Category: Crise da Igreja
Pe. Philippe Toulza, FSSPX
Como explicar o declínio da evangelização na Europa? A rigor, a resposta a essa pergunta é que qualquer decréscimo no Cristianismo tem como sua causa, ao menos na porção adulta que afeta, uma falta de cooperação com a ação de Deus. De fato, a graça nunca falta; se a evangelização não se consuma, então isso se dá porque o homem, a quem ela está destinada, apresentou um obstáculo a ela. A descristianização ocorre quando, em um grupo humano, uma proporção crescente de almas não mais adere à fé ou, embora se mantendo católica, negligencia seu progresso em direção a Deus ou mesmo abandona a fé (ou a vida católica). Durante o iluminismo, o filósofo Julien de la Mettrie (1709-1751) foi um desses casos; ele nasceu em uma família católica na Bretanha, e seu pai achava que ele poderia ser um Padre. Ele preferiu dedicar-se ao estudo da medicina, o que o levou ao materialismo, ao ateísmo e ao libertinismo; ele espalhou essas convicções em seus escritos e entrou para a história como um exemplo lamentável de secularização. Aqueles responsáveis pela descristianização são, portanto, homens como ele e outros que rejeitam, em maior ou menor grau, para si mesmos ou para aqueles sob seus auspícios conforme o caso, as exigências do Reinado de Cristo.
Essa explicação põe a culpa em várias portas de entrada e, portanto, não é muito específica. Por essa razão, muitos preferem explicar essa descristianização não pelas suas verdadeiras causas, que devem ser buscadas nas almas, mas por aquilo que incita as almas a se afastarem de Cristo. Algumas dessas causas começaram a agir em Pentecostes: o demônio e o mundo. Outras causas estão mais intimamente conectadas a circunstâncias específicas, e são essas causas que nos interessam: quais delas levaram à secularização da Europa?
O pensamento moderno
Uma realidade tão complexa quanto a descristianização e realizada em um continente inteiro ao longo de vários séculos, necessariamente, é resultado de diversas causas: a perda das raízes [de um povo] devido à industrialização, a subversão das sociedades intelectuais, o apoio eclesiástico à escravidão, o avanço do hedonismo, etc. E alguns fatores trabalharam no sentido de promover outros fatores. Porém, o consenso geral é que a principal causa da descristianização é a modernidade. A começar com o Renascimento, a Europa pensou que estava redescobrindo a grandeza da natureza humana que o teocentrismo medieval, supostamente, havia escondido. Havia dúvida quanto a se a raça humana realmente tinha o pecado original e se o homem realmente precisava bater no próprio peito. Então, com o ímpeto da reforma protestante, toda autoridade religiosa parecia perigosa à liberdade; seguindo Rousseau e, após, Kant, a Europa divinizou a autonomia do homem. Assim como Descartes, no Século XVII, havia recusado argumentos que apelassem à autoridade na Filosofia, os pensadores modernos questionaram o dogma; eles não tinham mais a fé da mãe de Villon. No fim, levantes políticos como aqueles de 1789 desafiaram as instituições. Pedia-se liberdade de expressão do pensamento. A aliança entre o trono e o altar era denunciada. Padres eram suspeitos de serem gananciosos e o jugo da moralidade foi jogado fora; o ódio de Voltaire se espalhava. A diversidade religiosa, mesmo aquela entre católicos e protestantes, tornou-se um pretexto para rejeitar a autoridade dos Padres; havia tantas religiões na terra… o fato do Catolicismo ser a religião de nossos pais bastava para torná-lo mais crível que as outras?
Os direitos humanos eram opostos à “intolerância” do passado, a razão à fé, a independência à lei. Essas ideias modernas encorajavam as almas e as instituições a se afastarem da religião tradicional. O resultado é que, hoje, como Danièle Hervieu-Léger escreve, “o Catolicismo, que era a matriz social, política e cultural do mundo ocidental, hoje, até mesmo nas áreas onde ele desenvolve seu poder civilizatório, é cada vez mais ostracizado às margens da vida social. É apenas uma questão privada de um número cada vez menor de indivíduos; ele não mais molda profundamente as condutas e as consciências”
A modernidade não é o único problema; a descristianização também tem sido atribuída ao progresso científico e tecnológico. Isso tem fundamento? É verdade que, nos Séculos XVI e XVII, o conhecimento humano da natureza progrediu; muitas descobertas foram feitas na astronomia, na mecânica e na geografia; os homens pararam de atribuir a seres espirituais os fenômenos que, agora, a ciência era capaz de explicar. Atenágoras e São Tomás haviam, por exemplo, atribuído o movimento das estrelas à ação dos anjos, mas, agora, a gravitação universal explicava esse movimento e parecia desacreditar a Teologia. Ao mesmo tempo, a imprensa, instrumentos ópticos e, mais tarde, o motor a vapor aumentaram o domínio humano sobre a natureza. As condições de vida melhoraram, o que colocou em parênteses a esperança na vida eterna. A ciência médica, em breve, seria capaz de proteger os homens da praga; eles realmente precisavam rezar? Primeiro os meios de transporte e, depois, as comunicações tornaram-se mais rápidos e levaram a contatos com outras civilizações, que viam nossa religião de uma perspectiva diferente. Em suma, o progresso científico e tecnológico não apenas estavam em conformidade com o pensamento moderno, eles também o ajudaram a florescer. Apesar disso, eles não eram mais que uma oportunidade favorável à descristianização, e não sua verdadeira causa; pois a ciência, em si mesma, não se opõe à religião. Além disso, ainda que o pensamento moderno tivesse sido impedido de florescer por alguma razão, o progresso científico e tecnológico ainda teria sido realizado, assim como aconteceu na Idade Média cristã. A descristianização da Europa não teve outra causa principal senão o crescimento da modernidade.
Qual foi a atitude da Igreja diante dele? Primeiramente, ela o deplorou. O edifício da Europa cristã estava rachando, suas paredes estavam desabando, ela ameaçava ruir; para o Corpo Místico de Cristo, era um golpe ao panorama da fé sobrenatural. O destino de São Thomas More foi emblemático desse tempo. Chanceler do Rei da Inglaterra, ele rejeitou a nova lei promulgada pela Coroa que separava o país da unidade da Igreja. Por isso, ele foi aprisionado na Torre de Londres até seu julgamento; terminou sendo decapitado, assim como Cosme, Damião e Cecília séculos antes. Em 1535, durante essas provações, ele escreveu um livro no qual contemplava A Tristeza de Cristo no Jardim das Oliveiras. Suas meditações também expressam sua própria tristeza diante da morte. Pode-se ver, nelas, também, a tristeza da Igreja face à descristianização da Europa, uma descristianização na qual o cisma que se formava do outro lado do Canal era um passo que levaria a Inglaterra ao anglicanismo. Mas a Igreja não se limitou a deplorar a perda de influência. Ela reagiu, e a história de sua ação compõe-se de duas grandes fases. Da reforma até o Vaticano II, a Igreja se opôs à modernidade. Após o Concílio, ela escolheu uma nova atitude. Passemos a analisar essas duas fases.
Oposição inicial
Até metade do Século XX, a apreensão da Igreja face à secularização se expressava, acima de tudo, nos documentos do Magistério. Eles revelam que, entre 1517 e 1965, o julgamento da Santa Sé sobre a modernidade era severo. Do Século XIX em diante, a maioria desses documentos eram encíclicas. Elas todas se baseiam numa arquitetura razoavelmente semelhante, da qual a Quanta Cura de Pio IX é um bom exemplo. Nesse texto, escrito em 1864, o Papa descreve o nascimento de uma nova ideia sobre o papel da religião na sociedade; ele deplorava o naturalismo dessa ideia e respondeu a ela com os ensinamentos tradicionais sobre os direitos públicos da Igreja. Pio IX baseava sua encíclica em dois pressupostos:
1. A secularização vem do erro e do mal. Quanta Cura estigmatizava as “calúnias dos hereges”, os “livros venenosos”, as “doutrinas ímpas”, as “iníquas maquinações dos malvados” e as “monstruosas opiniões”. O que levou Pio IX a ser tão severo foi o fato de que, 16 anos antes, forças revolucionárias o haviam despojado de uma parte dos Estados Papais. Em Novembro de 1848, o chefe de governo da Santa Sé, Pellegrino Rossi, até mesmo foi assassinado por rebeldes quando o Palácio do Quirinal foi cercado pelos seguidores de Giuseppe Mazzini. O Papa teve de fugir à noite. Pio IX sentiu a revolução na própria pele.
2. A oposição da Igreja à modernidade é justa, e os meios usados nessa oposição sempre foram prudentes. Na visão de Pio IX, seus predecessores “nada cuidaram tanto como descobrir e condenar […] todas as heresias e erros” com “apostólica fortaleza”, e ele desejava seguir “os passos ilustres de Nossos Predecessores”. Nem Pio IX, nem os outros pontífices se arrependeram da oposição da Igreja à modernidade. Eles convidavam os Bispos a rezar, a serem cautelosos na escolha dos candidatos ao sacerdócio, a pregar a verdade ainda mais, a refutar os erros, a recuperar as almas; eles proibiram publicações más e impuseram sanção após sanção. Mais tarde, Leão XIII optaria por um tom menos virulento em seus ensinamentos. Nenhum Papa agiu exatamente da mesma maneira que os outros, mas todos eles eram unânimes nesses dois pressupostos.
Alguns podem alegar que houve tréguas nesse confronto entre a Igreja e a modernidade. Por exemplo, Leão XIII pediu aos católicos franceses que apoiassem a República; Pio XI condenou a Action Française; Pio XII deu discursos de rádio modernos; outras concessões podem ser mencionadas também… Essas observações são verdadeiras; apesar disso, de Leão X a Pio XII, a conduta da Igreja, de modo geral, foi constante.
A grande tormenta
No começo do pontificado de João XXIII, essa descristianização ainda era causa de preocupação. Dom Marcel Lefebvre adentrou o anfiteatro conciliar em 1962 indagando-se sobre como a contra-atacar. Pois o seu tempo como Bispo em Tulle havia aberto os olhos do ex-missionário na África para a realidade da Europa: seminários vazios, clero desanimado, igrejas quase sem fiéis. A perseverança da juventude era causa especial de preocupação para os padres paroquianos. Já em 1938, François Mauriac havia escrito: “A primeira comunhão de uma criança é o sinal oficial e reconhecido de que ela vai abandonar Cristo e a Igreja”
O que tinha de ser feito? Essa questão preocupou os padres do Vaticano II, e um texto sobre as relações da Igreja com o mundo foi preparado. Ele levou à constituição Gaudium et Spes: nela, o Concílio promulgou um ponto de virada na conduta da Igreja. De acordo com certos Padres Conciliares, a oposição entre a Igreja e o mundo não apenas não havia solucionado o distanciamento entre os homens e a religião, mas havia aumentado ainda mais essa realidade. A Igreja havia perdido o apoio do poder secular, e, agora, ela precisava encontrar uma nova forma de se equilibrar; ela havia perdido a confiança das pessoas e precisava tornar-se mais atraente. Em suma, a Igreja precisava adaptar-se à situação. Bento XVI fala sobre essa ação: “O Catolicismo, que havia construído e adornado o mundo ocidental, parecia, cada vez mais, perder sua força. Ele parecia esgotado, e o futuro parecia estar destinado a ser governado por outras forças espirituais. Essa sensação de perda do presente por parte do Catolicismo e a tarefa que decorria dela foi bem expressada pelo termo aggionarmento. O Cristianismo precisava estar no presente, para ser capaz de formar o futuro”. Os Papas do Concílio delinearam, em essência, o caminho a ser seguido. No discurso inaugural de 1962, João XXIII insistiu que o passado não havia sido tão maravilhoso quanto eles haviam pensado, nem os tempos presentes tão ruins quanto eles haviam considerado, paradoxalmente unindo o conhecimento da secularização com um otimismo oculto; ele concluiu com a promessa de que, dali em diante, a Igreja seria mais misericordiosa. No discurso de encerramento de 1965, Paulo VI louvou o que ele acreditava que a Igreja tinha em comum com o humanismo contemporâneo: o culto do homem. Esses discursos, em conjunto com os textos do Concílio, definiram a nova atitude. Os dois pressupostos anteriores foram abandonados e substituídos por dois pressupostos, estes contrários:
1. Nem tudo na modernidade era falso ou mau. Muitas das aspirações dos homens eram justas. A severidade do julgamento da Igreja sobre o mundo foi substituída por um otimismo benevolente para obter uma reconciliação.
2. Na oposição histórica da Igreja ao mundo moderno, certas posturas haviam sido contrárias ao Evangelho e demandavam arrependimento.
Baseada nesses dois pressupostos, a nova postura da Igreja viria a afetar os três poderes eclesiásticos:
1. O Magistério: ele deveria denunciar menos os erros e enfatizar mais os elementos convergentes do Catolicismo com as culturas nas quais ele era forçado a viver; o primeiro desses elementos era a convicção de que o homem é bom. O diálogo entre religiões tornou-se uma palavra de ordem do Magistério. Abertura ao mundo.
2. Os sacramentos: decidiu-se que os ritos seriam reformados para os tornar mais aceitáveis aos nossos tempos, menos austeros e mais populares. A fronteira clara entre o profano e o sagrado foi questionada.
3. As leis da Igreja: elas se tornaram menos numerosas, menos repressivas à natureza humana, e as autoridades se mostrariam, dali em diante, mais flexíveis no controle da fidelidade a essas leis.
Nem tudo foi definido no Concílio, mas tudo foi expressado ou experimentado em decorrência dele. Parte das atividades paroquiais estaria, dali em diante, direcionada à criação de um ´mundo mais justo´. Juntamente com outras religiões e os governos, a Igreja tinha a intenção de combater a desigualdade econômica, trabalhar pela paz e promover os direitos humanos. A Teologia do Papa Wojtyla deu a esses objetivos uma densidade intelectual. Enquanto regimes totalitários causavam grandes desgraças a várias nações, João Paulo II explicava que a pessoa humana era o alfa e o ômega do governo. Seu personalismo foi visto como uma maneira de escapar do coletivismo.
O fim de Cristo Rei
Como sinal dessa amizade com a modernidade, o conceito de Cristandade foi abandonado. Essa decisão não foi uma mera coincidência. De fato, a aliança entre o altar e o trono havia sido uma força inestimável na oposição às ideias modernas, mas essas ideias não eram mais demonizadas. E o Catolicismo, enquanto religião do Estado, não era mais conducente à liberdade e soberania do povo.
Cristo, portanto, foi destronado. Até o começo do Século XX, a missão recebida d´Ele aplicava-se ao homem nas três dimensões que Deus lhe havia dado na criação: como indivíduo, como membro de uma família e como um cidadão. Os Padres liberais haviam negado a terceira dimensão. Eles proclamaram a liberdade religiosa (Dignitatis Humanae); o Vaticano II não foi além disso, ele não chegou a apoiar a neutralidade religiosa do Estado. Mas o Papa e os Bispos encerraram o trabalho depois dele. Eles assentiram à descristianização dos governos que já havia sido imposta à Igreja aqui e ali. Ela errou -- alegaram eles -- ao se envolver na política. Teodósio foi julgado e condenado, digamos assim. O historiador Jean Delumeau chegou a dizer que a Cristandade havia sido maléfica à fé, pois a religião de nossos ancestrais era frágil, e sua fidelidade aos mandamentos, rara! A Cristandade havia fracassado; na verdade, ela era responsável por esse fracasso: “A presente descristianização é, em grande parte, o preço a se pagar por aquela enorme aberração que durou um milênio e meio”
Delumeau estava, apenas, seguindo o rumo indicado pelas autoridades da Igreja. Esse novo rumo era como um tapa na cara dado por Paulo VI em Pio IX e seus predecessores. Pois, até 1965, se a religião causava alguma oposição, era uma oposição entre a Igreja e o mundo. Mas, com 1965, uma nova oposição nasceu, uma oposição entre aqueles que aderem ao passado da Igreja – e Dom Lefebvre estava entre eles – e aqueles que não mais o fazem.
(The Angelus, Set-Out 2020. Tradução: Permanência)
Poucos católicos conhecem a Instrução Permanente da Alta Venda, um documento secreto redigido no início do século XIX no qual se descreve um plano de subversão da Igreja Católica. A Alta Venda foi a mais importante loja dos Carbonários, uma sociedade secreta italiana ligada à Maçonaria e que, juntamente com ela, foi condenada pela Igreja Católica. Em seu livro Freemasonry and the Anti-Christian Movement (Maçonaria e o Movimento Anticristão), o Padre Cahill, S.J. afirma que a Alta Venda era “considerada o principal centro de comando da Maçonaria Européia” . Os Carbonários tiveram sua principal atuação na Itália e na França.
Em seu livro Athanasius and the Church of Our Time (Atanásio e a Igreja do Nosso Tempo), Mons. Rudolf Graber cita um maçom que teria declarado que “o objetivo [da Maçonaria] não é mais destruir a Igreja, mas utilizá-la, infiltrando-se nela” . Em outras palavras, como a Maçonaria não pode destruir completamente a Igreja de Cristo, planeja não somente erradicar a influência do Catolicismo na sociedade, como também utilizar a estrutura da Igreja como um instrumento de “renovação”, “progresso” e “iluminação” para promover muitos de seus próprios princípios e objetivos.
Descrição geral
A estratégia preconizada na Instrução Permanente da Alta Venda é surpreendente em sua audácia e astúcia. Desde o início, o documento aborda um processo que levará décadas a ser concretizado. Aqueles que o redigiram sabiam que não veriam realizado o plano que ali esboçavam. Eles estavam inaugurando uma obra que seria realizada durante gerações sucessivas de iniciados. “Em nossas fileiras, morre o soldado, mas o combate continua.”
A Instrução fez um chamado pela difusão de idéias liberais em toda a sociedade e dentro das instituições da Igreja Católica, de modo que leigos, seminaristas, clérigos e prelados seriam, ao longo dos anos, gradualmente imbuídos de princípios progressistas.
Com o tempo, essa mentalidade estaria de tal modo difundida, que as concepções dos novos padres a serem ordenados, dos bispos a serem consagrados e dos cardeais a serem nomeados estariam em consonância com o pensamento moderno enraizado na Declaração dos Direitos do Homem da Revolução Francesa e em outros “Princípios de 1789” (igualdade religiosa, separação de Igreja e Estado, pluralismo religioso, etc.).
Finalmente, o Papa que seria eleito dentre esses novos religiosos iria liderar a Igreja no caminho da “iluminação” e da “renovação”. Os idealizadores desse plano afirmaram que não tencionavam colocar um maçom na Cátedra de Pedro. Seu objetivo era criar um ambiente que produziria, com o passar do tempo, um Papa e uma hierarquia que já teriam assimilado completamente as idéias do Catolicismo liberal, ao mesmo tempo em que se considerassem católicos fieis.
Esses líderes católicos, então, não se oporiam mais às idéias modernas da Revolução (como havia sido a prática constante dos Papas desde 1789 até 1958 — com a morte do Papa Pio XII —, que condenaram esses princípios liberais), mas, ao contrário, iriam reuni-las dentro da Igreja. O resultado final seria o clero e os leigos católicos marchando sob a bandeira do Iluminismo, acreditando marchar sob a bandeira das chaves apostólicas.
Isso é possível?
Aos que considerem esse plano inverossímil demais — um objetivo que muito dificilmente seria alcançado pelo inimigo — deve-se dizer que tanto o Papa Pio IX como o Papa Leão XIII solicitaram a publicação da Instrução Permanente da Alta Venda, sem dúvida para impedir a ocorrência de tal tragédia.
Entretanto, se se configurasse uma situação tão desastrosa, haveria obviamente três meios inequívocos de reconhecê-la:
- Ela produziria uma perturbação de tal magnitude que o mundo inteiro iria perceber a ocorrência de uma enorme revolução na Igreja Católica, em sintonia com as idéias modernas. Estaria claro para todos que teria havido uma “atualização”.
- Seria introduzida uma nova teologia que estaria em contradição com os ensinamentos anteriores.
- Os próprios maçons anunciariam seu triunfo, acreditando que a Igreja Católica tivesse finalmente compreendido determinados pontos, tais como a igualdade religiosa, o estado laico, o pluralismo e quaisquer outros compromissos alcançados.
A autenticidade dos documentos da Alta Venda
Os papéis secretos da Alta Venda que caíram nas mãos do Papa Gregório XVI abrangem um período que vai de 1820 a 1846. Eles foram publicados, por solicitação do Papa Pio IX, por Cretineau-Joly em sua obra L’Église romaine en face de la Révolution (A Igreja Romana em face da Revolução) .
Com o Breve de aprovação datado de 25 de fevereiro de 1861, dirigido ao autor, o Papa Pio IX garantiu a autenticidade desses documentos, mas não permitiu que ninguém divulgasse os verdadeiros membros da Alta Venda implicados nessa correspondência.
O texto integral da Instrução Permanente da Alta Venda também está contido no livro do Mons. George E. Dillon, Grand Orient Freemasonry Unmasked (A Maçonaria do Grande Oriente Desmascarada). Quando o Papa Leão XIII recebeu uma cópia do livro do Mons. Dillon, ficou tão impressionado que determinou que fosse elaborada e publicada uma versão italiana da obra, às suas expensas .
Na Encíclica Humanum Genus (1884), Leão XIII exortou os líderes católicos a “arrancar a máscara da Maçonaria e deixar que ela seja vista como realmente é” . A publicação desses documentos é um meio de “arrancar a máscara”. E se os Papas solicitaram a publicação dessas cartas, é porque desejavam que todos os católicos fossem informados sobre os planos das sociedades secretas de subverter a Igreja a partir do seu interior — de modo que os católicos ficassem alertas para impedir que tal catástrofe acontecesse.
A Instrução Permanente da Alta Venda
O que se segue não é a Instrução inteira, mas apenas as seções mais pertinentes à nossa discussão. No documento (com grifos nossos), lê-se:
Nosso objetivo final é o de Voltaire e da Revolução Francesa — a destruição final do Catolicismo, e até mesmo da idéia cristã...
O Papa, quem quer que ele seja, jamais virá até as sociedades secretas; as sociedades secretas é que devem dar o primeiro passo em direção à Igreja, com a finalidade de conquistar ambos.
A tarefa que iremos desempenhar não é trabalho de um dia, um mês ou um ano. Ela pode durar vários anos, talvez um século, mas em nossas fileiras o soldado morre, e o combate continua.
Não tencionamos atrair os Papas para a nossa causa, torná-los neófitos dos nossos princípios, propagadores de nossas idéias. Esse seria um sonho ridículo; e se por alguma eventualidade, cardeais ou prelados, por exemplo, por livre e espontânea vontade ou acidentalmente, tiverem acesso a uma parte de nossos segredos, isso não será de forma alguma um incentivo para desejar sua elevação à Cátedra de Pedro. Tal elevação arruinar-nos-ia. Só a ambição já bastaria para levá-los à apostasia, e as exigências do poder forçá-los-iam a nos sacrificar. O que devemos pedir, o que devemos esperar, assim como os Judeus esperam pelo Messias, é um Papa de acordo com nossas necessidades...
Assim nós marcharemos com mais segurança em direção à tomada da Igreja do que através dos panfletos de nossos irmãos na França e até mesmo do ouro da Inglaterra. Vocês querem saber a razão para isso? É que com isso, a fim de despedaçar a grande pedra sobre a qual Deus construiu a Sua Igreja, não precisamos mais do vinagre de Aníbal, ou de pólvora, ou mesmo de nossas armas. Teremos o dedo mínimo do sucessor de Pedro envolvido na conspiração, e para os fins desta cruzada, esse dedo mínimo é tão eficiente quanto todos os Urbanos IIs e todos os São Bernardos da Cristandade.
Não temos dúvidas de que atingiremos o objetivo final de nossos esforços. Mas quando? Mas como? O desconhecido ainda não foi revelado. Não obstante, como nada irá nos desviar de nosso plano, e ao contrário, tudo tende para ele, como se amanhã mesmo o sucesso já viesse a coroar o trabalho apenas esboçado, nós desejamos, nesta instrução, que permanecerá secreta para os meros iniciados, dar aos funcionários encarregados da suprema Venda [Loja] alguns conselhos que eles deverão incutir em todos os irmãos, na forma de instrução ou de um memorando...
Então, para assegurarmos um Papa com as características necessárias, é preciso primeiramente modelar para este Papa uma geração digna do reinado que sonhamos. Deixem os velhos e os de idade madura de lado; procurem os jovens, e se possível, até mesmo as crianças.
...Vocês irão forjar para si mesmos, com baixo custo, uma reputação de bons católicos e genuínos patriotas.
Tal reputação introduzirá nossas doutrinas junto ao clero jovem, bem como profundamente nos monastérios. Em poucos anos, por força dos acontecimentos, esse jovem clero terá ascendido a todas as posições hierárquicas; eles irão formar o conselho soberano, serão chamados a escolher o Pontífice que irá reinar. E este Pontífice, assim como a maioria de seus contemporâneos, estará mais ou menos imbuído com os princípios (revolucionários) italianos e humanitários que nós começaremos a colocar em circulação. É um pequeno grão de mostarda que confiaremos à terra, mas o sol da justiça irá desenvolvê-lo completamente, e vocês verão um dia a rica colheita que será proporcionada por essa pequena semente.
No caminho que estamos traçando para nossos irmãos existem grandes obstáculos a serem conquistados, diversas dificuldades a serem enfrentadas. Eles triunfarão sobre tais dificuldades por sua experiência e clarividência, mas o objetivo é tão esplêndido que é importante lançar todas as velas ao vento para alcançá-lo. Vocês querem revolucionar a Itália? Olhem para o Papa cujo retrato nós acabamos de traçar. Vocês desejam estabelecer o reino dos escolhidos sobre o trono da prostituta da Babilônia? Deixem o clero marchar sob o seu estandarte, acreditando marchar sob a bandeira das chaves apostólicas. Vocês pretendem fazer desaparecer o último vestígio dos tiranos e opressores? Lancem suas armadilhas [redes] como Simão Barjonas; lancem-nas nas sacristias, nos seminários e nos monastérios, em vez de lançá-las no fundo do mar. E se vocês não tiverem pressa, nós lhes prometemos uma pesca ainda mais milagrosa que a dele. O pescador de peixes tornou-se o pescador de homens; vocês semearão amigos em torno da Cátedra Apostólica. Terão assim pregado uma revolução com tiara e pluvial, marchando com a cruz e o estandarte, uma revolução que precisará ser pouco instigada para lançar fogo aos quatro cantos do mundo.
