Exórdio. Sermão aos pregadores.
1. Com cinco pães e dois peixes saciou o Senhor cinco mil homens etc.
Aos pregadores fala Salomão no Eclesiastes: Lança o teu pão sobre as águas que passam, e depois de muito tempo o acharás. As águas que passam são os povos a correr para a morte. Por isso, diz a mulher de Técua no segundo livro dos Reis: Todos corremos como água. Escreve Isaías: Este povo rejeitou as águas de Siloé, que correm em silêncio, e preferiu apoiar-se em Rasim e em Face, filho de Romélia. Siloé interpreta-se enviado; portanto, as águas de Siloé são a doutrina de Jesus Cristo, enviado do Pai. Rejeitam esta água os que se perdem em desejos terrenos e se apóiam em Rasim, isto é, no espírito soberbo, e em Face, ou seja, na imundície da luxúria. E por esta razão correm como água para o profundo da Geena. Portanto, sobre as águas que passam, ó pregador, lança o teu pão, o pão da palavra de Deus, do qual se diz: Não só de pão etc. E Isaías: Foi-lhe, isto é, ao justo, dado o pão; depois de muito tempo, no dia do juízo, achá-lo-ás, ou seja,encontrarás o que te dará em troca dele. Em nome do Senhor, lançarei o pão sobre as águas, compondo por vosso amor, sobre os cinco pães e dois peixes, um pequeno sermão.
Os cinco pães e os dois peixes.
2. Digamos, portanto: Com cinco pães e dois peixes etc. Os cinco pães são os cinco livros de Moisés, em que se encontram as cinco refeições da alma. O primeiro pão é detestar o pecado na contrição; o segundo é revelá-lo na confissão; o terceiro é a miséria e humilhação de si mesmo na satisfação; o quarto é o zelo das almas na pregação; o quinto é a doçura da pátria celeste na contemplação.
Acerca do primeiro pão lê-se no primeiro livro, no Gênesis, que Judá mandou um cabrito a Tamar pelo seu pastor Odalamita. Judá interpreta-se o que se confessa e significa o penitente, que deve enviar o cabrito, isto é, a detestação do pecado. Tamar, que se interpreta amarga, trocada, palmeira, é a alma penitente, em cuja tripla interpretação se designa o triplo estado dos penitentes. Chama-se amarga relativamente ao estado dos incipientes; trocada, dos proficientes; palmeira, dos perfeitos. Odolamita interpreta-se testemunho pela água e significa a compunção das lágrimas pelas quais o penitente testemunha que detesta o pecado e promete não voltar a cometê-lo. E assim desta Tamar, como diz S. Mateus, poderá Judá gerar Farés e Zara. Farés interpreta-se divisão; Zara, oriente. O penitente deve antes separar-se do pecado e depois tender à iluminação das boas obras. Declina, diz o Profeta, do mal: eis Farés; e faz o bem: Eis Zara.
Acerca do segundo pão lê-se no segundo livro de Moisés, no Êxodo, que Moisés escondeu debaixo da areia o egípcio morto. Moisés interpreta-se aquático e significa o penitente, flutuando nas água da compunção. Ele deve matar o egípcio, isto é, o pecado mortal, na contrição, e escondê-lo debaixo da areia na confissão. Escreve, pois, S. Agostinho: Se tu te descobres, Deus cobre-te; se tu te cobres, Deus descobre-te. Esconde, portanto, o egípcio quem descobre o seu pecado. Esconde-o para Deus e descobre-o ao sacerdote. Daí o dizer-se no Gênesis que Raquel escondeu os ídolos de Labão. Raquel interpreta-se ovelha. Esta é a alma penitente, que deve esconder os ídolos, isto é, os pecados mortais, de Labão, ou seja, do diabo. Bem-aventurados aqueles, diz o Profeta, cujos pecados foram cobertos.
Acerca do terceiro pão lê-se no terceiro livro de Moisés, no Levítico, onde se manda aos sacerdotes: O papo e as penas lançá-los-ás no lugar das cinzas para o lado do Oriente. O papo simboliza o ardor e a sede da avareza, da qual escreve Job: Uma sede ardente atormentará o avarento. A pena designa a leveza da soberba. A pena, escreve Job, do avestruz, isto é, do hipócrita, é semelhante às penas da cegonha e do falcão, isto é, do varão contemplativo. São lançadas no lugar das cinzas quando pensamos de coração compungido na palavra da maldição: És cinza, e à cinza hás-de voltar. O lado do Oriente é a vida eterna, da qual nos separamos por causa dos primeiros pais. Humilha-se, portanto, o penitente na satisfação e lança fora de si o papo da avareza e a pena da soberba quando traz à memória o eulógio da primeira maldição e geme todos os dias, prostrado diante dos olhos de Deus.
