: Não ouvis as suas palavras porque não o temeis. Daí a fala de Jeremias: A quem falarei eu? A quem conjurarei eu que me ouça? Eis que os seus ouvidos estão incircuncidados e não podem ouvir; eis que a palavra do Senhor se tornou para eles motivo de opróbrio, e não a receberão. E noutra parte refere: Eis o que diz o Senhor: Farei apodrecer a soberba de Judá, isto é, dos clérigos, e o grande orgulho de Jerusalém, isto é, dos religiosos. Este povo perversíssimo, a saber, o povo dos leigos, não quer ouvir as minhas palavras e anda na maldade do seu coração. Acerca destes escreve ainda noutro sítio: Engordaram e engrossaram, e transgrediram pervesissimanente os meus preceitos. Não defenderam a causa da viúva. Porventura não hei-de eu punir estes excessos, diz o Senhor? Ou a minha alma não se há-de vingar duma tal gente? E noutra passagem: Eis que eu farei cair calamidades sobre este ovo, fruto dos seus desígnios, porque não ouviram as minhas palavras e rejeitaram a minha lei. Para que me trazeis vós incenso de Sabá e cana de suave cheiro de terra longínqua? Os vossos holocaustos não me são agradáveis, nem as vossas vítimas me agradaram, diz o Senhor.
Sabá interpreta-se rede ou cativa. O incenso designa a oração; a cana, a confissão do crime ou do louvor. Quem não ouve as palavras de Deus e não conhece a sua lei, que é a caridade, porque o amor é a plenitude da lei, queima baldadamente o incenso da oração. O incenso vem de Sabá, vaidade do mundo. A vaidade retém o homem enredado e cativo. Traz ao Senhor ainda a cana da confissão, que é de suave cheiro, se for feita em caridade; trá-la de terra longínqua, isto é, da imundície do espírito, que separa o homem de Deus. Os vossos holocaustos, isto é, as vossas abstinências, não me são agradáveis; e as vítimas, isto é, as vossas esmolas, não me agradaram, diz o Senhor, porque lançastes fora a caridade. Que mais? Todas as nossas obras são inúteis para a vida eterna se não são condimentadas com o bálsamo da caridade.
III – A blasfêmia dos Judeus contra Cristo
5. Segue o terceiro: Responderam os judeus e disseram-lhe: Não dizemos nós com razão que tu és um samaritano e que tens demônio? Jesus respondeu: Eu não tenho demônio, mas honro o meu Pai, e vós a mim desonrastes-me. E eu não busco a minha glória; há quem a busque e quem fará justiça. Os samaritanos, transferidos pelos Assírios, adotaram em parte o rito dos Israelitas e em parte o rito dos gentios Os judeus não mantinham relações com eles, por os reputarem impuros, por isso, a quem queriam insultar chamavam samaritano. Samaritanos interpretam-se guardas, por terem sido colocados pelos babilônios na guarda dos Judeus. Dizem portanto: Não dizemos nós com razão que tu és um samaritano? Isto aceita o Senhor sem o negar, porque é guarda. Não dorme nem dormita quem guarda a Israel e vigia sobre o seu rebanho. Daí a afirmação do Senhor a Jeremias: Que vês tu, Jeremias? E ele disse: uma vara vigilante, ou segundo outra tradução, uma vara de nogueira ou de amendoeira, estou eu a ver. E disse-me o Senhor: Viste bem, e eu vigiarei sobre a minha palavra para a realizar.A vara, assim chamada de virtude ou verdura ou porque com ela os homens governam, significa Jesus Cristo, virtude de Deus; plantada junto do curso das águas, isto é, junto da abundância das graças, permanece verde, ou seja, imune de todo o pecado. Ele de si próprio diz em S. Lucas: Se fazem isto no lenho verde, que acontecerá no seco? A ele disse o Pai: Governa-os com vara de ferro, isto é, com justiça inflexível. Esta vara vigiou sobre a sua palavra para a realizar, porque mostrou com fatos o que pregou de palavra. Vigia sobre a sua palavra quem pratica o que prega por palavra.
6. Ou então, Cristo chama-se vara vigilante, porque assim como o ladrão, desperto durante a noite, rouba objetos da casa dos qie dormem com uma vara munida de gancho, também Cristo, com a vara da sua humanidade e o gancho da santa Cruz roubou as almas ao diabo. Por isso, disse: Quando for exaltado da terra, tudo atrairei a mim, com o gancho da santa Cruz. De fato, o dia do Senhor virá como o ladrão durante a noite. E no Apocalipse diz: Se não vigiares, virei a ti como o ladrão.