Cabe-nos agora examinar quão bem sucedido foi esse plano.
O Iluminismo, meu amigo, está “soprando no vento”
Durante o século XIX, os princípios liberais do Iluminismo e da Revolução Francesa foram se difundindo cada vez mais na sociedade, em detrimento da Fé e do Estado Católicos. As noções supostamente “mais amáveis e gentis” de pluralismo religioso, indiferentismo religioso, uma democracia que acredita que toda autoridade vem do povo, falsas noções de liberdade, separação de Igreja e Estado, reuniões inter-religiosas e outras novidades estavam se apoderando das mentes da Europa pós-Iluminista, infectando tanto estadistas como eclesiásticos.
Os Papas do século XIX e do início do século XX travaram guerra contra essas tendências perigosas. Com perspicácia e presença de espírito enraizadas em uma descomprometida certeza da Fé, esses Papas não se deixaram enganar. Sabiam que princípios falsos, ainda que pareçam honestos, jamais produzem bons frutos ― e aqui se tratava de princípios sumamente maus, pois decorriam não só da heresia, mas da apostasia.
Tal como generais que reconhecem o dever de manter suas posições a qualquer preço, esses Papas dispararam incessantemente canhões potentes contra os erros do mundo moderno. As Encíclicas eram suas munições, e eles nunca erraram o alvo.
O ataque mais devastador veio na forma do monumental Syllabus dos Erros, de 1864, do Papa Pio IX, e quando a fumaça esvaneceu, os envolvidos na batalha podiam discernir sem erro quais soldados cerravam fileira de qual lado. As linhas demarcatórias estavam claramente traçadas. Nesse grande Syllabus, Pio IX condenou os principais erros do mundo moderno, não porque fossem modernos, mas porque essas novas idéias se baseavam em um naturalismo panteísta e, portanto, eram incompatíveis com a doutrina católica e destrutivas para a sociedade.
Os ensinamentos do Syllabus eram contrários ao Liberalismo, e os princípios do Liberalismo eram contrários ao Syllabus. Isso era reconhecido por todas as partes sem questionamentos. O Padre Denis Fahey referiu-se a esse confronto como Pio IX versus a Deificação Panteísta do Homem. Do lado oposto da trincheira, o maçom francês Ferdinand Buisson declarou: “Uma escola não pode se manter neutra entre o Syllabus e a Declaração dos Direitos do Homem” .
“Católicos Liberais”
Contudo, o século XIX viu surgir uma nova geração de católicos em utópica busca de um acordo entre as partes. Esses homens esquadrinhavam, entre os princípios de 1789, aqueles que acreditavam ser “bons”, e tentaram introduzi-los na Igreja. Muitos clérigos, infectados pelo espírito da época, caíram nesta rede que havia sido “lançada nas sacristias e nos seminários”. Eles ficaram conhecidos como “católicos liberais”. O Papa Pio IX observou que eles eram os piores inimigos da Igreja. Não obstante, seu número aumentou.
O Papa São Pio X e o Modernismo
Esta crise atingiu seu ápice por volta do início do século XX, quando o Liberalismo de 1789, que até então “soprara no vento”, rodopiou e transformou-se no furação do Modernismo. O Padre Vincent Miceli identificou esta heresia, descrevendo a “trindade dos pais” do Modernismo da seguinte forma:
- Seu ancestral religioso é a Reforma Protestante;
- Seu pai filosófico é o Iluminismo;
- Sua linhagem política origina-se na Revolução Francesa.
O Papa São Pio X, que ascendeu ao papado em 1903, reconheceu o Modernismo como a praga mais mortal a ser detida. Afirmou como principal obrigação do Papa garantir a pureza e a integridade da doutrina católica, no qual dever, frisou, ele falharia se nada fizesse.
São Pio X travou guerra com o Modernismo, publicou uma Encíclica (Pascendi) e um Syllabus (Lamentabili) contra ele, instituiu o Juramento Anti-Modernista a ser prestado por todos os padres e professores de teologia, expurgou os seminários e universidades dos modernistas e excomungou os recalcitrantes e impenitentes.
São Pio X efetivamente interrompeu a disseminação do Modernismo na sua época. Relata-se, no entanto, que, cumprimentado por ter suprimido esse grave erro, ele imediatamente respondeu que, apesar de seus esforços, não havia conseguido matar a besta, senão apenas sufocá-la nos subterrâneos. E advertiu que, se os líderes eclesiásticos não fossem vigilantes, ela re-emergiria mais virulenta que nunca.
A Cúria em estado de alerta
Um drama pouco conhecido que se desenrolou durante o reinado do Papa Pio XI demonstra que a corrente subterrânea do pensamento Modernista estava viva e com saúde no período imediatamente posterior a São Pio X.
O Padre Raymond Dulac relata que, no consistório secreto de 23 de maio de 1923, o Papa Pio XI questionou os trinta Cardeais da Cúria sobre a oportunidade de convocação de um concílio ecumênico. Estiveram presentes ilustres prelados, como os cardeais Merry del Val, De Lai, Gasparri, Boggiani e Billot. Os cardeais desaconselharam a convocação do concílio.
O Cardeal Billot advertiu que “a existência de profundas discrepâncias no seio do próprio episcopado não pode ser ocultada... [Elas] correm o risco de dar margem a discussões que se prolongarão indefinidamente.”
Boggiani recordou as teorias modernistas, das quais, segundo ele, uma parte do clero e dos bispos não estava isenta. “Essa mentalidade pode inclinar alguns padres a apresentarem moções, a fim de introduzir métodos incompatíveis com as tradições católicas.”
Billot foi ainda mais preciso. Ele expressava seu receio de ver o concílio “manobrado” pelos “piores inimigos da Igreja, os modernistas, que já estavam se preparando, conforme alguns indícios demonstravam, para levar adiante a revolução na Igreja, um novo 1789” .
Ao desencorajar a idéia de um concílio por tais razões, os cardeais mostraram-se mais aptos a reconhecer os “sinais dos tempos” do que todos os teólogos pós-conciliares reunidos. Contudo, a sua cautela pode ter se baseado em algo mais profundo. Eles podem também ter sido assombrados pelos escritos do infame illuminé, o excomungado Canon Roca (1830-1893), que pregou a revolução e a “reforma” da Igreja e previu uma subversão da Igreja que seria causada por um concílio.
Os delírios revolucionários de Canon Roca
Em seu livro Athanasius and the Church of Our Times (Atanásio e a Igreja do Nosso Tempo), Mons. Graber refere-se à previsão de Canon Roca de uma Igreja nova e iluminada, a qual seria influenciada pelo “socialismo de Jesus e dos Apóstolos” .
Em meados do século XIX, Roca havia previsto: “A nova Igreja, que poderá não ser capaz de manter nada da doutrina escolástica e da forma original da antiga Igreja, receberá, no entanto, consagração e jurisdição canônica de Roma.” Mons. Graber, comentando esta previsão, observou: “Há alguns anos isso era inconcebível, mas hoje...?” .
Canon Roca também previu uma “reforma” litúrgica. Com referência à futura liturgia, ele acreditava “que o culto divino na forma estabelecida pela liturgia, o cerimonial, o ritual e os regulamentos da Igreja Romana passarão brevemente por transformações em um concílio ecumênico, o qual irá restabelecer a simplicidade venerável da era de ouro dos Apóstolos, em consonância com os ditames da consciência e da civilização moderna” .
Ele anteviu que o referido concílio levaria a “um perfeito acordo entre os ideais da civilização moderna e o ideal de Cristo e Seu Evangelho. Isso será a consagração da Nova Ordem Social e o solene batismo da civilização moderna.”
Roca também falou sobre o futuro do Papado: “Há um sacrifício iminente que representa um ato solene de expiação... O Papado cairá; ele morrerá sob o punhal sagrado forjado pelos padres do último concílio. O césar papal é uma hóstia [vítima] coroada para o sacrifício” .
Roca previu com entusiasmo uma “nova religião”, um “novo dogma”, um “novo ritual”, um “novo sacerdócio”. “Ele chama os novos sacerdotes de ‘progressistas’ [sic]; fala sobre a ‘supressão’ da batina e sobre o casamento de padres” .
Ecos arrepiantes de Roca e da Alta Venda são percebidos nas palavras do rosa-cruz Dr. Rudolf Steiner, que declarou em 1910: “Nós precisamos de um concílio e de um Papa para proclamar isso” .
O grande Concílio que nunca aconteceu
Por volta de 1948, ao ser solicitado pelo ferrenhamente ortodoxo Cardeal Ruffini, o Papa Pio XII considerou a possibilidade de convocar um concílio geral e até envolveu-se durante alguns anos nos preparativos necessários. Há indícios de que elementos progressistas em Roma finalmente dissuadiram Pio XII de realizar esse concílio, pois foram detectados sinais inequívocos de que ele estaria em sintonia com a Humani Generis. Como esta grande Encíclica de 1950, o novo concílio iria combater “falsas opiniões que ameaçam minar os fundamentos da doutrina católica” .
Tragicamente, o Papa Pio XII convenceu-se de que estava em idade muito avançada para fazer frente a essa gigantesca tarefa e resignou-se com a idéia de que “isso é tarefa para o meu sucessor” .
Roncalli para “consagrar o Ecumenismo”
Ao longo do pontificado do Papa Pio XII (1939-1958), sob a hábil liderança do Cardeal Ottaviani, o Santo Ofício assegurou um ambiente católico seguro, mantendo os cavalos selvagens do Modernismo firmemente encurralados. Muitos dos atuais teólogos do Modernismo desdenhosamente relatam como eles e seus amigos haviam sido amordaçados durante esse período.
Contudo, nem mesmo Ottaviani podia prever o que estava por acontecer em 1958. Um novo tipo de Papa, “que os progressistas acreditavam estar a favor de sua causa” , iria assumir a cátedra pontifical e forçar um relutante Ottaviani a retirar o ferrolho, abrir o curral e preparar-se para a debandada.
Entretanto, tal estado de coisas já havia sido considerado. Ao receber a notícia da morte de Pio XII, o velho Dom Lambert Beauduin, amigo do Cardeal Roncalli (o futuro João XXIII), confidenciou ao Padre Louis Bouyer: “Se elegerem Roncalli, tudo será salvo; ele seria capaz de convocar um concílio e consagrar o ecumenismo” .
E foi o que aconteceu: o Cardeal Roncalli foi eleito e convocou um concílio que “consagrou” o ecumenismo. A “revolução com tiara e pluvial” estava a caminho.
A Revolução do Papa João
É de conhecimento geral e foi amplamente noticiado que um grupo fechado de teólogos liberais (periti) e bispos dominou o Concílio Vaticano II (1962-1965) com uma agenda destinada a obter uma Igreja fiel à sua imagem, através da implementação de uma “nova teologia”. Críticos e defensores do Vaticano II estão de acordo quanto a este ponto.
Em seu livro Vatican II Revisited (O Concílio Vaticano II Revisitado), Dom Aloysius J. Wycislo (um rapsódico advogado da revolução do Vaticano II) declara com entusiasmo que “teólogos e estudiosos da Bíblia que haviam permanecido em silêncio, sem se manifestar durante anos, emergiram como periti [especialistas em teologia que aconselharam os bispos no Concílio], e seus livros e comentários escritos após o Vaticano II tornaram-se leituras populares” .
Ele observa que “a Encíclica Humani Generis do Papa Pio XII [1950] teve... um efeito devastador sobre a obra de vários teólogos pré-conciliares” , e explica que, “durante a preparação inicial do Concílio, esses teólogos (principalmente franceses, além de alguns alemães), cujas atividades haviam sido restringidas pelo Papa Pio XII, permaneciam em silêncio. O Papa João tacitamente removeu a proibição que atingia alguns dos mais influentes clérigos. Contudo, muitos ainda eram vistos com suspeição por membros do Santo Ofício” .
Dom Wycislo entoa louvores a progressistas triunfantes como Hans Küng, Karl Rahner, John Courtney Murray, Yves Congar, Henri de Lubac, Edward Schillebeeckx e Gregory Baum, reputados suspeitos antes do Concílio, mas que agora eram os luminares da teologia pós-Vaticano II.
Com efeito, aqueles que o Papa Pio XII havia considerado inaptos a percorrer as vias do Catolicismo estavam agora no controle da cidade. E como que para coroar os seus feitos, o Juramento Anti-Modernista foi silenciosamente suprimido pouco depois do encerramento do Concílio. São Pio X acertou sua previsão. A falta de vigilância permitiu que o Modernismo voltasse de modo vingativo.
“Marchando sob um novo estandarte”
Foram travadas incontáveis batalhas no Vaticano II entre os integrantes do Grupo Internacional de Padres (Coetus Internationalis Patrum), que lutaram para manter a Tradição, e o grupo progressista do Reno. Tragicamente, no fim das contas, foi este último, o elemento liberal e modernista, que prevaleceu.
Era óbvio, para qualquer um que tivesse olhos para ver, que o Concílio abria as portas para muitas idéias que antes haviam sido anatematizadas, que iam de encontro aos ensinamentos da Igreja mas que estavam de acordo com o pensamento modernista. Isso não aconteceu acidentalmente. Foi proposital.
Os progressistas no Concílio Vaticano II evitaram condenar os erros dos modernistas. Eles também plantaram deliberadamente ambigüidades nos textos do Concílio, que esperavam explorar após o seu término. Tais ambigüidades foram utilizadas para promover o ecumenismo que havia sido condenado pelo Papa Pio XI, uma liberdade religiosa condenada pelos papas do século XIX e do início do século XX (especialmente o Papa Pio IX), uma nova liturgia em consonância com o ecumenismo que o Arcebispo Bugnini exaltou como “uma importante conquista da Igreja Católica”, uma colegialidade que atinge o cerne da primazia papal e uma “nova atitude diante do mundo” — especialmente em um dos mais radicais documentos do Concílio, Gaudium et Spes.
Como os autores da Instrução Permanente da Alta Venda haviam imaginado, as noções da cultura liberal finalmente conquistaram a adesão de importantes membros da hierarquia católica e se espalharam por toda a Igreja. O resultado disso foi uma crise de fé sem precedentes, a qual continua se agravando. Ao mesmo tempo, incontáveis clérigos que ocupavam posições de destaque, obviamente inebriados pelo “espírito do Vaticano II”, continuaram exaltando as reformas pós-conciliares que permitiram essa calamidade.
Júbilo nas arquibancadas maçônicas
Contudo, não apenas muitos líderes da Igreja, mas também maçons celebraram esses acontecimentos. Eles se regozijaram com o fato de que os católicos haviam finalmente “visto a luz”, pois aparentemente muitos dos seus princípios maçônicos haviam sido sancionados pela Igreja.
Em seu livro Ecumenism Viewed by a Traditional Freemason (O Ecumenismo Visto por um Maçom Tradicional), Yves Marsaudon, do Rito Escocês, exaltou o ecumenismo fomentado durante o Vaticano II. Ele assim se expressou:
Os católicos... não devem esquecer que todos os caminhos levam a Deus. E eles terão de aceitar que essa corajosa idéia do livre-pensamento, que nós podemos realmente chamar de uma revolução, jorrando de nossas lojas maçônicas, espalhou-se prodigiosamente sobre a cúpula de São Pedro.
O espírito de dúvida e revolução pós-Vaticano II obviamente aqueceu o coração do maçom francês Jacques Mitterrand, que, em tom de aprovação, escreveu:
Algo mudou dentro da Igreja, e as respostas do Papa às indagações mais urgentes, tais como o celibato dos padres e o controle de natalidade, são ardorosamente debatidas na própria Igreja; a palavra do Soberano Pontífice é questionada por bispos, padres e fiéis. Para um maçom, um homem que questiona o dogma já é um maçom sem o avental.
Marcel Prelot, um senador da região de Doubs, na França, vai mais adiante e descreve o que aconteceu. De acordo com ele:
Nós havíamos lutado sem sucesso durante um século e meio para que nossas opiniões prevalecessem na Igreja. Finalmente, com o Vaticano II, nós triunfamos. A partir de então, as proposições e os princípios do catolicismo liberal foram definitiva e oficialmente aceitos pela Santa Igreja.
A declaração de Prelot merece um comentário, pois devemos fazer uma distinção entre a Igreja e os homens da Igreja. Apesar das reivindicações dos maçons, é impossível que erros doutrinários sejam “definitiva e oficialmente aceitos pela Santa Igreja” como tais. A Igreja, o Corpo Místico de Cristo, não pode incorrer em erro. Nosso Senhor prometeu que “as portas do Inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16, 18). Mas isso não significa que os homens da Igreja, mesmo aqueles que ocupam as posições mais elevadas, não possam ser infectados com o espírito liberal da época e promover idéias e práticas opostas ao seu Magistério perene.
Uma ruptura com o passado
Aqueles “conservadores” que negam que vários pontos do Vaticano II constituem uma ruptura com a Tradição e com os pronunciamentos do Magistério anterior — pelo menos por ambigüidade, implicações e omissões — não conseguiram ouvir os verdadeiros promotores e ativistas do Concílio, que reconhecem isso descaradamente.
Yves Congar, um dos artesãos da reforma, observou com tranqüila satisfação que “a Igreja havia tido, pacificamente, a sua Revolução [Comunista] de Outubro” .
O mesmo Padre Yves Congar afirmou que a Declaração sobre Liberdade Religiosa do Vaticano II é contrária ao Syllabus do Papa Pio IX. Ele assim se pronunciou sobre o Artigo 2 da Declaração:
Não se pode negar que um texto como esse diz materialmente algo diferente do Syllabus de 1864, e até mesmo o contrário das proposições 15 e 77-79 deste documento.
Finalmente, alguns anos depois, o Cardeal Ratzinger, aparentemente não abalado com essa afirmação, escreveu que considera o texto conciliar Gaudium et Spes como um “contra-Syllabus”. Assim se exprimiu o Cardeal:
Se for desejável fazer um diagnóstico do texto [Gaudium et Spes] como um todo, poderíamos dizer que (juntamente com os textos sobre a liberdade religiosa e as religiões do mundo) trata-se de uma revisão do Syllabus de Pio IX, uma espécie de contra-Syllabus... Contentemo-nos em dizer aqui que o texto é uma espécie de contra-Syllabus, e, como tal, representa, por parte da Igreja, uma tentativa de reconciliação oficial com a nova era inaugurada em 1789.
A nova era inaugurada em 1789 consiste, de fato, na elevação dos “Direitos do Homem” acima dos direitos de Deus.
Na verdade, este comentário do Cardeal Ratzinger é perturbador, especialmente porque proveio do homem que, como chefe da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, está agora encarregado de zelar pela pureza da doutrina católica. Mas podemos também citar um depoimento semelhante do progressista Cardeal Suenens, ele próprio um Padre Conciliar, que falou em termos de “antigos regimes” que chegaram ao fim. As palavras utilizadas por ele para exaltar o Concílio são as mais reveladoras, as mais arrepiantes e as mais contundentes. Suenens declarou que “o Vaticano II é a Revolução Francesa na Igreja” .
A situação dos documentos do Vaticano II
Durante anos, os católicos têm exercido suas atividades baseados na noção equivocada de que devem aceitar o Concílio pastoral, Vaticano II, com a mesma expressão de fé devida aos Concílios dogmáticos. Não é o caso, entretanto.
Os Padres Conciliares referiram-se repetidamente ao Vaticano II como um concílio pastoral, não preocupado em definir a fé, mas em implementá-la.
A afirmação de que o Vaticano II é inferior a um concílio dogmático é ratificada pelo testemunho do Padre Conciliar Thomas Morris, o qual, por sua vontade expressa, não foi revelado senão após a sua morte:
Fiquei aliviado quando fomos informados de que este Concílio não tinha por objetivo definir ou emitir declarações finais sobre doutrina, porque uma declaração sobre a doutrina deve ser mui cuidadosamente formulada, e eu tendia a considerar os documentos do Concílio provisórios e passíveis de reforma.
No encerramento do Vaticano II, os bispos solicitaram ao Secretário-Geral do Concílio, o Arcebispo Pericle Felici, aquilo que os teólogos chamam de “nota teológica” do Concílio, ou seja, o “peso” doutrinário dos ensinamentos do Vaticano II. Felici respondeu assim:
Devemos distinguir, dentre os esquemas e os capítulos, aqueles que foram objeto de definições dogmáticas no passado; pois, no que concerne às declarações com caráter de novidade, devemos ter reservas.
Após o encerramento do Vaticano II, Paulo VI deu sua explicação:
Há aqueles que perguntam que autoridade, que qualificação teológica o Concílio tencionou dar aos seus ensinamentos, sabendo que ele evitou emitir definições dogmáticas solenes investidas da infalibilidade do Magistério Eclesiástico. A resposta é conhecida por todos os que se lembrarem da declaração conciliar de 6 de março de 1964, repetida em 16 de novembro de 1964. Devido ao caráter pastoral do Concílio, ele evitou pronunciar, de modo extraordinário, dogmas com nota de infalibilidade...
Em outras palavras, ao contrário de um Concílio dogmático, o Vaticano II não exige uma adesão incondicional de fé.
As declarações prolixas e ambíguas do Vaticano II não estão em pé de igualdade com os pronunciamentos dogmáticos. Conseqüentemente, as novidades do Vaticano II não são incondicionalmente obrigatórias para os fiéis. Os católicos podem “ter reservas” e mesmo resistir a quaisquer ensinamentos do Concílio que estejam em conflito com o Magistério perene dos séculos.
“Uma Revolução com Tiara e Pluvial”
A revolução pós-Vaticano II possui todas as características necessárias ao cumprimento dos desígnios da Instrução Permanente da Alta Venda, bem como das profecias de Canon Roca:
- O mundo inteiro testemunhou uma profunda mudança dentro da Igreja Católica, em uma escala internacional. Uma mudança que está em sintonia com o mundo moderno.
- Os defensores e detratores do Vaticano II demonstram que determinadas orientações doutrinárias do Concílio constituem uma ruptura com o passado.
- Os próprios maçons se regozijam de que, graças ao Concílio, as suas idéias “se difundiram prodigiosamente sobre a cúpula de São Pedro”.
A Paixão da Igreja
Assim, a paixão que a nossa Santa Igreja está sofrendo no presente momento não é um grande mistério. Ao ignorarem de modo imprudente os papas do passado, nossos atuais líderes da Igreja erigiram uma estrutura que está desabando sobre si mesma. Embora o Papa Paulo VI tenha lamentado que “a Igreja está em um estado de autodemolição”, ele, como o atual Pontífice, insistiu que o desastroso aggiornamento, responsável por essa autodemolição, continuasse a pleno vapor.
Diante de tal “desorientação diabólica” (termo que a irmã Lúcia, de Fátima, utilizou para descrever a atual mentalidade de muitos integrantes da hierarquia católica), a única resposta para todos os católicos envolvidos é:
- rezar muito, especialmente o Rosário;
- aprender e viver a doutrina tradicional e a moral da Igreja Católica tal como constam nos escritos anteriores ao Vaticano II;
- aderir à Missa Tridentina, na qual se encontram a Fé e a devoção Católicas em sua plenitude, não afetadas pelo ecumenismo de hoje;
- resistir com todas as forças às tendências liberais pós-Vaticano II, que causam estragos ao Corpo Místico de Cristo;
- instruir a outros caridosamente nas Tradições da Fé e adverti-los sobre os erros dos tempos;
- rezar para que um retorno contagiante à sanidade possa atingir um número suficiente de membros da hierarquia;
- depositar grande confiança em Nossa Senhora e em seu poder de reorientar a nossa Igreja de volta à Tradição Católica;
- nunca ceder.
“Somente Ela pode nos salvar”
Tendo em vista que a atual batalha é essencialmente sobrenatural, não devemos ignorar a ajuda sobrenatural que nos foi dada em Fátima, em 1917. Todos os católicos envolvidos com a causa deveriam cumprir fielmente os pedidos de Nossa Senhora de Fátima, e sobretudo rezar e trabalhar para a consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria. Essa será a chave para a destruição dos “erros da Rússia”, não apenas na Rússia, mas no mundo inteiro, incluindo a Igreja. Pois no prometido Triunfo do Coração Imaculado, os agentes impenitentes do Liberalismo, do Modernismo e do Naturalismo estarão todos reunidos em um grande encontro ecumênico com o Príncipe deste Mundo, para compartilhar o mesmo golpe de calcanhar com que a Rainha do Céu esmagará suas cabeças.
Apêndice I
O Ódio da Maçonaria à Igreja Católica
O maior impedimento para a discussão de tópicos tais como a Alta Venda é que muitas pessoas, incluindo os católicos, recusam-se a acreditar que a Maçonaria realmente odeie a Igreja a ponto de travar uma campanha inflexível e sofisticada contra ela.
Contudo, evidências do ódio da Maçonaria ao Catolicismo e seu objetivo declarado de destruir a Igreja são confirmadas em documentos católicos e maçônicos.
Durante a Revolução Francesa, o conhecido grito de guerra da Maçonaria era “derrubar Trono e Altar” — ou seja, monarquias e o Catolicismo. No fim do século XVIII, o Padre Augustin Barruel escreveu que “o objetivo de sua conspiração é derrubar todos os altares em que Cristo é adorado” .
Um dos exemplos mais dramáticos do ódio da Maçonaria a Cristo e Sua Igreja encontra-se na Declaração do Congresso Internacional de Genebra, de 1868, e é mencionado novamente no excelente livro do Mons. Dillon, Grand Orient Freemasonry Unmasked (A Maçonaria do Grande Oriente Desmascarada). Um trecho da declaração produzida durante o Congresso diz o seguinte:
Abaixo Deus e Cristo! Abaixo os déspotas do Céu e da Terra. Morte aos padres! Esse é o lema de nossa grande cruzada.