Acerca do quarto pão lê-se no quarto livro, o dos Números, que Finéias, tomando um punhal, atravessou os dois fornicadores pelas partes genitais. Finéias é o pregador, que tomando o punhal, isto é, a palavra da pregação, deve atravessar os fornicadores nas partes genitais, para que, descoberta e como que lançada em rosto a sua torpeza, se envergonhem do crime cometido. Revelarei, diz o Senhor por boca do seu Profeta, diante da tua face as partes vergonhosas. Cobre os seus rostos de ignomínia, diz David.
Acerca do quinto pão lê-se no quinto livro, o Deuteronômio, que Moisés subiu das planícies do Moab ao monte Abarim e aí morreu diante de Deus. Moisés é o penitente. Sobe das planícies de Moab, que se interpreta do pai. Quer dizer, deve deixar a vida dos carnais, provenientes do pai diabo, e subir ao monte Abarim, que se interpreta passagem, ou seja, a excelência da contemplação, para que passe deste mundo ao Pai.
Estes são os cinco pães de que se diz: Com cinco pães e dois peixes.
3. Estes são os cinco côvados da mirra. Escreve Solino que na Arábia há uma árvore chamada mirra, de cinco côvados de altura. Arábia interpreta-se sagrada e significa a santa Igreja, na qual há a mirra da penitência que eleva o homem das coisas terrenas cinco côvados, que são os cinco pães evangélicos. Estes são os cinco irmãos de Judá, a respeito dos quais diz Jacob no Gênesis: Judá, louvar-te-ão os teus irmãos; são eles: Ruben, Simeão, Levi, Issacar, Zabulão. Ruben interpreta-se vidente; Simeão, audição; Levi, ajuntado; Issacar, recompensa; Zabulão, casa de fortaleza.
Tenha, portanto, Judá um irmão chamado Ruben, para que veja na contrição com aqueles sete olhos a que se refere Zacarias: Numa só pedra, ou seja, no penitente, que deve ser pedra pela constância e um só pela unidade da fé, havia sete olhos. Com o primeiro deles deve ver o passado, para o chorar; com o segundo, o futuro, para dele se acautelar; com o terceiro, as coisas prósperas, para não o ensoberbecerem; com o quarto, as adversas, para não o deprimirem; com o quinto, as coisas superiores, para as saborear; com o sexto, as inferiores, para as tornar insípidas; com o sétimo, as interiores, para se comprazer em Deus.
Tenha, portanto, um segundo irmão de nome Simeão ao confessar-se, para que o Senhor ouça a sua voz, como diz Moisés no Deuteronômio: Ouve, Senhor, a voz de Judá. Dela se lê nos Cânticos: Ressoe a tua voz aos meus ouvidos, pois que a tua voz é doce.
À contrição e à confusão se ajunte o terceiro irmão, Levi, na satisfação, a fim de que a medida da pena corresponda à culpa. Fazei, diz, dignos frutos de penitência. No Sinai, de fato, que se interpreta medida, foi dada a lei. A lei da graça é dada àquele cuja penitência se mede de conformidade à culpa.
Tenha ainda um quarto irmão, Issacar, para que, incendiado pelo zelo das almas, receba a recompensa da eterna felicidade. Mas o tronco inútil, a ocupar terreno, e o fátuo idiota, a entravar um lugar na Igreja, receba, não a recompensa da vida eterna, mas a amargura da morte eterna.
Todavia, por favor, tenha um quinto irmão, Zebulão, para que, habitando na casa da contemplação, juntamente com o simples Jacob, mereça tomar gosto à doçura celeste.
Estes são os cinco pães, de que diz: Com cinco pães e dois peixes etc.
4. Os dois peixes representam a inteligência e a memória, que devem servir de condimento aos cinco livros de Moisés, para que entendas o que lês e confies ao tesouro da memória o que entendes. Ou então, os dois peixes, tirados da profundeza do mar para a mesa do rei, são Moisés e Pedro. O nome Moisés vem da água de que fora tirado; e Pedro o pescador é elevado à dignidade de Apóstolo. A Sinagoga foi encomendada àquele; a Igreja, a este. A Sinagoga e a Igreja são Sara e Agar, das quais se escreve na Epístola de hoje:Está escrito que Abraão teve dois filhos etc. A escrava Agar, que se interpreta solene, significa a Sinagoga, que se gloriava na observância da lei, como se foram coisas solenes. Sara, que se interpreta carvão, significa a santa Igreja, inflamada no dia de Pentecostes pelo fogo do Espírito Santo. O filho de Agar é o povo judeu, que luta com o filho de Sara, o povo dos crentes.