Igualmente se chama Cisto vara de nogueira ou de amendoeira. Nota que na nogueira ou na amendoeira a amêndoa é doce, o caroço rijo, a casca amarga. A amêndoa doce designa a divindade de Cristo; o caroço rijo, a alma; a casca amarga, a carne, que suportou a amargura da Paixão. Vigiou sobre a palavra do Pai, que é chamada sua, porque faz um só com o Pai, para a realizar. Daí o dizer: Como o Pai me mandou, assim o faço. portanto, não tenho demônio, porque cumpro as ordens do Pai. Por conseguinte, blasfemam em verdade os falsos judeus: Tens demônio. Desta blasfêmia contra a pessoa de Cristo refere Jeremias: Ai de mim, minha mãe! Porque me geraste homem de rixa e de discórdia em toda a terra? Nunca lhes dei dinheiro a usura, nem a mim mo deu ninguém; todos me amaldiçoam, diz o Senhor.
Nota que há um duplo ai: o da culpa e o da pena. Cristo teve o ai da pena, mas não o da culpa. Ai, portanto, de mm, minha mãe! Porque me geraste para tamanha pena homem de rixa e homem de discórdia? Rixa é o que se comente entre muitos. Por isso, rixoso quer dizer ricto canino, porque sempre pronto a contradizer. A discórdia quer dizer coração diverso. Discordar é possuir um coração diverso. Assim entre os judeus havia rixa por causa das palavra de Cristo. Com efeito, os judeus estavam sempre prontos a ladrar e a contradizer como se foram cães. Tinham opiniões diferentes. Alguns efetivamente diziam: é bom; outros, pelo contrário: Não é, mas seduz as multidões. Nunca dei dinheiro a usura, nem a mim mo deu ninguém. Usurário chama-se não só o que empresta mas também o que recebe. Cristo, portanto, não deu dinheiro a usura, porque não encontrou dentre os judeus a quem emprestasse o dinheiro da sua doutrina. E não lhe deu ninguém dinheiro a usura, porque não quiseram multiplicar com boas obras a moeda da doutrina, antes todos o amaldiçoavam dizendo: És samaritano e tens demônio. Respondeu Jesus: Eu não tenho demônio. Refuta a calúnia, mas, paciente, não retorna a injúria. Honro o meu Pai, dando-lhe a honra devida, atribuindo-lhe tudo, e vós desonrastes-me. Por isso, na pessoa de Cristo diz Jeremias nos Trenos: Estou feito objeto de escárnio para o meu povo ao longo de todo o dia. E noutro lugar: Oferecerá a face a quem lhe bater, será saturado de opróbrios. Eu, porém, não procuro a minha glória, como os homens, que às afrontas sofridas retribuem com afrontas, mas reservo-a ao Pai. Donde ajuntar: Há quem a procure e quem faça justiça. É o que diz em Jeremias: Mas tu, Senhor dos exércitos, que julgas segundo a equidade e que sondas os afetos e os corações, faz que eu veja as vinganças que deles tomarás.
E nota que há duplo juízo: um de condenação, do qual se escreve: O Pai não julga ninguém, mas confiou todo o juízo ao Filho; outro de separação. Dele diz o Filho no Intróito da missa de hoje: Julga-,e, ó Deus, e separa a minha causa de uma gente não santa etc. É ainda neste sentido que ele diz: É o Pai quem procura a minha glória e separa a minha glória da vossa. Vós gloriais-vos segundo o século, não eu; a minha glória é aquela que tive junto do Pai antes que o mundo existisse, diferente do orgulho dos homens.
7. Sentido moral. Tens demônio. Demônio, do grego daimonion, quer dizer perito e conhecedor de fatos. O vocábulo grego daimon significa muito ciente. Quando, portanto, alguém, por adulação ou aplauso, te diz: És perito e sabes muito, diz-te: Tens demônio. E tu imediatamente deves responder com Cristo: Eu não tenho demônio. De mim mesmo nada sei, nada tenho de bom, mas honro o meu Pai. A ele atribuo tudo; a ele dou graças; dele provém toda a sabedoria, toda a perícia e ciência. Eu não busco a minha glória. Diz com S. Bernardo: Não me toques, palavra de vanglória, pois é só devida a glória a quem se reza: Glória ao Pai e ai Filho e ao Espírito Santo. Diz igualmente: O anjo, no céu, não busca do anjo a glória; e o homem, na terra, deseja ser louvado pelo homem.
