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Category: Família e moralConteúdo sindicalizado

Quem é meu filho?

A mãe se debruça sobre o berço de seu filho: “Aqui está meu pequenino, a quem amarei, cuidarei e educarei pelos próximos vinte anos. Quem é você, pequeno Pedro, que foi confiado a mim por Deus?”. Com efeito, essa é uma questão fundamental. Quem é esse pequeno homem? Da resposta à essa questão depende a escolha do tipo de educação que ele irá receber. Se a resposta for de acordo com Jean-Jacques Rousseau (“A criança é boa por natureza”), ela será educada segundo os padrões da sociedade atual. O resultado, lamentavelmente, não é muito empolgante.

 

DAS SENSAÇÕES À INTELIGÊNCIA

Santo Tomás de Aquino baseou-se no filósofo grego Aristóteles ao dizer que o Homem é um “animal racional”. A mãe protesta: “Meu Pedrinho não é um animal!”. Não; claro que não! Há um abismo entre um felino e um homem: a inteligência. O pequeno Pedro, porém, tem um corpo e seus sentidos — e são esses que solicitam primeiramente a atenção dos pais. Ele precisa receber cuidados físicos, mas desde o início de sua vida, há os bons hábitos que também necessitam ser-lhe transmitidos. Essas são as primeiras bases da educação: ter uma rotina regular para as refeições e a hora de dormir, aprender a obedecer sem chorar, não pôr o dedo na tomada elétrica (e, caso o faça, receberá um tapinha na mão), sentar reto numa cadeira sem se contorcer etc.

É claro que não limitaremos seu desenvolvimento a isso porque sua inteligência e sua vontade precisam ser formadas. Porém, é somente de forma gradual que sua inteligência floresce. É também de forma gradual que a criança adquire a linguagem, que é a ferramenta do pensamento, e que será aperfeiçoada desde a infância até as dissertações filosóficas próprias do último ano escolar. Pouco a pouco ela adquire o hábito do julgamento e da reflexão, e terá muitos momentos de tentativa e erro antes de chegar aos pensamentos que serão totalmente seus. Por esse motivo faz-se necessária uma adaptação da educação à capacidade de compreensão da criança. No início, os pais é que pensam por ela, pela sua incapacidade de fazê-lo sozinha. É inútil dizer a uma criança de três anos que ela precisa comer feijão “porque esse alimento contém vitaminas indispensáveis ao seu crescimento”! É mais eficaz dizer apenas “Coma o feijão ou não terá sobremesa”. Pronto. O resto seria supérfluo. O que a criança é capaz de entender com essa idade, e o que precisa aprender, não são os princípios da boa nutrição, e sim que os pais mandam e o filho obedece. Somente mais tarde a criança entenderá que tudo isso é para o seu bem. 

Obviamente, quanto mais a criança cresce, mais receberá as explicações necessárias. Um adolescente não obedece simplesmente porque seu pai mandou. Mas o que ele precisa, entretanto, é de explicações, e não de justificativas. Uma autoridade não precisa “justificar” em detalhes os motivos de suas ordens. Os pais dão as ordens por serem os responsáveis, perante Deus, pela criança a eles confiada. Porém, para que as crianças obedeçam, é necessário dar-lhes alguns motivos e circunstâncias — afim de que aprendam, com isso, a caminhar sozinhas quando adultas. Por exemplo: “Não, Pedro, você não vai passar o fim de semana com o Kevin. Ele tem uma coleção enorme de video games e vocês passariam o tempo todo jogando. Você sabe bem o que penso desses jogos! Convide-o para vir até aqui. Ele pode se beneficiar do contato com um ambiente familiar sadio. O valor de uma amizade é medido pelo bem que um proporciona ao outro”. Esse exemplo poderia ser utilizado como uma boa ocasião para pai e filho conversarem sobre amizades verdadeiras.

Tomem cuidado! Mesmo que a criança ainda não saiba se expressar bem, a inteligência está nela; e os menores compreendem o que dizemos muito mais do que pensamos. Cuidado com os comentários feitos entre adultos sobre as crianças, porque elas certamente estão ouvindo, sem aparentar fazê-lo. “Minha amiga, como a Ágata está bonita com esses olhos azuis e esses cachinhos! E o vestido que você mesma costurou! Ela é adorável!”. Observe que esse tipo de declaração nunca deixa de ser ouvido...

 

DO PECADO À GRAÇA

Não teremos completado a descrição da criança dizendo apenas que é um animal racional. Pedrinho também é filho de Adão, marcado pelas consequências do pecado original. Após seu Batismo, foi elevado à categoria de filho de Deus e ao estado sobrenatural pela graça santificante, e destinado à vida eterna.

Pedrinho é marcado pelo pecado original, e pela tendência ao mal que dele decorre, como infelizmente se observa desde a mais tenra idade; isso é uma verdade muitas vezes confirmada pela experiência. As primeiras birras surgem muito cedo. Desde os seis meses, a criança já é capaz de criar complicações injustificáveis. Emília, por exemplo, cai no choro assim que sua mãe a coloca no berço, fazendo com que precisem pegá-la. Ela só dorme quando está no limite da exaustão. João tem fome de sobremesas, mas não de espinafre; está sempre cansado quando é hora de arrumar seu quarto, fazer lições ou ajudar sua mãe. Sua vitalidade reaparece, porém, quando quer jogar futebol ou implicar com sua irmãzinha. Sem falar na capacidade incrível que possui de inventar mentiras para soar importante. Não; não importa o que Rousseau disse, ao afirmar que o homem é naturalmente bom. Seria um crime deixar uma criança fazer exatamente o que quer e quando quer. Pobres crianças de hoje a quem nunca lhe negam nada e não são nada além do objeto de seus impulsos e suas paixões desenfreadas! Ao se tornarem adultas, perceberão que são essas mesmas paixões que as destróem (preguiça, impurezas, ambição, álcool, prazeres etc.). Porém, acorrentadas aos maus hábitos por vinte anos, já não possuem forças para resistir a eles.

Por sorte a graça de Deus está presente nas almas dos batizados para curar, pouco a pouco, essas tendências más e elevá-las às alturas de futuros habitantes do paraíso. Uma criança batizada abre-se muito rápida e espontaneamente para o universo sobrenatural. Ela prontamente sopra um beijo para Jesus antes de dormir — sinal de suas futuras orações noturnas. Há todo um universo sobrenatural no qual mergulha de cabeça. A história de Jesus e Maria chama a alma ungida pela graça a explorar os mistérios divinos. A prática do bem é outra motivação. Quanto entusiasmo a jovem alma mostrará ao perguntarem a ela: “O que você fará durante a Quaresma para consolar Jesus, tão triste por causa dos nossos pecados? Você fará um esforço e limpará seu quarto toda noite sem que eu precise mandar? Isso deixará Nosso Senhor muito feliz”. Para ajudar os missionários, por exemplo, as crianças podem ficar sem presentinhos e enviar o dinheiro que seria destinado a eles, com a ajuda dos pais, para missões em países pobres. Para converter os pecadores ou livrar almas do purgatório, crianças são capazes de grandes atos de generosidade. Cabe aos adultos provocar, encorajar e canalizar esses atos. No Batismo, essa vida de fé planta nas almas as sementes e precisarão de uma educação abundante para se desenvolverem integralmente: os bons exemplos, as orações em família, a educação religiosa e o recebimento dos sacramentos…

Dividido entre tantas tendências contrárias (É um animal; porém é inteligente. Pecador; porém assistido pela graça), como no surpreender que a alma de uma criança lembre por vezes um campo de batalha, onde tendências opostas se confrontam? É aqui que se encontra o equilíbrio da educação: ao nos darmos conta, como adultos, de que o pequeno indivíduo necessita compreender que é um general pronto para o combate. Ele deve assumir a responsabilidade de suas lutas durante a vida, para que a graça triunfe no objetivo de santificá-lo.

É possível acrescentar uma intenção a um terço já rezado?

É verdade que, em todas as nossas orações, assim como nas Missas a que assistimos, podemos ter várias intenções e que cada intenção adicional não diminui as outras. No entanto, o bom senso indica que a intenção deve preceder o ato, pois, se assim não fosse, ela não poderia dar o propósito ou a moralidade ao ato, nem poderia ser a causa final pela qual o ato é praticado. Se praticamos um ato de bondade, é pelo fim pelo qual ele foi praticado (finis operantis), que é a principal circunstância que determina seu valor e seu mérito. O mesmo pode ser dito de nossas orações e terços. As intenções são a razão pela qual praticamos esses atos, e, consequentemente, se queremos que elas tenham alguma influência nas nossas orações, devem ser formuladas preferencialmente no início, mas pelo menos antes do fim dessas orações ou terços. De outra maneira, elas não poderão ser consideradas como sendo as intenções dessas orações.
 
Esse princípio é confirmado pelo ensinamento dos teólogos morais acerca das intenções de um Padre que oferece o Santo Sacrifício da Missa. A intenção pela qual a Missa é rezada deve ser formulada antes da Missa. Ela não precisa ser formulada imediatamente antes, mas pode ser formulada com boa antecedência. O mais tardar, no momento em que a essência do sacrifício da Missa acontece, ou seja, durante o Cânon da Missa, antes da segunda consagração. De outra maneira, não se poderá considerá-la uma intenção pela qual a Missa foi rezada (Prummer, Man. Th. Mor: III. p. 183)
 
De maneira semelhante, o fiel deve formular as intenções de seus terços, orações e Missas antes do início, ou ao menos quando começam esses exercícios. É boa coisa ter uma intenção geral além das intenções particulares, como, por exemplo, por tal e tal pessoa doente. Essa intenção geral pode ser por todos aqueles que se recomendam às nossas orações, ou pela Igreja e pelas almas necessitadas. Outro tipo de intenção geral que se recomenda é aquela descrita por São Luís Maria Grignion de Montfort na prática da Verdadeira Devoção a Nossa Senhora, qual seja, praticar todas as nossas ações e orações por Maria como nosso fim próximo, isto é, pelas intenções dela, pois, assim, damo-lhe o valor de todas as nossas boas ações e entregamos a ela pleno direito de dispor delas. Se essa é nossa intenção geral, não precisamos nos preocupar se não mencionamos uma intenção particular, seja porque nos esquecemos dela ou porque não a conhecíamos. Pois já que Maria, na glória do céu, conhece todas essas intenções, ela pode aplicar os méritos de nossas orações a essas intenções, e jamais teríamos que nos preocupar se houve alguma intenção que deixamos de mencionar e à qual precisamos aplicar nossas orações retroativamente.

É lícita a caça ou a pescaria? Moralmente falando, é preciso obter permissão legal para pratica-las?

Deus deu ao homem domínio sobre todas as criaturas, incluindo animais, o que permite que sejam usados pelo homem para propósitos justos, como alimentação, vestimenta, experimentos científicos, trabalho e mesmo lazer. Caçar e pescar por esporte enquadra-se nesse aspecto de lazer e recreação. Por outro lado, crueldade desnecessária com animais é pecaminosa, não porque viola supostos "direitos" dos animais (que não existem na realidade, pois apenas seres racionais podem ser sujeitos de direitos), mas porque macula a dignidade do homem como ser racional e como administrador da criação de Deus.

Como Deus deu os animais para o uso de todos os homens e também das gerações futuras, as autoridades civis — ministros temporais de Deus — têm o dever de garantir que os animais serão preservados, e não arbitrariamente eliminados, o que facilmente ocorreria se não houvesse regulações.

Nos nossos tempos, esse dever é exercido através das leis civis que regulam o tempo, o lugar e a espécie de animais que podem ser caçados ou pescados. Essas leis são impostas para cuidar de certos elementos particulares do bem comum dos homens — a preservação da vida selvagem, que foi criada para todos nós, e a garantia da vida humana e da propriedade.

