Exórdio. Sermão aos pregadores.
1. Estava sentado à borda da estrada um cego. E clamava: Filho de David, tem piedade de mim!
Diz-se no primeiro livro dos Reis: Samuel tomou uma lentícula de óleo e derramou-o sobre a cabeça de Saul. Samuel interpreta-se postulado, e significa o pregador, postulado com as preces da Igreja por Jesus Cristo, que diz no Evangelho: Rogai ao Senhor da messe que mande operários para a sua messe. Este deve tomar uma lentícula de óleo, que é um vaso quadrangular como o é a doutrina evangélica. Diz-se quadrangular, por causa dos quatro evangelistas. E dela deve derramar o óleo da pregação sobre a cabeça de Saul, isto é, sobre o entendimento do pecador. Saul interpreta-se o que abusa, e significa bem o pecador, que abusa dos dons da graça e da natureza.
E nota que o óleo unge e ilumina. Assim o pecador unge a pele inveterada dos dias maus e endurecida pelos pecados, a saber, unge a consciência do pecador e torna-a suave ao tato; ou então, unge o atleta de Cristo e envia-o para a batalha a vencer as potestades aéreas. Esta é a razão por que se diz no terceiro livro dos Reis que Sadoc ungiu Salomão em Gion. Sadoc interpreta-se justo e significa o pregador, que, à semelhança do sacerdote, oferece um sacrifício de justiça na ara da Paixão do Senhor. Ele ungiu Salomão, que se interpreta pacífico, em Gion, que se interpreta luta; o pregador, de fato, com o óleo da pregação deve ungir o pecador convertido na luta, para que não consinta na sugestão do diabo, esmague a carne sedutora, despreze o mundo enganador. O óleo também ilumina, porque a pregação ilumina o olho da razão, a fim de poder ver o raio do verdadeiro sol. Em nome, portanto, de Jesus Cristo, receberei a lentícula desde santo Evangelho, e dele derramarei o óleo da pregação, com que serão iluminados os olhos deste cego, do qual se escreve: Um cego estava sentado etc.
2. Neste domingo diz-se o Evangelho da cura do cego, e nele se menciona a Paixão de Cristo; e lê-se e canta-se a história da viagem de Abrãao e da imolação do seu filho Isaac. E lê-se no Intróito da missa: Sê para mim um Deus protetor. Reza-se a Epístola de S. Paulo aos Coríntios: Se falar a língua dos homens e dos anjos, etc. Portanto, para honra de Deus e iluminação da vossa alma, concordemos tudo isso.
I – A cegueira das almas.
3. Um cego estava sentado etc. Omitidos todos os outros cegos curados, só queremos mencionar três: o primeiro é o cego de nascença do Evangelho, curado com lodo e saliva; o segundo é Tobias que cegou com excremento de andorinhas, e se curou com fel de peixe; o terceiro é o bispo de Laodicéia, ao qual diz o Senhor no Apocalipse: Não sabes que és um infeliz e miserável, pobre, cego e nu. Aconselho-te que me compres ouro provado no fogo, para te fazeres rico, e te vestires com roupas brancas, e não se descubra a verginha da tua nudez, e unge os teus olhos com um colírio, para que vejas. Vejamos o que significa cada uma destas coisas.
O cego de nascença significa, no sentido alegórico, o gênero humano, tornado cego nos protoparentes. Jesus restituiu-lhe a vista, quando cuspiu em terra e lhe esfregou os olhos com lodo. A saliva, descendo da cabeça, significa a divindade, a terra, a humanidade; a união da saliva e da terra é a união da natureza humana e divina, com que foi curado o gênero humano E estas duas coisas significam as palavras do cego sentado à borda do caminho e a clamar: Tem piedade de mim (o que diz respeito à divindade), Filho de David (o que se refere à humanidade).