IV – Glória eterna para o servidor da palavra de Cristo
8. Segue o quarto: Em verdade, em verdade vos digo: quem guardar a minha palavra, não verá a morte eternamente. Disseram-lhe, pois, os judeus: Agora reconhecemos que tens demônio. Abraão morreu e os Profetas, e tu dizes: Quem guarda a minha palavra não verá a morte eternamente. Porventura és maior do que o nosso pai Abraão, que morreu? E os Profetas morreram. Que pretendes tu ser? Respondeu Jesus: Se eu me glorifico a mim mesmo, não é nada a minha glória. Ámen significa: verdadeiramente, fielmente, ou faça-se. É vocábulo hebraico como aleluia. E assim como no céu S. João ouviu ámen e aleluia, conforme refere no Apocalipse, assim na terra estas duas palavras foram entregues pelos Apóstolos para serem pronunciadas por todos os povos: Em verdade, em verdade vos digo: quem guardar a minha palavra, não verá a morte eternamente. Morte vem da mordedura do primeiro homem, porque ao morder o pomo da árvore proibida incorreu na morte. Se tivesse guardado a palavra do Senhor: Come de toda a árvore do paraíso, mas não comas da árvore da ciência do bem e do mal, não teria experimentado a morte eternamente; mas porque não a guardou, experimentou a morte e pereceu juntamente com toda a sua posteridade. Daí a fala de Jeremias: O Senhor pôs-te o nome de oliveira fecunda, formosa, fértil, vistosa; à voz da sua palavra grandíloqua, acendeu-se nela o fogo e queimaram-se os seus ramos.
A natureza humana antes do pecado foi oliveira na criação e criada no campo damasceno, mas plantada, por assim dizer, no paraíso de delícias; fecunda nos dons gratuitos, formosa nos naturais, fértil no gozo da eterna felicidade, vistosa na sua pureza. Mas ai! à voz da sua palavra grandíloqua, isto é, da sugestão diabólica a prometer grandes coisas: Sereis como deuses, acendeu-se nela o fogo da vanglória e da avareza e desta forma foram queimados os seus ramos, ou seja, toda a sua posteridade. Ó filho de Adão, não imiteis os vossos pais, que não guardaram a palavra do Senhor, e por isso pereceram, mas guardai-a: Em verdade, em verdade vos digo que se guardardes a minha palavra, não vereis a morte eternamente. Ver, neste lugar, é o mesmo que experimentar.
9. Segue. Disseram, pois, os judeus: Agora reconhecemos que tens demônio. Ó desatino de espírito imbecil! Ó perfídia de gente demoníaca! Não vos basta uma vez só blasfemar do inocente, imune de todo o pecado, de modo tão horrível, com ultraje tão ignominioso, senão que repetis segunda vez: Agora reconhecemos que tens demônio. Ó cegos, se conhecêsseis que ele não tinha demônio, mas crêsseis no Senhor Filho de Deus!
Abraão morreu, não com aquela morte que o Senhor disse, mas de morte corporal, da qual se escreve no Gênesis: Foram os dias de Abraão cento e setenta e cinco anos; e faltando-lhe as forças, morreu numa ditosa velhice e em avançada idade e cheio de dias; e foi unir-se ao seu povo. E Isaac e Ismael, seus filhos, sepultaram-no na dupla caverna.
10. Sentido moral. Abraão significa o justo, cuja vida deve constar de cento e setenta e cinco anos. O número centenário, número perfeito, designa toda a perfeição do justo; o septuagenário, que consta de sete e de dez, a infusão da graça septiforme e o cumprimento do decálogo; no quinário, a vida limpa dos cinco sentidos. Portanto, a vida do justo deve ser perfeita pela infusão da graça septiforme e pelo cumprimento do decálogo e pelo porte limpo dos cinco sentidos; e desta maneira abandonará o amor mundano e morrerá para o pecado, cheio, não vazio, de dias e reunido ao seu povo. Deste diz o Senhor em Isaías: Os dias do meu povo serão como dias da árvore, isto é, de Jesus Cristo, porque assim como ele viverá eternamente, também o meu povo viverá e reinará com ele sempiternamente. Daí a palavra do Evangelho: Eu vivo, e vós vivereis.