Sendo esse o caso, as leis civis regulando a caça e a pesca esportivas são verdadeiras leis, de acordo com a definição tomista: "uma ordenação da razão, criada para o bem comum e promulgada pela autoridade responsável pela comunidade".

Portanto, sim, se alguém pratica pesca ou caça esportiva, há um dever moral de observar essas leis. Elas vinculam a consciência — ou seja, negligenciá-las e feri-las é um ato pecaminoso. Apesar disso, nem todas elas vinculam sob pena de pecado mortal, mas a depender da gravidade da matéria.

A piedade na família

I. Ponto de vista da questão.

Quando lamentamos a indiferença e a impiedade que crescem a cada dia no mundo atual; quando fixamos horrorizados os olhos no quadro tristíssimo que os costumes públicos hoje nos oferecem, rara é a vez em que, ao investigar as causas de espetáculo tão desolador, as procuramos em sua primeira origem, qual seja, a desordem que há anos vem se introduzindo na família. No entanto, é nessa sociedade menor, mais do que em qualquer outra parte, que se devem procurar os males da sociedade maior, e é a ela também que se devem aplicar os remédios. As teorias sociológicas retumbantes, como as atuais, não curarão o mundo, tampouco os debates sublimes ou os discursos mais ovacionados do parlamento e da academia. O saneamento deve começar por onde a gangrena começou, e é a família o organismo social mais atingido – mais atingido do que qualquer outra instituição.

Há anos se vem observando, dolorosamente, que a sociedade está se descristianizado. Sabem por quê? Porque se encontram pouquíssimas famílias cristãs. Essa afirmação parecerá ousada; contudo, não nos é difícil repeti-la, de novo e de novo. Sim, encontram-se pouquíssimas famílias cristãs no mundo atual.

Como! - diria alguém, alarmado: porventura não são batizados, graças a Deus, todos ou quase todos os filhos da Espanha? Não se sucedem as gerações sob as bênçãos de Cristo, que sanciona os matrimônios? Não se vive e morre em nossas casas à sombra da cruz?

Sim, tudo isso é verdade, o que não impede que também seja aquela minha afirmação, que tão ousada lhes pareceu. Encontram-se pouquíssimas famílias cristãs no mundo atual. Ouçam-me com alguma atenção, meus amigos, e talvez o assombro se desvaneça.

A família cristã, como a chamo, não é somente a família em que cada um de seus membros isoladamente seja cristão; não é somente a família que, para casar, nascer e morrer, cuida em conservar o uso do carimbo oficial da Igreja Católica, que intervém nesses atos da vida, em vez de recorrer à polícia ou ao registro civil. Para ser cristã, uma família deve professar algo para além dessa religião que se poderia apelidar de oficial e característica dos atos solenes, dessa religiosidade de meras práticas individuais, que cada um exerce por sua conta e razão, sem participação na vida coletiva da sociedade doméstica. Assim como não é católico o Estado cujas leis e cujos órgãos não estão inflamados de espírito católico, que não é obediente aos preceitos católicos e fundamentado nos princípios da verdadeira ortodoxia católica, por mais que delegue funcionários bem uniformizados para assistir a um cerimonioso Te Deum, ou mande celebrar exéquias pomposas, com orações fúnebres e tudo o mais; assim também, por mais que os filhos tenham nomes de santos, por mais que os defuntos descansem em túmulos consagrados e tenham os vivos uns laivos de obediência à Igreja, não se pode chamar de cristã a família que – no conteúdo, na trajetória e na vida do lar doméstico – não se harmonize com os documentos fundamentais da fé cristã, não se inspire neles e a eles não obedeça.

Digam-me, então: Quantas famílias hoje vivem assim?

A família moderna está perdendo aquele aroma puro que sempre vivificou a tradicional família espanhola: o aroma da piedade. Conheço muitas casas em que não é possível chamar a ninguém de incrédulo. Ninguém – nem o pai, nem a mãe, os filhos ou os sobrinhos – renegou a fé. Todos são vistos de vez em quando na Missa, e todos têm certidões de batismo, confirmação e casamento no arquivo paroquial. No entanto, essa fé, que sem dúvida se aninha em todos os corações, não se vê na casa, nem se reflete na vida doméstica: um protestante ou um ateu pode permanecer ali por dias sem que se sinta mortificado pela falta de crença ou a preocupação anticatólica. Os indivíduos são católicos, mas – oh, que pena! – a casa não é.

O tema “A piedade na família”, com o qual nos ocuparemos nas páginas seguintes, indica o aspecto da questão doméstico-religiosa que nos propomos a desenvolver. Nossos leitores podem ir refletindo desde já se esse tema é ou não é oportuno. Para nós, ele parece muito conveniente e apropriado ao apostolado benfazejo que todo propagandista católico deve procurar exercer nos lares espanhóis.

 

II. Por onde se começa com uma pergunta aparentemente ridícula, embora muito importante, no fundo.

Mas — perguntaria alguém — Deus tem o direito de reinar na família?

Por mais ridícula que seja a pergunta, não estranhem que comecemos o capítulo por ela. Hoje, tudo o que se refere aos direitos divinos é matéria de discussões. O homem se agarra tanto à própria vontade e soberania, que alimenta um temor perene de que elas sejam cerceadas por algum desmedido direito que se atribua a Deus. Este temor é a mania, ou melhor, a heresia do século, cujo nome é tão conhecido que não precisamos mencioná-lo aqui. Portanto, antes de começarmos a examinar se a família deve buscar o reinado de Deus pelo exercício da piedade, precisamos informar-nos de se Cristo-Deus tem ou não tem o direito de nela reinar.

Ainda que doa a quem doer, e se limite a liberdade indômita de quem quer que seja, afirmaremos que sim. Primeiro, porque Deus é Deus, e tem todos os direitos. Logo, não lhe pode faltar este. Segundo, porque Deus é rei em todos os lugares, e não há privilégio nem imunidade que eximam o domicílio do homem desta jurisdição real. Terceiro, porque, se Ele é o dono do homem, e tem direito absoluto a reinar sobre ele e seus costumes, tem, por conseguinte, direito a reinar, mais do que em qualquer outro lugar, no lar doméstico, onde se formam os homens, pois é nele sobretudo que se moldam os costumes.

Dessas três razões, as duas primeiras são evidentes por si mesmas, à guisa dos axiomas matemáticos, e é portanto ociosa a demonstração. E mais: de tão verdadeiras, são indemonstráveis. Passemo-las, pois, por alto, e finquemos pé na terceira, que oferece caráter mais prático e tem aspectos que se relacionam mais de perto com o nosso apostolado.

Com efeito, Deus instituiu desde o princípio a sociedade doméstica, para que fosse criadouro e viveiro das gerações humanas, não somente quanto ao aspecto material e físico, mas muito especialmente quanto ao aspecto moral. O varão e a mulher não se unem em matrimônio apenas para ter filhos, visto que essa finalidade única rebaixaria a nobilíssima instituição matrimonial a funções animais e rasteiras. Ambos se unem em matrimônio para ter filhos bons, o que, depois da revelação de Cristo-Deus, equivale a dizer: para ter filhos cristãos, ou seja, para constituir uma família cristã. Essa é uma verdade que nasce de outra, não menos fundamental e sólida: a de que os filhos são criados não para a terra, mas para o céu, e a de que os pais não são pais somente dos corpos, mas dos corpos unidos às almas. Portanto, a paternidade não deve almejar somente que os filhos saiam roliços e belos, nem muito instruídos e gentis, e nem mesmo muito ricos e ilustrados, e sim muito aptos ao fim último a que estão destinados, que é, segundo o sábio catecismo, “amar e servir a Deus nesta vida, para vê-lo e gozá-lo na outra”.

Essa é uma noção elevada demais para que a aceitem as gentes modernas, cujos ideais – até em matérias tão sublimes – conservam num nível baixo e rasteiro. Embora elevada demais, é a única noção que a boa filosofia cristã admite, e a única que se praticou durante os séculos em que a família se constituiu segundo os preceitos cristãos. Essa é a verdade, e o resto é absurdo naturalista e embuste mentiroso da Revolução. Os pais existem para dar os filhos ao céu antes de dá-los à terra. Não importa que precisem passar pela terra antes de ir ao céu, pois é preciso passar primeiro pelos meios antes de chegar ao fim, ainda que logicamente se prefira o fim aos meios. O certo é que sejam criados não para este mundo, porque a missão não termina aqui, mas sim para o outro, que é o destino definitivo.

Assentada essa verdade, depreende-se daí que o lar deve ter um caráter cristão para que os filhos saiam cristãos, assim como é preciso que o molde seja adequado à figura que se deseja extrair dele. A casa deve, pois, ser o caminho do céu, se quiserem que os indivíduos que morem nela e percorram os seus caminhos cheguem ao céu – a menos que se repute normal chegar a certo lugar percorrendo um caminho que dê em outro, diametralmente oposto. Deduz-se daí que o Cristo-Deus deve reinar no lar como reina em todas as partes, sendo este o princípio do seu glorioso reinado sobre a vida do homem, que é criatura sua.

Para ser mais claro e conciso: ou Deus não tem direito nenhum sobre o homem, e nesse caso não é Deus, ou Deus tem um direito muito especial sobre o lar e a família, porque é por aí que deve começar a exercer seus principais direitos sobre o homem.

Isso tudo talvez pareça muito metafísico a alguns leitores ingênuos dos nossos folhetos. Tenham paciência e esperem. Acabamos de apresentar o princípio e fundamento de todo o nosso plano; agora os senhores passarão a ver as consequências, simples e práticas, que decorrem desse princípio nos capítulos seguintes.

Conste desde já que, se alguém quiser pôr em dúvida o direito absoluto de Deus de reinar sobre a sociedade doméstica, visto que hoje infelizmente já se proclama que Ele não tem direito de reinar sobre a sociedade civil – esse alguém se limita a reafirmar um barbarismo liberal da pior espécie, oposto tanto à Religião quanto à sã filosofia e ao bom senso.

 

III. Do caráter prático que, acima de qualquer outra educação, possui a educação no lar doméstico.

Cristo-Deus tem direito de reinar sobre a família porque tem direito de reinar sobre o homem, e o homem, de ordinário, nasce e cresce na vida moral segundo o molde moral em que se enquadra os atos de sua vida – e a família ou lar doméstico é esse primeiro molde moral. Para falar de modo mais direto: para ser cristão, o homem deve ser formado segundo uma educação cristã, no seio de uma família constituída de maneira cristã; não há outro modo de se tornar cristão, a não ser por milagre especialíssimo de Deus, o que por si só é exceção, e não regra. 

Deve, pois, ser cristã a família que se dedica a formar cristãos, e deve ser cristã na prática. Porque a família é uma escola, não de sistemas, mas de costumes; não de discussões, mas de hábitos; não de árduas e áridas especulações do entendimento, mas de singelas e suaves inclinações do coração. Na família não se instrui o homem raciocinando, ou argumentando, ou contrapondo razões, mas vivendo, aprendendo e imitando os bons exemplos. Por isso, vê-se muitas vezes que pais estimados por muito sábios se revelam educadores medíocres dos filhos, ao passo que outros, muito rudes e iletrados, os educam maravilhosamente. Assim é porque nessa escola ensina melhor quem melhor obra, não quem sabe mais; do mesmo modo, não aprende mais quem ouve as coisas mais belas, mas sim quem presencia as melhores ações. A Religião, mais que tudo, se aprende mais com a prática do que com discursos. Sobre o alicerce da boa e leal prática religiosa assentam-se as razões e argumentos que a ilustram e esclarecem, e que a confirmam cientificamente em sua divina verdade. Mas, primeiro, cumpre abraçá-la com coração amoroso, e somente depois lhe compreender os ensinamentos de modo correto e preciso, com todas as luzes da inteligência apoiadas na fé. Esse procedimento, que parece invertido, é aqui o único lógico e natural. Credo, ut intelligam, dizia um grande Doutor da Igreja: “Creio primeiro, para entender depois”. Com igual razão, poderia ter dito: Amo, ut credam et intelligam: “Começo por amar e praticar com fervor, para bem crer e entender”.