Os Pontífices contra os Pagãos
Os grandes e vigilantes Papas do fim do século XVIII, do século XIX e da primeira metade do século XX estavam constantemente soando o alarme contra as sociedades secretas, seus princípios liberais e seu ódio ao Cristianismo.
Em seu livro Freemasonry and the Anti-Christian Movement (A Maçonaria e o Movimento Anticristão), o Padre E. Cahill, S.J., escreve:
As condenações papais à Maçonaria são tão severas e demolidoras em seu teor que não encontram nada similar na história da legislação da Igreja. Durante os últimos dois séculos, a Maçonaria foi expressamente anatematizada por no mínimo dez papas diferentes e condenada direta ou indiretamente por quase todos os pontífices que se sentaram na Cátedra de São Pedro... Os papas acusam os maçons de atividades criminosas, “obscenidades”, culto a Satanás (acusação sugerida em alguns documentos papais), infâmia, blasfêmia, sacrilégio e das mais abomináveis heresias de tempos antigos, da prática sistemática de assassinato, de traição contra o Estado, de princípios anárquicos e revolucionários, de favorecer e promover o que agora é chamado de Bolchevismo [Comunismo russo], de corromper e perverter as mentes dos jovens, de hipocrisia e mentira vergonhosas, por meio das quais os maçons procuram ocultar sua maldade sob um manto de probidade e respeitabilidade, quando na realidade são a própria “Sinagoga de Satanás”, cujo objetivo direto é a destruição completa do Cristianismo.
Papa Leão XIII
De todas as condenações papais à Maçonaria, a Encíclica Humanum Genus, de 1884, do Papa Leão XIII possui um vigor e um brilho sem paralelo. Não se encontra em nenhum outro pronunciamento magisterial uma explicação e condenação mais completa e concisa dos erros da Maçonaria. Nessa Encíclica, o Papa repetidamente enfatiza que o objetivo da Maçonaria é nada menos do que a completa destruição da Igreja e do Cristianismo. Ele assim se expressa:
Sem fazer mais segredo de seu propósito, eles agora se erguem audaciosamente contra o próprio Deus. Planejam a destruição da Santa Igreja pública e abertamente, e isso com o propósito manifesto de privar completamente as nações da Cristandade, se possível fosse, das bênçãos que obtivemos através de Jesus Cristo, nosso Salvador.
O Papa Leão explica que, tendo em vista que a Maçonaria se baseia no Naturalismo, ela é anticristã em sua essência. O Naturalismo afirma que a natureza e a razão humanas são supremas, e que não existem verdades reveladas por Deus nas quais os homens sejam obrigados a acreditar.
Os naturalistas negam a autoridade da Igreja Católica como a voz de Deus sobre a terra, e, conseqüentemente, “é contra a Igreja que a raiva e o ataque dos inimigos [maçons] são principalmente dirigidos” . O Papa Leão XIII refere-se ao testemunho de “homens bem informados” tanto no passado, como mais recentemente, os quais “declararam ser verdade que o principal desejo dos maçons é atacar a Igreja com uma hostilidade irreconciliável, e que não descansarão enquanto não tiverem estabelecido seus objetivos” .
Ele também destaca que os maçons consideram lícito “atacar impunemente os próprios fundamentos da Religião Católica, por meio do discurso, de escritos e do ensino” .
O Papa Leão explicou que um de seus meios mais poderosos de lutar contra a Igreja é a promoção do indiferentismo religioso — a idéia de que na verdade não importa a religião de cada um. Essa idéia solapa todas as religiões, mas particularmente o Catolicismo, pois somente a Igreja Católica ensina com firmeza (e demonstra de modo vigoroso) que ela é a Única Verdadeira Religião estabelecida por Deus.
Os próprios maçons se jactam de ter sido a força motriz por trás da “Declaração dos Direitos do Homem” e da Revolução Francesa. Sua intenção é privar a civilização de seus fundamentos cristãos e apoiá-la sobre o Naturalismo, no qual Deus não tem lugar. Foi a esse objetivo corrupto que o Papa Leão XIII se referiu quando afirmou: “Desejar destruir a religião e a Igreja que Deus estabeleceu, e cuja perpetuidade Ele assegura por Sua proteção, e trazer de volta após um lapso de dezoito séculos os modos e costumes dos pagãos, é sinal de loucura e audaciosa impiedade” .
Portanto, aqueles que se recusam a acreditar que a Maçonaria está trabalhando pela destruição da Igreja o fazem simplesmente porque não querem acreditar na verdade. Os Soberanos Pontífices e os maçons fornecem abundantes testemunhos do ódio maçônico e da guerra declarada à Igreja Católica.
[Nota da Permanência: Publicamos a seguir a resposta que o Arcebispo Carlo Maria Viganò escreveu ao jornalista Stephen Kokx, do jornal americano Catholic Family News. ]
Caro Sr. Kokx,
Li com grande interesse seu artigo “Perguntas a Viganò: Sua Excelência está correto sobre o Vaticano II, mas o que ele pensa que os católicos devem fazer agora”, que foi publicado pelo Catholic Family News no dia 22 de agosto. Estou satisfeito de responder às suas perguntas, que tratam de matérias muito importantes para os fiéis.
Você pergunta: “O que ‘separar-se’ da Igreja conciliar seria na visão do Arcebispo Viganò?” Vou responder-lhe com outra pergunta: O que significa separar-se da Igreja Católica de acordo com os apoiadores do Concílio? Apesar de ser evidente que nenhuma compactuação é possível com aqueles que propõem as doutrinas adulteradas do manifesto ideológico conciliar, devemos notar que o simples fato de ser batizado e ser membros vivos da Igreja não implica aderência ao time conciliar; isso é verdade, acima de tudo, para os fiéis e também para os clérigos seculares e regulares que, por várias razões, consideram-se, sinceramente, católicos e reconhecem a Hierarquia.
Ao invés, o que precisa ser esclarecido é a posição daqueles que, embora se declarando católicos, abraçam as doutrinas heterodoxas que se espalharam ao longo da décadas, com ciência de que elas representam uma ruptura com o Magistério precedente. Nesse caso, é lícito duvidar da sua aderência real à Igreja Católica, na qual eles, porém, detêm posições oficiais que lhes conferem autoridade. É uma autoridade ilicitamente exercida, se o seu propósito é forçar os fiéis a aceitar a revolução imposta desde o Concílio.
Uma vez que esse ponto tenha sido esclarecido, é evidente que não são os fiéis tradicionais – ou seja, os verdadeiros católicos, nas palavras de São Pio X – que devem abandonar a Igreja, na qual eles têm direito de permanecer e da qual seria trágico separarem-se; mas, ao invés, são os modernistas, que usurpam o nome católico, precisamente porque é, apenas, o elemento burocrático que permite que eles não sejam considerados como integrantes de uma seita herética. Essa alegação deles serve, na verdade, para evitar que eles terminem entre as centenas de movimentos heréticos que, ao longo dos séculos, acreditaram ser capazes de reformar a Igreja a seu bel prazer, colocando seu orgulho acima do ensinamento de Nosso Senhor. Mas assim como não é possível reivindicar cidadania de uma terra da qual não se conhece a língua, o Direito, a fé e a tradição; assim também é impossível para aqueles que não têm a fé, a moral, a liturgia e a disciplina da Igreja Católica arrogar-se o direito de permencer dentro dela e, até mesmo, ascender os degraus da Hierarquia.
Portanto, não cedamos à tentação de abandonar – ainda que com uma justa indignação – a Igreja Católica sob o pretexto de que ela foi invadida por hereges e fornicadores; são eles quem devem ser expulsos do Templo Sagrado em uma obra de purificação e penitência que deve começar com cada um de nós.
Também é evidente que há casos generalizados em que os fiéis encontram problemas sérios ao frequentar sua paróquia, assim como há cada vez menos Igrejas onde a Santa Missa seja celebrada no Rito Católico. Os horrores desenfreados por décadas em muitas de nossas paróquias e templos tornam impossível assistir a uma “Eucaristia” sem correr o risco de ser escandalizado e até de colocar a fé em risco, assim como é muito difícil assegurar uma educação católica, a recepção dos sacramentos de forma digna e uma direção espiritual sólida para si e para seus filhos. Nesses casos, os leigos têm o direito e o dever de buscar Padres, comunidades e institutos que sejam fiéis ao Magistério perene. E que eles saibam acompanhar a louvável celebração da liturgia no Rito Antigo com adesão à sólida doutrina e à sólida moral, sem se renderem ao Concílio.
A situação, certamente, é mais complicada para os sacerdotes, que dependem hierarquicamente, do seu Bispo ou superior religioso, mas que, ao mesmo tempo, têm o direito de permanecer católicos e de celebrar no Rito Católico. De um lado, os fiéis têm maior liberdade de movimento para escolher a comunidade na qual eles buscarão a Missa, os Sacramentos e a instrução religiosa, mas têm menor autonomia devido ao fato de que ainda dependem de um Padre; de outro lado, os sacerdotes têm menor liberdade de movimento, pois estão encardeados a uma diocese ou ordem e estão sujeitos à autoridade eclesiástica, mas eles têm maior autonomia devido ao fato de que podem, legitimamente, decidir celebrar a Missa e ministrar os Sacramentos no Rito Tridentino e pregar de acordo com a sólida doutrina. O Motu Proprio Summorum Pontificum reafirmou que os fiéis e Padres têm o direito inalienável – e que não pode ser negado – de desfrutar a liturgia que mais perfeitamente expressa sua Fé Católica. Mas esse direito deve ser usado hoje não apenas para preservar a forma extraordinária do rito, mas para testemunhar a adesão ao depositum fidei que encontra perfeita expressão apenas no Rito Antigo.
Diariamente, recebo cartas agonizantes de Padres e religiosos que são marginalizados, transferidos ou ostracizados por causa de sua fidelidade à Igreja: a tentação de encontrar um ubi consistam (um lugar onde ficar) longe da ira dos inovadores é forte, mas devemos buscar exemplo nas perseguições que muitos Santos enfrentaram, incluindo Santo Atanásio, que nos oferece um modelo de como agir em face à heresia espalhada e à perseguição furiosa. Como meu venerável irmão, o Bispo Athanasius Schneider, muitas vezes lembrou, o arianismo, que afligiu a Igreja no tempo do Santo Doutor de Alexandria no Egito, foi tão espalhado entre os Bispos que, ao olhar para aqueles tempos, podemos quase acreditar que a ortodoxia católica havia desaparecido completamente. Mas foi graças à fidelidade e ao testemunho heróico dos poucos Bispos que permaneceram fiéis que a Igreja soube como se reerguer. Sem esse testemunho, o arianismo não teria sido derrotado; sem nosso testemunho, o modernismo e a apostasia globalista desse pontificado não serão derrotados.
Não é, portanto, uma questão de trabalhar dentro ou fora da Igreja: os trabalhadores são chamados a obrar na Vinha do Senhor, e é lá que eles devem permanecer mesmo que seja ao custo das suas próprias vidas; os pastores são chamados a pastorar o Rebanho do Senhor, a manter os lobos vorazes longe e a expulsar os mercenários que não estão preocupados com a salvação das ovelhas e dos cordeiros.
Esse trabalho oculto e, normalmente, silencioso tem sido feito pela Fraternidade Sacerdotal São Pio X, que merece reconhecimento por não ter permitido que a chama da Tradição fosse extinta em um momento em que celebrar a Missa antiga era considerado subversivo e razão para excomunhão. Seus Padres têm sido um salutar espinho no lado da hierarquia que viu neles um paradigma inaceitável para os fiéis, uma lembrança constante da traição cometida contra o povo de Deus, uma alternativa inadmissível ao novo caminho conciliar. E, se a fidelidade deles tornou inevitável a desobediência ao Papa com as sagrações espiscopais, graças a elas a Fraternidade conseguiu proteger-se do ataque furioso dos inovadores e, meramente por sua existência, tornou possível a liberação do Rito Antigo, que, até então, era proibido. Sua presença também permitiu que as contradições e erros da seita conciliar ficassem evidentes, sempre piscando um olho para os hereges e idólatras, mas implacavelmente rígida e intolerante com a Verdade Católica.
Considero o Arcebispo Lefebvre um exemplar confessor da Fé e acho que, a essa altura, é óbvio que a sua denúncia do Concílio e da apostasia modernista é mais relevante que nunca. Não devemos esquecer que a perseguição à qual o Arcebispo Lefebvre foi submetido pela Santa Sé e pelo episcopado mundial serviu, acima de tudo, como meio de intimidação para os católicos que eram refratários em relação à revolução conciliar.
Eu também concordo com a observação de Sua Excelência, o Bispo Bernard Tissier de Mallerais, sobre a coexistência de duas entidades em Roma: a Igreja de Cristo foi ocupada e ocultada pela estrutura conciliar modernista, que se estabeleceu na mesma hierarquia e usa a autoridade de seus ministros para prevalecer sobre a Esposa de Cristo e nossa Mãe.
A Igreja de Cristo – que não apenas subsiste na Igreja Católica, mas é exclusivamente a Igreja Católica – apenas está obscurecida e eclipsada por uma estranha e extravagante Igreja estabelecida em Roma, de acordo com a visão da Beata Anna Catarina Emmerich. Ela coexiste, como o joio com o trigo, na Cúria Romana, nas dioceses, nas paróquias. Não podemos julgar nossos pastores em suas intenções, nem supor que todos eles estão corrompidos em fé e moral; ao contrário, esperamos que muitos deles, até agora intimidados e em silêncio, compreenderão, à medida que a confusão e a apostasia continuem a se espalhar, a enganação a que foram submetidos e, finalmente, sacudirão o seu torpor. Há muitos leigos que estão erguendo suas vozes; outros, necessariamente, seguirão, em conjunto com bons Padres, certamente presentes em cada diocese. Esse despertar da Igreja militante – eu ousaria chamá-lo quase de ressurreição – é necessário, urgente, e inevitável: nenhum filho tolera que sua mãe seja ultrajada pelos servos, ou que seu pai seja tiranizado pelos administradores de seus bens. O Senhor nos oferece, nessas dolorosas situações, a possibilidade de ser Seus aliados nessa batalha sagrada sob o Seu estandarte: o Rei que é vitorioso sobre o erro e a morte nos permite compartilhar da honra da vitória triunfal e da recompensa eterna que deriva dela, após ter suportado e sofrido com Ele.
Mas, para merecer a glória imortal dos Céus, somos chamados a redescobrir – em um tempo emasculado, esvaziado de valores como honra, fidelidade à própria palavra e heroísmo – um aspecto fundamental da fé de cada pessoa batizada: a vida cristã é uma milícia, e, com o Sacramento da Confirmação, somos chamados a ser soldados de Cristo, debaixo de cuja insígnia devemos combater. É claro que, na maior parte dos casos, é um combate, essencialmente, espiritual, mas, ao longo do curso da história, temos visto com que frequência, diante da violação dos direitos soberanos de Deus e da liberdade da Igreja, também foi necessário tomar armas: recebemos esse ensinamento pela resistência extenuante para repelir as invasões islâmicas em Lepanto e nos arredores de Viena, pela perseguição dos Cristeros no México, dos Católicos da Espanha, e, mesmo hoje em dia, pela cruel guerra contra os cristãos ao redor de todo o mundo. Jamais pudemos entender tão bem como hoje o ódio teológico vindo dos inimigos de Deus, inspirado por Satã. O ataque a tudo que lembra a Cruz de Cristo – à Virtude, ao Bem e ao Belo, à pureza – deve nos inspirar a nos levantar, em um salto de altivez, para reivindicar nosso direito não apenas de não ser perseguido por nossos inimigos externos, mas também, e acima de tudo, de ter fortes e corajosos pastores, Santos e tementes a Deus, que farão exatamente o que seus predecessores fizeram por séculos: pregar o Evangelho de Cristo, converter indivíduos e nações e expandir o Reino do verdadeiro Deus pelo mundo.
Somos chamados a fazer um ato de Fortaleza – uma virtude cardeal esquecida, que, não por acaso, é chamada pelos gregos de força viril, ἀνδρεία – ao sabermos como resistir aos modernistas: uma resistência que é fundada na Caridade e na Verdade, que são atributos de Deus.
Se você apenas celebrar a Missa Tridentina e pregar a sólida doutrina sem jamais citar o Concílio, o que eles poderão fazer a você? Jogá-lo para fora das Igrejas talvez, e o que mais? Ninguém jamais poderá preveni-lo de renovar o Santo Sacrifício, mesmo que seja em um altar improvisado em um porão ou sótão, como os Padres refratários fizeram durante a Revolução Francesa, ou como acontece, ainda hoje, na China. E, se eles tentarem afastá-lo, resista: o Direito Canônico serve para manter o governo da Igreja direcionado aos seus fins principais, não para os demolir. Deixemos de achar que a culpa do cisma está naqueles que o denunciam e não, ao invés, naqueles que o causam: aqueles que são cismáticos e hereges são os que flagelam e crucificam o Corpo Místico de Cristo, não aqueles que O defendem ao denunciar os carrascos!
Os leigos podem esperar que seus ministros se comportem como tais, preferindo aqueles que provem que não estão contaminados pelos erros presentes. Se uma Missa se torna ocasião de tortura para os fiéis, se eles são forçados a assistir a sacrilégios ou a apoiar heresias e divagações indignas da Casa do Senhor, é mil vezes preferível ir a uma Igreja onde o Padre celebra o Santo Sacrifício dignamente, no rito que nos foi dado pela Tradição, pregando em conformidade com a sólida doutrina. Quando os Padres e Bispos diocesanos perceberem que o povo cristão pede o Pão da Fé, e não as pedras e escorpiões da neo-Igreja, eles deixarão de lado seus temores e atenderão aos legítimos pedidos dos fiéis. Os outros, verdadeiros mercenários, vão mostrar-se pelo que realmente são e só juntarão ao redor deles aqueles que compactuam com seus erros e perversões. Eles serão exterminados por eles mesmos: o Senhor seca o pântano e torna árida a terra na qual crescem amoreiras; ele extingue vocações em seminários corruptos e em conventos rebeldes à Regra.
Os fiéis de hoje têm um dever sagrado: consolar os bons Padres e os bons Bispos, reunindo-se ao redor deles como ovelhas ao redor de seus pastores. Dar-lhes hospitalidade, ajudá-los, consolá-los em suas dificuldades. Criar comunidades na qual não predominem a fofoca e a divisão, mas a caridade fraterna no laço da fé. E, como na ordem estabelecida por Deus – κόσμος – os sujeitos devem obediência à autoridade e não podem fazer nada além de resistir quando ela abusa do seu poder, nenhuma culpa lhes será atribuída pela infidelidade de seus líderes, nos quais está a seríssima responsabilidade pela maneira como eles exercem o poder vicariante que lhes foi dado. Não devemos nos rebelar, mas opor-nos; não devemos nos contentar com os erros de nossos pastores, mas rezar por eles e admoestá-los respeitosamente; não devemos questionar sua autoridade, mas a maneira como eles a usam.
Estou certo, com uma certeza que me vem da fé, de que o Senhor não deixará de recompensar nossa fidelidade, após nos ter punido pelos erros dos homens da Igreja, dando-nos Santos Padres, Santos Bispos, Santos Cardeais e, acima de tudo, um Santo Papa. Mas esses Santos virão de nossas famílias, de nossas comunidades, de nossas Igrejas: famílias, comunidades e Igrejas nas quais a graça de Deus deve ser cultivada com oração constante, com frequência constante da Missa e dos Sacramentos, com o oferecimento de sacrifícios e penitências que a Comunhão dos Santos nos permita oferecer à Divina Majestade para expiar nossos pecados e aqueles de nossos irmãos, incluídos aqueles que exercem autoridade. Os fiéis têm um papel fundamental nisso ao guardarem a Fé nas suas famílias, de tal modo que nossos jovens, educados no amor e no temor de Deus, possam um dia ser pais e mães responsáveis, mas também dignos ministros do Senhor, Seus arautos nas ordens religiosas masculinas e femininas, e Seus apóstolos na sociedade civil.
A cura da rebelião é a obediência. A cura da heresia é a fidelidade ao ensinamento da Tradição. A cura do cisma é a devoção filial aos Pastores Sagrados. A cura da apostasia é o amor de Deus e de Sua Santa Mãe. A cura do vício é a prática humilde da virtude. A cura da corrupção da moral é viver na constante presença de Deus. Mas a obediência não pode se corromper em servilismo; o respeito devido à autoridade não pode ser degenerado em reverência da corte. E não esqueçamos que, se é dever dos fiéis obedecer a seus Pastores, é um dever ainda mais grave dos Pastores obedecer a Deus, usque ad effusionem sanguinis.
+ Carlo Maria Viganò, Arcebispo
1º de Setembro de 2020
O Concílio de Trento definiu dogmaticamente que sem a Fé Católica, "é impossível agradar a Deus."
A Igreja Católica também definiu ex cathedra, que só há uma verdadeira Igreja de Cristo, a Igreja Católica, fora da qual não há nenhuma salvação.
Papa Leão XIII, explicitando o ensinamento sobre este ponto, ensinou:
"Desde que a ninguém é permitido ser negligente no serviço devido a Deus …. somos absolutamente obrigados a adorar Deus da maneira que Ele mesmo mostrou que deseja ser adorado … Não deve ser difícil descobrir qual é a religião verdadeira se esta é procurada com uma mente imparcial e sincera; as provas são abundantes e evidentes …. De todas estas [provas] é evidente que a única religião verdadeira é a estabelecida por Jesus Cristo mesmo, e Ele encarregou à Sua Igreja de proteger e propagar esta fé."
Destas fontes, e de incontáveis outros ensinos do Magistério, está claro que a única religião positivamente desejada por Deus é a religião estabelecida por Cristo mesmo, a Igreja Católica.
Todavia, na Liturgia da Sexta-Feira Santa no Vaticano, em 2002, o Pregador da Casa Pontifícia, o padre Capuchinho Raniero Cantalamessa, disse que as outras religiões " não são meramente toleradas por Deus … mas positivamente desejadas por Ele como uma expressão da riqueza inesgotável da Sua graça e de Seu desejo de que todos sejam salvos."
Isto, em resumo, é apostasia.
São João, o Apóstolo do Amor, disse: "Quem é mentiroso senão aquele que nega que Jesus é o Cristo? Esse é o Anticristo, que nega o Pai e o Filho" (1Jo 2,22). Assim, Islamismo, Judaísmo, Hinduísmo, Budismo e qualquer religião que rejeita o Cristo, de acordo com a Escritura, é uma religião do Anticristo.
A respeito das religiões heréticas, como por exemplo, a "Igreja Ortodoxa" e o Protestantismo, São Paulo ensina-nos que falsos credos são "doutrinas de demônios'' (1Tm 4,1).
Como, então, podem as religiões do Anticristo, e falsos credos de heréticos, que são "doutrinas de demônios", serem consideradas como "não meramente toleradas por Deus mas positivamente desejadas por Ele"? Isto significaria dizer que Deus positivamente deseja a existência de religiões que ensinam que Jesus Cristo não é Deus e o Salvador da humanidade (como fazem as religiões não-cristãs). Significa que Deus positivamente deseja a existência de religiões que, tal como o protestantismo, ensinam que Cristo não estabeleceu a Igreja, não estabeleceu a Sagrada Eucaristia e não estabeleceu os Sacramentos. Também significa que essas seitas protestantes que permanecem no ódio contra a devoção a Bem-Aventurada Mãe de Deus, são positivamente desejadas por Deus. E isto, apesar do fato que Nossa Senhora de Fátima pediu os Cinco Primeiros Sábados de reparação para com as blasfêmias contra seu Imaculado Coração, que são justamente os frutos destas falsas religiões.
Em resumo, o sermão do Pe. Cantalamessa pretende dizer que Deus positivamente quer o erro. Que Deus positivamente quer mentiras. Que Deus positivamente quer o mal.
Nosso Senhor certamente permite o mal, porque não interfere com a vontade livre do homem. Mas é blasfêmia afirmar que Deus deseja algo de mal, visto que Deus não pode desejar senão aquilo que é bom.
Jesus está cheio de orgulho?
As blasfêmias do Pe. Cantalamessa não terminam aqui. Ele também afirma que Deus é "humilde ao salvar", e a Igreja deve seguir o exemplo. "Cristo é mais preocupado com que todas as pessoas sejam salvas do que com o fato de que elas devam conhecer quem é seu Salvador”. Disse isso para um grande público na Basílica de São Pedro, que incluiu o Papa João Paulo II e altos oficiais do Vaticano.
Pode soar doce o que ele disse, mas o Pe. Cantalamessa indiretamente acusa Jesus Cristo de orgulho. Quando diz, "Cristo é mais preocupado com que todas as pessoas sejam salvas do que com o fato de que elas devam conhecer quem é seu Salvador”, este é um “piedoso” desprezo ao ensinamento pré-Vaticano II de 2000 anos que assegura ser necessário para a alma, conhecer, amar e servir Cristo neste mundo, se deseja ser feliz com Ele eternamente no próximo. O Pe. Cantalamessa assim defende o ensino heterodoxo [e herético] do Pe. Karl Rahner dos “cristãos anônimos”.
De fato, somente há 50 anos atrás, se um estudante de sete anos de idade, expressasse esta nova doutrina do Pe. Cantalamessa, ele teria sido considerado inadequado para receber sua primeira Sagrada Comunhão. Agora, 40 anos dentro da "nova Primavera” de Vaticano II, esta apostasia é pregada em uma Sexta-Feira Santa no Vaticano pelo pregador da Casa Pontifícia.
Este episódio também revela uma das muitas desvantagens da Internet. As notícias da homilia do Pe. Cantalamessa foram transmitidas ao redor do mundo via Internet a milhares de católicos que, de outro modo, nunca teriam ouvido falar dela. O resultado é que muitos católicos receberam as palavras do Capuchinho transmitidas em São Pedro supondo que, de alguma maneira, elas se aproximam do nível de Ensino do Magistério. Isto não é verdade. O discurso do Pe. Cantalamessa na Sexta-Feira Santa é simplesmente outra homilia cheia de erros feita por um carismático. E nada mais do que isso.
O Pregador Pentecostal do Papa.