E Isaa e Ismael, seus filhos, sepultaram-no na dupla caverna. Isaac interpreta-se gozo, Ismael interpreta-se audição de Deus. O gozo da esperança dos bens celestes e a audição dos divinos preceitos sepultam o justo na dupla caverna da vida ativa e contemplativa, a fim de que, escondido da perturbação dos homens no secreto da face do Senhor, se proteja das línguas maldizentes. Destas ainda se ajunta: Que pretendes tu ser? Segundo eles, pretendia passar por Filho de Deus, igual a Deus, como se o não fosse. Mas não se fazia: era-o verdadeiramente. Donde a afirmação do Apóstolo: Não considerou ser rapina ao fazer-se igual a Deus. Por isso, não diziam: Que és, mas: Que pretendes tu ser? Se eu me glorifico a mim mesmo, a minha glória não é nada. Contra o que dizem: Que pretendes tu ser?, refere a sua glória ao Pai. Dele é que tira o ser Deus.
V – Cristo a glorificar pelo Pai
11. Segue o quinto: É o Pai quem me glorifica, aquele que vós dizeis ser o vosso Deus; mas vós não o conhecestes; eu, porém, conheço-o; e se disser que o não conheço, serei mentiroso como vós. Mas eu conheço-o e guardo a sua palavra. Nota que o Pai glorificou o seu Filho no nascimento, ao fazê-lo nascer duma Virgem; no rio Jordão e num monte, quando disse: Este é o meu filho amado. Glorificou-o ainda na ressuscitação de Lázaro, na Ressurreição e na Ascensão. Por isso, disse em S. João: Pai, glorifica o teu nome. Veio, pois, uma voz do céu, dizendo: E glorifiquei-o, na ressurreição de Lázaro; e de novo o glorificarei na Ressurreição e na Ascensão. É, pois, o Pai quem me glorifica, o qual vós dizeis ser o vosso Deus. Aqui está abertamente um testemunho contra os hereges, que afirmam ter sido dada a Lei a Moisés pelo deus das trevas. Mas o Deus dos judeus, que deu a Lei a Moisés, é o Pai de Jesus Cristo; portanto, o Pai de Jesus Cristo deu a Lei a Moisés. E vós não o conheceis espiritualmente, quando servis os bens terrenos. Eu, porém, conheço-o, porque sou um com ele. E se disser que não o conheço, quando o conheço, serei mentiroso como vós, que dizíeis conhecê-lo, quando não o conheceis. Mas eu conheço-o e guardo a sua palavra. Como Filho, exprimia a palavra do Pai; e ele mesmo era a Palavra do Pai, Ele que fala aos homens. Guarda-se a si mesmo, isto é, guarda a divindade em si.
VI – A alegria de Abraão
12. Segue o sexto. O vosso pai Abraão suspirou por ver o meu dia; viu-o e ficou cheio de gozo. Disseram-lhe, por isso, os Judeus: Tu ainda não tens cinqüenta anos e viste Abraão? Disse-lhe Jesus: Em verdade, em verdade vos digo, antes que Abraão fosse feito, eu sou. Nota as três palavras: suspirou, viu e alegrou-se. Nota ainda que é triplo do dia do Senhor: o do Natal, o da Paixão e o da Ressurreição. Sobre o primeiro escreve Joel: Naquele dia sairá uma fonte da casa do Senhor e irrigará uma torrente de espinhos. No dia de Natal, uma fonte, isto é, Cristo, sairá da casa de David, isto é, do útero da Santíssima Virgem, e irrigará uma torrente de espinhos, isto é, refrigerará a abundância das nossas misérias, com que todos os dias somos atormentados e feridos.
Acerca do segundo, diz Isaías: Meditou no seu espírito duro, para o dia da ardência. No dia da Paixão, em que o Senhor suportou a ardência dos trabalhos e da dor no seu espírito duro, enquanto pendia na cruz, meditou no modo de condenar o diabo e libertar de suas mãos o gênero humano.
A respeito do terceiro, diz Oséias: Ao terceiro dia ressuscitará, e nós viveremos na sua presença: entraremos na ciência do Senhor e o seguiremos a fim de o conhecer. Ao terceiro dia, Cristo, ressurgindo dos mortos, ressuscitou-nos juntamente com ele, isto é, conformes com a sua ressurreição, porque assim como ele ressuscitou, também nós acreditamos que havemos de ressuscitar na ressurreição geral. E então viveremos, entraremos na sua ciência e o seguiremos, a fim de o conhecer. Nestes quatro verbos entendemos os quatro dotes do corpo glorioso: viveremos: eis a imortalidade; entraremos na sua ciência: eis a sutileza; o seguiremos: eis a agilidade; a fim e conhecermos o Senhor: eis a claridade.
Abraão, pois, isto é, o justo, exulta no dia do nascimento do Verbo Encarnado; com a visão da fé, vê-o suspenso no patíbulo da cruz; com ele, já imortal, gozará no reino celeste.