Dado o caráter prático que a educação cristã deve ter e, por conseguinte, o caráter de cristianismo prático que a família deve ter – família que precisa ser a principal escola desse gênero de educação –, já não parecerá estranho que tenhamos intitulado estas notas de “A piedade na família”, e não “A religião, ou o Cristianismo, ou o Catolicismo na família”. Escrevemos “A piedade”, e julgamos que escrevemos bem, e que contamos com um forte fundamento filosófico.

Com efeito: Que é a piedade? Essa palavra, que a tantos espanta, significa apenas “a Religião na prática”, ou “a prática fiel e amorosa da Religião”. Ambas as definições vêm a dar no mesmo, embora a segunda seja mais clara. Depois de muito prestar atenção na piedade e nas pessoas piedosas, concluímos logicamente que ninguém pode ser bom cristão se não for cristão na prática, com amor e fidelidade às práticas cristãs; em conseqüência, ninguém pode ser bom cristão se não for perfeitamente piedoso. De modo que a piedade, a tão aborrecida e difamada vida de piedade, não é uma coisa só de padres e monges, ou de alguma senhora desenganada do mundo, ou de algum homem enfadonho e mal-humorado... De jeito nenhum! A piedade é, simplesmente, o dever de todo homem e toda mulher – que não for judeu ou gentio –, do homem que não se resigna a abandonar a fé do batismo; a piedade pertence a todos os estados, a todas as carreiras, a todas as idades, porque é simplesmente a Religião na prática, e não há estado, nem carreira, nem idade que  possa eximir-se da pratica da Religião.    

Daí concluímos que a família deve ser cristã na prática e, para tanto, deve ser perfeitamente piedosa; portanto, a piedade na família não é uma coisa que se possa licitamente deixar de lado, como um grau de maior perfeição que se pudesse livremente renunciar. Antes, ela é o primeiro dever, o dever fundamental, o dever religioso e essencial, o dever que abrange e sustenta todos os demais deveres domésticos, o dever sem o qual desaba toda a trama desse delicadíssimo edifício privado e, em decorrência, de todo o edifício social.  

Parece-nos que esse ponto já está provado o suficiente; por isso, podemos repousar antes de passar às aplicações consequentes.

Entretanto, cada um dos nossos estimados leitores pode começar a deduzi-las por si mesmo. E, sem dúvida, a primeira que lhes ocorrerá é que uma casa piedosa ou, o que dá no mesmo, uma casa cristã, se reconhece pelos mesmos sinais que distinguem um homem ou uma mulher cristã de um homem ou uma mulher não cristã. Como diz a máxima: “Dinheiro e amor ninguém consegue esconder”. O mesmo fenômeno acontece com o tesouro da Fé e o nobilíssimo amor pelas coisas da Fé: quando alguém os tem, é dificílimo ocultá-los; quando alguém de fato não os tem, é dificílimo fingi-los. 

A pessoa ou a casa piedosa proclama a própria virtude, sem fazer o menor esforço, por meio do aparato e da fisionomia exterior. Enxerga-se o espírito de fé prática, que influi em todos os seus atos, a uma légua de distância. Esses atos trazem Deus consigo, e Deus, como lume vivíssimo, irradia-se com todo o ser no mais puro esplendor.

 

IV. Aplicações mais concretas da doutrina anterior.

Uma vez demonstrado que, no cristianismo, a família, (pois dela falamos e a ela nos dirigimos), deve ser piedosa, agora é possível averiguar como ela deve ser piedosa ou, o que dá no mesmo, quais devem ser as formas da piedade. Temos aqui um largo campo a percorrer, um vastíssimo horizonte ante o nosso olhar; uma selva frondosa de reflexões nos convida, por assim dizer, a escolher. Portanto, para dar alguma unidade ao que possamos dizer sobre o tema, comecemos por propor a divisão tão conhecida dos atos de Religião, que se referem uns diretamente a Deus, outros diretamente a nós mesmos. Assim a família cristã, para que de fato seja cristã, quer dizer, para que seja cristãmente cristã, por mais que pareça redundante a expressão, precisa fazer com que se cumpram com bondade e perfeição estes deveres: o dever para com Deus, e o dever para com os próprios membros.

Temos assim uma rota traçada e um plano delineado. Vamos desenvolvê-lo com brevidade e ligeiras indicações.

Dever para com Deus. Esse é o primeiro dever do homem, e é, por consequência, o primeiro de toda família de homens. Contém em si o reconhecimento formal e expresso de Deus, a adoração à sua majestade, a obediência à sua lei, o agradecimento por seus benefícios, o recurso a Ele nas necessidades. Não cumprem, pois, esse dever primário e fundamental as famílias que em sua vida coletiva prescindem por completo de Deus, embora não incorram, formal e expressamente, nas negações ímpias do ateísmo. 

Deus, pois, deve ser visto em todas as partes do lar doméstico cristão. Nossos avós começavam por esculpir seu Nome Santíssimo e o de sua Santíssima Mãe no batente da porta, e coroavam com a cruz benta o cume das torres e claraboias. Esse era um bom sinal de Deus, que dizia com clareza a todos que aquela casa, que com tanto amor ostentava as divinas divisas, era sua. Hoje já não há nada disso – sinal de como estes tempos são péssimos, pois nos contentaríamos com menos, mesmo que trabalhemos e desejemos conseguir todo o resto.  Resignar-nos-íamos de imediato se o interior da casa tivesse o selo e o caráter cristão, e se nela tudo fosse uma declaração franca e explícita da fé que os indivíduos que ali habitam dizem professar.

Por exemplo, não deveria haver ali nenhum adorno que se opusesse à moral de Cristo; nenhum que fosse grosseiro ou impudico, ainda que sob pretextos históricos ou artísticos; nenhum que se deva furtar ruborizado aos olhos do sacerdote, se ele por acaso ali puser os pés; nenhum que não possa figurar dignamente num templo. Por que o cristão deverá ter em sua casa quadros, estátuas e relevos que o horrorizariam se os visse colocados na coluna da Igreja, ou junto do altar? Será ele menos cristão em sua casa do que é na casa de Deus?

Que dizer dos livros e jornais? Será ridículo, será irracional exigir que uma casa cristã não permita a entrada senão de publicações cristãs? Se essa casa abre as portas ao que vem em nome de Deus e também ao que vem em nome do diabo, seu inimigo, a quem pertencerá ela, que reparte entre ambos, com tanta equidade, a amizade e a simpatia? De quem é essa casa? De Deus ou de Belial? De Deus é que não é, porque Deus não reina senão só, sem competição.

Fazem-se refeições em família, mas em família não se reza nem se lê? Então essa é uma família só de corpos, já que só convive em função do corpo? Aquele pai e aquela mãe, que tão pouco zelam por elas, também não se enxergam como pais de almas? Será o bastante que o pai ou a mãe se contentem de rezar sozinhos, sem saber se as outras pessoas da casa satisfizeram essa dívida sagrada para com o Criador? E se ela não for satisfeita, sobre quem recai a responsabilidade dessa insolvência? Por acaso a lei humana não deposita sobre os pais a responsabilidade pelas dívidas que os filhos contraem e não pagam? Pois a Lei divina lhes faz a mesma e terrível exigência.

Divertir-se é pecado? Não; mas procurar e permitir diversões pecaminosas é. E assim o são a maior parte das diversões de hoje em dia, como ninguém ignora, por mais que sobre isso, como sobre tantas outras coisas, haja muito empenho em manter a consciência adormecida. Pecam os pais e as mães que autorizam essa corrupção calculada do lar, embora eles pessoalmente não frequentem os ambientes perigosos: pecam se souberem a que lugares empesteados vão os filhos e filhas, e pecam também se não souberem, porque deveriam saber. Do salão de baile e do espetáculo imoral os filhos maiores trazem para casa, a cada noite ou domingo, miasmas pestíferos que, depois de tê-los envenenado, minam aos poucos tudo quanto lhes estiver próximo, e preparam para a família inteira os germes da corrupção inevitável. O mal se torna gravíssimo se os próprios pais se transformarem no veículo dessa influência malsã. E que dizer dos simplórios ou pusilânimes que, apesar de acreditarem que a consciência não lhes permite participarem da função, ainda assim autorizam que com ela se corrompam aqueles a quem, por mandato divino, estão encarregados de vigiar e proteger?

Mas esse tema tem maior proximidade com o dever da família para consigo mesma.

 

V. Dos deveres da família cristã para consigo mesma.

Além dos deveres gerais para com Deus, teria a família cristã deveres para consigo mesma?

E como não teria? Um desses deveres, de certa maneira, resume e compendia a todos: a educação. Nesse sentido, diremos que a piedade não é apenas o pagamento da dívida de respeito, gratidão e amor que temos para com Deus: é também o meio mais eficaz de aperfeiçoamento moral para nós mesmos, a pedra angular de todo sistema de educação verdadeira, a grande tutora da alma por excelência; por conseguinte, é a grande educadora da família.

Parece coisa velha e gasta repetir aqui que o temor de Deus é o princípio da sabedoria, e, portanto, de toda educação sólida e verdadeira. Mas, por velho que seja esse axioma, e por repisado que o vejamos em púlpitos e livros, é palavra do Espírito Santo, e isso nos dispensa de demonstrá-lo. Se, no entanto, quiséssemos demonstrá-lo ao leitor, bastaria a simples observação e experiência do que vemos todos os dias à nossa volta. A educação doméstica sem Deus tem produzido tantos e tais frutos envenenados, que esse fato é o suficiente para convencer de uma vez por todas sobre o caráter maligno e infernal do sistema que os produz. A expulsão de Deus da educação da família levou embora todos os germes de respeito, amor, concórdia e boa ventura, além de trazer a ruína eterna, que se prepara, quase inevitavelmente, para tais almas desventuradas. 

E para nos cingirmos apenas ao presente, a cujos limites estreitos costuma reduzir-se o olhar do vulgo, declaramos que as virtudes domésticas não podem reinar, absolutamente, num lugar de onde se proscreveu, como ente inútil, o único inspirador de todas elas, que é o temor de Deus. Esse é o laço que a tudo une, o freio que a tudo sujeita, o contrapeso que a tudo equilibra, o norte que a tudo guia, o calor que a tudo vivifica, a esperança celestial a que tudo dulcifica. Na prosperidade nos faz sóbrios, na adversidade resignados, no gozo moderados, no mando discretos, na obediência humildes, na fidelidade constantes, no trabalho animosos. Para a infância é o mestre, para a adolescência o companheiro, para a maturidade o báculo e apoio, para a decrepitude a única esperança e consolo. “A piedade para tudo é útil”, disse o Apóstolo, pietas ad omnia utilis est, “tendo a promessa da vida presente e da futura”: promissionem habens vitæ quæ nunc est, et futuræ.