Quem é o Pe. Raniero Cantalamessa?
Para descobrimos sua história, nós devemos voltar ao ano de 1977, na Conferência Carismática pan-denominacional, realizada em um estádio de futebol americano na cidade do Kansas, Missouri. Esta Conferência foi assistida por 50.000 pessoas de pelo menos 10 denominações diferentes incluindo batistas, católicos, Episcopalianos, Luteranos, judeus Messiânicos, "cristãos" sem denominação, Pentecostais e Metodistas Unidos.
Em certo ponto da mesma, em que o protestante Bob Mumford pregava aos 50.000 presentes, Mumford levantou para cima sua Bíblia e disse, "E se você der uma espiada no fim do livro, Jesus vence!" Isto fez a multidão entrar em pandemônio. O estádio de futebol inteiro repentinamente estourou numa longa aclamação, num "louvor-frenesi", que durou aproximadamente 17 minutos.
Os carismáticos chamam isto de "o Impacto do Espírito Santo". Interpretam este entusiasmo natural, essa exacerbação de ânimo, como o Espírito Santo “movendo-se através da multidão”, unindo a multidão (contendo católicos e membros de várias denominações), e inspirando este júbilo delirante. Isto, de acordo com eles, é a "derrubada das barreiras denominacionais”, que é, segundo eles, positivamente desejada pelo Espírito Santo, mesmo que isto desafie 2000 anos do ensinamento católico sobre uma Única e Verdadeira Igreja de Cristo. Também desafia o ensino tradicional católico que proíbe católicos de empenharem-se em positiva camaradagem religiosa com falsas religiões.
Apesar disso, na Conferência da Cidade do Kansas, lá estava um sacerdote Capuchinho chamado Pe. Raniero Cantalamessa que tinha ido de Milão para aquele lugar, investigar o Movimento Carismático. Ficou tão impressionado com aquele louvor-frenesi baseado numa algazarra barulhenta, que ele próprio se tornou, na gíria carismática, um "ungido pregador da Renovação Carismática."
Em 1980, este mesmo Pe. Cantalamessa foi designado pelo Papa João Paulo II como Pregador da Casa Pontifícia. Agora, para este "ungido pregador", é dado um púlpito na Basílica de São Pedro, em uma Sexta-Feira Santa, para contar ao mundo que Deus O protestante Bob Mumford foi convidado para falar aos “católicos” carismáticos. Que "espírito" ele está transmitindo? positivamente deseja falsas religiões.
Não é de estranhar que outro teólogo papal, Cardeal Luigi Ciappi, que teve acesso ao Terceiro Segredo de Fátima de forma completa, disse "No Terceiro Segredo é revelado, entre outras coisas, que a grande apostasia na Igreja começará pelo topo."
O erro não é um dom do Espírito Santo
O sermão da Sexta-Feira Santa do Pe. Cantalamessa é uma de muitas poderosas demonstrações de que o Movimento Carismático não é verdadeiramente de Deus. Os carismáticos reivindicam, diretamente ou indiretamente, que eles têm uma “linha quente” especial (hotline) para o Espírito Santo, que outros cristãos não possuem. Proclamam especialmente serem cheios do Espírito! Mas se um católico "é cheio do Espírito", deve ser evidente por suas palavras e ações que ele está cheio com os Sete Dons do Espírito Santo.
Um dos Sete Dons do Espírito Santo é o Dom de Inteligência, que dá um entendimento mais profundo para a alma, das verdades reveladas. O Pe. Adolph Tanquerey define-o como "um dom que, sob a iluminadora ação do Espírito Santo, dá-nos uma percepção profunda das verdades reveladas, sem entretanto nos dar uma compreensão dos mistérios em si mesmos.”
O efeito do Dom de Inteligência é que nos capacita a penetrar no núcleo mesmo das verdades reveladas e nos dá uma profunda compreensão delas. Contudo, dos carismáticos, que continuamente vangloriam-se de "serem cheios até o transbordamento com o Espírito," constantemente jorram erros religiosos
. Longe de possuírem o Dom de Inteligência, eles demonstram desconhecerem até as verdades mais fundamentais e básicas da Fé católica.
De fato, como se pode ver em meu livro Close-ups of the Charismatic Movement, o movimento Carismático na Igreja Católica foi fundado, como um todo, num objetivo pecado mortal contra a Fé.
Em 1967, um grupo de católicos em Pittsburgh participaram de uma reunião pentecostal protestante. Os protestantes, que como membros de uma religião herética não possuem nenhum poder sacramental, impuseram suas mãos sobre os católicos. Estes católicos começaram a tagarelar em "línguas" e proclamaram estarem "cheios com o Espírito até o transbordamento”, como um resultado disso.
As ações destes católicos desobedeceram ao Código de Direito Canônico de 1917, que estava em força (vigente) até 1983. O cânone 1258 determina que "absolutamente não é lícito para o fiel estar ativamente presente e nem tomar parte em cerimônias não-católicas". Contudo, de acordo com os carismáticos, os católicos serão recompensados com um influxo especial do Espírito Santo se eles transgredirem a lei da Igreja.
Além disso, procurando santidade de membros de seitas não-católicas, desafiam o ensino Católico de que nenhuma salvação nem santidade é achada em religiões não-católicas. O Papa Pio XII reafirmou esta doutrina dentro do contexto de uma oração a Santíssima Virgem:
“Ó Maria, Mãe de Misericórdia e Sede da Sabedoria! Ilumine as mentes envolvidas na escuridão da ignorância e do pecado, para que eles possam claramente reconhecer a Santa, Católica, Apostólica, Igreja Romana, como a Única e Verdadeira Igreja de Jesus Cristo, fora da qual nem santidade nem salvação podem ser encontradas" (RAC: 626,11).
Por contraste, o "Pentecostalismo Católico”, nas palavras de seu estimado pregador, proclama que religiões não-católicas nas quais "nem santidade nem salvação podem ser encontradas", são positivamente desejadas por Deus.
Aqui nós vemos uma, das muitas maneiras nas quais o "Pentecostalismo Católico" conduz a apostasia.
Em uma conjuntura tão perigosa, será ainda possível ao simples fiel, ao modesto padre do campo ou da cidade, ao religioso que se sente cada dia mais isolado dentro de sua ordem; será possível à religiosa que se pergunta se ela não foi mistificada em nome da obediência; será possível a todas estas ovelhinhas do imenso rebanho de Jesus Cristo e de seu vigário não perderem a cabeça, resistirem a um imenso aparelho que os induz, progressivamente, a mudar de fé, mudar de culto, mudar de hábito religioso e de vida religiosa, em uma palavra mudar de religião?
Gostaríamos de repetir para nós mesmos com toda a doçura e acerto as palavras de verdade, as palavras simples da doutrina sobrenatural aprendidas no catecismo, que não agravassem o mal mas antes nos persuadissem profundamente, pelo ensinamento da Revelação, de que Roma, um dia, será curada; de que a Igreja que vemos, em breve perderá sua aparência de autoridade. Logo essa igreja se transformará em poeira, pois sua principal força vem de sua mentira intrínseca que passa por verdade, sem nunca ter sido efetivamente desmentida de cima. Gostaríamos, no meio de tão grande catástrofe, de nos dizer palavras que não estivessem muito defasadas com o misterioso discurso, sem ruído de palavras, que o Espírito Santo murmura no coração da Igreja.
1 —Mas por onde começar? Sem dúvida pela lembrança da verdade primeira que diz respeito ao senhorio de Jesus Cristo sobre sua Igreja. Ele quis uma Igreja que tivesse à frente o bispo de Roma, que é seu vigário visível e, ao mesmo tempo, bispo dos bispos e de todo o rebanho. Conferiu-lhe a prerrogativa da pedra a fim de que o edifício não ruísse nunca. Pediu, em uma oração eficaz, que seu vigário, ao menos, entre todos os bispos, não naufragasse na fé de sorte que, tendo-se recuperado depois de quedas das quais não seria necessariamente preservado, confirmasse por fim seus irmãos na fé; ou então, se não for ele em pessoa que fortaleça seus irmãos na fé, que seja um de seus primeiros sucessores.
Tal é sem dúvida o primeiro pensamento de conforto que o Espírito Santo sugere a nossos corações nestes dias desolados em que Roma está parcialmente invadida pelas trevas: não há Igreja sem vigário do Cristo infalível e detentor da primazia. Por outro lado, quaisquer que sejam as misérias, mesmo no domínio religioso, deste vigário visível e temporário de Jesus Cristo, é o próprio Jesus quem governa sua Igreja, que governa seu vigário no governo da Igreja; que governa seu vigário de tal maneira que este não possa comprometer sua autoridade suprema nas desordens ou cumplicidade que mudariam a religião. — Até aí se estende, em virtude da Paixão soberanamente eficaz, a força divina da regência do Cristo subido ao céu. Ele conduz sua Igreja tanto de dentro como de fora e domina sobre o mundo inimigo. Faz sentir seu poder a este mundo perverso, mesmo e sobretudo quando os operários da iniqüidade, como o modernismo, não somente penetram na Igreja, mas pretendem se fazer passar pela própria Igreja.
Pois a astúcia do modernismo se desdobra em dois tempos: primeiro promovendo a confusão entre as autoridades paralelas heréticas com a hierarquia regular, da qual puxa os fios; em seguida servindo-se de uma dita pastoral universalmente reformadora que cala ou que esquerdiza, por sistema, a verdade doutrinal; que recusa os sacramentos ou que torna seus ritos duvidosos. A grande habilidade do modernismo é utilizar esta pastoral do Inferno para, ao mesmo tempo, deturpar a doutrina santa confiada pelo Verbo de Deus à sua Igreja hierárquica, e depois alterar e mesmo anular os sinais sagrados portadores de graças, dos quais a Igreja é a dispensadora fiel.
O Chefe da Igreja é sempre infalível, sempre sem pecado, sempre santo, ignorando qualquer intermitência e qualquer interrupção em sua obra de santificação. Este é o único Chefe, pois todos os outros, incluindo o mais elevado, só detêm a autoridade por ele e para ele. Ora este Chefe santo e sem mancha, absolutamente apartado dos pecadores, elevado acima dos céus, não é o papa, é aquele do qual nos fala magnificamente a Epístola aos Hebreus, é o Soberano Padre: Jesus Cristo. Jesus nosso redentor pela cruz, antes de subir aos céus, de se tornar invisível a nossos olhos, quis estabelecer em sua Igreja, além e acima dos numerosos ministros particulares, um ministro universal único, um vigário visível, que é o único a exercer a jurisdição suprema. Ele o cumulou de prerrogativas: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do Inferno não prevalecerão sobre ela”. (Mat. XVI, 18-19) — “Sim, Senhor, sabeis que vos amo. Jesus lhe diz: “Apascenta meus cordeiros... Apascenta minhas ovelhas”. (Jo., XXI, 16-18) Pedi por ti a fim de que não percas a fé, e tu, uma vez convertido, confirma teus irmãos”. (Luc., XXII, 32).
Ora, se o papa é o vigário visível de Jesus que subiu ao céu invisível, não é nada mais do que o vigário: “vices gerens” aquele que substitui, mas continua outro. Não é do papa que deriva a graça que faz viver o corpo místico. A graça, tanto para o papa como para nós, deriva do único Senhor Jesus Cristo. A mesma coisa quanto à luz da revelação. O papa detém, a título único, a guarda dos meios da graça, os sete sacramentos, como também a verdade revelada. É assistido de modo único, para ser o guardião e intendente fiel. Mas, para que sua autoridade receba uma assistência privilegiada, é preciso que ele não renuncie a exercê-la ... Por outro lado, se o papa está preservado de falha quando empenha sua autoridade enquanto infalível, pode muito bem falhar em outros casos. Se o papa falha, bem entendido no que comporta sua falibilidade, isto não impede o chefe único da Igreja, o Soberano Padre invisível, de continuar a governar sua Igreja; isto não muda nem a eficácia de sua graça, nem a verdade de sua lei; isto não o tornará impotente para limitar as falhas de seu vigário visível nem para substituí-lo logo por um novo e digno papa, para reparar o que o predecessor deixou estragar ou destruiu, pois a duração da insuficiência e das fraquezas, e mesmo das traições parciais de um papa, não ultrapassam a duração de sua existência mortal. Desde que subiu ao céu, foi assim que Jesus escolheu e providenciou duzentos e sessenta e três papas. Na verdade, somente um pequeno número deles foram vigários de tal forma fiéis que os invocamos como amigos de Deus e santos intercessores. Um número ainda mais reduzido caiu em faltas muito graves. No entanto, a maioria dos vigários de Cristo foram apenas convenientes. Nenhum deles, continuando ainda papa, traiu e não poderá trair até a heresia, explicitamente ensinada com a plenitude de sua autoridade. Sendo esta a situação de cada papa e da sucessão de papas em relação ao Soberano Padre Jesus Cristo, em relação ao chefe da Igreja que reina no céu, é preciso que as fraquezas de um papa não nos façam esquecer, por pouco que seja, a solidez e a santidade do senhorio de nosso Salvador, impedindo-nos de ver o poder de Jesus e sua sabedoria a qual mantém nas suas mãos até os papas insuficientes, cujas insuficiências contém em limites que não se pode transpor.
2 — Mas para ter esta confiança no chefe invisível e soberano da santa Igreja, sem obrigar-nos a negar as faltas graves das quais não está isento seu vigário visível, o bispo de Roma; para pôr em Jesus esta confiança realista que não esconde o mistério do sucessor de Pedro com seus privilégios; para que o desânimo que pode nos sobrevir, provocado pelo detentor do papado, seja absorvido pela esperança teologal que colocamos no Soberano Padre, é preciso, evidentemente, que nossa vida interior seja toda referida a Jesus Cristo e não ao papa; que nossa vida interior seja baseada não na hierarquia e no papa, mas no Pontífice divino, neste padre que é o Verbo encarnado Redentor, cujo vigário visível dele depende ainda mais do que os outros padres; com efeito, o papa é sustentado pela mão de Jesus Cristo mais do que os outros, em vista de uma função que não tem equivalente. Mais do que qualquer outro, a título superior e único, ele não poderá deixar de confirmar seus irmãos na fé, ele mesmo ou seu sucessor.
A Igreja não é o corpo místico do papa; a Igreja, com o papa, é o corpo místico de Cristo. Quando a vida interior dos cristãos tem, cada vez mais, como ponto de referência Jesus Cristo, tais cristãos não ficam desesperados, mesmo que sofram até a agonia com as falhas de um papa, seja este Honório I ou os papas antagonistas do fim da Idade Média ou ainda, como extremo limite, um papa que fraqueje segundo as novas possibilidades de falhas oferecidas pelo modernismo. Para continuarem certo das prerrogativas papais, os cristãos não têm necessidade de mentir sobre as falhas de um papa, se tiverem em Jesus Cristo o princípio e a alma da vida interior. Sabem que estas falhas nunca atingirão a um tal grau que Jesus deixasse de governar sua Igreja por estar eficazmente impedido por seu vigário. Tal papa poderia se aproximar do ponto limite que implicaria em mudar a religião cristã, por cegueira ou por espírito de quimera ou por uma ilusão mortal quanto a uma heresia como o modernismo. O papa que a isto chegasse não tiraria do Senhor Jesus sua regência infalível que tem na mão o próprio papa transviado, impedindo-o de comprometer na perversão da fé, a autoridade que recebeu do alto.
Uma vida interior que tem como referencial Jesus Cristo e não o papa não poderia excluir o papa sem deixar de ser uma vida interior cristã. Uma vida interior que tem, como deve, sua referência no Senhor Jesus inclui o Vigário de Jesus Cristo e a obediência a esse Vigário, mas em primeiro lugar, servir a Deus: quer dizer que esta obediência, longe de ser incondicional, é sempre praticada na luz da fé teologal e da lei natural.
Vivemos por e para Jesus Cristo, graças a sua Igreja, que é governada pelo papa, a quem obedecemos em tudo o que é de sua competência. Não vivemos pelo e para o papa como se tivesse sido ele que nos adquiriu a redenção eterna; eis porque a obediência cristã não pode sempre e em tudo identificar o papa com Jesus Cristo. O que geralmente acontece é que o Vigário de Cristo costuma governar em conformidade com a tradição apostólica, o bastante para não provocar, na consciência dos fiéis dóceis, maiores conflitos. Mas algumas vezes pode ser de outro modo. Ainda que excepcionalmente, pode acontecer que o fiel tenha de se perguntar legitimamente: como guardarei a Tradição se seguir as diretivas deste papa?
A vida interior de um filho da Igreja que ponha de lado os artigos de fé relativos ao papa, a obediência a suas ordens legítimas e a oração por ele, tal vida interior deixa de ser católica. Por outro lado, uma vida interior que inclui ser agradável ao papa incondicionalmente, quer dizer, às cegas, em tudo e por tudo, é uma vida interior que está necessariamente entregue ao respeito humano, que não é livre em relação à criatura, que se expõe a facilidades e cumplicidades. Na sua vida interior, o verdadeiro filho da Igreja, tendo recebido de todo coração os artigos de fé que se referem ao Vigário de Cristo, reza fielmente por ele e lhe obedece de bom grado, mas somente às claras, isto é, estando salva e intacta a tradição apostólica e, bem entendido, a lei natural. — É verdade que muitas vezes pregou-se um tipo de obediência em relação ao papa em que se visava mais o sucesso de movimentos de conjunto do que a fidelidade à luz da fé, ainda que tivesse havido resultados espetaculares. Sem dúvida não estava ausente de tal pregação o cuidado de guardar a tradição apostólica e a fidelidade a Jesus Cristo, mas mais importante, mais altivo, mais urgente, era, apesar de tudo, dar satisfação a um homem, atrair-lhe os favores; muitas vezes fazer carreira, preparar a cabeça para o chapéu cardinalício ou dar brilho a sua Ordem ou Congregação. Mas nem Deus nem o serviço do papa têm necessidade de nossa mentira: Deus non eget nostro mendacio.
Lembremo-nos da grande prece do início do Cânon romano, este Cânon que Paulo VI não hesitou em aviltar, pondo-o no nível das preces polivalentes acomodadas às ceias calvinistas. (Equiparar deste modo o Cânon romano não tem o menor fundamento na tradição apostólica e se opõe de frente a esta tradição imprescritível). Assim o padre, no Cânon romano, depois de ter instantemente suplicado ao Pai clementíssimo por seu Filho Jesus Cristo, para santificar o sacrifício sem mancha oferecido unicamente pro Ecclesia tua santa catholica... continua assim: una cum famulo tuo Papa nostro... et Antistite nostro... A Igreja nunca pensou em dizer: una cum SANCTO famulo tuo Papa nostro et SANCTO Antistite nostro, mas diz: pro Ecclesia tua SANCTA. O papa, diferentemente da Igreja, não é obrigatoriamente santo. A Igreja é santa, com membros pecadores, que somos nós mesmos; membros pecadores que não tendem ou não tendem mais para a santidade. Pode muito bem acontecer que o próprio papa figure nesta triste categoria. Deus o sabe. Em todo o caso, já que a condição de chefe da Santa Igreja não é necessariamente a condição de um santo, não devemos nos escandalizar se sobrevierem provações, e às vezes provações muito cruéis para a Igreja, da parte de seu chefe visível. Não devemos nos escandalizar pelo fato de que, sujeitos embora ao papa, não possamos segui-lo às cegas, incondicionalmente, em tudo e por tudo. Na medida em que a nossa vida interior tiver como referência o chefe invisível da Igreja, o Senhor Jesus, soberano Padre; na medida em que nossa vida interior for alimentada com a tradição apostólica, com os dogmas, o missal e o ritual da tradição, com a tendência para o perfeito amor que é a alma desta tradição santíssima, nesta medida nós aceitaremos muito melhor ter de santificar-nos dentro de uma Igreja militante cujo chefe visível, se está preservado de errar segundo certos limites precisos, não está, no entanto, subtraído à condição comum de pecador.
3 — O Senhor governa de tal maneira sua Igreja pelo papa e a hierarquia, pela hierarquia submetida ao papa, que a Igreja é sempre protegida na tradição, conhecendo bem a tradição que é a sua, nunca inconsciente nem esquecediça. A Igreja é assistida de tal sorte sobre as verdades do catecismo, sobre a celebração do santo sacrifício e sobre os sacramentos, sobre a estrutura hierárquica fundamental, sobre os estados de vida e sobre o chamado ao perfeito amor, em suma, sobre todos os pontos maiores da tradição, que todo batizado, tendo a fé, seja bispo, papa ou simples fiel, sabe claramente onde se firmar. Assim, o simples cristão que se recusasse a seguir um padre, um bispo, uma colegialidade, ou mesmo um papa em algum ponto importante da tradição que estes arruinariam, este simples cristão que, nesse caso específico se recusasse a deixar-se levar e a obedecer, não estaria dando com isso, como alguns pretendem, sinais característicos de livre-exame ou orgulho de espírito; pois não é orgulho nem prova de insubmissão discernir a tradição que estes em seus pontos maiores, ou recusar a traí-la. Todo fiel sabe que é inadmissível que padres católicos celebrem a Missa manifestando falta de fé, como, por exemplo, sem marca alguma de adoração ou qualquer sinal de fé nos santos mistérios, ainda que a colegialidade de bispos ou o secretário de alguma congregação romana tenha feito manipulações para esse fim. Aquele que recusa ir a tal Missa, ou melhor, a tal culto que, na maior parte das vezes já deixou de ser Missa, não faz um livre-exame, não é um revoltado; é um fiel estabelecido em uma tradição que vem dos apóstolos e que ninguém na Igreja poderia mudar. Porque ninguém na Igreja, seja qual for a sua posição hierárquica, mesmo a mais alta, ninguém tem o poder de mudar a Igreja e a tradição apostólica.
Sei que muitas vezes, dá a impressão de ser farsante ou maníaco o padre que, não tendo adotado a reviravolta do missal e do ritual empreendida pelo atual pontífice romano (Paulo VI), ousa no entanto afirmar: estou com Roma, mantenho-me na tradição apostólica guardada por Roma. — Está com Roma, dizem-me alguns: ora veja! Mas qual é seu modo de batizar, de dizer a Missa? — O modo, digo-lhes, do próprio Paulo VI, até 1970; a maneira mais do que milenar sancionada pelo papas da Igreja Latina. Faço aquilo que eles fizeram unanimemente, quando mantenho os exorcismo do batismo solene; quando ofereço o santo sacrifício segundo um Ordo Missæ consagrado por quinze séculos e que nunca foi aceito pelos negadores do santo sacrifício. Se nós, enfim, ministros de Jesus Cristo que tratamos assim a Missa e os sacramentos, rompemos com Roma e com a tradição da qual Roma é a garantia, por que não fomos atingidos por sanções canônicas cujo cancelamento estivesse exclusivamente reservado ao vigário de Cristo? Escrevo isto porque é verdadeiro e porque espero confortar alguns fiéis que não chegam a compreender esta contradição evidente: estar com Roma seria adotar em matéria de fé ou de sacramento aquilo que destrói a tradição apostólica e aquilo em que ninguém pode precisar até que ponto o atual pontífice romano (Paulo VI) pretendeu comprometer sua autoridade? (Assim também, depois de 10 anos de Vaticano II, ninguém sabe até que ponto este concílio pastoral tem autoridade). Ainda uma vez a tradição apostólica é bem clara sobre todos os pontos principais. Não é preciso olhar por uma lupa nem ser cardeal ou prefeito de algum discatério romano para saber o que se lhe opõe. Basta ter aprendido o catecismo e a liturgia, anteriormente à corrupção modernista.
Muitas vezes, no que se refere a não romper com Roma, os fiéis e padres foram formados com um temor em parte mundano, de sorte que são tomados de pânico, vacilam em suas consciências e nada mais examinam assim que qualquer um acusa-os de não estar com Roma. Uma formação verdadeiramente cristã nos ensina, ao contrário, a preocuparmo-nos de estar com Roma não no pavor e sem discernimento, mas na luz e na paz, segundo um temor filial na fé.
4 — Que nos importa se os adversários zombam de nós, acusando-nos de não sabermos distinguir na tradição uma parte contingente e variável do que é essencial e irreformável? Suas zombarias só poderiam nos atingir se caíssemos no ridículo de darmos o mesmo valor a tudo o que pretenda fazer parte da tradição. Não é assim. Dizemos somente, e isto é a única coisa que nos importa, que, primeiramente, nos pontos principais da tradição, a Igreja é estável, certa, irreformável; depois, que todo cristão, ainda que só um pouco instruído em sua fé, conhece-os sem hesitar; terceiro, que é a fé, não o livre-exame, que nos permite discerni-los, assim como é a obediência, a piedade, o amor, não a insubordinação, que nos faz manter esta tradição; quarto, que as tentativas da hierarquia ou as fraquezas do papa que tenderam para destruir ou deixar destruir esta tradição, elas é que serão um dia destruídas, enquanto que a tradição triunfará. Estamos tranqüilos sobre este ponto: quaisquer que sejam as armas hipócritas postas pelo modernismo entre as mãos dos colegiados episcopais e do próprio vigário do Cristo, — armas do Inferno sobre as quais talvez se iludam — qualquer que seja a perfeição destas novas armas, a tradição (por exemplo, do batismo solene que inclui os anátemas contra o Diabo maldito) não ficará afastada por muito tempo; a tradição de não absolver em princípio os pecados senão depois da confissão individual não ficará abandonada por muito tempo; a tradição da Missa católica tradicional, latina gregoriana, com língua, cânon e conjunto de atitudes que sejam fiéis ao missal romano de São Pio V, esta tradição será, cedo, recolocada em posição de honra; a tradição do catecismo de Trento, ou de um manual que lhe seja exatamente conforme, ressurgirá sem tardar. Sobre os pontos principais do dogma, da moral, dos sacramentos, dos estados de vida, da perfeição a que somos chamados, a tradição da Igreja é conhecida por seus membros de todos os níveis. Aí se manterão eles (com a consciência tranqüila) mesmo se os guardiães hierárquicos desta tradição pretenderem intimidá-los ou lançá-los na dúvida; mesmo se os perseguirem com os ácidos refinamentos dos carrascos modernistas. Estão seguríssimos de que, mantendo a tradição, não cortam com o vigário visível de Cristo. Porque o vigário visível de Cristo é governado pelo Cristo de tal maneira que não possa transmutar a tradição da Igreja, nem fazê-la esquecer. Se por infelicidade tentar o contrário, ele mesmo ou seus sucessores imediatos serão obrigados a proclamar, alto e bom som, o que permanece para sempre vivo na memória da Igreja: a tradição apostólica. A Esposa de Cristo não corre o risco de perder a memória.