4. No sentido moral, o cego significa o soberbo. A este respeito lemos no profeta Abdias: Ainda que te eleves como a águia e ponhas o teu ninho entre os astros, eu te arrancarei de lá, diz o Senhor. A águia, voando mais alto que todas as aves, significa o soberbo, que deseja a todos parecer mais alto com as duas asas da arrogância e da vanglória. É a ele que se diz: Se entre os astros, isto é, entre os santos, que neste lugar tenebroso brilham como astros no firmamento, puseres o teu ninho, isto é, a tua vida, dali te arrancarei, diz o Senhor. O soberbo, pois, esforça-se por colocar o ninho da sua vida na companhia dos santos. Donde a palavra de Job: A pena do avestruz, isto é, do hipócrita, é semelhantes às penas da cegonha e do falcão, isto é, do homem justo. E nota que o ninho em si tem três caracteres: No interior é forrado de matérias brandas; externamente é construído de matérias duras e ásperas; é colocado em lugar incerto, exposto ao vento. Assim a vida do soberbo tem interiormente a brandura do deleite carnal, mas é rodeada no exterior por espinhos e lenhas secas, isto é, por obras mortas; também está colocada em lugar incerto, exposta ao vento da vaidade, porque não sabe se de tarde, se de manhã desaparecerá. E isto é o que se conclui: De lá eu te arrancarei, ou seja, arrancar-te-ei para te lançar no fundo do inferno, diz o Senhor. Por isso, escreve-se no Apocalipse: Quanto ela se glorificou e viveu em delícias, tanto lhe daí de tormentos.
5. E nota que este cego soberbo é curado com saliva e lodo. Saliva é o sêmen do pai derramado na lodosa matriz da mãe, onde se gera o homem miserável. A soberba não o cegaria se atendesse ao modo tão triste da sua concepção. Daí a fala de Isaías: Considerai a rocha donde fostes tirados. A rocha é o nosso pai carnal; a caverna do lago é a matriz da nossa mãe. Daquele fomos cortados no fétido derrame do sêmen; desta fomos tirados no doloroso parto.
Por que te ensoberbeces, portanto, ó mísero homem, gerado de tão vil saliva, criado em tão horrível lago e ali mesmo nutrido durante nove meses pelo sangue menstrual? Se os cereais forem tocados por esse sangue não germinarão, o vinho novo azedará, as erva morrerão, as árvores perderão os frutos, a ferrugem corroerá o ferro, enegrecerão os bronzes e se dele comerem os cães, tornar-se-ão raivosos, e com as suas mordeduras farão enlouquecer as pessoas. Além disso, as próprias mulheres, que têm menos necessidade quando se encontram nas suas regras, não observam os homens com olhares inocentes. Sujam os espelhos com o demasiado uso, ao ponto de enfraquecer o fulgor da vista e o esplendor apagado do rosto perder o ciúme natural, e a face, duma esplendência baça, cobrir-se duma espécie de caligem. Ó homem infeliz, ó soberbo cego, se observares, de espírito atento, estas coisas e te considerares nascido de lodo e de saliva, verdadeiramente, verdadeiramente serás curado, verdadeiramente te humilharás.
E que a sobredita sentença de Isaías se entenda da geração carnal, mui abertamente se mostra quando se ajunta: Lançai os olhos para Abraão, vosso pai, e para Sara, que vos deu à luz. A este soberbo cego manda o Senhor: Saí da tua terra e da tua parentela e da casa de teu pai etc. Nota aqui três gêneros de soberba: contra o inferior, contra o igual e contra o superior. O soberbo conculca, despreza e ultraja. Conculca o inferior, como se fosse terra – que vem de tero, teris, esmagar; despreza o igual, como se fosse da parentela, pois o soberbo despreza e escandaliza facilmente os parentes e afins; ultraja também o superior, como se fosse a casa do pai. O superior chama-se casa do pai, porque debaixo dele o súdito, como filho em casa paterna, deve esconder-se da chuva da concupiscência carnal, da tempestade da perseguição demoníaca, do ardor da prosperidade mundana. Mas o cego soberbo, com o insulto feito de nariz enrugado, ultraja o superior. Diz, portanto, o Senhor: Sai, ó soberbo cego, da tua terra, para não conculcares o inferior, sai da tua parentela, para não desprezares o igual; sai da casa do teu pai, para não ultrajares o superior.