Por onde se vê que pouco trabalha para o bem dos seus o pai que não procura, antes de tudo, formá-los na piedade sólida e no temor de Deus, fazendo da casa a escola prática de tais virtudes. Pouco importa que tenha todo o resto em ordem: ao edifício que levanta falta o alicerce essencial, e portanto a mais ruína desastrosa é inevitável e certa. Essa ausência de solidez e coesão sobrenatural não se compensa com os procedimentos pedagógicos mais refinados que a brilhante França, a atilada Inglaterra ou a filosófica Alemanha trazem diariamente à nossa terra. Essas pedagogias humanas poderão dar formas à educação, mas não lhe darão fundo, porque para isso é preciso ter a chave do coração, e somente a Religião verdadeira é quem a tem. Os instintos poderosos e ferozes que prematuramente (sobretudo neste nosso século de precocidades) arrastam o jovem para o orgulho, a emancipação, o gozo de todas as liberdades, não podem ser vencidos; esses instintos poderosos e arrebatados não podem ser vencidos senão com algo que seja mais poderoso, e que tenha garras mais fortes que as suas para mantê-los cativos e acorrentados. E esse algo não existe abaixo de Deus; porque abaixo de Deus não há coisa que o homem não possa, num momento de orgulho, olhar como um igual. Assim vemos que, diante do furor das paixões desencadeadas na idade juvenil, cede como débeis arbustos arrastados por um rio impetuoso a fidelidade ao sangue, os olhares do interesse material, a lembrança dos benefícios recebidos, as máximas de moral universal tão pomposas quanto ocas e estéreis; numa palavra, tudo o que por si só oferece uma educação meramente humana e fundada em motivos meramente humanos. Só exerce alguma força sobre o homem aquilo que é superior ao homem; aquilo que flutua no naufrágio de todo o resto; aquilo que, ainda que por um instante pareça coberto pelas águas turvas, permanece ao menos como um penhor de arrependimento futuro.

Vejam, pois, como se perde miseravelmente o tempo e o trabalho de tantos pais desorientados, que pretendem que a família seja boa e morigerada sem contar com Deus para nada. A realidade quase sempre confirma neles aquela sábia sentença do salmista: “Se o Senhor não edificar a casa, é em vão que trabalham os que a edificam” (Sl 126, 1). Os pais que professam e praticam um sistema educacional tão ruim lavram a desventura temporal e eterna dos filhos, e com a deles a própria. Educam tão somente para a carne, portanto a carne prevalece e orgulha-se de todas as suas vilezas e ignomínias. Eles não cuidam da alma, imagem de Deus, de forma que os filhos costumam apresentar essa soberana imagem completamente obscurecida e desfigurada. Essa educação é uma horrenda calamidade dos nossos tempos, sem dúvida a pior entre todas as que tornam tão desastroso o nosso presente estado social.

    

VI. Do que poderíamos chamar de laicismo na família.

A última novidade revolucionária, a moda do dia em educação, é o laicismo, ou seja, a escola sem Deus e sem Religião. Mas o que mais espanta é ver que muitos pais e mães, que não podem ouvir falar na escola laica e dos professores laicos sem horror, tornam-se eles mesmos pais laicos e fazem laica a sua casa, sem sentir com isso escrúpulo no coração, nem vergonha no rosto. A menos que se tenha em conta uma estranha incoerência, tão comum ao homem, não se compreende como o laicismo da escola os horroriza tanto, se tão pouco os horroriza o laicismo na família, que é sem dúvida muito pior.

Advirta-se uma circunstância. A desculpa com que os pedagogos laicos pretendem abonar seu sistema funesto de prescindir na escola de toda idéia de Deus e de Religião é a de que essa idéia, dizem eles, diz respeito à missão especial do pai e da mãe de família, ou ao sacerdote no templo, não competindo aos mestres ingressar em outra esfera senão a puramente literária e científica. Por seu lado, os pais e mães que chamaremos de laicos dizem algo similar, porém em sentido inverso. Eles dizem que podem desencarregar-se da obrigação de ensinar a piedade aos filhos, pois para isso vão eles à escola e ao colégio, onde essas coisas lhes são ensinadas. De sorte que, conforme vão progredindo as idéias modernas sobre a questão, teremos o caso, certamente ridículo, dos mestres confiando a educação religiosa das crianças aos pais, e estes, por sua vez, confiando-a aos mestres, resultando inevitavelmente em menino e menina sem religião. Assim se vê o modo singular e engenhoso de Satanás urdir suas artimanhas, e como são ingênuos e simplórios muitos católicos da geração presente, que nunca as percebem.

Não, pais e mães descuidados, não existe desculpa para os senhores, mas sim grave, gravíssima responsabilidade. Se são más e abomináveis as escolas laicas, onde o mestre, que é uma espécie de assalariado a serviço do diabo, cuida de envenenar a infância inexperiente com uma educação naturalista e atéia, muito mais abominável e satânica é a família laica, onde a alma terna do menino ou da menina se vê privada do último refúgio de moralidade e crença que poderia ainda salvá-la da atmosfera corruptora da má educação escolar. O mundo lhe dá peçonha a mancheias em todas as partes; em casa, ao menos se poderia preparar um antídoto eficaz. Se essa atmosfera estiver também peçonhenta e adulterada, onde procurará socorro?

Por desgraça, há tanto desse laicismo doméstico na sociedade presente, que já ninguém se comove, de tão familiarizados que estamos com ele. Quem diria? São mestres e mestras laicos, sem perceber, uma infinidade de pais e mães que se têm talvez na conta de bons e honrados cristãos! E com isso servem à Revolução e à Maçonaria, como se para isso a seita lhes desse a paga de tantos ou quantos dinheiros por semana ou por mês como preço de seu ofício de corromper! E mansamente, eles que tanto dizem amar e vigiar os filhos, infundem-lhes nas almas o ateísmo prático que as paixões, os maus livros, as companhias perversas se encarregarão dia após dia de converter em doutrina! Pais! Mães! Os senhores já meditaram um minuto sequer, em toda a sua vida, no caráter gravíssimo de que se reveste a mera negligência em assunto tão vital? Pais! Mães! Se o maior perigo dos nossos dias é a escola teórica sem Deus, qual não será o imenso perigo dessa outra escola prática sem Deus que é a família sem piedade?

Dizíamos sem pensar muito, somente pela força do convencimento, que entre um laicismo e outro não sabíamos qual era o pior e de consequências mais espantosas. Olhando bem, porém, não há dúvidas de que podemos considerar mil vezes mais desastroso o laicismo da família que o da escola, porque a influência boa ou má daquela é mil vezes mais eficaz que a desta, e por muitíssimas razões. Primeiro, porque a criança experimenta a influência da família muito antes de experimentar a da escola, e sabe-se que, em matéria de impressões, as primeiras costumam ser mais decisivas ou, no mínimo, mais permanentes. Além disso, a criança vive quase sempre na atmosfera da família, e na da escola somente um pouco por dia. Além disso, porque a autoridade e a força moral que a criança geralmente reconhece no pai ou na mãe é infinitamente superior à que o mais fiel discípulo pode jamais reconhecer no mais respeitável dos mestres. E, finalmente, porque as noções religiosas que a piedade enraíza profundamente no coração da terna infância são de uma tal índole que, se a suavíssima e poderosíssima voz da autoridade familiar não as grava, somente a custo poderão ser infundidas.

Mas este último ponto oferece campo vasto a novas reflexões, que exigem um capítulo à parte.

 

VII. Por onde se demonstra o que foi dito anteriormente.

Por que uma casa sem práticas de piedade é uma casa sem Religião ou laica? Porque na casa a única forma cabível de ensinamento religioso é a prática piedosa.

Vejamos. Nem o caráter da Religião, nem o caráter dos pais, nem o caráter dos filhos consentem outro ensinamento religioso na família senão sob a forma do ensinamento prático, ou seja, das obras de piedade.

O caráter da Religião não o consente. A Religião como ciência é complicadíssima, vasta, profunda. Só consegue estudá-la em todo o conjunto uma vida inteira dedicada unicamente a isso; só consegue sondar além da superfície das suas profundezas o engenho perspicaz. Nada é tão grande e incomensurável quanto esse imenso saber que abarca todas as relações e mistérios de Deus, do homem e da eternidade. No entanto, a Religião deve ser patrimônio de todos, e todos devem possuí-la como o principal meio de felicidade presente e futura; todos, incluindo os mais rudes, dos mais alheios a toda investigação científica e até a mais vulgar alfabetização. Como se podem, pois, conciliar esses extremos? De um modo muito simples: ensinando-lhes bem a prática, até mesmo quem nem de longe é capaz de compreender a divina doutrina por trás dela; crendo, como também devemos crer todos, sob a fé de Deus e da Igreja, comunicada à sua débil inteligência por meio dos pais, que são o órgão de maior confiança que a criança pode ter neste mundo; e praticando e vendo a prática diária daquilo em que se crê. Esse é o meio mais seguro para que esses ensinamentos sobrenaturais desde cedo se identifiquem e se fundam com a vida natural num só hábito. E façamos uma observação. Essa mesma prática, que alguém talvez qualifique como inconsciente, traz consigo uma certa luz para a inteligência de quem amorosa e sinceramente a observa, até o ponto em que, iluminados por ela, muitos dos rudes e ignorantes chegam a entrever e a vislumbrar, em matéria de Religião, arcanos aos quais nunca chegou a ciência adquirida nos livros. A graça de Deus se compraz em dar-se aos pequeninos e aos pobres de espírito, e em fazer refletir seus esplendores principalmente sobre os limpos de coração, A prática fiel, humilde e amorosa da Religião é, pois, caminho para se saber muitas coisas a respeito dela, e é a única coisa indispensável tanto para o comum dos cristãos quanto para os que a estudam. Deve, pois, ser religiosa a família. Com maior clareza: uma vez que não deve ser laica nem atéia, o que dá no mesmo, deve ser piedosa. E deve ser piedosa pelo uso e pela repetição, até formar o hábito dos atos de piedade, o que o próprio caráter da Religião exige.

Mas o caráter dos pais também o exige. Os pais são os mestres natos da família. E quantos pais há que possam exercer esse delicado magistério, sem valer-se da eloquência e das razões do bom exemplo? Mesmo os pais mais instruídos não têm geralmente instrução nesse ramo da ciência religiosa, nem chegam a ser catedráticos medianos nela. Ou não serão, pois, mestres em sua casa, ou o serão do único modo que lhes é possível, ou seja, ensinando na prática aquilo que não podem ensinar de outro modo. E se afirmamos isso dos pais que têm conhecimentos regulares de letras e ciências humanas, que diremos então da imensa generalidade dos pais que nem isso têm, que mal sabem ler e escrever, ou que nem a isso chegam? E, no entanto, mestres devem ser, com responsabilidades e deveres iguais aos pais mais instruídos. Somente, pois, por meio da piedade, isto é, da prática fiel e constante dos atos de Religião em família, é que ela está capacitada a receber o ensinamento cristão de que necessita.

Finalmente, exige-o também o caráter dos próprios filhos. Eles devem receber esse ensinamento numa idade em que seja impossível adquiri-la de outro modo, senão por aquele que procede da impressão, e que se conserva e perpetua pelo hábito. Santo Agostinho ou Santo Tomás em pessoa, se estivessem encarregados de doutrinar na fé crianças de certa idade, dificilmente poderiam tirar outro fruto de suas inteligências insipientes. Não há ali força de abstração, não há ali destreza de raciocínio, não há olhar compreensivo e generalizador: só há terra disposta a receber as sementes que a seu tempo germinarão e crescerão. Essas sementes serão principalmente (além do hábito sobrenatural da fé infundido pelo Batismo) os hábitos criados pela autoridade do exemplo: hábito de crer, hábito de venerar, hábito de sujeitar-se, hábito de mortificar-se e outros semelhantes, eis aqui os cimentos da educação religiosa. Melhor: eis aqui quase toda a educação religiosa possível para a tenra idade. E como isso só é factível pelo exemplo constante da vida de piedade na família, eis aqui a necessidade da prática contínua dos atos piedosos em seu seio.

Mais brevemente, e resumindo:

Se a Religião deve ser ensinada para certa idade e classe de pessoas, só pode ser ensinamento prático. Se os pais devem ser mestres, só podem ser mestres práticos. Se os filhos devem ser discípulos, só podem ser discípulos ao modo prático.

Logo, não cabe outro ensinamento religioso na família senão o ensinamento por meio da piedade.