Por outras palavras, Sara, que se interpreta princesa, é a parte superior da razão, que deve comandar, como a senhora manda na escrava. A escrava é a sensualidade, representada por Agar, que se interpreta abutre. Com efeito, a sensualidade, qual abutre, segue os cadáveres dos desejos carnais. O filho de Agar, isto é, o movimento da carne, persegie o filho de Sara, ou seja, o movimento da razão. E isto é o que diz o Apóstolo: A carne deseja contra o espírito e o espírito contra a carne, de forma a pô-la fora juntamente com o seu filho. Por isso, diz-se: Põe fora a escrava e o seu filho. Efetivamente, a carne, carregada com os bens da natureza e opulenta com as vantagens temporais, insurge-se contra a senhora. Sucede então o que diz Salomão nas Parábolas: A terra estremece com três coisas e uma quarta não a pode suportar: com um escravo que chega a reinar; com um insensato farto de alimento, com uma mulher odiosa que um homem desposou, e com uma escrava que se torna herdeira de sua senhora. O escravo que chega a reinar é o corpo recalcitrante. O insensato farto de alimento é a alma inebriada de delícias. A mulher odiosa são as más obras; é recebida em matrimônio quando o pecador cai na cilada do mai hábito. E desta forma a escrava Agar, a sensualidade, torna-se herdeira da sua senhora, a razão. Mas para que este domínio infeliz acabe, com cinco pães e dois peixes saciou o Senhor cinco mil homens.
5. Acerca deste assunto há concordância no Intróito da missa: Alegra-te, Jerusalém, e reuni-vos etc. Nota que para o número de cinco mil homens há cinco reuniões. A primeira foi celebrada no céu; a segunda, no paraíso; a terceira, no monte das Oliveiras; a quarta, em Jerusalém; a quinta, em Corinto.
Na primeira reunião nasceu a discórdia. Com efeito, o primeiro anjo, antes monge branco, depois monge negro, porque primeiro lúcifer, depois tenebrífero, semeou a cizânia da discórdia nas fileiras dos seus irmãos. No corro da concórdia, de fato, começou a cantar a antífona da soberba, partindo do mais alto, em vez do mais baixo. Subirei, diz, ao céu, para aí ser igual ao Pai, e serei semelhante ao Altíssimo, isto é, ao Filho. E enquanto desta forma cantava altaneiramente e entumecia as veias do coração, caiu irrecuperavelmente: o firmamento não pôde suster a sua soberba.
Na segunda reunião do paraíso nasceu a desobediência, por causa da qual os protoparentes foram lançados à miséria deste exílio.
Na terceira, nasceu a simonia. Consiste ela em comprar ou vender o espiritual ou o que é anexo ao espiritual. Ora, que coisa mais espiritual e mais santa do que Cristo? Cremos que Judas, ao vendê-lo, incorreu no pecado de simonia, e por isso, suspenso dum laço rebentou o ventre. Assim todo o simoníaco, se não se sujeitar e fazer verdadeira penitência, suspenso do laço da eterna condenação, arrebentará o ventre pelo meio.
Na quarta reunião, a pobreza foi desonrada, quando Ananias e Safira subtraíram para eles parte do preço do campo vendido, mentido ao Espírito Santo. E por isso imediatamente sofreram a sentença do manifesto ultraje. Desta maneira, se os que tiverem renunciado aos próprios bens, marcando-se com o selo da santa pobreza, quiserem reedificar a Jericó destruída, sofrerão eternamente o impropério da maldição.
Na quinta, foi lesada a castidade. Lê-se na epístola aos Coríntios que Paulo não duvidou ferir, para morte da carne, com a sentença de excomunhão aquele fornicador que tomara a mulher do pai.
Vós, porém, membros da Igreja, cidadãos da Jerusalém celeste, fazei uma reunião dividida em cinco partes, de que serão banidos estes cinco crimes: a cizânia da discórdia, a loucura da desobediência, a concupiscência da simonia, a lepra da avareza e a imundície da luxúria. Assim merecereis ser saciados com cinco pães e dois peixes entre cinco mil homens e gozar da perfeição do número milenário. Ajude-nos aquele que é bendito por séculos de séculos. Assim seja.
Fonte: SANTO ANTÔNIO DE LISBOA. Obras Completas. Sermões Dominicais e Festivos (Vol. I)
Introdução, tradução e notas por Henrique Pinto Rema.
Lello e Irmão Editores, Porto, 1987; págs 217-226.