6. Segue: E vai para a terra que eu te mostrar. A terra é a humanidade de Jesus Cristo, de que diz o Senhor a Moisés no Êxodo: Tira o calçado dos teus pés, porque o lugar em que estás é terra santa. O calçado são as obras mortas, que deves tirar dos pés, isto é, dos afetos da tua alma; porque a terra, ou seja, a humanidade de Jesus Cristo, em que estás pela fé, é santa e te santifica a ti, pecador. Vai, portanto, ó soberbo, para esta terra, considera a humanidade de Cristo, atende à sua humildade, espreme o tumor do teu coração. Caminha, sim, com os passo do amor, aproxima-te com a humildade do coração, dizendo com o Profeta: Na tua verdade me humilhaste. Ó Pai, na tua verdade, isto é, no teu Filho, humilhado, pobre e peregrino, me humilhaste; humilhado, sim, no ventre da Virgem; pobre, no curral de gado; peregrino, no patíbulo da cruz. De fato, nada humilha tanto o pecador soberbo como a humilhação da humanidade de Jesus Cristo. Donde Isaías: Oxalá romperas tu os céus e desceras de lá! Os montes se derreteriam diante da tua face. Diante da sua face, quer dizer, da presença da humanidade de Jesus Cristo, os montes, ou seja, os soberbos, desaparecem e desfalecem, quando consideram a divina cabeça inclinada no ventre da Virgem Mãe.
Vai, portanto, para a terra que te mostrei a dedo no rio Jordão, dizendo: Este é o meu Filho amado, em que pus as minhas complacências. Serás também tu filho amado, em que pus as minhas complacências, filho adotivo pela graça, se, com o exemplo do meu Filho, igual a mim, fores humilhado; mostrei-to, para que do modelo da sua vida regules o modo do teu viver, e assim formado recebas luz e assim posas ouvir: Olha, a tua fé te salvou, te curou.
7. O segundo cego, feito tal pelo excremento de andorinhas, mas curado com fel de peixe, é Tobias, de que se diz no livro do mesmo: Sucedeu um dia que, cansado da sepultura, indo para sua casa, deitou-se junto duma parede e adormeceu, e enquanto dormia caiu-lhe dum ninho de andorinhas um pouco de esterco sobre os olhos, e ficou cego. Vejamos brevemente o que significam Tobias, a sepultura, a casa, a parede, o dormirm o ninho, as andorinhas e o seu esterco. Tobias é o justo tíbio; a sepultura, a penitência; a casa, a satisfação da carne; a parede, a sua voluptuosidade; o dormir, o torpor da negligência; as andorinhas, os demônios; o ninho, o consentimento do espírito efeminado; o esterco, a gula e a luxúria. Digamos, portanto: Tobias, fatigado da sepultura, etc.
Tobias significa o justo tíbio, do qual diz o Senhor no Apocalipse: Porque não és frio pelo temor da pena, nem quente pelo amor da graça, mas porque és tíbio, por isso te começarei a vomitar da minha boca. Assim como a água morna provoca o vômito, assim a tibieza e a negligência expulsam do ventre da divina misericórdia o ocioso e o tíbio. Maldito, diz Jeremias, o que fizer a obra do Senhor com negligência.
Este homem fatigado de enterrar mortos vem para casa, quando se aborrece do trabalho da penitência, na qual e debaixo da qual deve esconder os defuntos, isto é, os pecados mortais, para deles se dizer: Felizes aqueles cujos pecados são encobertos. E então volta-se, abrasado em desejos, para a satisfação do corpo, contra a advertência do Apóstolo.
Por isso, ajunta-se: Deitou-se junto da parede. A parede é o prazer carnal. Assim como na construção duma parede se põe pedra sobre pedra e se ajusta com argamassa, também no prazer carnal, o pecado de vista se junta ao pecado do ouvido, e o pecado do ouvido ao pecado do gosto, e assim por diante, e se liga fortemente à argamassa do mau hábito. E assim dorme profundamente, alquebrado pelo torpor da negligência. E então cai o esterco das andorinhas sobre os olhos do adormecido.
As andorinhas, por causa do seu vôo rapidíssimo, significam os demônios, cuja soberba quis sobrevoar os astros do céu, a altura das nuvens, até se igualar com o Pai e assemelhar-se com o Filho.
O ninho dos demônios é o consentimento do espírito efeminado, construído com as plumas da vanglória e o lodo da lascívia. De tal ninho cai esterco de gula e luxúria sobre os olhos do adormecido Tobias, e desta maneira se cegam os olhos, ou seja, a razão e a inteligência da infeliz alma.
