Em louvor da Santíssima Virgem Maria.
1. Naquele tempo, levantando a voz uma mulher do meio da multidão, disse-lhe: Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos a que foste amamentado etc.
O esposo fala à esposa nos Cânticos: Ressoe a tua voz aos meus ouvidos, porque a tua voz é doce. A voz doce é o louvor que se tributa à gloriosa Virgem, que nos soa dulcíssima aos ouvidos do Esposo, isto é, de Jesus Cristo, Filho da mesma Virgem. Levantemos, portanto, todos e cada um a voz em louvor da Santíssima Virgem e digamos ao seu Filho: Bem-aventurado o centre que te trouxe e os peitos a que foste amamentado.
2. Bem-aventurado quer dizer bem aumentado. Bem-aventurado é aquele que possui tudo o que quer e não quer nada de mal Bem-aventurado é aquele a quem sucede tudo segundo os seus desejos. Bem-aventurado, portanto, o ventre da gloriosa Virgem, que mereceu trazer por nove meses todo o bem, o sumo bem, a felicidade dos anjos, a reconciliação dos pecadores. Por isso, diz S. Agostinho: Fomos reconciliados só pelo Filho segundo a carne, mas não fomos reconciliados só com o Filho, enquanto Deus. De fato, a Trindade reconciliou-nos consigo enquanto a mesma Trindade provocou a Encarnação só do Verbo. Bem-aventurado, portanto, o ventre da gloriosa Virgem, da qual escreve S. Agostinho no livro De Natura et Gratia: Quando se trata de pecados, excetuo a Santíssima Virgem, da qual, por honra do Senhor, não quero absolutamente se faça questão alguma. De fato, sabemos que lhe foi conferida mais graça para vencer o pecado, em todos os aspectos, de maneira que merecei conceber e dar à luz aquele que seguramente não teve pecado algum. Excetuada, portanto, esta Virgem, se todos os santos e santas pudessem reunir-se e lhes fosse perguntado se tinham pecado, que responderiam senão o que diz São João: Se dissermos que não temos pecado, a nós mesmos nos enganamos, e não está em nós a verdade? – Porém, aquela Virgem gloriosa foi prevenida e cheia de graça singular, para que tivesse como fruto do seu ventre aquele mesmo que de início o universo teve como Senhor.
3. Bem-aventurado, portanto, o ventre. Dele, em louvor de sua Mãe, diz o Filho nos Cânticos: O teu ventre é como um monte de trigo, cercado de lírios. O ventre da Virgem gloriosa foi como um monte de trigo: monte, porque nele foram reunidas todas as prerrogativas dos méritos e prêmios; de trigo, porque nele, como em celeiro, por diligência do verdadeiro José, foi posto trigo, para não perecer de fome todo o Egito. O trigo, assim chamado por se enceleirar quando está puríssimo, ou porque se mói e esmaga o seu grão, que é alvo no interior e avermelhado no exterior, significa Jesus Cristo, escondido, durante nove meses, no celeiro do santíssimo ventre da Virgem gloriosa, na mó da cruz esmagado po nossa causa, cândido pela inocência da vida, avermelhado pelo derramamento de sangue. Este bem-aventurado ventre foi cercado de lírios. Lírio, vocábulo parecido ao de leite, simboliza, por causa do seu candor, a Virgindade da Santíssima Virgem. O seu útero foi cercado de lírios, isto é, cingido pelo vale da humildade. Estes lírios são a dupla virgindade, interior e exterior. Donde o dizer de S. Agostinho: O Deus unigênito, ao ser concebido, recebeu verdadeira carne da Virgem, e, ao nascer, guardou na Mãe a integridade da virgindade. Bem-aventurado, portanto, o ventre que te trouxe.