Logo, a piedade é a principal necessidade da família, e portanto é o primeiro dever dos indivíduos, especialmente dos chefes dela.

 

VIII. Acrescenta-se um exemplo a modo de conclusão.

Um correspondente, amigo nosso, residente numa das cidades mais belas e populosas da Andaluzia, levou tão a sério, segundo nos contou, essa piedade em família que vimos há tanto tempo pregando aos nossos leitores, que nos pareceu bem dar-lhes esse exemplo formoso como fim e coroa dos presentes capítulos.

O citado amigo, tão ilustrado quanto fervoroso, chegou a estabelecer em sua casa o que ele chama, com propriedade, de culto doméstico, o qual celebra com a exatidão e minúcia mais edificantes.

Começou por escolher um lugar especialmente dedicado a esses atos de piedade privada, e ali ergueu um oratório. Pôs nele as imagens dos santos padroeiros da família: a Imaculada Conceição, São José, São Roque e São Luís, presididos pelo Sagrado Coração de Jesus. Enfeitou-o com todo o gosto e primor que se pode permitir uma família sem muitas posses; gosto e primor que todos os lares poderiam mostrar para com Deus, já que os mostram tão facilmente no adorno de suas casas e pessoas, e até de seus cães e cavalos.

Todo dia aquele bom pai se reúne com sua família e criados naquele lugar para a prática da piedade. A oração do Santo Rosário e uma pequena leitura espiritual são as ações usuais de cada dia; nos dias de festa, se acrescenta alguma coisa a essa medida cotidiana. Os dias mais solenes do ano são festejados com iluminação mais esplêndida e com cantos que um dos próprios filhos acompanha ao harmônio. Uma tabela a modo de escala fixa na parede do oratório assinala os dias que poderíamos chamar de clássicos, e as diferentes funções com que devem ser celebrados os dias de preparação, as oitavas e novenas, os meses inteiros consagrados a São José, à Virgem de Maio, ao Sagrado Coração ou às almas benditas do Purgatório. O pai é, por direito natural, o oficiante dessa pequena Igreja doméstica, verdadeira filial da paroquial, da qual é obscuro e modesto satélite auxiliar.

Eis aqui o que é organizar a piedade na família de modo a nada deixar a desejar. Mas, sem precisar chegar a essa perfeição e primor de detalhes, não é certo que todo pai e mãe verdadeiramente cristãos podem providenciar em sua casa um culto doméstico análogo, senão igual, ao que acabamos de indicar? Que dificuldades apresenta, além da preguiça, a oração do Santo Rosário? Que custa ler por um quarto de hora a cada noite para a família reunida umas páginas de um livro apropriado, como As Vidas dos Santos, as obras do Padre Granada, que todo espanhol devia saber de memória, ou o popular e nunca assaz elogiado Exercício de Perfeição do Padre Rodríguez? Que perderiam os filhos e filhas se conhecessem, por meio da leitura do pai, todas ou quase todas as obras dos nossos admiráveis ascetas, o severo Nieremberg, a jovial Teresa de Jesus, o familiar e castiço Rivadeneira, alternadas com a leitura dos principais autores modernos, que a apologética católica dá à luz todos os dias?

Antigamente esse era o uso na Espanha, e era a esse uso sem dúvida que a antiga família espanhola devia a proverbial severidade e o caráter austero. São as idéias que dão a têmpera devida aos costumes, e as idéias, tanto na casa quanto na cidade, são as que formaram nossos atuais costumes civis ou domésticos, tão frouxos, tão desmazelados. Quem quiser restaurar a ambas e voltar à ordem primitiva deve começar a reformá-las sobre a base da piedade sólida, sem a qual edifica-se sobre a areia qualquer construção que se queira levar a cabo.

Se eu viajar para um lugar remoto no fim de semana, tenho que me deslocar por horas a fio para ir à Missa?

Pela lei natural e pela lei positiva divina, devemos render culto a Deus. A lei eclesiástica determina que essa obrigação deve ser cumprida assistindo à Missa nos domingos e nos dias santos. Esse preceito vincula sub gravi (ou seja, sob pena de pecado mortal) a todos aqueles que atingiram a idade da razão (sete anos de idade). Além disso, qualquer pessoa obrigada a obedecer a uma lei também está obrigada a fazer esforços para evitar qualquer obstáculo ao seu fiel cumprimento.

Como uma lei não pode obrigar ao impossível, a Igreja reconhece que, em certas circunstâncias, alguém pode ser escusado de observar a lei. Assim, uma causa moderadamente grave pode nos escusar de assistir à Missa em um domingo. As principais causas, normalmente, são: 

  1. impossibilidade física ou moral, como, por exemplo, em caso de doença, grande distância de uma Igreja, condições de tempo perigosas, risco de séria perda material, etc; 
  2. caridade que nos obrigue a ajudar o próximo, como, por exemplo, tomar conta de uma pessoa doente, ou estar presente para evitar que alguém caia em pecado; 
  3. obrigação imposta por certas funções ou ofícios, como, por exemplo, soldados, enfermeiras, bombeiras, etc, enquanto em serviço.

Mas, embora Deus não espere de nós que façamos o impossível, Ele espera que suportemos alguns inconvenientes ou obstáculos aos nossos planos para que consigamos cumprir Sua vontade.

Portanto, não nos é lícito criar um obstáculo ao cumprimento da lei, exceto se houver uma causa grave proporcional.

Relaxamento e recreação são, certamente, necessidades humanas legítimas, bem como dons de Deus. Mas, como existem várias formas de relaxar, devemos escolher aquela que não nos force a ausentar-nos da Missa dominical.

Portanto, se escolhemos uma atividade recreacional que nos impossibilite assistir à Missa dominical, a razão para isso deve ser de uma gravidade proporcional à gravidade do preceito eclesiástico. Um motivo dessa gravidade proporcional poderia ser, por exemplo, se acampar num local remoto for aconselhável como a maneira mais útil de fortalecer os laços de uma família que corre o risco de desabar. Outros motivos de gravidade proporcional poderiam ser, por exemplo, se não tivermos oportunidade de tirar férias anuais em outro período, ou se for o caso de uma viagem ao estrangeiro que jamais teremos a oportunidade de fazer novamente.

Em todo caso, devemos evitar fazer de nossas atividades recreacionais o ponto de partida da programação do nosso fim de semana, relegando pensar em Deus e na Missa a um momento posterior.

A Missa é um dom de Deus, e assistir a ela é um privilégio incrível para nós, especialmente na atual crise da Igreja, em que há um número decrescente de Missas e de fiéis indo à Missa para render a Deus o culto que Lhe é devido.

Portanto, não devemos tentar encontrar desculpas para não ir [à Missa de preceito], mas, ao contrário, fazer esforços para ir à Missa mesmo em outros dias da semana.

Com que frequência devo me confessar?

Em consonância com a lei divina, a Igreja enfatiza a necessidade de confessar todo e cada pecado mortal de que se lembre após exame diligente e adequado, com todas as circunstâncias que podem alterar a espécie do pecado. Nos tempos presentes, como consequência da obrigação de receber comunhão ao menos uma vez por ano, temos, também, por preceito eclesiástico, a obrigação grave de confessar, ao menos uma vez por ano, quaisquer pecados mortais ainda não acusados em confissão válida.
 
A Igreja não exige nada mais — nem uma frequência maior, nem a confissão dos pecados veniais — mas tanto a Igreja quanto todos os autores espirituais aconselham e encorajam-nos a duas coisas adicionais. Em primeiro lugar, buscar a absolvição dos nossos pecados mortais o quanto antes e tão frequentemente quanto preciso.
 
Em segundo lugar, também somos aconselhados e encorajados à confissão devocional mesmo de nossos pecados veniais. Como o Concílio de Trento estabelece:
 
"Pecados veniais, que não nos privam da graça de Deus, e nos quais caímos com maior frequência, podem retamente e com benefício ser acusados na confissão, como torna clara a prática das pessoas devotas. [Também] podem não ser declarados sem [que configure] qualquer falta, e podem ser expiados de várias outras formas".
 
A prática piedosa da confissão frequente assegura um progresso mais rápido no caminho da perfeição. Por exigir um exame frequente da consciência e o conhecimento de nossas fraquezas, aumenta o autoconhecimento e o crescimento na humildade; "nossos maus hábitos são corrigidos, a negligência e a tibieza encontram resistência, a consciência é purificada, a vontade fortalecida, um salutar autocontrole é atingido, e a graça é aumentada em razão do sacramento em si" (Pio XII, Mystici Corporis).
 
Se para os religiosos a lei canônica requer a confissão semanal, e para os sacerdotes, ao menos a cada duas semanas, para leigos, confissão “frequente" geralmente significa mensal, de acordo com as possibilidades e as necessidades dos indivíduos.
 
Para avançar na perfeição espiritual, a confissão frequente, ordinariamente, exige um confessor regular. Ele será a pessoa mais qualificada para sugerir a frequência adequada ao desenvolvimento espiritual e às possibilidades físicas e morais do penitente.

Crianças de hoje

Luce Quenette

Em toda sociedade civilizada, há um constante apelo à honra, o que naturalmente provoca sentimento de culpa nos que violam suas leis e usos. Alguém dirá que uma tal sociedade engendra a hipocrisia. Pois bem! Quando a virtude e a decência são honradas, o homem perverso não tem outro recurso, se não quiser converter-se, que o de dissimular, fingindo virtude. E finge tão mal, que as pessoas honestas chamam-no hipócrita. Mas, “a hipocrisia é uma homenagem que o vicio presta à virtude”. A decência e a virtude não lhe servem de causa, mas de ocasião. A honra a que elas têm direito e que lhes prestamos é ocasião de inveja, dissimulação, astúcia e furto. Ora, toda lei justa, a começar pelos Dez Mandamentos, é ocasião de pecado para o coração concupiscente. A lei protege o fariseu, evidentemente. Poder-se-ia dizer que a lei é má, como fala São Paulo? Longe disto. Ela é boa. Mas por si mesma, sem a graça de Jesus Cristo, não pode nada. Toda organização da sociedade cristã esta aí. É preciso que Ele reine.

A cura de toda hipocrisia e de todo cinismo é o conhecimento da lei em estado de graça.

* * *

Quem vos fala é uma mãe. Ela leva a Péraudière seu filho mais velho, de cinco anos e meio. Com coragem, seu marido e ela percebem o rosto ligeiramente angustiado do pequeno João, que nunca deixara o doce lar:

“Nós o teríamos colocado no Sacré-Coeur, com os jesuítas, bem próximo de nossa casa, mas soubemos que nas turmas da 10a. série, sim, no Sacré-Coeur (!), havia lições de iniciação sexual, e com imagens. Foi uma mãe que nos disse isso. Ela tinha acabado de levar seu filhinho para a entrada do colégio. Disse a ela: “a senhora precisa tirá-lo de lá, não pode deixar que se cometa este atentado.” Ela suspirou: “Que posso fazer? Isso agora é permitido”. Horrorizada, interroguei outros pais na mesma situação e cheguei a esta terrível conclusão: não somente eles o admitiam, mas SE JUSTIFICAVAM, pensando que estavam legitimamente dispensados de dar aos filhos uma iniciação que os embaraçava; eles calavam sua repugnância com o slogan criminoso: você sabe, hoje em dia, é um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde!”