8. Atendei, caríssimos, e acautelai-vos de tão infeliz procedimento, pois do tédio de enterrar mortos, isto é, do tédio da penitência, se chega à casa da satisfação carnal, colocada, a pretexto de necessidade, junto da parede do prazer, no qual, ao mesmo tempo que se abate com o sono da negligência, se cega com o esterco da luxúria. Donde o Poeta: Pergunta-se por que é que Egisto cometeu adultério. A causa é evidente: vivia ocioso. Clama, portanto, ó Tobias tíbio, ó cego luxurioso, que estás deitado junto da parede: Tem piedade de mim, Filho de David.
Eis a razão porque este cego pede no Intróito da missa de hoje seja iluminado, dizendo: Sê para mim um Deus protetor etc. Nota que pede quatro coisas: Primeira, quando diz: Sê para mim um Deus protetor, para que, de braços estendidos na cruz, me protejas e defendas, como a galinha protege e defende os pintainhos debaixo das asas; a segunda, quando diz: E um lugar de refúgio, para que no teu lado, traspassado pela lança, encontre lugar de refúgio, onde possa esconder-me da face do inimigo; a terceira, quando diz: Porque tu és o meu firmamento, para não cair, e o meu refúgio, a fim de que, se cair, me abrigue junto de ti e não junto de outrem; a quarta, quando diz: E por causa do teu nome, Que e Filho de David, serás para mim, que sou cego, guia, porque me darás a mão da misericórdia, e me alimentarás com o leite da tua graça. Tem, portanto, piedade de mim, Filho de David.
II – A Paixão de Cristo.
9. O Filho de Deus e de David, Anjo do grande conselho, medicina e médico do gênero humano, no mesmo livro aconselha-te com as palavras: Tira as entranhas ao peixe e extrai o fel, unge os olhos e desta forma poderás recuperar a vista. O peixe, no sentido alegórico, é Cristo, por nós assado na grelha da cruz. O seu fel é a amargura da Paixão. Com ela recuperarás a vista, se forem ungidos os olhos da tua alma. Com efeito, a amargura da Paixão do Senhor afasta a cegueira da luxúria e todo o esterco da concupiscência carnal. Daí a afirmação de um sábio: A memória do Crucificado crucifica os vícios. Lê-se no livro de Rute: Molha o teu bocado no vinagre. O bocado é o deleitezinho momentâneo da mísera carne, que deves molhar no vinagre, isto é, na amargura da Paixão de Jesus Cristo.
Eis porque o Senhor te manda o que mandou a Abrãao na história do presente domingo: Toma Isaac, teu filho único, a quem amas, e vai à terra da visão, e aí oferece-mo em holocausto. Isaac interpreta-se riso ou gozo, e significa, no sentido moral, a nossa carne que ri, quando realiza seus desejos. Destas duas coisas diz Salomão no Eclesiastes: Considerai o riso, isto é, as coisas temporais, um erro, porque fazem errar do caminho da verdade; e o gozo da carne disse: Porque te enganas assim vãmente?
Toma, portanto, o teu filho, a tua carne, que amas, que tão afetuosamente nutre, e, ó miserável, ignoras que não há peste mais prejudicial do que o inimigo que vive dentro de ti? Quem desde a meninice, diz Salomão, alimenta delicadamente o seu servo, experimentá-lo-á contumaz. Tira-o, portanto, tira-o, crucifica-o, crucifica-o. É réu de morte. Responde Pilatos, isto é, o afeto carnal: Que mal fez ele? Oh, quantos males provocou o teu riso, provocou o teu filho! Desprezou a Deus, escandalizou o próximo, deu morte à própria alma. E tu dizes: Que mal fez ele? Toma-o, portanto, e vai para a terra da visão.