É na verdade bem-aventurado quem te trouxe a ti, Deus e Filho de Deus, Senhor dos anjos, criador do céu e da terra, redentor do mundo. A Filha trouxe o Pai, a Virgem pobrezinha trouxe o Filho. Ó Querubins, ó Serafins, ó Anjos e Arcanjos, adorai reverentemente de rosto baixo e cabeça inclinada o templo do Filho de Deus, o sacrário do Espírito Santo, o bem-aventurado ventre cercado de lírios, dizendo: Bem-aventurado o ventre que te trouxe. Ó terrenais filhos de Adão, a quem esta graça, esta especial prerrogativa foi concedida, compenetrados da fé, compungidos no espírito, prostrados em terra, adorai o trono ebúrneo do verdadeiro Salomão, excelso e elevado, o trono do nosso Isaías, dizendo: Bem-aventurado o ventre que te trouxe.
4. Segue: E os seios a que foste amamentado. Deles escreve Salomão nas Parábolas: Seja para ti como uma corça caríssima e como um veado cheio de graça: os seus seios te inebriem em todo o tempo; no seu amor busca sempre as tuas delícias. Nota que a corça, como se diz em ciências naturais, dá à luz em caminho trilhado, sabendo que o lobo evita o caminho trilhado por causa dos homens. a corça caríssima é Maria Santíssima, que em caminho trilhado, isto é, numa estalagem, deu à luz um veado cheio de graça, porque nos deu gratuitamente e em tempo agradável um filhinho. Por isso, lemos em S. Lucas: Deu à luz o seu filho e envolveu-o em panos, para que recebêssemos a estola da imortalidade, e reclinou-o num presépio, porque não havia lugar pra ele na estalagem. Comentário da Glossa: Não encontra lugar na estalagem, para que tenhamos várias mansões no céu. Os seis desta corça, caríssima ao mundo inteiro, hão-de inebriar-te, ó cristão, em todo o tempo, a fim de que, esquecido de tudo o que é temporal, como inebriado, te lances para o que antes de ti existiu. Mas é muito de admirar que tivesse dito: inebriar-te-ão, quando nos seios não há vinho que inebrie, mas leite agradabilíssimo. Ouve o porquê: O Esposo seu Filho, louvando-a nos Cânticos, diz: Quão formosa e encantadora és, ó caríssima, entre as delícias! A tua estatura é semelhante a uma palmeira e os teus seios a dois cachos de uvas. Quão formosa és de entendimento, quão encantadora és de corpo, minha mãe, esposa minha, corça caríssima, entre delícias, isto é, entre os prêmios da vida eterna.
5. A tua estatura é semelhante a uma palmeira. Nota que a palmeira em baixo é áspera por causa de sua casca, na parte superior é bela à vista e pelo fruto, e, como diz Isidoro, dá fruto quando centenária. Assim a Virgem Maria neste mundo foi áspera na casca da pobreza, mas no céu é bela e gloriosa, porque rainha dos anjos. E mereceu alcançar o fruto centésimo, que se dá às virgens, ela a Virgem das virgens, acima de todas as virgens. Com razão se diz portanto: A tua estatura é semelhante a uma palmeira e os teus seis a dois cachos de uvas.
O conjunto de frutos reunidos fazem o cacho, por exemplo, de uvas, que nasce, na videira. Desta, na história de José, no Gênesis, diz o copeiro do rei: Eu via diante de mim uma cepa, na qual havia três varas a crescerem pouco a pouco em gomos e, depois das flores, as uvas amadurecem. Nesta sentença, há sete coisas: a cepa, três varas, gomos, flores e uvas. Vejamos de que modo estas sete coisas convêm egregiamente a Maria Nossa Senhora. A cepa, assim chamada por ter força de ganhar raízes mais depressa, ou por se entrelaçar, é Maria Santíssima, que, entre os outros, ganhou raízes mais depressa e subiu mais alto no amor de Deus, e de modo inseparável se entrelaçou à verdadeira cepa, ao seu Filho, que disse: Eu sou a verdadeira cepa. De si mesma disse no Eclesiástico: Como a cepa, lancei flores de agradável cheiro. O parto da Santíssima Virgem não tem exemplo no sexo das mulheres, mas tem semelhança na natureza das coisas. Perguntas como a Virgem gerou o Salvador. Encontrarás incorrupta a flor da cepa depois de fornecer o cheiro; também crê inviolado o pudor da Virgem por ter dado à luz o Salvador. Que é a flor da virgindade senão a suavidade do cheiro?