* * *

Eis um pequeno idoso (de um ano de idade) que foi, antes do mais, insuportável e que, de volta das férias, mantinha-se ereto, com um aspeto respeitoso e altivo entre o pai e a mãe. Eu sentia, no entanto, que aquilo era demais. A mãe fez com que o filho fosse dar uma volta e me disse que, durante as férias, a criança fora terrível. “Bom, disse eu, é preciso chamá-lo e dizer tudo na frente dele.” É o que eu faço. Meu filho abaixa a cabeça, confuso, envergonhado, arrependido. A mãe, tímida: “Sabe, filho, não é para te machucar nem te fazer sofrer que dizemos essas coisas.” — “Mas sim, Madame, é para fazer sofrer, para machucar seu coração, que ama a mamãe, para que ele se arrependa e que, nas próximas férias, vocês tenham um filho carinhoso. Ele entende muito bem e sabe que estamos certos.” Dois olhares: Alan eleva os olhos, que oferecem seu acordo e humildade. Por sua vez, o olhar bom da mãe é de espanto e admiração. Quanto ao pai (pois há ainda sua opinião), este se inclina perto da mãe e diz, contente: “Viste, bem que te avisei!”

Que estes amigos encantadores perdoem-me de mostrar, por meio deles, na alma do educador e do filho deles, a passagem de uma correção derrisória, conforme a moda, à nobre beleza da justiça cristã.

* * *

É espantoso o zelo com que as crianças cristãs recebem o apelo doutrinal à conversão. Seu coração, preparado pelo batismo e pela fé de seus pais, instintivamente repugna à justificação conforme o mundo. Claro, uma criança mimada se compraz, em seu egoísmo e sensualidade, de ser “compreendida” e não “repreendida”. Serve-se gulosa e insolentemente das falsas desculpas e explicações que lhes oferecem para seus pecados. Mas isso a enerva, a excita, e não a acalma. Os grandes ingênuos que “compreendem” sua gulodice, sua preguiça, sua tirania, ele os despreza e explora. Mas, se os pais são cristãos, se estão resolvidos a preservar a alma de suas crianças, custe o que custar, ainda que lhes faltem algumas luzes e, por conseguinte, o savoir-faire, nada estará perdido. Nós vemos isso claramente. O pequeno novato entra na Péraudière convencido de que é preciso fugir do mal que o assediou, que respirou e que cometeu nas más escolas; ele sabe que vai aprender a servir a Deus segundo a Tradição e que é por isso que seus pais se separaram dele. A disposição fundamental é justa.

Então, convém, o quanto antes, após alguns dias em que se terá experimentado a afeição e a solicitude, levá-lo à conversão. O que eu disse aqui é fruto da experiência dentro de uma escola, em busca de nosso fim essencial; isso, eu digo para todos os fundadores de escola e para todas as famílias.

Graças a Deus e a pais santos, as crianças já entram na escola convertidos. Mas, para tantos outros, a reeducação da alma, afetada pela terrível psicologia que justifica o mal, deve começar pela conversão. Resumirei isso tudo com a seguinte e surpreendente declaração de uma criança de dez anos, que guardo comigo há muitos anos, como a fórmula mesma da conversão do coração: “Pareceu-me, de repente, disse-me esta criança, que Deus me dizia: Olha para tua vida! Daí, enxerguei todos os meus pecados, quis que eu nunca voltasse a cometê-los e fui para o confessionário.”

Eis o ponto de partida, todo resto é vão: as exortações para se dedicar, para agradar àqueles que o amam etc, etc, tudo é vão, antes.

Olha, meu filho, e vê, à luz das lições do catecismo, da lição sobre o pecado, dos novíssimos, do exame de consciência seguindo os mandamentos, à luz da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Olha, minha criança, olha para tua vida! A criança volta-se para si mesma, se entristece na contrição e examina seus pecados cuidadosamente, com uma seriedade que nos faz repetir para nós mesmos: “Se não fores semelhantes a um desses pequeninos!” E finalmente, com confiança e humildade, se entrega ao Tribunal da Penitência.

Bendito o padre, ministro fiel de Jesus, que recebe com respeito e atenção este retorno do filho pródigo! Digo mesmo “retorno do filho pródigo” porque sei que, mesmo entre pessoas piedosas, que se dizem fiéis e tradicionalistas, ainda reina o instinto estúpido de não levar a sério as faltas de uma criança, de sorrir de sua gravidade, de não dar importância a seu arrependimento pela maneira pueril de a acolher.

Muitos educadores me acusam de dar muita importância a esta reviravolta na alma de uma criança, de levá-la mesmo às raias do escrúpulo e, porque não, de ser jansenista...

Julga-se a árvore pelos seus frutos: a criança convertida sai do Tribunal da Penitência radiante, banhada pela misericórdia, começando uma nova vida; ela corre para diante do Tabernáculo, reza sua penitência com os mesmos sentimentos de Joinville ao partir para a cruzada.

É preciso saber que tudo que se subtrai da gravidade do pecado por meio de um freudismo disfarçado, subtrai-se da misericórdia de Deus e da dignidade livre do animal racional.

Após este banho salutar de penitência, a criança convertida não está ao abrigo das tentações; contudo, a experiência permite dizer que elas são bem menos freqüentes e que “dão menos vontade”. A Santa Virgem esmaga a cabeça da serpente, sobretudo se temos o hábito do recurso filial e contínuo à sua Santa Maternidade, através do terço cotidiano e da invocação repetida.

A criança convertida é mais calma, mais feliz; possui “esta moderação das pessoas felizes” da qual fala La Rochefoucauld. Ficam mais espaçadas as cóleras de criança mimada e sem vida interior, que se revoltava à privação de um prazer ou à perspectiva de um esforço.

A criança convertida é mais inteligente. O nível intelectual das crianças saídas das escolas de hoje é lamentável. Na verdade, as classes atuais não fazem mais pensar. As novas matemáticas ajudariam a preencher este vazio, se a inacreditável preguiça não o impedisse. Ora, a conversão opera o mais profundo movimento das faculdades espirituais. A graça exige da alma no que toca a inteligência, intuição, lucidez, atenção; no que toca a vontade, humildade, resolução, execução, além do sábio governo da sensibilidade.

É possível mensurar de quantos bens naturais e sobrenaturais estão privadas as crianças de hoje, por obra de uma heresia que as submete à vigílias de penitência e à sacrílegas absolvições coletivas, sem confissão de pecados?

* * *

É preciso que os pais católicos estejam convencidos da necessidade sobrenatural da penitência e da conversão; e que, nesta perspectiva (de guardar as crianças na fé de Jesus Cristo, quer dizer, em estado de graça), eles tornem-se severos.

Outro fruto da experiência: as crianças convertidas têm orgulho de ter pais severos. Isso é evidente: a criança contestadora se insurge contra toda proibição, pois despreza a lei e aqueles que a anunciam. A criança cristã honra a autoridade, que a quer em paz com o Céu.

Isso é evidente, comprovado.

Recebi, em meados de setembro, duas cartas de dois irmãos terríveis, briguentos, mas convertidos. Ei-las: “No final destas férias, tornamo-nos insuportáveis de novo. Mas nossos pais agiram bem: brigaram conosco e nos puniram como merecíamos.”

Esta é uma apreciação de espíritos livres e clarividentes, sem sombra de insolência, mas profundamente satisfeitos da ordem justa das coisas.

Mais um fato, dentre os muitos do ano passado: explicávamos, no catecismo, o quarto mandamento; quatro meninos, de seis a oito anos, enxugavam a louça; criam-se a sós; mas, enquanto isso, uma senhorita corrigia seus cadernos numa sala vizinha, cuja porta estava aberta. Estes são os mais velhos, que tem o hábito de lavar a louça em paz e conscienciosamente.

A conversa a sós estava bem animada:

          Roberto: tua mãe te dá muita bronca?

          Carlos: Ah sim, e me castiga mais que às meninas.

          Roberto: Por quê?

          Carlos (sem modéstia): Porque as meninas fazem menos besteiras do que os meninos (ele tem três irmãzinhas).

          João: E quando tua mãe te castiga, ela te bate?

          Carlos: Antes ela me explica, sempre, e depois que eu entendo, ela bate bem forte. Aí, então, tomo juízo.

          Roberto: Quem me bate é o papai. Ele pega um couro e bate bem forte. E o teu pai, ele é duro contigo?

          Carlos: Menos que a mamãe, porque ele quase sempre está fora. Mas mamãe conta pra ele.

          João: Meu pai começou a dar bronca há pouco; desde que estou na Péraudière, ele dá muito mais bronca.

          O quarto menino não disse nada. E você, que teu pai e tua mãe fazem?

          Paulo, (envergonhado e, mesmo assim, tentando se gabar): Mamãe se zanga e meu pai também.

          João: Mas eles te castigam?

          Paulo: Eles dizem que isso certamente vai acontecer.

          João: Então, fala para eles... Explica como se faz.

* * *

Alguém dirá: “Mas você não tem o direito de ‘julgar’ a culpa de ninguém”. Compreendamos: eu certamente não tenho o direito de julgar o seu grau de culpa e de responsabilidade. Não tenho este direito porque não tenho como exercê-lo. Não enxergamos o interior dos corações. Só Deus julga. Mas tenho o dever de julgar a espécie moral do ato. Dever inscrito na economia mesma da Lei: não matarásnão atentarás contra a castidadenão tomarás o bem alheio. Isto evidentemente significa que o homicídio, o adultério e o roubo são crimes e que aquele que os comete é culpado, é pecador.

A Caridade, a verdadeira, está em preveni-los disso; o que significa, em conformidade com a justa e familiar expressão, “fazer com que se sintam culpados”.

O sentimento de culpa, que é uma emoção, tal qual o pudor no inocente, é advertência e prevenção. É a ressonância na sensibilidade dos ditames da consciência; a culpa é a vingança da honra, a vitória da justiça, da justiça de Deus e de uma sociedade que reconhece o valor absoluto do Bem.

Bendita e terrível culpa, colada ao dogma do pecado original: tiveram vergonha e se ocultaram. “E o Senhor Deus chamou por Adão, e disse-lhe: Onde estás?”. O inimigo da Salvação enganou-os mortalmente: “sereis como deuses” A terrível e austera ironia do Todo-Poderoso faz crescer a culpa, torna-a aguda, cortante, até que os humilhe e mortifique: “Eis que Adão se tornou como um de nós!”

A alma envergonhada experimenta a feiúra e o ridículo do pecado. Então, ela escuta a promessa de um Redentor.

Açular o vício atacando o sentimento de culpa, não é caridade, mas crueldade satânica.

Face à Onipotência de Deus, à morte, ao inferno, ao amor de Nosso Senhor, à clareza dos seus mandamentos e da Cruz, confesso: sim, isto eu fiz. Em verdade, digo que fui insensato. Eu me levantarei e irei ao meu Pai.

Demonstrar, pela razão e pela fé, a loucura do pecado à criança, após o ter meditado e vivido por si mesmo, é fortalecer seu coração e defendê-lo contra Satã; é despertar, ressuscitar de algum modo a inteligência; é incendiar de amor sua vontade e enchê-la de força para todo o sempre, quaisquer que sejam as quedas possíveis. 

Mas, ao contrário, “compreender” o pecado, pretender justificá-lo, é desarmar e desesperar (porque é enganar) a natureza livre resgatada por Jesus Cristo.

“Fatal”, “inevitável”, “renovador”, “enriquecedor”, — o pecado compreendido desta forma escapa à Redenção, e nos conduz ao inferno; o pecado, assim travestido, tornar-se-á inconsolável, inexpiável, irremissível.

* * *

Se compreender o ato pecaminoso é enfatizar as circunstâncias atenuantes, o melhor é recorrer à própria doutrina da Redenção. Aí, a psicologia há de encontrar tudo que é preciso.

O catecismo nos ensina que o pecado do anjo é irremissível, porque o anjo, puro espírito, vê diretamente, sem o véu da carne, a obrigação absoluta do serviço de Deus. Quando este diz: “Non serviam”, sua clarividência é completa, assim como seu consentimento; daí, precipita-se no inferno.

O homem, feito de corpo e alma, vê o Bem e a obrigação do serviço de Deus, mas sob os véus dos seus sentidos, aos quais falam as coisas sensíveis. O fruto proibido não era, para o homem, apenas proibido, mas “bom para comer e formoso aos olhos”. A mulher escuta a serpente e o fruto proibido é, em seguida, apresentado por Eva à Adão, que é fraco e complacente com relação à Eva.