Quanto aos que dizem, a esse respeito, que tradição é sinônimo de esclerose, ou que o progresso se faz em oposição à tradição, em resumo, todos os que levam ao delírio, as miragens de uma absurda filosofia da evolução, recomendo-lhes ler São Vicente de Lerins no seu Commonitorium e estudar um pouco mais a história da Igreja: dogmas, sacramentos, estruturas fundamentais, vida espiritual, para entrever a diferença essencial que existe entre: “seguir em frente” e “andar enviezado”, ter “idéias avançadas” ou “avançar segundo idéias justas”; resumindo: distinguir entre profectus e permutatio.
5 — Mais do que em tempo de paz, tornou-se útil e salutar meditar com espírito de fé sobre as provações da Igreja. Seríamos talvez tentados a reduzir estas provações às perseguições e ataques vindo do exterior. Ora, os inimigos do interior são geralmente mais temíveis; conhecem melhor os pontos vulneráveis, podem ferir ou envenenar quando menos se espera, o escândalo que provocam é bem mais difícil de vencer. Assim, em uma paróquia, um educador anti-religioso, por mais que faça, não conseguirá estragar o povo fiel tão profundamente quanto um padre gozador e modernista. Assim como um simples padre que deixa a batina, ainda que com escândalo, não terá conseqüências tão funestas quanto a incúria ou a traição de um bispo.
De qualquer maneira, é certo que se um bispo trai a fé católica, mesmo sem deixar a batina, impõe à Igreja uma provação muito mais acabrunhadora do que um padre que toma uma mulher e que deixa de oferecer a santa Missa. — Depois disto, é preciso explicar que espécie de provação pode sofrer a Igreja de Jesus Cristo por obra do próprio papa, pelo vigário de Cristo em pessoa? A simples formulação desta pergunta, muitos escondem o rosto e não estão longe de gritar que é blasfêmia. Este pensamento os tortura. Recusam-se a olhar de frente uma provação de tal gravidade. Compreendo seus sentimentos. Não ignoro que uma espécie de vertigem se apodera da alma quanto esta é posta diante de certas iniqüidades. Sinite usque huc (Luc. XX, 51) dizia Jesus agonizante aos três Apóstolos, quando avançava a soldadesca do grande sacerdote aos que vinha para prender Jesus, arrastá-lo ao tribunal e à morte. Ele que é o Padre soberano e eterno. Sinite usque huc; é como se o Senhor dissesse: o escândalo pode atingir até aqui; mas deixai; e segundo minha recomendação: VIGIAI E ORAI POIS O ESPÍRITO ESTÁ PRONTO MAS A CARNE É FRACA. Sinite usque huc: pelo consentimento em beber do cálice Eu vos mereci todas as graças, enquanto vós dormíeis e me deixastes só; obtive particularmente uma graça de força sobrenatural na medida de todas as provas; na medida até mesmo da provação que pode sobrevir à santa Igreja por obra do papa. Tornei-vos capazes de escapar a esta própria vertigem.
A respeito desta provação extraordinária há o que diz a História de Igreja e o que não diz a revelação sobre a Igreja. Pois a revelação sobre a Igreja não diz em parte alguma que os papas não pecarão nunca por negligência, covardia, espírito mundano na guarda e na defesa da tradição apostólica. Sabemos que não pecarão nunca fazendo crer diretamente em uma outra religião: este é o pecado que estão preservados pela natureza de seu cargo. E quando empenham sua autoridade dotada de infalibilidade é o próprio Cristo que nos falará e nos instruirá: este é o privilégio de que são revestidos no momento em que se tornam sucessores de Pedro. Mas se a revelação nos afirma estas prerrogativas do papado não diz em parte alguma que, quando o papa exerce sua autoridade num nível abaixo daquele em que é infalível, ele não poderá fazer o jogo de Satã e favorecer até certo ponto a heresia; também, não está escrito nas Santas Cartas que além de não poder ensinar formalmente uma outra religião, o papa nunca poderá deixar sabotar as condições indispensáveis à defesa da verdadeira religião. Uma tal defecção chega a ser consideravelmente favorecida pelo modernismo.
Assim, a revelação sobre o papa não assegura em parte alguma que o vigário de Cristo não infligirá nunca à Igreja a provação de certos escândalos graves; falo de escândalos graves não só na ordem dos costumes privados, mas também na ordem propriamente religiosa e, se se pode assim dizer, na ordem eclesial da fé e dos costumes. De fato, a história da Igreja nos relata que este gênero de provação vinda por obra do papa não faltou à Igreja, ainda que tenha sido rara e nunca tenha se prolongado em estado agudo. O contrário é que seria surpreendente, quando se constata o pequeno número de papas canonizados depois de Gregório VII, o pequeno número de vigários de Cristo que são invocados e venerados como amigos de Deus, santos de Deus. E o mais surpreendente é que papas que suportaram tormentos cruéis, por exemplo um Pio VI ou um Pio VII, não tenham sido tidos como santos nem pela Vox Ecclesiæ nem pela Vox populi. Se esses pontífices, apesar de terem sofrido duramente por serem papas, não suportaram o sofrimento com tal grau de amor que fossem por isso santos canonizados, como se espantar que outros papas, que consideram seu cargo de um modo mundano, cometam faltas graves, ou imponham à Igreja de Cristo provações particulares temíveis e dilacerantes? Quando se está reduzido ao extremo de ter tais papas, os fiéis, os padres, os bispos que querem viver da Igreja têm o grande cuidado de não somente rezar pelo Pontífice supremo, que é então motivo de grande aflição para a Igreja, mas se apegam, mais do que nunca à tradição apostólica: a tradição dos dogmas, do missal e do ritual; à tradição do progresso interior e ao chamado de todos ao perfeito amor no Cristo.
É aqui que a missão daquele irmão pregador que, entre todos os santos é o que mais diretamente trabalhou para o papado, é aqui que a missão do filho de São Domingos, Vicente Ferrer, é particularmente esclarecedora. Anjo do julgamento, legado a latere Crhisti, fazendo depor um papa depois de ter tido a seu respeito uma infinita paciência, Vicente Ferrer é também, e ao mesmo tempo, o missionário intrépido e cheio de benignidade, transbordante de prodígios e milagres, que anuncia o Evangelho à multidão imensa do povo cristão. Ele traz em seu coração de apóstolo não apenas o pontífice supremo, tão enigmático, tão obstinado, tão duro, mas ainda todo o conjunto do rebanho de Cristo, a multidão dos homens do povo desamparados, a turba magna ex ominibus tribubus et populis et linguis. Vicente compreendeu que o autêntico serviço da Igreja estava longe de ser o cuidado maior do vigário de Cristo; o papa punha em primeiro lugar a satisfação de sua obscura vontade de poder. Mas se, ao menos entre os fiéis, o senso da vida dentro da Igreja podia ser despertado, o cuidado de viver em conformidade com os dogmas e os sacramentos recebidos da tradição apostólica; se um sopro puro e veemente de conversão de oração se desencadeassem enfim sobre a cristandade lânguida e desolada, então, sem dúvida, poderia aparecer um vigário de Cristo que fosse verdadeiramente humilde, tivesse uma consciência cristã de seu cargo supereminente, se preocupasse em exercê-lo o melhor possível, no espírito do Soberano padre. Se o povo cristão reencontrasse uma vida de acordo com a tradição apostólica, então se tornaria impossível ao vigário de Jesus Cristo, quando se tratasse de manter e defender esta tradição, cair em certos desvios por demais profundos, deixar-se envolver em certas cumplicidades com a mentira. Tornar-se-ia necessário que um bom papa ou talvez um papa santo sucedesse sem tardar ao mau papa ou ao papa transviado.
Mas muitos fiéis padres, bispos gostariam que em dias de grande infelicidade, quando a provação chega à Igreja da parte de seu papa, as coisas se ponham em ordem sem que eles tenham de fazer nada ou quase nada. No máximo, aceitam murmurar algumas orações. Hesitam mesmo diante do rosário cotidiano: cinco dezenas cada dia, oferecidas a Nossa Senhora, em honra da vida oculta, da Paixão e da glória de Jesus. Têm muito pouca vontade de se aprofundar na fidelidade à tradição apostólica no que diz respeito aos dogmas, ao missal e ritual, à vida interior (o progresso da vida interior faz, evidentemente, parte da tradição apostólica). Tendo, como fiéis, consentido em ser tíbios, escandalizam-se, no entanto, com que o papa, como papa, não seja, ele tampouco, fervorosíssimo quando se trata de guardar para a Igreja toda a tradição apostólica, quer dizer, cumprir fielmente a missão única que lhe foi confiada. Esta visão das coisas não é justa. Quanto mais necessidade temos de um santo papa, mais devemos começar por colocar nossa vida, com a graça de Deus e guardando a tradição, nas pegadas dos santos. Então o Senhor Jesus acabará por conceder ao rebanho o pastor visível que o rebanho se esforçou por merecer.
À insuficiência e defecção do chefe não acrescentemos nossa negligência particular. Que a tradição apostólica esteja ao menos viva no coração dos fiéis mesmo se, no momento, ela é fraca no coração e nas decisões daquele que é responsável pela Igreja. Então, certamente, o Senhor usará de misericórdia para conosco.
Ainda mais, é preciso para isto que nossa vida interior se refira não ao papa, mas a Jesus Cristo. Nossa vida interior, que inclui evidentemente, as verdades da revelação a respeito do papa, deve se referir puramente ao Soberano Padre, a nosso Deus e Salvador Jesus Cristo, para sobrepujar os escândalos que sobrevêm à Igreja pelo Papa.
Tal é a lição imortal de São Vicente Ferrer nos tempos apocalípticos de uma das maiores falências do pontífice romano. Mas, com o modernismo, estamos conhecendo provações mais terríveis. Razão a mais imperiosa para vivermos puramente, e em todos os pontos, a tradição apostólica; — em todos os pontos, compreendendo esse ponto capital de que, praticamente, nunca mais se falou depois da morte do padre dominicano Garrigou-Lagrange: a tendência efetiva para a perfeição do amor. E no entanto, na doutrina moral revelada pelo Senhor e transmitida pelo apóstolos, está dito que devemos tender para o amor perfeito, já que a lei do crescimento em Cristo é a própria lei da graça e da caridade que nos unem ao Cristo.
6 — Devemos ainda considerar a transcendência e obscuridade do dogma relativo ao papa: o dogma de um pontífice que é vigário universal de Jesus Cristo e que, no entanto, não está ao abrigo de falhas, até mesmo graves, que podem ser muito perigosas para os súditos. Ora, o dogma do pontífice romano não é , em si mesmo, senão um aspecto do mistério mais fundamental, o da Igreja. Sabemos que duas grandes proposições nos introduzem neste mistério: primeiramente, a Igreja, recrutada entre pecadores, o que somos todos, é no entanto dispensadora infalível da luz e da graça, porque, infalivelmente, do alto dos céus, seu chefe e salvador a anima, a sustenta e a governa; enquanto que, sobre a terra, Ele oferece por ela, seu sacrifício e a alimenta de Sua própria substância. Em seguida, a Igreja, Esposa santa do Senhor Jesus, deve ter parte na cruz, incluindo a cruz da traição pelos seus; — ela não deixa por isso, de ser assistida fortemente em sua estrutura hierárquica, a começar pelo papa, e de ser ardente de caridade; em resumo, permanece em todo tempo bastante pura e santa para ser capaz de participar das provações de seu Esposo, incluindo a traição de certos hierarcas, conservando intacta seu senhorio interior e sua força sobrenatural. A Igreja não será nunca entregue à vertigem.
Se, em nossa vida interior, a verdade cristã a respeito do papa está situada como deve no interior da verdade cristã a respeito da Igreja, venceremos na luz o escândalo da mentira que pode sobrevir à Igreja pelo vigário de Cristo ou pelos sucessores dos apóstolos. Ao menos quanto aos bispos, santa Joana d’Arc é, nisso, um modelo incomparável. Por nossa vez, e segundo nossa fraca medida, tentaremos ser fiéis àquilo que foi uma das graças particulares de santa Joana d’Arc.
7 — Quando pensamos no atual papa (Paulo VI), no modernismo instalado na Igreja, na tradição apostólica, na perseverança nesta tradição, somos cada vez mais reduzidos a só podermos considerar estas questões na oração, implorando instantemente pela Igreja inteira e por aquele que, em nossos dias, conserva nas mãos as chaves do reino dos céus. Ele as conserva em suas mãos, mas delas não faz uso, por assim dizer. Deixa abertas as portas do aprisco que dão para o caminho por onde se aproximam os malfeitores; não fecha as portas protetoras que os seus predecessores tinham mantido invariavelmente trancadas, com fechaduras inquebráveis e cadeados infranqueáveis; algumas vezes até parece abrir o que será para sempre conservado fechado e este é o equívoco do ecumenismo pós-conciliar. Eis-nos reduzidos à necessidade de só pensar na Igreja rezando por ela e pelo papa. É uma bênção. No entanto, pensar na nossa Mãe, pensar na Esposa de Cristo nestas condições de grande piedade, não diminui em nada a resolução de ver claro. Ao menos que esta lucidez indispensável, esta lucidez sem a qual afrouxará toda força, seja penetrada de tanta humildade e doçura que façamos violência ao Soberano Padre para que Ele se apresse em nos socorrer. Deus in adjutorium meum intende, Domine ad adjuvandum me festina. Pedimos-lhe encarregar sua santíssima Mãe, Maria Imaculada, de nos trazer, o mais cedo possível, o remédio eficaz.
Tradução de “Itinérarires”, n° 206 de Júlio Fleichman.
Revista Permanência N° 140-141, Julho-Agosto de 1980.
Apesar de já termos mostrado com dois textos que as dúvidas que pairam sobre a integridade das canonizações feitas ultimamente são baseadas em questões objetivas, teológicas, e não em simples opinião nossa, algumas pessoas continuam a insinuar que essas dúvidas seriam por termos um espírito cismático. Para fortalecer ainda mais o fundamento teológico da nossa posição, respondendo às calúnias injuriosas, trazemos este trabalho publicado no jornal italiano SiSiNoNo, em sua versão brasileira, SimSimNãoNão, de março de 2003
IDÉIAS CLARAS SOBRE AS CANONIZAÇÕES
Um leitor nos escreve:
«Rvdo. Diretor:
Confesso que me acho perplexo, não só diante algumas beatificações, mas também com relação a uma canonização recente. Comumente se dá por certa a infalibilidade do Papa ao canonizar santos, mas, após efetuar uma investigação por minha conta, constatei que essa questão está muito longe de se achar definida...»
Assim é, com efeito. Ainda não há uma definição da Igreja a respeito disso, nem se pode falar de uma tradição constante sobre o assunto em questão.
Desde que a Santa Sé reservou para si as causas de canonização, os teólogos e canonistas discutiram, durante mais de nove séculos, sobre a infalibilidade do Papa ao declarar santa uma pessoa, dividindo-se em “infalibilistas” e antiinfalibilistas”. Apesar disso, começou a impor-se a tese infalibilista a partir de 1800, a tal ponto que hoje constitui uma “sentença comum” entre os teólogos . Mas que quer dizer isso? E que atitude deve tomar um católico diante de uma “sentença comum”?
“Sentença comum, mas ainda não fundada satisfatoriamente
«A sentença comum é uma doutrina pertencente, de si, ao âmbito das opiniões livres, mas sustentada comumente pelos teólogos» .
Quanto à atitude que se deve adotar com relação à ela, seria temerário quem se opusesse, «sem fundamento, à sentença dos demais em matéria teológica» , quer dizer, quem «se afastar sem motivo da doutrina comum» ; mas, se se der tal “motivo”, tal “fundamento”, isto é, se houver razões fundadas para afastar-se da sentença comum, ninguém estaria obrigado a “fazer coro com os demais”.
No tocante à infalibilidade nas canonizações (todos convêm que não se dá a infalibilidade nas beatificações), alguns teólogos, mesmo sem se afastar da sentença comum, reconhecem que «a dificuldade do problema está em achar uma prova verdadeiramente satisfatória dessa infalibilidade cuja existência se afirma» . Assim se exprime o teólogo alemão Scheid. E Bartmann, que o cita, observa por sua vez que a tese “infalibilista”, mais que em «argumentos particulares e peremptórios», se funda em um «‘feixe de argumentos’, como se o número devesse suprir, de certo modo, a debilidade de cada argumento tomado separadamente» .
Tal debilidade dos argumentos “infalibilistas” foi há pouco posta em evidência por um estudo do dominicano Daniele Ols, professor no Angelicum e “relator” da Congregação das Causas dos Santos. O estudo em questão versa sobre os fundamentos teológicos do culto aos santos. Limitar-nos-emos aqui a resumir a parte atinente a nosso tema.
“Fato dogmático”?
Dois aspectos na canonização devem ser levados em conta:
1) A afirmação do princípio geral segundo o qual quem pratica as virtudes cristãs em grau heróico vai para o paraíso.
2) A aplicação desse princípio geral a um indivíduo concreto, particular.
Ora, ainda que é fácil demonstrar que o princípio geral está contido na revelação divina, «é evidente, apesar disso, que o fato de que Tício ou Caio viveram santamente não se contém nela, nem de maneira explícita nem implicitamente» (pág. 34). Daí vem que os teólogos digam, comumente, que as canonizações pertencem ao domínio dos “fatos dogmáticos”, ou seja, daqueles fatos não revelados de si mesmo, mas relacionados estreitamente «com uma doutrina que deve ser afirmada ou uma heresia que é mister condenar» (pág. 33). Assim se explica por que, «em geral, quem examina o problema se detém aqui e conclui asseverando que a Igreja pode canonizar infalivelmente» (pág. 34). Mas, no caso da canonização, dá-se realmente uma conexão necessária e estreita entre a proclamação da santidade de uma pessoa e a doutrina sobre a glória dos santos?
É evidente que a Igreja é infalível na condenação não só das heresias, mas também dos hereges individualmente considerados, assim como dos escritos heréticos, porque é rigorosamente necessário para sua missão «não só condenar erros em abstrato (freqüentemente pouco compreensíveis para muitos), mas mostrar também os fautores desses erros e os escritos que os propagam, de maneira que os fiéis possam manter-se longe deles» (págs. 33 e s.). O caso da canonização, no entanto – observa o autor do estudo - , «não é exatamente igual ao da condenação de um herege. No caso da condenação, está claro que nos achamos diante de um grave perigo para a fé dos cristãos e que a identificação precisa de tal perigo é necessária para a preservação da dita fé. Ao contrário, quando se trata da canonização, não temos nada disso. [...]. Não se seguiria um dano mortal para a fé em caso de erro, ainda que, salta aos olhos, seria algo muito desagradável. Em outras palavras, se os fiéis seguissem a Lutero, seria de mortal gravidade, mas se, por acaso, venerassem um santo que estivesse de fato no inferno, isso careceria de tal gravidade; e a dita veneração poderia aproveitar à sua vida cristã como se a rendessem a um santo autêntico, porque essa veneração teria por objeto a pessoa em questão unicamente enquanto considerada santa, amiga de Deus» (pág. 33).
O autor aduz, em confirmação do que disse, o caso dos «santos duvidosos ou até inexistentes», cuja devoção não acarreta nenhum dano, nem à doutrina católica, nem à fé dos devotos que os veneram, «por causa de suas (presumidas) virtudes cristãs, sinal de sua (também presumida) união com Deus». Tampouco os pedidos «formulados por meio da intercessão desses pseudo-santos» são forçosamente ineficazes, já que, ao ser a confiança na intercessão dos santos uma forma de confiança em Deus, «compreende-se que Deus ouça favoravelmente uns pedidos que, por falta de intermediário, vão a Ele diretamente» (pág. 35; citação do bolandista Delehaye). Daí a conclusão: «Por isso, como a canonização de tal ou qual pessoa não é necessária para a guarda e defesa do depósito da fé, não parece que a matéria da canonização seja tal, que esteja sujeita à infalibilidade» (ibi).
Uma semelhança só aparente
Demonstrada a debilidade do argumento principal dos “infalibilistas”, o autor passa a examinar «a fórmula da canonização solene», que «se considera geralmente como a prova de que o Papa pretende empenhar sua infalibilidade na canonização».
Apesar do fato de que falta nas canonizações “eqüipolentes” (o qual traz algumas dificuldades aos “infalibilistas”), a fórmula das canonizações solenes só em aparência é idêntica às fórmulas dogmáticas, por exemplo, às usadas por Pio IX e Pio XII para definir, respectivamente, o dogma da Imaculada Conceição e o da Assunção da Santíssima Virgem. Idêntica nada mais que em aparência porque, segundo observa o autor, «estas últimas fórmulas dizem explicitamente que uma determinada doutrina deve ser crida (ou que constitui um dogma revelado por Deus, que vem a ser o mesmo). A fórmula da canonização é mais vaga, posto que se limita a definir (o qual significa “determinar”), não que se deve crer que fulano de tal é santo, mas só que fulano de tal é santo». Tampouco a fórmula da canonização diz «que tipo de assentimento o fiel deve prestar à definição», enquanto que nas fórmulas dogmáticas está claro que as doutrinas definidas devem ser cridas por serem reveladas por Deus e, por isso, com fé divina.
Para comodidade de nossos leitores, transladamos aqui as fórmulas usadas por Pio IX e Pio XII, e depois as que costumam ser empregadas nas canonizações.
«Declaramos, pronunciamos e definimos que a doutrina que defende que a Beatíssima Virgem Maria [...] foi [...] preservada imune de toda mancha de culpa original foi revelada por Deus e, por conseguinte, deve ser crida firme e constantemente por todos os fiéis (esse a Deo revelatam atque idcirco ab omnibus fidelibus firmiter constanterque credendam)», lê-se na bula dogmática Ineffabilis Deus, de Pio IX; «pronunciamos, declaramos e definimos ser dogma divinamente revelado (divinitus revelatum dogmam esse) que a Imaculada Mãe de Deus, a sempre Virgem Maria [...] foi assunta em corpo e alma à glória celeste. Por isso, se alguém [...] ousar voluntariamente negar ou pôr em dúvida o que por Nós foi definido, saiba que desertou totalmente da fé divina e católica», lê-se na bula dogmática Munificentissimus Deus, de Pio XII.
Muito mais vagas e genéricas são as fórmulas das bulas ou, para nos expressarmos com mais propriedade, das cartas decretais de canonização: Sanctum esse decernimus et definimus (canonização de São José Kalinowski: 17 de novembro de 1991); Sanctos et sanctam esse decernimus et definimus (canonização de São Pio V, Santo André Avelino, São Félix de Cantalice e Santa Catarina de Bolonha: 22 de maio de 1712). Salta aos olhos a diversidade sublinhada pelo autor.
A carência de anátema e uma evolução significativa
A diversidade substancial que medeia, apesar de algumas semelhanças aparentes, entre as bulas dogmáticas e as canonizatórias se confirma por carecer estas últimas do anátema com que se encerram as bulas dogmáticas, assim como pela evolução sofrida na cláusula tradicional das bulas de canonização.
A primeira bula de canonização conhecida é também a única em que figura um anátema. Mas, naquela época (ano de 993), o “anátema”, como se adverte no decreto de Graciano, não sancionava um delito contra a fé, mas correspondia a uma forma mais grave de excomunhão por um delito de desobediência, «pelo que estaria absolutamente fora de lugar tratar de inferir, da existência daquele [único] anátema, a existência de uma definição dogmática».
Não só já não figura o anátema nas seguintes bulas de canonização, mas tampouco se faz censura ou ameaça alguma de sanção até Gregório XI (1371). Aparece com este Papa uma cláusula que, a partir de Pio II (canonização de Santa Catarina de Sena: 1461), se usou em todas as bulas de canonização até João XXIII, «com amplificações que não mudavam sua substância»; daí que constituísse a cláusula tradicional, por assim dizer. Ameaçava-se nela com «a indignação de Deus onipotente e dos Santos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo» a quem ousasse contraire (“ficar contra”) a bula papal. Depois, a dita cláusula (presente ainda nas duas primeiras bulas de canonização do Papa Roncalli) deu lugar a fórmulas cada vez mais brandas, que se limitavam a recordar as penas previstas pelo direito para os desobedientes , até desaparecer de todo nas canonizações do próprio João XXIII e nas de Paulo VI e João Paulo II .
Esse desaparecimento confirma que a cláusula tradicional sublinhava a autoridade do Papa, mas não sua intenção de comprometê-la no grau em que é infalível: quer dizer, advertia «sobre as penas divinas e humanas em que incorreria quem desobedecesse», razão pela qual «se podia suprimi-la sem mudar nada da substancia das coisas, porque é sabido, ainda que se não mencione, que quem desobedece ao Papa se expõe à indignação divina e às penas previstas pelo direito».
Deve notar-se, com efeito, que, diferentemente das bulas dogmáticas, na cláusula tradicional das bulas de canonização «não se ameaça com a indignação divina aquele que não crer na verdade da canonização, mas aquele que for contra [em latim: contra-ire], quer dizer, aquele que manifestar externamente seu dissentimento. Os anátemas das definições dogmáticas, ao contrário, condenam antes de tudo os que não crêem na verdade definida, e somente depois os ameaça com censuras se expressarem publicamente sua dissensão» (págs. 41-42).
Eis aqui, a modo de exemplo, a cláusula da proclamação do dogma da Imaculada Conceição: «Pelo que, se alguém presumir sentir no coração [corde sentire] contrariamente àquilo por Nós definido, o qual Deus não permita, conheça e saiba com certeza que está condenado por seu próprio juízo, que naufragou na fé e se apartou da unidade da Igreja, e que ademais, por seu próprio ato, fica submetido às penas estabelecidas no direito se o que sente no coração, atrever-se a manifestá-lo em palavras ou por escrito ou de qualquer outra maneira» (Ineffabilis Deus).