Disseram-lhe os judeus, olhando nele só para a idade da carne, sem considerar a natureza divina: Ainda não tens cinqüenta anos e viste Abraão? Com trinta e um ou talvez trinta e dois anos, pro causa do demasiado trabalho e instância da pregação, o Senhor parecia ser mais velho. Disse-lhes Jesus: Antes que Abrão fosse feito, eu sou. Não disse: fosse. Mas: fosse feito, porque criatura; não disse, feito, mas: sou, porque criador.
VII – A ocultação de Jesus dos Judeus que o queriam lapidar
13. Segue o sétimo: Então pegaram em pedras para lhe atirarem; mas Jesus encobriu-se, e saiu do templo. Os apedrejadores recorrem a pedras para lapidar a pedra angular. Em si juntou as duas paredes: o povo judaico e o povo gentio, que vinham de parte contrária. Os judeus, imitadores da malícia de seus antepassados, quiseram lapidar o Senhor dos profetas. Seus pais apedrejaram o profeta Jeremias no Egito. Por isso, diz-lhes o Senhor em S. Mateus: Sois filhos daqueles que mataram os profetas, e vós enchei a medida dos vosso pais.
14. Sentido moral. Os falsos cristãos, filhos estranhos, filhos do diabo, que mentiram ao Senhor, violando o pacto feito no Batismo, apedrejam todos os dias, quanto deles depende, com as duras pedras dos seus pecados, o seu pai e Senhor Jesus Cristo, do qual tiraram o nome de cristãos, e se esforçam por matá-lo, por matar a fé nele. Assemelham-se aos filhos do abutre, que deixam o pai morrer de fome. Não são como os filhos do grou, que se expõem à morte pelo pai, quando o abutre lhes persegue o pai; já envelhecido, alimentam-no, por já não poder caçar. O nosso pai, como pai faminto, bate à porta, para que lha abramos e lhe demos, se não uma ceia, ao menos um bocado de pão. Eu, diz no Apocalipse, estou à porta e bato; se alguém me abrir, entrarei na casa dele e cearei com ele e ele comigo. Nós, porém, filhos degenerados, como os do abutre, deixamos morrer de fome o nosso pai. Por isso, ele queixa-se de nós por boca de Jeremias: Porventura tenho eu sido para Israel um deserto ou terra de trevas? Porque disse, pois, o meu povo: Nós nos retiramos, não tornaremos mais a ti? Porventura esquecer-se-á a donzela do seu ornato, ou a esposa da faixa que lhe cinge o peito? Mas o meu povo esqueceu-se de mim durante dias sem número. O Senhor não é deserto ou terra de trevas, que não dão fruto algum ou dão pouco fruto, mas é paraíso de delícias e terá de bênção, na qual recebemos o cêntuplo de tudo o que tivermos semeado.
Qual a razão, pois, por que, miseráveis, nos afastamos dele e dele nos esquecemos por tão longo tempo? Mas a alma, esposa de Cristo, donzela pela fé e pela caridade, não pode esquecer-se do seu ornato, isto é, do amor divino, de que anda adornada, e da faixa que lhe cinge o peito, ou seja, da consciência pura, sob a qual vive segura.
Sejamos, por favor, irmãos caríssimos, como os filhos do grou, a fim de que, se for necessário, afrontemos a morte pelo nosso pai, isto é, pela fé do nosso pai, e restauremos, com boas obras, este mundo, já envelhecido e que depressa cairá na ruína, para que não nos suceda o que se ajunta: Jesus, porém, encobriu-se e saiu do templo. E, por esta causa, dede o presente domingo, que se intitula Paixão do Senhor, nos responsórios não se diz Glória ao Pai. Todavia, não há completo silêncio, porque o Senhor ainda não fora entregue nas mãos dos lanistas.
Roguemos, portanto, e com lágrimas peçamos ao Senhor Jesus Cristo que não nos encubra a sua face e não saia do templo do nosso coração, e não nos argua de pecado no seu juízo; antes nos infunda a sua graça, para que diligentemente ouçamos a sua palavra; nos conceda paciência na injúria sofrida; nos livre da morte eterna; nos glorifique no seu reino, a fim de merecermos ver o dia da sua eternidade juntamente com Abraão, Isaac e Jacob. Ajude-nos ele mesmo, ao qual é devida honra e poder, decoro e império pelos séculos eternos. Diga toda a Igreja: Assim seja.
Fonte: SANTO ANTÔNIO DE LISBOA. Obras Completas. Sermões Dominicais e Festivos (Vol. I)
Introdução, tradução e notas por Henrique Pinto Rema.
Lello e Irmão Editores, Porto, 1987; págs 228-247.