10. Jerusalém foi chamada terra de visão. Dela se diz no Evangelho de hoje: Jesus tomou os seus doze discípulos em segredo e disse-lhes: Eis que vamos a Jerusalém. Toma também tu o teu filho e sobe com Jesus e os Apóstolos a Jerusalém e aí, sobre o altar, isto é, meditando na Paixão do Senhor e na cruz da penitência, oferece em holocausto o teu corpo. E nota que diz em holocausto. Holocausto vem de holon (todo) e cauma (abrasamento). Holocausto, portanto, quer dizer queimado todo inteiro Oferece, pois, todo o teu filho, todo o teu corpo a Jesus Cristo, que todo se ofereceu a Deus Pai, a fim de destruir todo o corpo do pecado.
Nota que assim como o corpo humano consta de quatro elementos, fogo, ar, água e terra: fogo nos olhos, ar na boca, água nos rins, terra nas mãos e pés, também no corpo do pecador, que serve o pecado, há fogo nos olhos pela curiosidade, ar na boca pela loquacidade, água nos rins pela luxúria, terra nas mãos e nos pés pela crueldade. Mas o Filho de Deus teve velada a face, para a qual desejam os anjos olhar, a fim de reprimir a tua curiosidade. E calou-se, não digo diante de quem o tosquiava, mas de quem o matava; e ao ser maltratado, não abriu a boca, para refrear a tua loquacidade. Uma lança abriu-lhe o lado, para te tirar o humor da luxúria. Prenderam-no de mãos e pés com pregos, para tirar das tuas mãos e pés a crueldade. Toma, portanto, o teu filho, o teu riso, a tua carne, e oferece-o inteiro em holocausto, para que inteiro ardas em caridade. Ela cobre uma multidão de pecados.
Dela diz o Apóstolo na Epístola de hoje: Se falar a língua dos homens e dos anjos, mas não tiver caridade, sou como bronze que soa ou como címbalo que tine. Diz S. Agostinho: “Chamo caridade ao movimento que o ânimo possui para fruir Deus por causa de si mesmo, e fruir-se a si mesmo e ao próximo por causa de Deus”.
Quem não a possui, ainda que faça muito bem, bem verdadeiro, trabalha em vão; e, por isso, diz o Apóstolo: Se falar a língua dos homens etc. A caridade de Deus conduziu seu Filho ao patíbulo da cruz; donde o dizer-se nos Cânticos: O amor é forte como a morte. Comentário de S. Bernardo: Ó caridade, quão forte é o teu vínculo! Com ela até o Senhor se pôde ligar! Toma, portanto, o teu filho e oferece-o no altar da Paixão de Jesus Cristo. Com o seu fel, ou amargura, serás curado e merecerás ouvir: Olha, a tua fé te salvou, te curou.
11. Por outras palavras: Tobias foi curado com fel de peixe. A carne de peixe é doce; o fel é amargo. Se a carne de peixe dele se embebe, toda se transforma em amargura. A carne de peixe é o deleite da luxúria; o fel, escondido dentro, é a amargura da morte eterna. Por isso, em sentido semelhante, ainda que usando outras palavras, diz Job: O seu alimento é a raiz de juníperos. Nota que a raiz do junípero é doce e comestível, mas por folhas tem espinhos; também o deleite da luxúria, que é alimento dos carnais, no momento presente parece doce, mas no fim dará à luz picadelas de morte eterna.
Tira, portanto, as entranhas ao peixe, isto é, considera quão vil é o deleite do pecado. Extrai o fel, isto é, atende como é interminável e cheia de miséria a pena devida ao pecado, e desta forma poderás converter em amargura toda a doçura da tua carne.
12. O terceiro cego foi o anjo de Laodicéia, curado com o colírio. Laodicéia interpreta-se tribo amável ao Senhor, e significa a Santa Igreja, por amor da qual derramou o seu sangue. E dela, como da tribo de Judá, escolheu um sacerdócio real. O anjo, portanto, de Laodicéia, é o bispo ou prelado da Santa Igreja, que se chama com razão Anjo, por causa da dignidade do seu ofício. A seu respeito escreve o profeta Malaquias: Os lábios do sacerdote guardam a ciência, e da sua boca se aprende a lei, porque ele é o anjo do Senhor dos exércitos.