Compare-se agora a cláusula anterior com a cláusula tradicional nas bulas de canonização: «Que a ninguém seja lícito violar o que Nós quisemos e determinamos neste texto ou ficar contra o mesmo com audácia temerária. Se alguém ousar tentá-lo, saiba que incorrerá na indignação de Deus onipotente e dos Santos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo» (Nulli ergo hominum liceat hanc paginam nostrae voluntatis et constitutionis infringere vel ei ausu temerario contraire. Si quis autem hoc attentare praesumpserit indignationem omnipotentis Dei et beati Petri et Pauli Apostolorum eius se noverit incursurum).
Como se vê, falta, nas bulas de canonização, a primeira parte da condenação: aquela na qual se incorre por “sentir no coração contrariamente...”, ou, falando como os teólogos, por negar o internum mentis assensum (a adesão interna da mente); subsiste somente a segunda censura, a que é reservada a quem atuar contra a bula no foro externo, quer dizer, a quem não observar o que os teólogos chamam o silentium obsequiosum (o silêncio ditado pelo respeito), que não permite àquele que dissente em seu coração, contradizer publicamente a autoridade (salvo se se dá “um perigo de escândalo para a fé”, como veremos).
Para concluir e para tirar toda possível dúvida de que a cláusula tradicional das canonizações não prova a intenção do Papa de empenhar sua infalibilidade, sobressai-se o fato indiscutível de que a dita cláusula «não é própria das bulas de canonização, mas faz parte do esquema normal de qualquer bula, inclusive do esquema das que carecem de todo alcance doutrinal». Assim, por exemplo, Clemente VIII a usa tanto na bula de canonização de Raimundo de Peñafort, quanto na bula Ea Romani Pontificis, que estabelece a jurisdição, os privilégios, etc., dos auditores da Câmara Apostólica. Daí que «não se pode inferir» que «haja definições infalíveis nas bulas de canonização porque se ameace nelas com a indignação divina, visto que também são objeto da mesma ameaça os que não respeitam as tarifas estabelecidas para os notários, etc.» (pág. 41).
A “definitio” e o testemunho de Bento XIV
Por outra parte, o termo “definitio” figura nas bulas de canonização pelo mero fato de que «se emprega a palavra ‘definimus’ no corpo do documento», ainda que seja para denotar uma “determinação”, uma “decisão” do Romano Pontífice, não sua intenção de pronunciar-se infalivelmente, como nas bulas dogmáticas. Sobre isto temos o testemunho acreditado e decisivo de Bento XIV, que, ainda que se inclinava pessoalmente para a infalibilidade do Papa nas canonizações, contudo, afirma ser lícito sustentar a tese oposta, a “antiinfalibilista”, o qual ele não poderia afirmar se a cláusula tradicional de canonização - usada por ele também na única canonização de seu pontificado - manifestasse a intenção papal de pronunciar uma sentença infalível, como queriam os “infalibilistas”.
“Certum est” e “pie credendum est”
O autor se detém também na posição de Santo Tomás, «a quem às vezes se quis contar no número dos infalibilistas, mas que propõe, na realidade, uma solução de senso comum, fundada na convicção segundo a qual o Espírito Santo assiste a Igreja, sem que se requeira, no caso específico das canonizações, que a dita assistência garanta a infalibilidade» (pág. 45).
Interrogado sobre o assunto, Santo Tomás responde, com efeito:
1) É certo que é impossível que a Igreja erre quando julga em matéria de fé (certum est quod iudicium ecclesiae universalis errare in his quae ad fidem pertinent impossibile est).
2) Ao contrário, é possível que a Igreja erre ao julgar fatos particulares, por causa de testemunhas falsas (possibile est iudicium ecclesiae errare propter falsos testes).
3) A canonização dos santos se acha «a meio caminho» entre os dois casos precedentes [medium est inter haec duo]; não obstante, dado que a honra tributada aos santos é uma profissão de fé na glória destes, deve-se crer piamente [pie credendum est] que tampouco nestes casos pode errar o juízo da Igreja (Quodlibet 9, a. 16).
O autor sublinha as diferentes fórmulas empregadas por Santo Tomás: em matéria de fé, “é certo” que é impossível” que a Igreja possa errar: certum est quod [...] errare [...] impossibile est; no tocante às canonizações, ao contrário, Santo Tomás diz que “se deve crer piamente” que tampouco nelas pode errar a Igreja: pie credendum est quod nec etiam in his [...] errare possit. Ora, a expressão pie credendum est, assim como a análoga pie creditur (“há razões para crer piedosamente”), são usadas por Santo Tomás cada vez que «nem existe nem pode existir um ensinamento infalível da Igreja sobre algo, por carecer de base na Revelação (ou porque não se trata de realidades necessárias para a salvação), o que não impede que se dêem motivos, mais ou menos decisivos, para pensar que as coisas sejam de uma maneira determinada». Os ditos motivos nos são dados pelo «conhecimento geral que a Revelação nos dá acerca da maneira de agir habitual de Deus». Donde se depreende que o pie credendum est usado para a canonização significa que, «não tendo a canonização um fundamento preciso na Revelação, nem podendo tê-lo, não pode ser considerada como ato garantido pela infalibilidade, mas como um ato que a fé que temos na assistência geral do Espírito Santo à Igreja nos convida a considerar como isento de erro» (pág. 48).
Conclusão do autor
Essa parte do estudo relativa à infalibilidade nas canonizações se conclui com a sentença de Bento XIV, que distingue duas questões cuidadosamente.
1) É de fé que as canonizações são infalíveis?
Bento XIV, ainda que inclinado pessoalmente para a infalibilidade, respondeu assim a essa primeira pergunta: «parece-nos que ambas as opiniões [infalibilista e antiinfalibilista] devem deixar-se em sua probabilidade até que intervenha o juízo da Sé Apostólica» (De servorum Dei I, 1 e 45, nº 27).
Na falta desse juízo definitivo, põe-se esta segunda questão:
2) É lícito negar a santidade deste ou daquele canonizado?
Bento XIV responde que quem negar a santidade deste ou daquele canonizado particular seria, «se não herege, ao menos temerário; escandaloso para toda a Igreja; injurioso para com os santos; favorável aos hereges, que negam a autoridade da Igreja na canonização dos santos; suspeito de heresia, abrindo o caminho aos infiéis para que se mofem dos fiéis; defensor de uma proposição errônea, e merecedor de penas gravíssimas» (ibid., nº 28).
Como é lógico, assim como as censuras evocadas pelas bulas de canonização, também essas “notas” de Bento XIV valem para quem, “sem motivo suficiente”, negar ou colocar em dúvida publicamente a santidade deste ou daquele canonizado, mas não para quem em “seu coração” tenha ou creia ter “motivos fundados” para negá-la ou duvidar dela, mas observe o silentium obsequiosum, abstendo-se de exteriorizar publicamente sua dissensão (pág. 49, nota 126).
Nossa conclusão
A tudo isso acrescentamos nós que “um perigo de escândalo para a fé” pode tornar lícito, inclusive obrigatório, até no caso das canonizações, romper o silentium obsequiosum para com a autoridade, conforme ensina Santo Tomás: «quando há um perigo para a fé, os súditos são obrigados a repreender seus Prelados, mesmo em público» (Suma Teológica IIª-IIae, q. 33, a. 4 ad 2); e diz também, citando São Gregório: «se o escândalo nasce da verdade, é mister antes suportar o escândalo que abandonar a verdade» (op. cit. IIIª parte, q. 42, a. 2 ad 1).
O dito perigo dar-se-ia se se chegasse (Deus não o permita!) à canonização de João XXIII e Paulo VI para dar crédito ao concílio e à catastrófica mudança de rumo imposta ao mundo católico, ainda que o primeiro não gozasse mais do que de uma fama postiça, fabricada, de ser um homem de “natural bonachão”, ao passo que da pessoa do segundo não emanava nada que recordasse, nem de longe, o odor de santidade. Assim, torna-se sobremaneira útil, nas circunstâncias históricas atuais, ter idéias claras também sobre a infalibilidade nas canonizações, para o qual pensamos que o estudo resumido acima pode constituir uma valiosa ajuda.
Hyrpinus
Carta dirigida a sì sì no no:
«Gostaria de dar a conhecer minha experiência com a Renovação Carismática e ao mesmo tempo pedir perdão a todas as pessoas, muitas seculares e sacerdotes, que convidei e induzi a entrar em contato com esta nova ‘realidade espiritual’, participando em diversas reuniões de oração de grupos carismáticos que, graças a vossa revista sì sì no no, se me mostram cada vez mais como movimentos de natureza diabólica.
Antes de tudo peço perdão a minha mulher e a minhas filhas por haver sido incapaz de ver os perigos destas ‘seitas’, ou por havê-las conduzido a atividades que, passado o tempo, contribuíram de forma essencial na divisão de minha família e até na nossa separação. Como cabeça da família não fui bem alerta, cegando-me o orgulho carismático; espero que o Senhor, em sua misericórdia, na qual creio, se dignará voltar a unir o que o homem separou.
Realmente podem classificar-se entre as ‘seitas’ os grupos da Renovação Carismática; com efeito, não se pode entrar de fato nestes grupos senão através do ‘batismo no espírito’, e, uma vez que entrou, dificilmente pode alguém sair, já que a Verdade é manipulada, crêem possuí-la, situando-se ademais em um nível espiritual superior com respeito aos demais, que ‘são incapazes de compreender’; não aceitam nenhum conselho, nem sequer de um sacerdote, enquanto este não se mostre de acordo com a visão carismática.
Comecei a assistir, junto com minha futura esposa, ao grupo da Renovação Carismática Comunidade Cristã para uma vida nova, em Villafranca (Itália), no ano de 1981, chegando a ser muito rapidamente um de seus principais membros, e recebendo até pouco tempo depois, como minha mulher, o fatídico e satânico vestígio do ‘batismo no espírito’, dentro já do grupo carismático de Bréscia, o grupo do Pe. Dino Foglio, coordenador nacional da Renovação Carismática.
O grupo, que então contava só com algumas pessoas, centrava-se na personalidade carismática de seu diretor, De Pieri Luciano, de Mântua, que havia sido expulso dos grupos da Renovação em Verona, nos quais eu havia estado, por causa de sua conduta e idéias nada conformes à maioria destes grupos.
Com o tempo, e devido à atração exercida pelo diretor do grupo com seus ‘carismas’ de cura e doutrinamento, crescia constantemente o número de pessoas que participavam nos encontros de oração, os quais tinham lugar às terças-feiras para os ‘renovados no espírito’ (quer dizer, os que já haviam sido iniciados mediante o ‘batismo no espírito’ ou ‘efusão no espírito’, segundo o jargão carismático) e aos sábados para todos em geral. Tais ensinamentos estavam orientados, amiúde, para o conhecimento do Maligno e de suas artimanhas; questões que atraíam a curiosidade dos presentes e que ao mesmo tempo davam a entender, por parte dos que as apresentavam, um profundo conhecimento do mundo referente ao ocultismo. Pouco antes de deixar tudo isso, encontrei no lugar de nossas reuniões, onde rezávamos pelas necessidades dos que se nos encomendavam, um livro de práticas esotéricas e uma pirâmide de metal.
Nas reuniões que se organizavam nos fins de semana sobre diversos temas bíblicos, podíamos ouvir amiúde oradores protestantes, tais como Fred Ladenius, Chablot, Mauro Adragna e muitos outros. Essas reuniões eram também ocasião para recolher fundos (pela inscrição nestes cursos, por fitas cassete e por várias outras coisas). O grupo crescia, muitos receberam a ‘efusão do espírito’, os ‘carismas’ iam aparecendo: amiúde esses ‘carismas’ eram concedidos ou retirados ao bel-prazer do diretor. Os mais solicitados eram os de profecia, discernimento e cura. Era uma espécie de procura dos carismas mais chamativos; só faltava um na comunidade, o principal: a caridade.
Criaram-se pequenos ‘cenáculos’ de oração nas casas dos mais antigos do grupo, para que assim as pessoas iniciadas no caminho carismático pudessem crescer ‘espiritualmente’ de forma mais intensa. Minha casa se converteu em um centro de reunião para um ‘cenáculo’ na sexta-feira pela tarde. Hoje recordo com pesar a decisão nefasta que tomei então: pensava invocar o Espírito Santo, mas invocava, em verdade, o espírito de Satanás; cria louvar a Deus falando diversas línguas, mas, muito pelo contrário, maldizia-o, e isso em minha própria casa, até na Sexta-Feira Santa.
Minhas filhas, com ainda poucos anos, começaram a rezar em línguas estrangeiras. O grupo crescia tanto, que foi necessário fazer duas reuniões no sábado.
Passados dez anos desde o início destas reuniões, teve-se notícia por pessoas de fora das ‘curas’ que ali se produziam; os jornais da região transmitiram as opiniões dos que se haviam sentido ‘beneficiados’, e desta forma o bispo de Verona de então, Dom Amari, enviou um representante seu para informar-se da situação. Este sacerdote não foi bem recebido. Sentado no fundo da sala onde se dava a reunião, não pôde contar com a ajuda dos responsáveis da comunidade para levar a cabo sua missão.
O informe que entregou ao bispo não foi positivo, principalmente por estas três razões:
1) Tempos de oração que se realizam geralmente sob impulsos emocionais, sem espaço para uma adequada catequese que permita uma experiência cristã fundamentada na objetividade da fé e no caráter concreto da vida eclesial.
2) A oração para obter publicamente uma cura, levada a cabo de forma sensacionalista, está centrada na fórmula ‘ver para crer’; tudo isso vivido em um contexto muito emocional, que pode levar a confundir uma sugestão coletiva de pessoas, amiúde em situação difícil, com a intervenção milagrosa do Espírito.
3) A experiência, centralizando-se de forma quase exclusiva na petição de curas, alentava, sobretudo nos enfermos, falsas e ilusórias esperanças que podiam conduzir a uma visão religiosa deformada e às vezes a uma espécie de enfeitiçamento das consciências.
O bispo solicitou aos responsáveis que suspendessem as reuniões, proibindo os sacerdotes, religiosos e religiosas de participar nelas, e de dirigir a intervenção dos fiéis nestes atos, exortando também os seculares a que não comparecessem de maneira alguma. Mas nós, em espírito de ‘obediência’, continuamos com nossas reuniões, afirmando que o bispo não havia compreendido nada e que havia sido mal informado, e que — de qualquer forma — era preciso ‘obedecer a Deus antes que aos homens’.
Enquanto isso, minhas relações com o ‘dirigente’ do grupo se tornaram mais tensas, devido a suas atitudes autoritárias e às decisões pessoais que tomava, pelas quais as pessoas mais humildes eram excluídas amiúde de seus favores. Em nosso grupo se manifestava sempre com mais força o verdadeiro espírito carismático da renovação, quer dizer, os ‘carismas’ próprios do Maligno ou, o que é o mesmo, o orgulho, a inveja, os zelos amargos, e especialmente o ódio e a intolerância para com todos aqueles que se rebelavam contra o chefe carismático. ‘O chefe jamais se equivoca’, dizia-me um membro antigo do grupo. Então eu era o responsável pela seção ‘canto’ dentro da comunidade, mas, por causa destas atitudes contrárias ao que sentiam todos, fui cada vez mais marginalizado. Depois de lançarem contra mim uma mentira que era evidente e dita diante de todos os responsáveis da comunidade, que conheciam a verdade mas não fizeram nada para defender-me, tomei a decisão de deixar definitivamente o grupo.
Neste tempo se foi criando, de forma lenta, uma muito séria incompreensão entre minha mulher e mim, pois ela continuava participando nos encontros de oração. Tempos depois me disseram que sobre ela se haviam pronunciado amiúde orações segundo a maneira típica da ‘Renovação’, com imposição das mãos, invocação do ‘Espírito Santo’, preces em diversas línguas, profecias e leituras de passagens bíblicas. Durante a oração para os enfermos tinha lugar, às vezes, o que segundo a terminologia carismática se chama ‘repouso do espírito’. Trata-se de uma espécie de ‘transe’ consciente, no qual a pessoa afetada chega a ouvir as vozes dos que a rodeiam, mas não pode mover-se. Crê-se que é nesse estado que se está em condições ótimas para a cura.
Dois anos mais tarde minha mulher e eu nos separamos. Durante esse tempo o grupo se havia dividido: a maioria havia seguido o ‘chefe’, instalando-se na nova sede de Peschiera; eu continuava com outros no mesmo lugar, o qual agora era sede de um grupo de Pentecostais de raça negra. Outro grupo se formou graças a novos ‘batismo no espírito’, chegando-se até a pronunciar a invocação sobre um sacerdote, Pe. Saverio Mazzi, encarregado pelo bispo de Verona, Dom Nicora, sucessor de Dom Amari, de estar presente nos encontros de oração. Por essa época conheci um grupo de católicos tradicionalistas de Verona, mas sua Fé católica era incompatível com a minha. Tive de escolher e deixei definitivamente, apesar das dificuldades, a experiência carismática. Dou graças a Deus, o qual me fez conhecer verdadeiros amigos, que nunca me abandonam e que são uma referência constante para mim.
Esses quinze nos passados na Renovação Carismática não deixaram nenhum vestígio positivo em minha vida. Aos 44 anos me encontro sem família, a qual amo e à qual me sinto unido, com a sensação de haver perdido inutilmente tanto tempo e com poucas forças para rezar e seguir o único caminho que considero válido atualmente: o caminho do catolicismo tradicional. De qualquer forma, creio que para os que amam a Deus tudo sucede para seu bem e que Ele pode mudar totalmente em um momento a situação em que me encontro, da qual, ao menos por ora, não vejo saída alguma.
A crise atual da Igreja, da qual Nossa Senhora falou em Fátima e da qual faz parte a Renovação Carismática como elemento principal, terá fim. Acabarão, para maior glória de Deus, as adulações humanas, os falsos carismas e as mentiras dessa espiritualidade demoníaca».
Carta devidamente assinada
Um leitor nos escreve:
Caro diretor,
Li com grande interesse seu artigo no Sim Sim Não Não de setembro passado (há sete anos devoro esse jornal, forte alimento espiritual que tem renovado minha vida) e gostaria de partilhar certas considerações e questões sobre um assunto que para mim é de importância vital. O senhor diz com Leão XIII que às vezes é preciso desobedecer aos homens para obedecer a Deus, o que é muito correto. Pergunto-me, entretanto, como o simples fiel pode fazer distinção, cada vez que o Papa fala, entre o que está correto e o que não está. O simples fiel tem uma noção da infalibilidade que talvez não seja teologicamente exata, mas é uma noção de bom senso: normalmente, podemos confiar tranqüilamente no que diz o Papa quando se trata de um assunto justo e santo, mesmo que tal assunto não esteja dentro do âmbito da infalibilidade. O Papa age e fala normalmente para o bem das almas e não para sua perdição. Na verdade, a atitude da maioria esmagadora dos católicos em relação aos que são fiéis à tradição é uma atitude de desconfiança, pois aparentemente, estes “pretendem saber mais do que o Papa”. Nós temos o Sim Sim Não Não e outras publicações excelentes para nos guiar, mas o que farão os que não têm essa chance? Como pode o simples católico se orientar nos meandros do magistério papal, guardando o que deve ser guardado e rejeitando o que deve ser rejeitado? O Papa não é a norma estrita da verdade? Quero dizer que, se formalmente o discurso de Georgius não muda de rumo, conclui-se que, pelo intuito ou pelo bom senso (não falo do sensus fidei), ou deve-se aceitar tudo o que o Papa diz ou deve-se tudo desprezar. Não me refiro a assuntos menores, mas à linha magisterial em seu conjunto, linha caracterizada por um extremismo ecumênico sem precedentes, fundada sobre um erro doutrinal de fundo (o fundamento da salvação deslocado da Redenção para a Encarnação), como bem mostrou o professor Doerman em suas obras. Eis porque as posições sedevacantistas, sem entrar nas distinções entre elas, me parecem mais lógicas e mais defensáveis, entre outras razões, porque permitem não nos alinharmos com os extremistas de “esquerda”, que criticam o Papa por motivos opostos. Não ignoro que o sedevacantismo origina alguns problemas doutrinais, mas eles me parecem menos graves do que o fato de reconhecer como Pontífice uma pessoa que, ocasionalmente, tem razão em pontos particulares, mas que fundamenta seu pontificado sobre uma doutrina já condenada pela Igreja, e que instaurou na própria Igreja (os senhores ilustram isso regularmente na rubrica “Semper Infideles”) uma situação aparentemente desesperadora. Não foi o senhor que nos explicou (esses princípios estão gravados na minha alma) que “a fé ou é inteira ou não é”, que “a pior mentira é aquela que se aproxima da verdade”, e que nas heresias e nas falsas religiões “a verdade serve ao erro”? Não podemos repetir tudo isso, falando de João Paulo II? Ele não parece lembrar-se da doutrina católica somente de vez em quando? Para que tenhamos certeza de que ele não é Papa, ao menos formalmente (o caso do Papa herético é previsto pela doutrina), o que teria ele ainda de dizer ou fazer, pior do que já tenha dito ou feito até hoje?
Essas questões me atormentam há anos, desde que conheci o tradicionalismo. A divisão sobre esse ponto separa muitas pessoas, muitos bons combatentes, espalhando incompreensões e ódio entre eles, a ponto de fazer o que Leopardi deplorava em “Ginestra”: voltar as armas contra os próprios companheiros em vez de apontá-las contra o inimigo comum. Essa é uma situação que literalmente me impede de dormir. É possível que tudo isso esteja no plano de Deus?
Com devoção e gratidão, in Jesu et Maria,
Carta assinada.
Caro amigo,
A posição sedevacantista não é nem a mais lógica nem a mais defensável; ela é apenas a resposta mais simplista que se pode dar à atual crise da Igreja. Ela se justifica apoiando-se sobre o seguinte silogismo: 1) o Papa é sempre infalível; 2) o Papa se engana; 3) logo ele não é Papa. Mas quando foi que a Igreja ensinou que o Papa é sempre infalível, mesmo quando não fala ex cathedra?
Antes do Concílio Vaticano I, em 1859, o Padre Zaccaria S. J., escrevendo contra Febronius, exprimia assim a fé da Igreja: “o privilégio dado aqui [Lc 22, 32, ss] a Pedro e a seus sucessores comporta a infalibilidade [1o] nas decisões solenes, [2o] em matéria de fé e de moral, [3o] dirigidas por ele mesmo a toda a Igreja” (Anti-Febronius, t. II c.X). O Concílio Vaticano I apenas dogmatizou essa fé perene da Igreja.
A Cilviltà Cattolica, que era editada sob o controle da Santa Sé, escrevia em seu número 4, de março de 1902:
“Mas todo ensinamento é infalível?
"Eis o ponto da questão que muitos negligenciam sem malícia. Mas é dessa negligência que provêm os escândalos que enumeramos abaixo.
Um assunto pode encontrar-se fora da esfera da infalibilidade do magistério eclesiástico de dois modos, isto é, por duas razões: seja por estar fora do objeto da infalibilidade prometida à Igreja, seja por estar fora do sujeito ao qual a infalibilidade foi prometida. São objetos da infalibilidade todas as verdades que concernem à fé e à moral ou que estão necessariamente ligadas a elas. O sujeito da infalibilidade é duplo: O Papa, mesmo sozinho, e a Igreja com seu chefe, quando exercem a autoridade de ensino em seu grau supremo. É preciso reter bem esse último ponto, para não cair em equívoco; na verdade é raro que a Igreja e o Papa, no exercício de seu poder e ensino, façam uso de seu poder no mais alto grau, porque eles podem – e é o que acontece normalmente – exortar, aconselhar, permitir, ordenar, sem verdadeiramente definir ex cathedra por sentença irrevogável”.
A posição sedevacantista é fundada sobre uma premissa errada (o Papa é sempre infalível), e essa razão já é suficiente para considerá-la como ilógica e indefensável.
Todos os textos de teologia católica, além disso, (da verdadeira teologia católica, naturalmente, não da “nova teologia” que é elucubração neomodernista) distinguem o magistério pontifical infalível do magistério pontifical simplesmente autêntico (isto é, provido de autoridade, mas não infalível), e portanto, distinguem o assentimento absoluto, incondicional, sem exame (cego), devido ao magistério infalível, do assentimento que se deve ao magistério “mere authenticum”: assentimento relativo, condicionado, em que o exame é permitido, e portanto também a eventual suspensão ou eventual recusa do próprio assentimento. Os sedevacantistas pularam essa página da teologia católica. Com que direito?
Além do mais: a questão do “Papa herético” é ainda uma questão controvertida, sobre a qual teólogos (e canonistas) estão longe de entrar num acordo e sobre a qual a própria Igreja não se pronunciou.
Assim, certos teólogos competentes excluem o fato de que o Papa, como “pessoa privada” (mas o que significa pessoa privada não está muito claro) possa cair em heresia, outros teólogos tão competentes quanto os anteriores sustentam o contrário, enquanto que outros ainda levam em consideração as duas hipóteses. Quase todos os teólogos autorizados sustentam que o Papa herético é destituído de seu pontificado, mas outros, como Bouix, afirmam o contrário, e mesmo dentro do primeiro grupo há divergência: alguns pensam que o Papa herético perde seu pontificado no mesmo momento em que cai na heresia, outros pensam que ele o perde quando sua heresia torna-se manifesta (esses últimos não chegam a um acordo sobre o que se deve entender por heresia “manifesta”); enfim, segundo alguns, o Papa herético perde ipso facto, automaticamente, o pontificado; segundo outros, é necessária uma declaração de heresia por parte – e aqui também há divergência – de um concílio ou de cardeais ou de bispos.
Resumimos tudo isso rapidamente mas é o suficiente para podermos indagar: é lógica e defensável uma posição cujo fundamento, em matéria tão grave, está numa hipótese (e não numa doutrina) teológica ainda controvertida?