As três varas desta cepa foram a saudação angélica, a vinda do Espírito Santo e a concepção inenarrável do Filho de Deus. Destas três varas propaga-se, isto é, multiplica-se, pela fé, todos os dias, em todo o mundo, prole sempre renovada de fiéis. Os gomos na cepa são a humildade e a virgindade de Maria Santíssima. As flores são a fecundidade sem corrupção, o parto sem dor. Os três cachos de uvas na cepa são a pobreza, a paciência e a abstinência na Virgem Santíssima; estas são as uvas maduras de que provém o vinho maduro e odorífero, que inebria e, inebriando, torna sóbrios os corações dos fiéis. Com razão se diz, portanto: Os seus seios te inebriem em todo o tempo; e no seu amor busca sempre as tuas delícias, a fim de com o seu amor consigas desprezar o falso deleite do mundo e conculcar a concupiscência da carne.
6. Refugia-te nela, ó pecador, porque ela é cidade de refúgio. Com efeito, assim como outrora, o Senhor, como se diz no livro dos Números, separou cidades de refúgio, para nelas se refugiar quem tivesse perpetrado o homicídio involuntário, também agora a misericórdia ao nome de Maria até para os homicídios voluntários. Torre fortíssima é o nome da Senhora. Refugie-se nela o pecador e salvar-se-á. Nome doce, nome que conforta o pecador, nome de bem-aventurada esperança. Senhora, o teu nome está no desejo da minha alma. E o nome da Virgem, diz S. Lucas, era Maria. O teu nome é óleo derramado. o nome de Maria é júbilo no coração, mel na boca, melodia no ouvido. Egregiamente, portanto, em louvor da mesma Virgem, se diz: Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos a que foste amamentado.
Nota que mamar, em latim, sugere, vem de sumendo agere, porque, enquanto Cristo tomava leite, trabalhava na nossa salvação. A nossa salvação foi o seu sofrimento: susteve o sofrimento corporal, por ter sido alimentado com leite duma Virgem. Por isso, ele mesmo diz nos Cânticos: Bebi o meu vinho com o meu leite. Por que razão não disseste, Senhor Jesus: Bebi vinagre com o meu leite? Foste aleitado em seios virginais e deram-te a beber fel e vinagre. A doçura do leite transformou-se em amargor de fel, a fim de que o seu amargor nos proporcionasse eterna doçura. Mamou nos seios quem no monte Calvário quis ser lanceado no seio, para que seus filhos pequeninos mamassem sangue em vez de leite. Destes escreve Job: Os filhinhos da águia chupam sangue.
7. Segue: Mas ele disse: Antes etc. Comentário da Glossa: Maria não só deve ser louvada por ter trazido no ventre o Verbo de Deus, mas também é bem-aventurada porque realmente guardou os preceitos de Deus.
Rogamos-te, portanto, Senhora nossa, esperança nossa, que Tu, Estrela do mar, irradies luz para nós, feridos pela tempestade deste mar, nos encaminhes para o porto, protejas a nossa morte com a tutela da tua presença, a fim de merecermos sair seguros do cárcere e alegres cheguemos ao gozo infindo. Ajude-nos aquele que trouxeste no teu bem-aventurado ventre, aleitaste nos teus seios sacratíssimos. A ele é devida honra e glória pelos séculos eternos. Assim seja.
Fonte: SANTO ANTÔNIO DE LISBOA. Obras Completas. Sermões Dominicais e Festivos (Vol. I)
Introdução, tradução e notas por Henrique Pinto Rema.
Lello e Irmão Editores, Porto, 1987; págs 207-215.