Nota que nesta sentença se verificam cinco coisas muito necessárias ao bispo ou prelado da Igreja: a vida, a fama, a ciência, a abundância da caridade, a túnica talar da pureza. Os lábios do sacerdote são a vida e a fama, que devem guardar a ciência, para que a vida em relação a si e a ciência em relação ao próximo guarde o que sabe e prega. Destes dois lábios, de fato, procede a ciência da pregação frutuosa. E se estas três coisas existirem antes no prelado, da sua boca os súditos aprenderão a lei, isto é, a caridade, a respeito da qual escreve o Apóstolo: Levai os fardos uns dos outros e assim cumprireis a lei de Cristo, isto é, a caridade, que só por caridade carregou em seu corpo, sobre o madeiro, os fardos dos nossos pecados. A lei é a caridade que os súditos aprendem, primeiro na prática, a fim de que eles mesmos a recebam depois mais suave e frutuosamente da boca do prelado, pois Jesus começou a fazer e ensinar. Efetivamente, era poderoso em obras e em palavras.
13. Segue: Porque ele é o anjo do Senhor dos exércitos. Eis a estola da pureza interior. Viver na carne para além da carne, como diz S. Jerônimo, é próprio não de natureza humana mas celeste. O Senhor, porém, impropera o anjo de Laodicéia, ou seja, o prelado da Igreja, precisado destas cinco virtudes, quando ajunta: És um infeliz e miserável, pobre, cego e nu. És infeliz na vida, miserável na fama, cego na ciência, pobre na caridade, nu na túnica talar da pureza. Mas porque o Senhor sabe curar os contrários com os contrários, e ao corrigir ensina, e ao ferir põe ungüento, por isso, aconselha ao cego bispo de Laodicéia, ajuntando: Aconselho-te a que me compres ouro provado no fogo, para te fazeres rico e te vestires de roupas brancas e não se descubra a vergonha da tua nudez, e unge os teus olhos com um colírio, para que vejas. Aconselho-te, diz, a comprar a mim, não ao mundo, com o preço da boa vontade, o ouro da vida preciosa, contra a escória da tua vida infeliz; ouro provado no fogo pela caridade, contra a miséria da tua pobreza; ouro provado no fole da boa fama, contra o fedor da tua infâmia; e a te vestires de roupas brancas, contra a nudez da tua fealdade; e com um colírio unge os teus olhos, contra a cegueira da tua insensatez.
14. E nota que este colírio, que dá luz aos olhos da alma, se compõe das cinco palavras da Paixão do Senhor, como de cinco ervas. Dela diz o Evangelho de hoje: Porque ele será entregue aos gentios e será escarnecido e açoitado e cuspido; e depois de o açoitarem o matarão. Ai! Ai! A liberdade dos cativos é entregue; a glória dos Anjos é escarnecida; o Deus do universo é flagelado; o espelho sem mancha e o brilho da luz eterna é escarrado; a vida dos que morrem é posta à morte. E que mais nos resta a nós, infelizes, senão ir morrer com ele? Tira-nos, ó Senhor Jesus, do lodo profundo com o gancho da tua cruz, para que possamos correr, não digo ao perfume, mas à amargura da tua Paixão. Ó alma minha, arranja este colírio, chora amargamente sobre a morte do Unigênito, sobre a Paixão do Crucificado! O Senhor inocente é entregue por um discípulo, escarnecido por Herodes, flagelado por um Governador, cuspido pela plebe dos judeus, crucificado por uma coorte de soldados. Tratemos brevemente de cada uma destas coisas.
15. É entregue por um Seu discípulo: Que me quereis dar, exclama, e ei vo-lo entregarei? Que horror! Põe-se em leilão um objeto sem preço! Ai! Ai! Deus é entregue, vendido por pouco dinheiro! Que me quereis dar? Ó Judas, pretendes vender o Senhor, o Filho de Deus, como se fora vil escravo, cão morto; e tu procuras saber, não a tua vontade, mas a vontade dos compradores. Que me quereis dar? E que te podem eles dar? Se te dessem Jerusalém, a Galileia e a Samaria, porventura poderiam comprar Jesus? Se te pudessem dar o céu e os anjos, a terra e os homens, o mar e tudo o que nele existe, acaso poderiam comprar o Filho de Deus, no qual existem todos os tesouros escondidos de sabedoria e ciência? Certamente que não.