Além de tudo, o senhor próprio escreve que para poder falar de um “Papa herético” é necessário que ele seja formalmente herético. Portanto, é preciso que ele professe um erro contrário à fé (heresia material) e também, consciente e deliberadamente, sustente a heresia com obstinação, o que constitui propriamente a essência, a forma da heresia. Ora, podemos afirmar com certeza que os últimos Papas sejam Papas formalmente heréticos? Não poderiam ser eles – e esta é nossa modesta opinião – Papas teologicamente mal formados e, sobretudo, fascinados pela ilusão ecumênica, em que eles não percebem plenamente todas as implicações heréticas?
Não queremos discutir opiniões, e o que acabamos de expor é apenas uma opinião. De definido e claro há apenas o fato de que, enquanto a heresia formal não for provada, não se pode falar em “Papa herético”.
Abordemos agora o problema das almas. Normalmente (o senhor tem toda razão de sublinhar esse termo) é de bom senso confiar tranqüilamente no Papa, mesmo quando o que ele ensina não está garantido pelo carisma da infalibilidade. O Papa normalmente (ainda é o senhor que frisa) fala e age para o bem das almas, mas o sensus fidei e os frutos da atual corrente eclesial nos advertem de que não estamos mais em tempos normais.
Uma vez que o fiel tenha tomado consciência da anormalidade dos tempos, não é preciso que ele faça distinção, cada vez que o Papa se pronuncia, entre o que está certo e o que está errado. Não. Basta que ele, em cada caso, recuse o que ele percebe ser contrário à fé constante da Igreja. Essa fidelidade, que não exige grande ciência teológica, atrairá para ele, da parte de Deus, luzes cada vez maiores. Para quem teve a sorte de conhecer a normalidade dos tempos com Pio XII, basta ater-se ao que foi ensinado naqueles tempos de posse tranqüila da doutrina. É verdade que a doutrina já estava atingida pelo modernismo, mas ela era defendida por Roma (e hoje os modernistas acusam a Igreja de ter feito isso). As gerações seguintes, mesmo se não tiverem acesso ao Sim Sim Não Não e outras ótimas publicações, têm a ajuda interior do Espírito Santo e o catecismo de São Pio X, que resume a fé perene da Igreja (e por isso ele é tão mal visto pelos modernistas). Os erros de hoje são tão enormes que basta, para percebê-los (não estou dizendo para refutá-los), conhecer bem o catecismo da Santa Igreja.
Infelizmente, o Concílio aconteceu quando os católicos já se encontravam num deplorável estado de ignorância culpável e de fé morta não traduzida em atos na vida prática. Os Pontífices Romanos pré-conciliares lutaram, sem terem sido escutados, contra essa decadência. Lembremo-nos do brado de S. Pio X: “Catecismo! Catecismo!” e do doloroso discurso de Pio XII sobre as “almas mortas”, numerosas demais.
Como o sensus fidei não pode se exercer sem um conhecimento elementar das verdades da Fé e um esforço sério para viver segundo a Fé, compreende-se que muitos católicos não tenham sabido enfrentar a prova, cuja gravidade talvez nem tenham percebido (o que demonstra falta de vitalidade espiritual). O ensinamento da Sagrada Escritura se verifica aqui: os maus pastores são uma punição para todo o povo infiel.
Seja como for, a provação atinge também as almas de boa vontade, e é uma verdadeira prova, pois, como escreve o Padre Palmieri, o Papa, “mesmo que não fale com toda plenitude de sua autoridade (magistério infalível), fala com autoridade, eis porque não se pode considerá-lo como um doutor qualquer”. É então difícil e doloroso – eu diria até antinatural – para toda consciência católica ter de resistir ao Papa, assim como seria difícil, doloroso e antinatural um filho ter de resistir ao pai se este o obrigasse a fazer qualquer coisa contra Deus. Difícil e doloroso, mas justo, por fidelidade a Cristo e para sua própria salvação e previsto pela doutrina católica (mesmo se até Pio XII não foi necessário ensiná-la comumente ou lembrá-la). Na verdade, deve-se ao Pontífice Romano, quando ele não ensina infalivelmente, “um assentimento religioso desde que não haja nada que aconselhe, segundo a prudência, a suspensão do assentimento”. Hoje, o motivo que aconselha a suspensão prudente do assentimento é fundamental: o magistério dos últimos Pontífices, dotado de autoridade, mas não de infalibilidade, está, por razões abertamente ecumênicas, em contradição com o ensinamento infalível e bimilenar da Igreja. Ora, é claro que “o Papa é norma estrita da Fé”, mas, precisamente por ser “norma estrita”, o Papa tem o dever de estar em harmonia com a norma mais alta da Fé: a Revelação divina (Sagrada Escritura e Tradição), tal como ela foi fiel e infalivelmente transmitida e explicada pela Igreja durante dois mil anos. Eis porque um Papa em ruptura com a Tradição, que em lugar do “depósito da Fé” propõe suas opiniões pessoais e suas utopias, cessa de ser norma “estrita da Fé”.
A suspensão do assentimento pode também ser geral, se a prudência exigir, mas tal suspensão não tem nada a ver com a proclamação de que o Papa é “herético” e que a sede de Pedro está vazia, proclamação que seria também – esperamos tê-lo demonstrado – altamente imprudente, pois corre o risco de lançar os sedevacantistas num cisma irreparável.
Nessa provação, que é castigo para uns e provação para outros, o fiel é socorrido pela graça divina e reconfortado pela certeza de que, mesmo a partir dos males atuais, Deus saberá tirar um bem maior para a Igreja e para as almas. Além disso, sabemos por experiência própria – e sua carta no-lo confirma – que Deus não permite que almas sinceras e de boa vontade se percam por causa da crueldade do tempos. Parece que Ele, ao contrário, aumenta Sua graça na proporção em que crescem as necessidades. Se os semeadores da cizânia trabalham nessa noite pós-conciliar, Deus, como o fazendeiro da parábola, não perde o controle da situação e tudo voltará à ordem no tempo oportuno. Então, confiança e coragem!
Passemos às divisões entre os que resistem ao neomodernismo. Essa divisões certamente não são desejadas por Deus mas elas não são de admirar nesse quadro tão transtornado da atualidade. Quando a cabeça não funciona, todo o resto do corpo vacila (“Ferirei o Pastor e as ovelhas se dispersarão” Mc 14, 27). Além disso, essas divisões têm uma função providencial porque elas nos lembram a importância da Autoridade na Igreja e afastam as almas de boa vontade da tentação de erigir uma “Igreja” por conta própria sob pretexto de que a infidelidade dos homens da Igreja encobriu com um véu a Igreja de Nosso Senhor.
Essas divisões (não achamos que cheguem a ser ódios) nascem, enfim, da fraqueza e da miséria humana. Deus nos previne, pela boca de São Paulo: “Não discutam sobre opiniões!” Mesmo assim, alguns não sabem se limitar a defender a Fé sem emitir opiniões pessoais que gostariam de impor aos outros, apesar de não terem a menor autoridade para isso. Eles não se dão conta de que somos como pessoas mergulhadas nas trevas do imprevisto, a quem só resta esperar imóveis que a luz volte, exatamente no mesmo lugar onde a escuridão os surpreendeu. E isso, sem se aventurar a fazer movimentos irrefletidos, bruscos, arriscando cair não se sabe onde.
O centro de unidade estabelecido por Deus é e continua sendo o Pontífice Romano, guardião supremo da verdadeira Fé. Ora, mesmo que os últimos Pontífices pareçam (contra os princípios do Concílio dogmático Vaticano I) ter exercido mais o papel de “inventores” de uma “nova religião” do que o de guardiões da Fé revelada, não estamos totalmente nas trevas, apesar de estarmos mergulhados na obscuridade desde que a lâmpada mais próxima de nós se apagou: contra as heresias do modernismo, temos para nos guiar, diferentemente dos cristãos dos primeiros séculos, dois mil anos de Magistério ordinário e extraordinário. Nenhum “Papa de hoje em dia” tem autoridade para contradizê-lo e é em sua direção que podemos e devemos nos voltar como faríamos em direção a uma luz que ilumina nossas trevas, começando pelo simples e luminoso catecismo de S. Pio X. Tudo isso não significa pretender “saber mais do que o Papa”, é somente pretender saber o que sabe a Igreja, infalível “coluna e fundamento da verdade” (S. Paulo). Nós participamos dessa infalibilidade quando professamos a fé perene, que todo Papa tem o dever de “confirmar” e que ele não tem o direito de transformar nem de por em perigo.
Já dissemos, mas não nos cansaremos jamais de repetir: é tempo que as almas de boa vontade reconstruam em si mesmas e em suas vidas o que elas, sofrendo, vêem se destruído na Santa Igreja de Deus. É assim, e não através de polêmicas perigosas e estéreis contra as vítimas do neomodernismo (que também são, a nosso ver, sedevacantistas) que apressaremos a hora da divina Misericórdia.
Hirpinus
1A. PARTE: A CRISE E SUAS POSSÍVEIS CAUSAS
O problema levantado pela crise dentro da Igreja
O que pensar da grave crise que aflige a Igreja nos dias de hoje? Sua causa é a má aplicação do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962–65), que tornou-se a única verdadeira referência de doutrina e de pastoral desses últimos 40 anos? Ou a causa é a doutrina e a pastoral professadas pelo próprio Concílio? Elas são explicitamente voltadas ao “aggiornamento” da Igreja, através de uma reforma radical (instauratio, accomodatio) de todos seus componentes, desde a Santa Missa à Cúria, desde o Bispo e o sacerdote aos conventos de clausura, aos relacionamentos com a autoridade civil, ao modo de conceber a Igreja e seu relacionamento com o mundo e com as outras religiões.
Principais aspectos da crise vistos do exterior
De um ponto de vista puramente descritivo, parece-nos poder enumerar os traços mais visíveis da crise atual do seguinte modo:
1- — Forte diminuição das vocações religiosas, seminários e conventos esvaziando-se em massa (caindo em ruínas ou sendo vendidos a agências imobiliárias, que às vezes os põem abaixo para construir conjuntos residenciais).
2- — Anarquia substancial em toda a Igreja visível, onde a autoridade não é exercida efetivamente, nem na alta hierarquia nem na baixa. Se a autoridade é exercida, ela é contestada, ou no mínimo poucos a seguem. A impressão geral é de que as declarações do Magistério (feitas em geral timidamente, num tom de convite cordial) não mudam nada em nada; que a maioria das conferências episcopais e dos eclesiásticos continuam a se governar segundo suas idéias próprias em inúmeras questões.
3- — Anarquia substancial no domínio da liturgia, onde abundam a criatividade, a espontaneidade, as “missas ecumênicas”, a “intercomunhão” com os membros das seitas protestantes e ortodoxos et similia.
4- — Ignorância do clero em teologia e doutrina.
5- — Relaxamento da moral no clero, fenômeno sabiamente amplificado pela mídia, mas que não podemos negar.
6- — Ignorância dos fiéis, algumas vezes inutilmente instruídos sobre questões de exegese tão complicadas quanto artificiais, e que muitas vezes não sabem nem o “Pai Nosso”.
7- — Igrejas cada vez mais vazias (caindo elas também em ruínas ou vendidas) e queda vertical na freqüência aos Sacramentos (a confissão sacramental parece ter desaparecido completamente).
8- — Corrupção generalizada da moral nas nações antigamente católicas, conseqüência da predominância em massa do hedonismo e do materialismo, do indiferentismo material e religioso. Essa corrupção engendra a crise da família, cujo modelo não é mais o modelo católico. Ela vem sendo substituída pela família divorcista, a família “de fato”, a família “monoparental” e até a família “homossexual”.
9- — Avanço em massa das piores seitas protestantes (das Testemunhas de Jeová aos Mórmons, aos Pentecostistas e aos Carismáticos), do islamismo, do budismo, de todos tipos de esoterismo, do ateísmo. A cada ano um número impressionante de católicos apostata, sem falar daqueles que não apostatam, mas vivem fiando-se mais nos astrólogos e videntes do que na verdadeira fé, ou então, que vegetam no total indiferentismo.
10 — Pressão sempre forte do movimento inovador no seio da Igreja, amplamente tolerado por uma parte do episcopado e apoiado pela imprensa democrática mundial. Esse movimento gostaria de impor a ordenação das mulheres, o casamento dos padres, talvez também a ordenação de homossexuais, o acesso dos divorciados e “recasados” a certos sacramentos. Gostaria também de impor uma direção efetivamente colegial à Igreja (reedição da colegialidade anterior) e um ecumenismo ainda mais forte que o atual.
Alguns dados
Eis o quadro geral da Santa Igreja visível na sua atualidade. Dizer que ele é desolador seria pouco. Cada vez que o Santo Padre se prepara para visitar um país católico ou parcialmente católico, particularmente na Europa, a imprensa publica um “kyriale” de cifras imperdoáveis. Dá a impressão de uma oração fúnebre.
Lemos no Times, na véspera da visita pontifical à Espanha (3 e 4 de maio de 2003), que apesar do acolhimento triunfante e o encontro de multidões de jovens com o Papa, a situação do catolicismo nesse país é, segundo estatísticas mais recentes e mais precisas, a seguinte: durante os quatro últimos anos, dois milhões e meio de espanhóis abandonaram a Igreja (em média 650.000 por ano); em 1975, a freqüência à missa dominical era de 61% do total de fiéis, em 2003 ela caiu para 19%, e 46% dos fiéis declaram quase nunca ir à missa. Enfim, o número de padres caiu de 77.811 em 1952 para 18.500 em 2002. Certos seminários, em outubro de 2002, começaram as aulas sem nenhum aluno novo (The Times, 3 de maio de 2003, pág. 19). E, para o cúmulo do espanto, é notório de 600.000 muçulmanos vivem na Espanha, a metade deles sendo espanhóis apóstatas do cristianismo!
A situação da Espanha não é pior do que a da França, da Itália ou da Irlanda. No que diz respeito ao Reino Unido (Inglaterra e País de Gales, pois a Escócia é autônoma), lemos ainda no Times de Londres (31 de Dezembro de 2001) que 39,5% da população declara não crer em nenhuma religião, enquanto 59,9% professa uma religião: 55,2% são cristãos (4 milhões e meio de católicos em mais ou menos 30 milhões de “cristãos”), 4,7% pertencem a outras religiões (entre elas o islã: 2,2%, ou seja, quase um milhão e meio). Para continuar com as estatísticas, lembremos que no Reino Unido mais de 30% dos nascimentos são ilícitos (mães solteiras ou casais irregulares) e que essa porcentagem é de mais ou menos 27% na Irlanda, país outrora muito católico. Nesse país, graças à imigração clandestina (encorajada por razões econômicas, para manter o nível de vida que o país atingiu nesses últimos anos), a comunidade muçulmana está se formando rapidamente (15.000 pessoas mais ou menos, numa população de 3.800.000 habitantes, e o governo irlandês, caso único na Europa, pretendem instituir uma escola separada para os muçulmanos). A identidade católica da Irlanda está sendo contestada em favor do “pluralismo” e da “multietnia”. A igreja local, que atravessa uma crise devido a certos escândalos sexuais (exagerados pela mídia), não faz nada para defender essa identidade, antigamente tão marcante. Ao contrário, ela apóia fortemente a nova corrente em nome do “pluralismo”, da “paz”, do “ecumenismo”.
Sempre no Times (25 de maio de 2002), falam-nos da crise das vocações sacerdotais na Igreja Católica do Reino Unido. Só há 5.600 padres na Inglaterra e País de Gales, a cifra mais baixa dos últimos 60 anos. São 2.000 a menos que em 1971. Havia 52 seminários em 1999, e 48 em 2001. Em um outro número de 2002, a mesma revista anunciava, com uma nota de satisfação irônica (o Times pertence ao “establishment” protestante), que os 4 seminários católicos da Inglaterra estão quase vazios e a ponto de fechar”, enquanto que destino semelhante ameaça o English College de Roma, quase vazio também (só um aluno novo no primeiro ano: The Tablet de 7 de março de 2001). Mesma situação para o English College de Valladolid, ibid.
Frutos do diálogo...
A ignorância religiosa e a incredulidade em relação a quase todos os dogmas do cristianismo (por parte dos ministros das diferentes seitas protestantes) são alucinantes, e suscitam cartas de protesto tão regulares quanto inúteis assinadas por fiéis protestantes, que (graças a Deus) parecem ainda guardar a fé pelo menos nos dogmas mais fundamentais.
Comentário: 40 anos de diálogo inter-religioso não fizeram bem aos anglicanos, que alguns consideram teologicamente próximos da Igreja Católica. Que tiraram eles desse diálogo? Eles se afundaram ainda mais em seus erros enquanto que seu deísmo, que parece até ter perdido seu antigo aspecto exterior de cristianismo, escorregou para o indiferentismo, ou até para o verdadeiro ateísmo. O diálogo certamente não os salvou de uma terrível decadência moral. Mas ele também não fez bem à Igreja Católica, que parece ter tomado o mesmo caminho que eles.
Sobre as causas da crise atual
Muitos imputam a responsabilidade deste estado das coisas à desordem pós-conciliar. Somente uma minoria considera há muito tempo que se tenha de remontar ao Concílio para verificar que verdadeiros erros doutrinais ali se introduziram (por exemplo: na nova definição não dogmática da colegialidade; na nova concepção dos fins do casamento; na nova concepção de uma liberdade religiosa igual para todas as religiões, fundada na pretensa dignidade da consciência individual; na reforma litúrgica e na nova definição não dogmática da Santa Missa como sendo “celebração do mistério pascal”, dando-se importância sobretudo à memória da morte e da ressurreição do Senhor, sem lembrar o caráter de sacrifício propiciatório dessa morte e nem mencionar o dogma da transubstanciação). São esses erros doutrinais que constituem a causa primeira da ira de Deus que parece ter-se abatido sobre a Santa Igreja desde o Concílio. De um lado são os escândalos e de outro a indiferença — assim, a Igreja parece caminhar para a auto-demolição, enquanto cresce o número de todos seus inimigos, antigos e novos. É verdade que nem tudo andava bem na Igreja pré-conciliar. Já se observavam alguns sinais reveladores: o espírito obstinadamente rebelde da “Nova Teologia”, que começava a penetrar nos seminários; as tendências heterodoxas que continuavam a emergir no movimento litúrgico; um começo de decadência no episcopado (pouco formado em teologia), fascinado pelas idéias do século e pela tentação de obter mais “autonomia” em relação a Roma. Mas é inegável que o Concílio agiu como a caixa de Pandora (mito grego segundo o qual Pandora abriu a tampa da caixa em que Zeus havia encerrado todas as misérias que se abateriam sobre a humanidade). A crise começou a se instalar durante o Concílio, sobretudo no domínio litúrgico, para explodir com a impressionante violência que conhecemos, depois de seu encerramento.
Uma opinião otimista
Mas a crise não é admitida por todos: alguns, pouco numerosos, negam sua existência; outros julgam que está em via de redução graças à “nova evangelização” — grandes multidões de jovens em redor do Papa, grandes grupos de voluntários para o trabalho social, movimentos neo-catecúmenos e carismáticos (esses últimos praticando o “batismo do espírito” de certas seitas protestantes, um verdadeiro culto diabólico). Enfim, há aqueles que dizem que a “Igreja-movimento” se propõe realizar a paz no mundo e a unidade do gênero humano, segundo as diretrizes do Concílio. Aqueles que insistem em olhar para o futuro com otimismo apesar da crise, considerando não ter que imputar nada de grave ao Concílio, fazem em geral os seguintes raciocínios:
1- — O mundo contemporâneo está impregnado de materialismo, de hedonismo, de individualismo e ele não é sensível à mensagem cristã, mesmo estando ela “adaptada” às exigências de nosso tempo. Não é culpa da Igreja se sua “mensagem” não é recebida; ela faz o que pode.
2- — A crise tem a ver sobretudo com o que chamávamos de Ocidente: Europa e América do Norte. Nesses países, a diminuição das vocações está relacionada com a baixa de natalidade, fruto do hedonismo supracitado. O “Espírito” sopra onde quer.
3- — A “nova evangelização” dará frutos em tempo oportuno. Na verdade, na primavera de 2001, o cardeal Castrillon Hoyos declarou que “20% dos padres que abandonam o Sacerdócio, voltam atrás”, enquanto que as vocações estariam aumentando, a ponto de ter dobrado em certas partes do mundo: “a crise do sacerdócio está sendo superada”, diz ele. (The Tablet 14/04/2001, pp 550-1).
Crítica
Não sabemos se há alguém no Vaticano que ainda alimenta esse tipo de convicções e acha que a crise das vocações esteja “quase acabando”. Ao raciocínio acima, podemos opor os seguintes:
1- — Quando os Apóstolos começaram sua pregação, o mundo inteiro estava sujeito a uma grave crise de valores, em alguns aspectos semelhante à nossa. Os judeus não eram os únicos que estavam em decadência (ler De Bello Iuidaico de Flavius Joseph); sobretudo os pagãos se encontravam na mesma situação. A descrição da decadência moral da sociedade imperial romana que nós encontramos em Sallustre (De Catilinae Coniuratione, 13) não é muito diferente em substância à de S. Paulo em Rom. 1, 24–32, dois séculos depois. Mas essa decadência não constitui obstáculo à difusão da pregação dos Apóstolos. Foi neste vazio de valores frágeis que o Cristianismo conseguiu enraizar seus próprios valores, os da Verdade Revelada. Mas eis o ponto nevrálgico: os Apóstolos e seus discípulos se preocupavam em converter as almas, propondo a elas diretamente o ensinamento do Divino Mestre (lembrar o discurso de S. Paulo aos pagãos) sem se preocupar com as conseqüências, e sobretudo sem se preocupar em entrar em diálogo com as diferentes “culturas” que encontravam ao longo do apostolado. Eles obedeciam à ordem de Cristo: converter o mundo (e a Igreja obedeceu a essa ordem até o Vaticano II), pregando a palavra em toda sua clareza. Eles sabiam muito bem que a palavra de Cristo era escândalo para os judeus e loucura para os gregos. Mas não se preocupavam com isso: muito pelo contrário. Eles confiavam no Espírito Santo com toda a audácia da Fé. Onde está a audácia da Fé na Igreja Católica de hoje?
O sucesso dos Apóstolos devia-se ao Espírito Santo. O exemplo deles nos mostra que o materialismo do mundo que nos cerca não é a causa do insucesso da “mensagem” cristã, se ela for autêntica. Seu sucesso depende sobretudo da Graça, que logicamente não pode trabalhar nas almas se a pregação não for agradável a Deus; em vez de converter refutando os erros, em vez de procurar a salvação das almas, o catolicismo moderno procura fazer concessões, recusando combater os erros. Os modernos procuram ficar de bem com todas as seitas, tentando construir junto com elas um modelo de sociedade que não é católico; um modelo terrestre e ambíguo de sociedade pluralista, democrática, universal, responsável por uma era de fraternidade terrestre definitiva (é o que pensam!), por meio da unidade do gênero humano na paz (que não é, compreende-se, a paz de Cristo).
2- — Se acham que a queda de natalidade nos países europeus não tem nada a ver com a atual doutrina da Igreja, deveriam ao menos perguntar se os homens da Igreja não contribuíram para isso sem querer, pois o Vaticano II colocou o auxílio mútuo dos esposos como fim primeiro do casamento, deixando os filhos como “coroação” desse relacionamento, como fim secundário (Gaudium et Spes art. 48).
3- — A respeito do aumento das vocações nos países do Terceiro Mundo em geral, é preciso esperar que ela se consolide, antes de tirar conclusões significativas. Pode tratar-se de um fenômeno transitório e acidental. Idem para os “regressos”. Além disso, onde estão todos esses padres que voltaram ao redil? Sua presença passa desapercebida na situação geral, que continua grave. Na América Latina e na África, a penetração das seitas protestantes e o paganismo progridem sem parar, sem falar do progresso do islã, sobretudo em território africano. A apostasia dos católicos é contínua, e nesses continentes não se percebe nenhum indício de melhora no plano moral. A crise de valores continua profunda, começando por esse valor fundamental que constitui a família católica. A “nova evangelização” não neutralizou, nem mesmo parcialmente, essa crise.
Por que não remontar ao Vaticano II?
Pode-se admitir que a crise é devida unicamente à insanidade do mundo? Ou que é fruto unicamente de uma aplicação mal feita ou infiel dos decretos do Concílio? Sem dúvida, houve má aplicação (e continua havendo), mas não se pode admitir que a Sé Apostólica não tenha conseguido, em 40 anos, eliminá-la. Se o problema fosse somente uma questão de aplicação da doutrina, ele já teria sido resolvido. E hoje, depois de tantos anos de “restauração” e de “nova evangelização”, durante os quais a crise só se agravou, essa tese de “má aplicação” da boa doutrina conciliar se revela simplista. Além de tudo, a tese gera uma enorme desproporção entre o efeito (o estado de quase dissolução em que a Igreja parece ter chegado) e as supostas causas (a insanidade e a maldade do mundo, e o equívoco causado pelo Concílio no próprio seio da Igreja visível).
Não podemos pois nos contentar com ambigüidades estruturais, por assim dizer, do Vaticano II, que já constituiriam em si um fato grave. É preciso enxergar se, na doutrina e na pastoral do Concílio, há ou não há alguma coisa que se pode legitimamente definir como “erro doutrinal”, algo mais grave do que as ambigüidades já intoleráveis.
Os textos do Vaticano II contêm numerosas ambigüidades e contradições: isso é admitido, de modo geral. Muitos consideram, porém, que o Magistério depois do Concílio eliminou e resolveu essas eventuais contradições. Mas não admitem que há erros doutrinais no sentido próprio. E se compreende a razão: admitir que erros de doutrina se tenham introduzido num concílio ecumênico da Santa Igreja parece contradizer o dogma de infalibilidade do Papa e do próprio concílio, enquanto órgão supremo da constituição eclesiástica da Igreja, que decide, com a aprovação do Papa, por toda a Igreja, em matéria de fé e de moral. Parece que seria uma acusação implícita de heresia a respeito do Papa e do concílio; acusação com efeitos devastadores, susceptíveis de induzir alguns (ou muitos em seu interior) a considerar vacante a sede de Pedro (um herege não pode ser considerado um autêntico Papa, porque ele se exclui ipso iure da Igreja), tendo como conseqüência o desaparecimento em bloco ou inanitas da Igreja docente. Algumas pessoas chamadas de “sedevacantistas” chegam a esse tipo de conclusão .