Deus pode condená-lo e precipitá-lo no inferno; mas Ele condescende, porque o homem fora induzido pela fraqueza da carne, prometendo-lhe um Salvador após o seu arrependimento.

Mas o ato do pecado em si, em sua malicia essencial, é absurdo e incompreensível. É o mistério da iniqüidade em cada consciência. Preferir a criatura à Vontade do Criador, o prazer à eternidade da alegria, sublevar-se contra o amor de Nosso Senhor e recusar-Lhe submissão e obediência quando a razão e a fé gritam sua necessidade, isto, em si, no ato mesmo, é algo que não se pode compreender, é algo de incompreensível, e tão errado quando mau.

Daí ser preciso, para a conversão, contemplar, se assim podemos dizer, o absurdo do pecado e, depois de haver compreendido suas tristes circunstâncias (a fraqueza da carne, a cegueira da razão, a tibieza da fé), compreender também que tudo isso não explica a malicia intrínseca deste consentimento interior ao mal.

Neste ponto, o catecismo é esclarecedor. Para que haja pecado mortal, é preciso que haja:

1) matéria grave;

2) plena consciência;

3) pleno consentimento.

Isto é demonstrar o absurdo do pecado, em sua própria natureza; ora, um dos motivos mais eficazes de conversão, e que assegura a sua solidez, é a consideração do absurdo do pecado.

* * *

Muitas mães se preocupam com o catecismo. Querem encontrar catequistas, mas não pensam em ensinar o catecismo elas mesmas. Ficamos estarrecidos de ver tantas mães em tal situação. A mãe, a irmã ou o irmão mais velho e, porque não, o pai, os avós devem ser ou tornar-se capazes, o mais rápido possível, de ensinar em casa a doutrina cristã que receberam.

É preciso estudar. É um dever estrito, uma obrigação pela qual prestaremos contas no Tribunal de Deus.

Fiquei surpresa, no retorno às aulas, ao constatar que alguns destes pequeninos (6, 7 anos de idades) não sabiam o pelo-sinal, que os meninos maiores ignoravam o Pai Nosso e a Ave Maria em latim, ou responder o Angelus em latim.

Como é fácil remediar isso tudo!

Pacientemente repetimos que é preciso trabalhar o catecismo de São Pio X todo dia, o qual deve ser procurado, além do Catecismo do Padre Emmanuel (Catecismo da Família Cristã), sobre o qual Jean Madiran escreveu: “Se tiverem outros catecismos, este não será redundante. Se preferirem ter apenas um livro de catecismo, é este que recomendamos. É útil para a família inteira, em família; serve aos grandes e aos pequenos, aos pais e aos filhos.”

Mãos à obra! todo dia! A Santa Virgem abençoará esta meia hora arrancada, na busca do Céu, das ocupações da terra. As graças atuais serão dadas à professor materna,

junto com os frutos da luz e da paz no coração dos pequenos.

( Continua )

Do ORKUT ao FACEBOOK

Dom Lourenço Fleichman

Há alguns anos, após tecer algumas considerações sobre o fenômeno do Orkut, primeira "rede social" a se espalhar de modo universal, atingindo particularmente o Brasil, lancei uma campanha aconselhando ao leitor apagar sua conta naquele sistema de escravidão. Os e-mails recebidos na época indicaram cerca de 150 pessoas que tomaram a iniciativa de apagar sua conta e de escrever à Permanência comunicando este fato.

Analisando este número de corajosos leitores, considerei um resultado muito bom, diante dos meios de que dispomos e, sobretudo, diante dos motivos espirituais e civilizacionais oferecidos como incentivo para se tomar decisão aparentemente tão sofrida e difícil.

O diabo não dá ponto sem nó, como se diz, e logo surgiu fenômeno mais amplo e pernicioso do que o primeiro. Contam que o Facebook começou como um sistema de reconhecimento dos rostos dos alunos em certa universidade. Basta conhecer um pouco a natureza humana para compreender porque milhões de pessoas pelo mundo foram contaminados com a Síndrome da Bruxa Má, da Branca de Neve! "Espelho, espelho meu". O engenhoso "crachá" eletrônico é como a "imagem da besta", que aparece no Apocalipse. O joguete do dragão adquiriu tanto movimento que ele fala, escreve, e vai variando sua bela imagem, cativando a todos e gozando dessa imensa felicidade: "digam-me se há mais bela do que eu" Continue Lendo

Do esgoto do mundo à salvação dos nossos filhos

Dom Lourenço Fleichman OSB

 

O que me leva a escrever hoje é a constatação, cada dia mais evidente, da dificuldade que as famílias católicas têm para viver neste mundo enlouquecido e transviado. O espetáculo que estamos assistindo, e que não se limita ao carnaval, mas ao ano todo, e a todos os anos, é de meter medo. Nossas famílias, nossas melhores famílias, não conseguem se isentar deste mundo. Todos pactuam  com práticas diversas de destruição do que resta de decência e de família. Digo "família" porque já não há mais nada de sociedade a ser preservado, já não temos mais o que defender! Tudo está destruído. Mas talvez ainda possamos lutar dentro de nossas famílias, ou dentro de nossos corações.

Ora, é justamente esta constatação da destruição de todas as realidades sadias da  antiga sociedade que explica a dificuldade das pessoas em não se contaminar.  Explico.
Dentro de uma sociedade em vias de corrupção, as pessoas teriam de sair de casa tomando certos cuidados para não serem contaminadas: cuidados com os outdoors, com as bancas de jornal, com o convívio no trabalho, e até mesmo com  os assaltos na rua. Dentro de suas casas, haveria necessidade de lutar constantemente contra os programas de televisão, tomar cuidado com o tipo de gibi ou de video-game que compra para os filhos. Dentro de uma sociedade assim, indiferente a Deus e apóstata da Santa Religião Católica, os pais de família teriam de trazer para seus filhos um bom catecismo, uma Capela onde se celebre a Santa Missa Tridentina, onde o catecismo fosse ensinado segundo a doutrina de sempre da Igreja.

Mas não é numa sociedade em vias de decadência, que nós vivemos. E é nesse ponto que se encontra o erro de tantos pais. Ao achar que a questão é de grau de corrupção, eles procuram defender  suas famílias sem no entanto tirá-las do ambiente em que estão sendo corrompidas.
Vejam bem o que quero dizer: nossa sociedade já não tem mais nada que mereça a nossa atenção. Os valores em voga nessa sociedade formam um esgoto nojento e fedorento que emporcalha tudo e todos. Não há como escapar! Você sai na rua, você vai ao médico, você compra um jornal, você é engenheiro, ou advogado, ou motorista de ônibus, o que seja, o que se faça, na rua ou dentro de casa, o esgoto se espalha, contamina, agarra-se em nossas peles, transmite o seu cheiro insuportável. E é tal a realidade disso que estou dizendo, que, estando todos contaminados, estando todos sujos e fedorentos nas entranhas de nossos costumes e de nossos interesses, os homens não sentem mais o fedor de si mesmos! Todos agem,  pensam, falam, com os critérios da lama e da cloaca.

A tendência que nós teríamos, seria a de querer comparar todas essas realidades com os critérios da nossa antiga formação. Falaríamos do funk comparando com outros tipos de música: – Ah!, na minha época não era assim!  Falaríamos das pichações, e do homossexualismo, e do nudismo nas ruas, e do sexo desenfreado e vagabundo, do  aborto e das clonagens, sempre comparando, comparando...com o quê? Até quando?

Não, não podemos nos enganar. Não é mais possível esse tipo de sem-vergonhice. É preciso ter a coragem de dizer, de pensar, de saber: acabou! O mundo como nossos pais nos ensinaram já não existe mais. E se os homens ainda votam (meu Deus, ainda se acredita na mentira da "democracia"!!), se os políticos ainda nos governam, é por simples reflexo dos nervos da defunta sociedade liberal e apóstata.

Outro dia me contaram mais uma vez o caso de um professor de universidade, casado, bom pai de família. As mulheres da faculdade avançam sobre os homens, sem querer  saber se é casado, se não é;  umas dez para cada um, que falam com os homens já se encostando, já se entregando. E a pessoa que me contava isso, dizia: "elas já perderam tudo". Eu procurei mostrar ao meu interlocutor que, ao contrário, essas mulheres não perderam nada, porque não há nada mais a ser perdido. Perder, para um católico, é considerar que as mulheres, dentro de uma sociedade com critérios de bem e de mal, de virtudes e de vícios, abandonaram completamente os primeiros e vivem pelos segundos. Mas não é esse o fenômeno que assistimos. O que existe, de fato, é uma sociedade onde o bem e o mal não se opõem, onde não há virtudes e vícios, onde tudo é permitido, onde tudo é "bom". De modo que essas mulheres não agem assim por perversão delas. Não são maus elementos da boa sociedade. É a própria sociedade que é má, que é perversa. Elas nada mais fazem do que viver segundo os critérios desse mundo. Eis um exemplo que vem reforçar o que dizia acima, sobre o esgoto que está pelos ares, no ar que respiramos, nas conversas que temos, na casas como na rua.

E mais uma vez, espantados e agradecidos, é em São Paulo que vamos encontrar a explicação desse tremendo mal, desta horrível provação que é hoje pedida aos que querem se salvar:

«Porque nós não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra os espíritos malignos espalhados pelos ares».

Vejam bem, o Apóstolo desdenha quase dos pecados pessoais, da carne e do sangue, para nos advertir sobre um tempo em que o mal estaria espalhado pelos ares. Que coisa impressionante! Que revelação tremenda recebeu de Deus São Paulo.
E o que é que ele nos recomenda  para uma situação tão tenebrosa? O combate, a guerra, a espada. Mas não podemos combater simplesmente com as armas comuns que usamos contra a tentação:

«Portanto tomai a armadura de Deus, para que possais resistir no dia mau, e ficar de pé, depois de ter vencido tudo».

É, portanto, uma armadura, que nos cubra dos pés à cabeça, que nos leve à vitória total, sobre tudo, ou seja, sobre a própria sociedade erigida pelo demônio, pelo Anticristo, para a perda e condenação dos justos. Porque os maus, meus filhos, já estão condenados há muito tempo. O que o diabo não suporta é que haja ainda alguns loucos resistindo e querendo o Reino de Deus.

Que haja,  ainda, alguns doidos excomungados pela nova Religião de Vaticano II, conivente e "aberta para o mundo", que preguem o verdadeiro Evangelho de Cristo. Isso ele não suporta. Seu ódio mortal distila sobre esse esgoto do mundo uma saliva fétida e corruptora, que só o torna pior; porém, cheio de astúcias, o torna também mais enganador. E é assim que, insistindo em dizer que o mundo ainda é o mesmo, que as mulheres "perderam tudo", que em outras épocas "não se ouvia funk",  e coisas desse tipo, Satanás vai enganando os bons. E quem são os bons? São vocês. São vocês, que querem permanecer católicos, mas querem conviver com o mundo; que querem agradar a Deus, mas não rechaçam os prazeres mundanos. Que assistem à Missa verdadeira, mas acham que os protestantes são piedosos! Que lutam contra os pecados da carne, mas deixam seus filhos nas boates e na televisão.

E essa gente enganadora, esses cúmplices do demônio, Anticristos dessa nova sociedade má, declaram para quem quer ouvir isso que estou aqui denunciando.

Estando eu, numa sala de família onde alguém assistia a uma entrevista na televisão, o entrevistado, creio que falando em francês, espécie de artista já de idade, com uns cabelos brancos compridos, virou-se para a câmara e deu seu recado final, sua saudação alegre, sorridente, para os estúpidos que o admiram. Abriu os braços como quem mostra o mundo, e num sorriso simpático repetiu três vezes, lentamente, e com um gesto cada vez mais abrangente: Merde, merde, merde!