O Criador pode, acaso, ser comprado ou vendido por uma criatura? E tu dizes: Que me quereis dar e eu vo-lo entregarei? Diz-me em que te prejudicou e que mal te fez, porque tu dizes: e eu vo-lo entregarei? Esqueceste aquela incomparável humildade do Filho de Deus e a sua pobreza voluntária? A sua benignidade e afabilidade? A sua doce pregação e prodigiosos milagres? Aquelas terníssimas lágrimas, derramadas sobre Jerusalém e a morte de Lázaro? E o privilégio de te ter escolhido para Apóstolo e feito seu familiar e amigo? Estas e coisas semelhantes haveriam de te abrandar o coração e provocar à piedade, para que não dissesses: e eu vo-lo entregarei. Oh, quantos são hoje os Judas Iscariotes (que se interpreta mercadoria) , que vendem a verdde em troca de alguma vantagem temporal, entregam o próximo com o ósculo da adulação, e desta forma acabam por se enformar no laço da condenação eterna!
16. Foi ainda escarnecido por Herodes. Daí a frase em S. Lucas: Herodes, com os seus guardas, desprezou-o e fez escárnio dele, mandando-o vestir com uma vestidura branca. O Filho de Deus é desprezado por Herodes, a raposa: – Ide dizer àquela raposa –, e pelos seus guardas, a quem o exército dos anjos proclama com voz incansável: Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus dos exércitos; a quem, como diz Daniel, servem milhares de milhares e assistem dez centenas de milhares. E fez escárnio dele, mandando-o vestir com uma vestidura branca. O Pai vestiu o seu Filho Jesus com uma vestidura branca, isto é, de carne limpa de toda a mancha do pecado, tomada duma Virgem Imaculada. Deis Pai glorificou o Filho desprezado por Herodes. O Pai vestiu-o com uma vestidura branca e Herodes fez escárnio dele assim vestido. Infelizmente, o mesmo se passa em nossos dias! Herodes interpreta-se glória da pele e significa o hipócrita, que se gloria numa vida exterior, como em pele, quanto toda a glória da filha, isto é, da alma, do Rei celeste está no interior. Ele despreza e escarnece Jesus: despreza-o aquele que prega o Crucificado e não traz os estigmas do Crucificado; escarnece-o aquele que se esconde sob a glória da pele ou brilho do vestido, a fim de poder enganar os fiéis, membros de Cristo. A flauta executa uma ária encantadora enquanto o passarinheiro apanha a ave. Quantos hoje se deixam apanhar pela glória da pele herodiana!
17. Foi ainda flagelado por Pôncio Pilatos. Daí o dizer-se em S. João: Então Pilatos prendeu Jesus e flagelou-o. Escreve Isaías: Quando passar o flagelo da inundação, ele vos espezinhará; no momento em que ele for passando, vos arrebatará. Para que aquele flagelo, pelo qual se entende a morte eterna ou o poder do diabo, não nos espezinhasse, o Senhor de todas as coisas, o Filho de Deus, foi atado à coluna como um bandido e flagelado de maneira tão atroz que o sangue manava de toda a parte.
Ó mansidão da piedade divina! Ó paciência da benignidade paterna! Ó profundo e imperscrutável mistério do eterno desígnio! Vias, Pai, o teu Unigênito, igual a ti, ser ligado à coluna como um bandido e flagelado como um homicida; e como te pudeste conter? Nós te agradecemos, Pai santo, por termos sido libertados das cadeias do pecado e dos flagelos do diabo por meio das suas próprias cadeias e flagelos. Mas, infelizmente, Pôncio Pilatos de novo flagela a Jesus Cristo. Pôncio interpreta-se o que se afasta, Pilatos o que trabalha com o martelo ou o que esmaga com a boca; significa aquele que se afasta do bom propósito e aquele que depois da promessa volta ao vômito. Este, com a sua boca, blasfema e com o martelo da língua fere e flagela a Cristo nos seus membros. Tendo saído, pois, com Satanás, de diante do Senhor, murmura da Ordem, chama a este soberbo, acusa aquele de guloso, e para que ele mesmo pareça inocente, julga os outros culpados, a fim de, encoberto pela ignomínia de muitos, conseguir paliar a própria iniqüidade.