Assim, a simples hipótese de erros doutrinais no Vaticano II ainda escandaliza. Porém, a gravidade da crise da Igreja é tal, que, na nossa opinião, essa hipótese não pode ser afastada a priori, mas deve ser verificada com cuidado nos textos do Concílio. É o que vamos fazer na segunda parte desse estudo.
2A. PARTE: O MÉTODO DE ANÁLISE NA VERIFICAÇÃO DOS TEXTOS CONCILIARES
Os Concílios e a Tradição
Como identificar os possíveis erros presentes nos textos do Vaticano II? Com que método? É preciso antes de tudo estabelecer a relação correta entre o Concílio e a Tradição, in primis aquela que constitui a doutrina de vinte concílios que o precederam. Isso é particularmente necessário para um concílio como o Vaticano II, que não definiu questões de fé nem decretou condenações, ao mesmo tempo em que introduzia uma nova maneira de considerar o homem e o mundo e fazia uma reforma geral da Igreja (começando pela liturgia). Nesse ponto, lembremo-nos de que a conformidade da doutrina de um concílio ecumênico à dos concílios anteriores é condição de validade do próprio concílio. Esse princípio devia ser considerado evidente pelo fato de ser intrínseco à natureza da coisa, ao próprio ensinamento proposto por um concílio ecumênico. De qualquer modo, o VII Concílio ecumênico, 2o. Concílio de Nicéia (787), que condenou a heresia iconoclasta, proclamou explicitamente que “os padres do concílio entraram em acordo sobre o fato de que um concílio, para ser ecumênico, deve:
1o. contar com a participação do Papa e dos quatro patriarcas apostólicos, ou ao menos com a dos legados enviados por eles;
2o. professar uma doutrina coerente com os concílios ecumênicos precedentes;
3o. ver suas decisões aceitas por toda a Igreja” .
Os padres do 2o. Concílio de Nicéia redigiram esses critérios para justificar a condenação do conciliábulo de Constantinopla em 753, convocado pelo imperador Constantino V para anatematizar os anti-iconoclastas (que constituíam nítida maioria na Igreja, tendo o Papa à sua frente) e que se auto-qualificou impropriamente de concílio ecumênico.
A identificação dos erros nos textos do Vaticano II é totalmente legítima
O que ensina o concílio ecumênico corresponde ao magistério extraordinário e de certo modo representa a síntese e a aplicação do magistério ordinário. Assim, a conformidade de sua doutrina com o magistério precedente, com o que a Igreja sempre ensinou ao longo dos séculos, deve ser perfeita. Como dizia S. Vicente de Lérins: “Id teneamus quod ubique, quod semper, quod ab omnibus reditum est” . O ensinamento de um concílio ecumênico não pode estar em contradição com a Tradição da Igreja, representada por todo o ensinamento que a precedeu. Isto significa que a ratio naturalis e o sensus fidei têm na Tradição da Igreja o parâmetro que possibilita avaliar a doutrina de um concílio, quando este não propõe uma definição dogmática. A Tradição garantida pelo carisma da infalibilidade, deve ser crida com fé divina e católica, sem nenhuma possibilidade de discussão da parte dos fiéis. Como o Vaticano II se declarou pastoral e não dogmático, propondo uma pastoral orientada para a modernização e marcada por um espírito novo, por uma orientação nova, cujos princípios não estão contidos em definições dogmáticas, é legítimo examinarmos os decretos à luz da Tradição . Isso significa, concretamente, “aplicar o critério da Tradição aos diferentes documentos do Concílio [Vaticano II] para saber o que se deve manter, o que se deve esclarecer, e o que se deve recusar”. A Tradição é aqui entendida, evidentemente, no sentido próprio, como o conjunto do ensinamento constante da Igreja, sancionado pelas declarações da autoridade legítima (não pelas opiniões dos teólogos ou dos fiéis). Portanto: “na medida em que ele se opõe à Tradição, nós recusamos o Concílio” .
Não se trata de uma recusa a priori, nem de uma recusa total. Mas como lidar com a noção de “oposição à Tradição”? E como enfrentar as ambigüidades, a falta de clareza, as contradições dos textos? A ambigüidade não é um atributo conforme a Tradição da Igreja, e normalmente procede do maligno. O magistério sempre procurou se exprimir com o máximo de clareza, sobretudo nas definições dogmáticas e nas condenações solenes dos erros (até mesmo nas condenações não solenes). Os padres fiéis à Tradição, tentando resistir aos inovadores, exigiram que na redação dos textos conciliares fossem feitas certas modificações. Os padres inovadores, que em muitas comissões eram a maioria, aceitaram ceder em alguns pontos, mas sempre de modo parcial e isso gerou grande ambigüidade. Uma vez constatada, ela deve ser analisada em seus elementos constitutivos e não podemos hesitar diante da possibilidade de encontrar nesses elementos algo que se opõe à Tradição, à doutrina sempre ensinada pela Igreja.
Entre verdade e erro, não pode haver compensação
Como interpretar os erros doutrinais nos textos do Concílio? Falando de outro modo: como se comportar face ao Concílio? Aceitar uma solução de compromisso no plano hermenêutico? Ou aplicar um tipo de critério de compensação?
A questão vai além da interpretação no sentido estrito, e faz estremecer as consciências. Chamamos “critério de compensação”, a maneira com que muitos ainda hoje opõem as partes “boas” do Concílio às partes “más”, como se elas se compensassem, de maneira que a parte “boa” seja sempre considerada predominante. Na nossa opinião, isso é contrário ao bom senso, pois um só fruto podre basta para estragar todos os outros, enquanto que o inverso não é nunca verdadeiro: os frutos bons não poderão jamais recuperar os estragados. Portanto não é prudente – e nem mesmo estaria de acordo com a recta ratio – acusar de incorreção aqueles que (como nós) procuram extrair de seu contexto os erros do Vaticano II (concílio sem o carisma da infalibilidade) para estudá-los convenientemente.
Acusam-nos de ter a intenção de enganar os simples, de não levar em consideração, voluntariamente, as partes “boas” dos textos conciliares, o “todo” globalmente conforme a Tradição (segundo eles, esse “todo” corresponde à maior porcentagem dos documentos conciliares). Com esse tipo de raciocínio, entretanto, nenhum erro isolado poderia ser detectado se aparecesse (e é sempre assim...) misturado entre múltiplas verdades, inclusive verdades de fé. Por exemplo, os semi-arianos professavam o homoiusion (Cristo é da “mesma substância” que o Pai, isto é, semelhante) em vez do homoousion de Nicéia (Cristo é “um na substância” do Pai, isto é, consubstancial ao Pai); esse era praticamente o único erro deles. Não seria absurdo considerar que tal erro era contrabalançado por todas as outras verdades que aceitavam? Nesse caso, esse erro capital não teria sido condenado e essa heresia, que destruía o fundamento de nossa Religião, não teria sido extirpada.
Alguns exemplos
1 No artigo 8 da Lumen Gentium há uma nova definição (não dogmática) da Igreja Católica em relação a seu Fundador: Ela não é mais a única Igreja de Cristo, pois a Igreja de Cristo — dizem — subsiste nela como ela subsiste em “múltiplos elementos de graça e de santidade” que se encontram fora dEla. Essa definição, que contradiz o dogma Extra Ecclesiam (catholicam) nulla salus, aparece como que de repente, depois que o texto desse mesmo artigo relembra toda uma série de imagens e de noções ortodoxas sobre a Igreja de Cristo, visível e invisível, fundada por Cristo, confiada a Pedro, etc... Deveríamos aplicar o critério da compensação entre a verdade e o erro e afirmar que a parte dogmaticamente segura e saudável do artigo em questão compensa a parte doente, que contém o funesto “subsistit in”? Nenhum intérprete que se inspire numa hermenêutica correta poderia fazer um raciocínio desse tipo. Nem aqui nem em outros textos que apresentam “contradições irremediáveis” há possibilidade de fazer “compensação”.
2 Podemos demonstrar de modo irrefutável uma dessas “contradições irremediáveis” em assunto que diz respeito diretamente ao depósito da fé. No artigo 8 da constituição Dei Verbum sobre a Revelação divina, está escrito que “a Igreja, à medida que os séculos passam, tende sempre à plenitude da verdade divina (ad plenitudinem divinae veritatis iugiter tendit), até que a palavra de Deus receba nEla a sua consumação”. Essa passagem é extremamente ambígua, mas apresenta um detalhe claro: uma contradição evidente com a própria noção de “depósito da fé”, que a Igreja tem o dever e a capacidade de guardar, defender e aplicar sem mudanças ao longo dos séculos, com a ajuda de Deus. Escreve-se que a Igreja tende sempre “à plenitude da verdade divina”; tender a isso sem cessar, é o mesmo que dizer que a Igreja não possui ainda essa “plenitude”, apesar de dezenove séculos transcorridos desde sua fundação! Como esse artigo 8 trata da “Tradição Sagrada”, deduzimos que ele introduz uma noção de verdade divina (de verdade revelada) que não corresponde ao que sempre foi ensinado pela Tradição da Igreja. Ele chega mesmo a contradizê-la, substituindo a clara noção de “posse segura da verdade” pela vaga idéia de “tendência à verdade”. Esse artigo pode, portanto, ser considerado como fonte de erro doutrinal.
Além disso, esse trecho está em contradição aberta com o que é afirmado no artigo 3 do decreto Unitatis Redintegratio sobre o ecumenismo. Lemos aí que “à Igreja foi confiada a plenitude da graça e da verdade” (...ab ipsa plenitudine gratiae et veritatis quae Ecclesiae catholicae – concredita est), plenitude que os “irmãos separados” não possuem. Ora, essa “plenitude” da verdade divina (da graça e da verdade) foi ou não confiada à Igreja católica? Se eu estiver tendendo sem cessar em direção a alguma coisa não posso dizer que essa coisa me foi confiada. Nós possuímos o que nos é confiado e não faz sentido dizer que tendemos a isso sem cessar. Tendemos para aquilo que não possuímos, seja um bem material, seja um bem espiritual.
Parece evidente que esses dois textos do Concílio estão em completa contradição. Poder-se-ia admitir que o texto que nega a “plenitude da verdade” é compensado pelo artigo 3 de Unitatis Redintegratio, que considera que “a plenitude da verdade” foi confiada à Igreja? A contradição nos parece incontornável. Ela mostra a confusão criada pelo Vaticano II, introduzindo falsos conceitos ao lado dos conceitos tradicionais.
3 É preciso lembrar, para completar o quadro de nossos exemplos, que a própria noção de “plenitude da verdade” parece conter uma grave armadilha doutrinal.
No ano 2000, a declaração doutrinal Dominus Jesus, remontando expressamente ao Concílio e à constituição Lumen Gentium para dissipar os inúmeros equívocos e desvios, reafirmava a posição de superioridade da Igreja Católica sobre os “irmãos separados”. Essa declaração afirma que “a Igreja de Cristo continua a subsistir plenamente só na Igreja Católica” (Dominus Jesus art. 16). À primeira vista, a afirmação parece estar de acordo com o dogma “fora da Igreja não há salvação” e foi acolhida com grande satisfação pelos católicos fiéis à Tradição da Igreja (que pensamos ser a maioria). Mas na realidade, essa afirmação deixa subentendido que a Igreja de Cristo continua subsistindo não plenamente fora da Igreja Católica. É essa a noção que encontramos no artigo 8 da Lumen Gentium. O que continua a existir não plenamente, em termos de instrumentos de salvação, fora da Igreja Católica, são “elementos múltiplos de santificação e de verdade” que o decreto Unitatis Redintegratio identifica nos “irmãos separados” enquanto tais (com suas “comunidades” ou “igrejas” como meios de salvação incompletos).
Nossa conclusão: o emprego do advérbio plenamente à primeira vista parece garantir o dogma “Extra Ecclesiam nulla salus” graças à reivindicação da superioridade da Igreja sobre as outras denominações cristãs. Mas na verdade, a inclusão desse advérbio nega o dogma porque introduz ipso facto a idéia de uma existência não plena (mas sempre capaz de salvar) da Igreja de Cristo fora da Igreja Católica. A sutileza que se introduziu nos textos do Concílio e no Magistério atual é comparável ao famoso caso do “homoiousion” lembrado há pouco. Essa sutileza é obra da alta hierarquia e dos “novos teólogos” presentes nas comissões conciliares (que recusaram ilegalmente os documentos preparados anteriormente pela Cúria). Parece que eles, até agora, ainda não compreenderam a gravidade do problema.
Os erros comprometem a sã doutrina
Os exemplos que acabamos de citar mostram bem que é possível identificar erros doutrinais nos textos conciliares. Essa identificação é legítima e necessária para compreendermos a crise atual. Temos certeza de que a tais erros não se pode opor uma “compensação” relativa às passagens indubitavelmente conformes à Tradição. E ao descobrirmos esses erros, somos obrigados a fazer a seguinte reflexão: um concílio cujos textos são uma mistura de verdades e de erros em relação ao depósito da fé (noção da Igreja e da verdade revelada) não é um concílio viciado pelo erro tanto na doutrina quanto na pastoral.
Os erros conciliares, pouco numerosos mas fatais, acabam corrompendo as verdades tradicionais em vez de serem corrigidos por elas. O que se ensina hoje no lugar da doutrina perene de que a salvação é obtida única e exclusivamente pela Igreja Católica a verdadeira Igreja de Cristo? Ensina-se que a Igreja possui a plenitude dos meios de salvação enquanto que fora dela os elementos de graça e de santificação possuem esses meios de salvação de uma maneira menos plena, com “carências”, mas são capazes de salvar ex sese seus membros porque a Igreja de Cristo subsiste neles assim como subsiste na Igreja Católica. Ensina-se que os membros desses elementos estão em comunhão com a Igreja, apesar de ser uma comunhão “imperfeita” ou menos plena (doutrina pessoal do Cardeal Bea, presente na Unitatis Redintegratio 3; et similia). O que Pio XII ensinava era que esses indivíduos estavam ordenados à Igreja “por um certo desejo inconsciente” se fossem batizados e tivessem fé (mesmo nos casos individuais de batismo de desejo implícito e explícito, a pessoa pertencerá visivelmente à Igreja).
Poderíamos fazer uma lista sem fim de exemplos desse gênero. O que acabamos de expor parece suficiente para concluir o seguinte: a crítica de um concílio pastoral voluntariamente destituído do carisma da infalibilidade e conscientemente voltado para novidades como o Vaticano II (crítica imposta pela situação desastrosa atual da Igreja) não procede evidentemente de uma recusa a priori do magistério pastoral do Concílio. Ela pode levar a recusar somente o que parece em contradição aberta com a Tradição da Igreja. Entretanto, uma vez que a existência do erro doutrinal seja identificada e demonstrada, arma-se de modo objetivo o problema da relação entre o erro e os ensinamentos do Concílio considerados como um todo. O erro nunca é corrigido pelas verdades com as quais ele coexiste (ele só poderia ser corrigido por uma condenação que o eliminasse da doutrina ensinada); ao contrário, ele as corrompe como um fruto apodrecido corrompe todos os bons frutos do cesto em que se encontra. Segue-se então a dificuldade, para não dizer a impossibilidade de aceitar os ensinamentos do Vaticano II com todas suas modernizações doutrinais e suas reformas institucionais.
Definição do erro doutrinal
O que devemos entender por erro doutrinal no sentido próprio? No sentido mais tradicional do termo, sem pretender ser original, definimo-lo assim: uma doutrina que contradiz, no todo ou em parte, a doutrina sempre ensinada pela Igreja. A contradição ou negação (denegatio) pode ter a ver com a pastoral ou com o dogma. Nesse último caso, o erro poderá ser mais ou menos grave, se é verdade que pode haver gradação nos erros, especialmente no que concerne sua nota teológica, nota cuja determinação é da competência da autoridade eclesiástica e não do intérprete, do gramaticus.
Os documentos do Magistério nos oferecem toda uma terminologia variada em relação às diferentes categorias ou gradações dos erros. A título de exemplo: Propositio de Tyrannicidio “... erroneam esse in fide et in moribus, ipsamque tanquam haereticam, scandalosam, et ad fraudes, deceptiones mendacia, etc. viam dantem, reprobat et condemnat” (Conc. Const. DS 1325); Errores Synodi Pistoriensis: cada proposição é definida separadamente: haeretica; inducens in systema alias damnatum ut haereticum; schismatica, ad misus erronea; falsa, temeraria, derogans pro sua generalitate oboedientiae debitae constituonibus Apostolicis [...] schisma fovens et haeresim; suspecta, favens haeresi semipelagianae; falsa, erronea, de haeresi suspecta eamque sapiens; perniciosa, derrogans expositioni veritatis catholicae circa dogma trassubstantiationis, favens haereticis, etc. (DS 2600 – 2700).
Mas tudo isso, dissemos, não concerne diretamente ao intérprete, cuja atenção se volta unicamente para a lógica intrínseca de um texto, para seu significado e o modo com que se expressa. Ele deve fazer emergir essa lógica (mens), compará-la à norma representada pela doutrina constante da Igreja e ver se a primeira está de acordo com a segunda. A autoridade eclesiástica, se estiver convencida do valor hermenêutico dessa lógica, definirá sua nota teológica (lógica – teológica) do modo que lhe parecer mais oportuno.
Uma expectativa ingênua
Naturalmente, o erro pode exercer uma negação indireta ou implícita da doutrina autêntica, mas isso não quer dizer que ele seja menos grave ou menos perigoso. Explicando: o arianismo, por exemplo, afirmava claramente que tinha havido um tempo em que Nosso Senhor “não existia”. Ele então devia ser considerado como uma criatura, apesar de sua relação com o Pai ser particularmente privilegiada. Aqui, a negação de sua co-eternidade e de sua consubstancialidade com o Pai pode ser considerada explícita e direta. O semi-arianismo conduziu depois, por intermédio do monotelismo (uma só vontade teria agido em Cristo em vez de duas, correspondendo a suas duas naturezas), ao erro muito grave do homoiousion do Cristo entendido como semelhante ao Pai e não um na substância com Ele. Esse erro insidioso já foi mais difícil de neutralizar. Sob a aparência de manter a fé na natureza divina de Cristo, na realidade ele a negava. Os erros de Lutero são claros e manifestos quando ele nega a autoridade do Vigário de Cristo, quando ele afirma o princípio do “livre exame” individual para a interpretação das Escrituras, quando ele declara que as obras são inúteis para a salvação, etc...
No caso do Vaticano II, ao contrário, estamos diante de uma nova pastoral, não declarada, ambígua, introduzida — isso não é segredo — nos textos pelos “novos teólogos” presentes nas comissões conciliares. Uma doutrina que se apresenta sem jamais se expor abertamente como tal, mas passível de ser descoberta como “intenção doutrinal” estreitamente ligada à “intenção pastoral” a que os textos obedecem (ver nota de pé de página do Proêmio de Gaudium et Spes) já é mais difícil de identificar. E quando essa doutrina contém princípios contrários aos ensinamentos perenes da Igreja, esses erros nunca aparecem de modo claro como em Ario ou Lutero.
Seria grande ingenuidade esperar encontrar nos textos do Vaticano II uma recusa explícita de qualquer dogma de fé. É portanto necessário dizer que, de um ponto de vista formal, os textos não atacaram o depósito da fé. Mas isso só é verdade de um ponto de vista puramente formal, exterior. Não encontramos nele nenhuma negação explícita de dogmas como Extra Ecclesiam (catholicam) nulla salus. Mas toda a pastoral “ecumênica” elaborada pelo Concílio parece representar objetivamente uma contradição em relação a esse dogma, apesar de ele não ter sido jamais negado formalmente (e como poderiam eles negá-lo formalmente?!?). A pastoral conciliar é a expressão de uma doutrina, não há pastoral sem doutrina correspondente, do mesmo modo que não há práxis sem teoria. De fato, elementos doutrinais, “intenções doutrinais” em que se inspira essa pastoral causam a mesma impressão que a própria pastoral.
Um novo erro doutrinal
Esses elementos doutrinais encontram-se nos artigos 8 da Lumen Gentium e 3, 4 de Unitatis Redintegratio que acabamos de relembrar acima. A definição não dogmática da Igreja contida no artigo 8 Lumen Gentium e retomada nos textos correlatos, aquela do funesto “subsistit in”, apresentada como se fosse uma imagem e não um conceito, deixa entender com bastante clareza que é incompatível com os seguintes dogmas (conexos entre si):
1- — somente a Igreja Católica é o único e verdadeiro instrumento de salvação (Extra Ecclesiam nulla salus) porque só Ela é assistida divinamente e manteve a continuidade de ensino desde a pregação dos Apóstolos.
2- — entre a Igreja de Cristo e a Igreja Católica há uma unidade indissolúvel, substancial, da qual não participam as “comunidades” ou “igrejas” dos heréticos e dos cismáticos, pois eles são o que são precisamente porque quiseram recusar os ensinamentos da Igreja e romper essa unidade: “Non enim nos ab illis, sed illi a nobis recesserunt”, “Nós não nos separamos deles, eles é que se separaram de nós” (S. Cipr. De Unit. Eccl.). Evidentemente não é possível que aqueles que recusam a autoridade e os ensinamentos da Igreja, combatendo-os em todos os aspectos, possam participar da Igreja de Cristo junto com a Igreja Católica, como se a Igreja de Cristo continuasse a subsistir ao mesmo tempo na Igreja que condenou Lutero e na seita fundada por Lutero! A contradição é clara. A esposa de Cristo é uma só carne com o Esposo, a união mística só poderia ser perturbada pela “união imperfeita” (Unitatis Redintegratio 3) com os heréticos e os cismáticos. A união imperfeita não é uma união. Utilizando a metáfora tradicional, é uma união adúltera, fornicação.
Se a nova definição, não dogmática mas doutrinal, não é compatível com os dogmas que acabamos de lembrar, então ela contradiz esses dogmas; e se ela os contradiz, ela os nega em parte ou totalmente. Na nossa opinião, a negação é total. Tudo isso acontece de modo implícito, mas muito real, colocando-nos diante de um erro doutrinal que parece novo, diferente dos outros anteriores.
Outra crítica ao Sedevacantismo
Para legitimar nossa pesquisa, não podemos lançar mão da idéia de que mostrar os erros doutrinais do Vaticano II significa considerar a Igreja sem Papa nem Bispos (ver 1a. parte da nota 1). Essa idéia é falsa porque transforma a infalibilidade do Pontífice Romano em “infalibilismo”. Nessa perspectiva, o Papa é infalível em tudo que diz, mesmo quando não fala ex cathedra. Como ele é sempre infalível, se por acaso um ensinamento pastoral (ou não passível de nota de infalibilidade no sentido técnico) contiver erros, a conclusão imediata (já que o erro não pode ser contestado pois está dentro de um contexto infalível) é que o Papa está ipso iure destituído de sua função. Se ele disse tais coisas é porque ele não é Papa e a Sé Apostólica está vacante. O sofisma é o seguinte: como o ensinamento do Papa é sempre infalível e portanto, irreformável, ao introduzir erros doutrinais, ele deixa de ser Papa. Como o texto não pode ser modificado nem refutado (o que é falso para os documentos que não têm o selo da infalibilidade, como é o caso do anátema de Honório já citado), então tacitamente considera-se que o Papa cessa de ser Papa.
Esse falso modo de pensar não admite, entre outras coisas, que um concílio tão atípico como o Vaticano II, mesmo do ponto de vista do direito canônico, não possui o carisma da infalibilidade. Ele não possui esse carisma porque não quis possuí-lo: não fez (ou refez) definições dogmáticas e recusou-se a condenar os erros do século! Trata-se de um acontecimento único na história bimilenar da Igreja: um concílio ecumênico que, abertamente e desde o início, renunciou ao exercício de sua autoridade suprema, a do Magistério extraordinário da Igreja, extraordinário por ser o exercício supremo da potestas docendi et gubernandi efetuada extraordinariamente pelo Papa com todos os Bispos reunidos por ele em concílio.
Para um concílio ecumênico, renunciar ao carisma da infalibilidade significa renunciar à assistência sobrenatural particular que o Espírito Santo garante ao concílio (e ao Papa) por esse carisma. Isso significa estar menos defendido das seduções do Maligno e da possibilidade de errar. Olhando de perto, a particularidade do Vaticano II vai além disso: a própria pastoral, por causa da orientação dada por João XXIII, não parece conforme à pastoral tradicional da Igreja. Qualquer outro concílio ecumênico da Santa Igreja Católica não chegou a esse ponto de ficar sem defesa diante da possibilidade de erro. E todos os teólogos admitem essa possibilidade teórica de erro doutrinal nos documentos oficiais do Magistério não dotados da nota de infalibilidade, sejam documentos da responsabilidade dos Bispos, de um concílio ou do Papa .
(Sim Sim Não Não no. 136)
Dom Lourenço Fleichman OSB
Houve épocas em que as pessoas escreviam cartas umas às outras. A carta fazia parte das relações humanas, e cumpria funções variadas na vida dos homens. Havia cartas oficiais, secas e sem vida; havia cartas agressivas, cheias de brigas e desprezos. Havia cartas de amor, de saudades, de despedida. Cartas circulavam por toda parte quando nascia o bebê, outras eram guardadas no sigilo, quando deixada pelo desesperado. Muitas vezes elas preenchiam o vazio da ausência sentida de um filho, de uma pessoa amada.
E assim corria o mundo, numa lentidão cheia de sabedoria e recuo, onde a letra caligrafiada era reconhecida, tornava mais calorosa a escrita e a leitura, e onde a espectativa da chegada do correio enchia os dias de um colorido impossível de se reproduzir nos dias atuais.
Quem poderá medir com precisão o imenso prejuízo social, psicológico e espiritual causado pelo desaparecimento das cartas trocadas entre os homens. O mundo do e-mail, pior, o mundo do imediato, do superficial, do banal, dessas mensagens instantâneas e invasivas nunca mais poderá saborear as delícias de uma bela e amorosa carta.
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