18. Foi ainda manchado com os escarros dos judeus. Então, diz S. Mateus , cuspiram-lhe no rosto e feriram-no a punhadas; e outros deram-lhe bofetadas no rosto. Ó Pai, cabeça do teu Filho Jesus, que faz tremer os Arcanjos, recebe golpes de cana; a face, para a qual os Anjos desejam olhar, conspurcam-na os judeus com escarros, ferem-na a punhadas, arrancam-lhe a barba, esbofeteiam-na, puxam-lhe os cabelos. E tu, ó clementíssimo, calas-te e dissimulas e preferes que Um, o teu Único, seja assim cuspido e esbofeteado, antes que toda a nação pereça, Louvor e glória te sejam dados, porque dos escarros, das punhadas e das bofetadas que o teu Filho Jesus recebeu, nos preparaste uma teriaga para expulsar o veneno da nossa alma.
Por outras palavras, a face de Jesus Cristo são os prelados da Igreja, através dos quais conhecemos a Deus como se fora pela face. Nesta face cospem os pérfidos judeus, isto é, os súditos perversos, que detraem e maldizem dos seus prelados, atitude proibida pelo Senhor ao dizer: Não amaldiçoes o príncipe do teu povo.
19. Igualmente foi crucificado pelos soldados. Os soldados, diz S. João , depois de o terem crucificado, tomaram os seus vestidos, etc. E Jeremias: Ó vós todos os que passais pelo caminho, parai, atendei e vede se há dor semelhante à minha dor! Os discípulos fogem, os conhecidos e os amigos afastam-se, Pedro nega, a Sinagoga coroa de espinhos, os soldados crucificam; os judeus zombeteiros blasfemam, dão a beber fel e vinagre. E que dor pode igualar a minha dor? Porque as suas mãos, diz a Esposa nos Cânticos, feitas ao torno, de ouro e cheias de jacinto, foram traspassadas por cravos. Os pés, a que o mar se mostrou como solo resistente, foram pregados à Cruz. A face, que brilha como o sol quando está na plenitude, transformou-se em palidez mortal. Os olhos amados, para os quais não há criatura alguma invisível, estão fechados pelo sono da morte. E que dor poderá igualar a minha dor? No meio de tudo isto, só o Pai prestou auxílio. Nas suas mãos encomendou o espírito, dizendo: Pai, nas tuas mãos encomendo o meu espírito. E ao dizer isto, inclinada a cabeça – Ele noutra parte disse não ter onde recliná-la - expirou.
Mas ai! ai! De novo todo o corpo místico de Cristo, a Igreja é crucificado e posto à morte. Nele, uns são cabeça, outros mãos, outros pés, outros corpo. A cabeça são os contemplativos; as mãos, os ativos; os pés, os pregadores santos; o corpo, todos os verdadeiros cristãos. Todos os dias os soldados, isto é, os demônios, crucificam o corpo inteiro de Cristo com as suas sugestões, como se foram cravos. Os judeus, os pagãos, os hereges blasfemam, dão-lhe a beber o fel e o vinagre da dor e da perseguição. E não há que admirar, porque todos os que querem viver piamente em Cristo, padecem perseguição.
Com razão se diz portanto: Será entregue, escarnecido, flagelado, cuspido e crucificado. E destas cinco palavras, como de cinco preciosíssimas ervas, arranja um colírio, ó anjo de Laodicéia, e unge os olhos da tua alma, a fim de recobrares a luz e poderes dizer: Olha, a tua fé te salvou.
Roguemos, pois, e instantemente, ó caríssimos, e de espírito devoto, peçamos ao Senhor Jesus Cristo, que restituiu a vista ao cego de nascença, a Tobias e ao anjo de Laodicéia, se digne iluminar os olhos da nossa alma com a fé da sua Encarnação, com o fel e o colírio da sua Paixão, para que nos esplendores dos santos, na claridade dos anjos, mereçamos ver o mesmo Filho de Deus, luz de luz. Auxilie-nos ele mesmo, que vive e reina com o Pai e o Espírito Santo por séculos de séculos. Assim seja.
Fonte: SANTO ANTÔNIO DE LISBOA. Obras Completas. Sermões Dominicais e Festivos (Vol. I)
Introdução, tradução e notas por Henrique Pinto Rema.
Lello e Irmão Editores, Porto, 1987; págs 55-77.