Que me desculpem os ouvidos pudicos. Mas diante de certas realidades, só o palavrão pode exprimir a realidade. E ele deve ser dito, para evitar que  uma palavra mais amena nos engane sobre a gravidade da coisa. Foi isso que ele disse, e disse bem, pois é esse o mundo que ele prega, é essa a cultura que ele produz, é esse o fedor e a cloaca de que eu falava acima.
E é por isso que os nossos, que os bons pais de família, não conseguem vencer os atrativos do mundo. É por isso que eles abrem as portas de suas casas e deixam entrar este ar tenebroso e fedorento. É porque está já tudo coberto por esta substância, de modo que nem os bons conseguem mais distinguir os perfumes da alma santa, da Igreja santa, da família católica.

Mas eis o que Deus nos revela  como sendo  nossa atitude diante desse quadro:
«E ouvi outra voz do céu que dizia: Saí dela, povo meu, para  não serdes participantes dos seus delitos e para não serdes compreendidos nas suas pragas» (Apoc. 18, 4)
No início do ano, em conversa com as famílias da Capela Nossa Senhora da Conceição, mostrei a elas que para manter-se fiel à Fé e perseverar na busca da salvação, diante do quadro avassalador em que se encontram nossos filhos, era necessária uma cumplicidade voluntária entre os pais e o padre. É preciso hoje,  que os pais trabalhem em conjunto com o sacerdote, querendo ouvir as orientações a que a moral católica nos obriga. Querendo estudar a doutrina, querendo que seus filhos sejam orientados, que tenham contato constante com o padre e com a Capela. Essa cumplicidade precisa ser vivida de modo prático e eficaz, na busca da oração, do Santo Terço dentro de casa, da fuga desse mundo corrompido e contagiante que está carregando de roldão o que vocês têm de mais amado, que são seus filhos. E vocês não estão conseguindo conter a avalanche, e estão se inclinando a achar que é assim mesmo, que todo mundo faz... e o mundo vai tendo cada dia maior presença em suas casas.

Cumplicidade significa renunciar a certas facilidades, a certos confortos, a muita televisão, a um comportamento indecente e imoral que se manifesta nas roupas, nas atitudes, nos gestos, no sexo precoce e pecaminoso. Cumplicidade é impedir, sim!, impedir que seus filhos ouçam esses funks e coisas semelhantes que só fazem arrebentar todas as forças espirituais da alma, movendo a carne para a sensualidade e para o pecado.

Cumplicidade significa organizar o lar de modo a que as atividades sejam orientadas; mas para isso, é preciso perder tempo, perder muito tempo, num esforço difícil mas necessário, organizando biblioteca e videoteca capazes de entreter seus filhos no bem. Vejam! O que eu entendo ser uma guerra para salvar seus filhos, é a presença da mãe junto deles, cada dia mais necessária, justamente no momento em que elas são cada dia mais empurradas para fora de casa, abandonando seus filhos, que vão ser criados numa creche ou por uma empregada. A mãe é chamada hoje,  não é ao fogão e ao tanque, não senhoras! É a um trabalho estafante, na rua, indo de livraria em livraria, de sebo em sebo, recolhendo livros bons, que sejam formadores de valores morais; comprando filmes que tragam algum proveito de  vida e de moral para os próprios pais e para seus filhos. O que as mães precisam fazer é formar-se na Universidade da Família, aprendendo a contar histórias, a brincar de roda, a inventar atividades e passeios, a ensinar música para seus filhos. Se fosse para fazer isso como educadoras, como diretoras de uma firma, como vendedoras de uma loja, aí elas ficariam encantadas... mas como é dentro de casa, ou pelo menos, como é para ser aplicado dentro de casa, elas reclamam, e querem a rua, querem o mundo.... Coisa estranha! Estranha contradição. Dizem que amam seus filhos, mas não querem estar a seu lado, na educação, à serviço de suas alminhas inocentes ameaçadas de morte prematura.

Creio que este papel reservado às mães, traria outras vantagens para seus filhos. Pois é evidente que duas ou três mães poderiam perfeitamente se juntar e trabalhar em conjunto, revezando-se talvez nas tardes ou manhãs livres, para juntar seus filhos em passeios e atividades. Logo apareceria uma que sabe tocar um instrumento, e eis que começa umas aulas de música, nessa idade delicada dos cinco ou seis anos, em que começa a formação musical e artística.
Parece ilusório o que lhes proponho? Talvez pareça ilusório porque as mães já não estão habituadas a esse esforço. Afinal, como é simples apertar um botão de televisão ou computador, e eis o silêncio das ovelhinhas  instalado no lar ... indo  para o  matadouro!
Não me parece ilusório porque são atividades próprias aos educadores, e os pais são educadores por obrigação e por graça de estado.

E se a objeção é o orçamento do lar, que a mãe precisa trabalhar senão não fecham as contas no fim do mês, respondo que são poucos os casos em que há verdadeira necessidade. O que se vê, em geral, é a busca cada vez maior de ter, de possuir, de gastar,  num vício desenfreado que vai contra a virtude da pobreza. Diminuam as necessidades, e que os maridos sejam mais eficazes nos seus trabalhos, pois cabe a eles a cumplicidade de fazer o possível para que a mãe possa criar seus filhos.

Lembrem-se que os filhos não são bonecos bonitinhos que só servem para satisfazer o orgulho e o amor-próprio dos pais, bonecos que se encostam numa creche ou numa televisão para que não atrapalhem o resto do dia. Ter filhos é obrigação de todo casal, e educar é carregar a Cruz de Nosso Senhor, abandonando a vontade própria para transmitir a Fé verdadeira, a verdade natural e sobrenatural, a moral de Deus e o amor ao próximo.

E para completar este combate onde as mães devem ser leoas rugindo contra o mundo devorador, onde os pais devem ser leões fortes e trabalhadores no sustento do lar, onde a família se encontra em todas as atividades, do ritual das refeições em comum, passando pela oração em comum para chegar à Santa Missa, venho exortá-los, agora, a que recebam a bênção do Sagrado Coração sobre as famílias, a Entronização no Lar do Sagrado Coração, como sendo a retaguarda espiritual dessa guerra tremenda e constante,  onde as forças espirituais devem ser preservadas, para que a vida natural não se perca seguindo os passos do demônio e do Anticristo. Façam a Entronização, façam a Renovação anual, e venham para a Capela, venham na 1ª Sexta, no 1º Sábado, receber de Nosso Senhor o Alimento Sacramental que nos dá a força sempre viva da Fé, da Esperança Teologal no sucesso e na Vitória, e a Caridade que é o próprio Deus vindo dentro de nós num dom de Si mesmo, como Amor Substancial. Que a Virgem Maria, Nossa Senhora da Conceição lhes dê forças para combater. É preciso desejar a vida eterna apaixonadamente, sem descanso. Não esmoreçam, pois o Senhor bate, já está às portas; Ele colhe, e queimará a erva daninha que não servir para o seu Celeiro.

O desemprego e a Cruz

E vem essa CNBB dos bispos do Brasil nos falar de desemprego, na linguagem marxista e materialista que lhe é costumeira. Quanta cegueira! O desemprego tem suas raízes numa crise que nem de longe é econômica: é a crise nascida no séc. XIV, que deu origem ao chamado Nominalismo, que levou os homens a abandonarem a "direita via", vivendo já no Humanismo que punha o próprio homem no centro dos seus interesses. Querem saber o próximo passo? É a quebra da Europa católica pelo protestantismo, é a Renascença, com seu pensamento e sua arte carregada de paganismo beato.

Nesta altura da vida da humanidade, o cristianismo medieval já tinha ficado para trás há séculos. E com ele, perdeu-se a noção de uma sociedade católica, onde os homens buscavam primeiro o Reino de Deus e sua Justiça, viviam pobremente, contentavam-se com pouco, mas eram felizes e alegres.

Estava eu neste pensamento quando tocou o telefone:

Dom Lourenço, a companhia onde eu trabalho está mandando dezenas de funcionários embora. Talvez eu perca o emprego!

O contágio!

É a única explicação. Estamos vivendo uma espécie de contágio que não atinge o corpo, mas as forças espirituais da alma. Na antiguidade, os homens iam acompanhando passo a passo o caminho da peste. Hoje levou um pai, amanhã, será a vez do vizinho, do pároco, do amigo.

Eram felizes, os antigos, porque morriam no flagelo. A nós está reservado sofrer uma terrível doença que penetra no fundo de nossas almas, que arrasta pouco a pouco, espalhando-se como um câncer, sem escolha, sem marcar dia nem hora. E o tormento perdura pelos anos a fio:

«E naqueles dias os homens buscarão a morte e não a encontrarão; desejarão morrer, e a morte fugirá deles» (Apoc. 9, 6)

Esta doença tem mais de uma característica. Ela começa pela cegueira espiritual, que leva as melhores pessoas a não verem que o mal está dentro de suas casas, dentro de suas vidas. E todos vão se divertir, e adotam os prazeres do mundo e suas riquezas, seu orgulho idiota contra a santidade da Igreja. Mal sabem eles que são peças de um jogo, escravos de uma ordem mundial, acéfala e monstruosa, saída direto das trevas do Inferno para o derradeiro combate contra o Rei do Céu e da Terra.

Depois de se entregarem a esta cegueira, entram na lógica do erro e, já sem forças, se vêem obrigados a amar as riquezas, as posições de destaque, as maravilhas do mundo:

– Faço sucesso, ganho muito dinheiro, sou bem sucedido, isso é meu direito!

– Já no meu caso, como não faço sucesso, como perdi meu emprego, tenho o direito de reclamar! Vou entrar na justiça!

É um vício. Se adquire pela prática constante dos mesmos atos, e pela adoção da espiritualidade moderna, que nada mais é do que escravidão aos desígnios do diabo.

Mas eles não enchergam e, pior, desejam viver assim.

Dentro deste contexto aparece o flagelo terrível que atinge a todos indiscriminadamente, bons e maus, ricos e pobres, brancos e pretos: o desemprego, que é filho do excesso de emprego.

Já ouço o clamor público, mas estou longe dele. Saí deste mundo e é do alto que procuro analisá-lo. Sem um certo recuo fica difícil conhecer a verdade dos fatos, como a beleza de um quadro.

Digo que é o excesso de emprego que gera o desemprego. Primeiro devido ao mundo materialista mergulhado no vício de possuir e gozar que descrevi acima. Depois, devido ao abandono da verdadeira noção de família, do papel de cada um na vida da sociedade. A mãe já não é mais mãe, a mulher já não é mais esposa. Não vou discutir isso agora, e peço às senhoras que não se levantem para essa discussão. Remeto-vos ao texto de Gustavo Corção que se encontra no cap. VI do livro As Fronteiras da Técnica, e que está editado aqui mesmo em A Vocação da Mulher. A verdade é que eles buscaram esta situação, derrubando os padrões da sociedade católica, ou pelo menos da moral católica, que ainda vigorava no início dos anos sessenta. Agora choram, choramingam, sem saber o que vai acontecer; lavam-se, escovam-se, como que querendo desgrudar do corpo essa lepra, mas ela não atinge o corpo e sim a alma.

«...e todo servo e livre se esconderam nas cavernas e entre os penhascos dos montes; e diziam aos montes e aos rochedos: caí sobre nós e escondei-nos da face daquele que está sentado sobre o trono e da ira do Cordeiro; porque chegou o grande dia da ira de ambos, e quem poderá subsistir». (Apocalipse, VI, 16)

Remédio para o corpo, medicina, de nada vale.

Remédio para a alma. É o que é preciso. Mas o demônio, na sua esperteza, minou as forças da alma, ao longo dos anos, levando os homens a viver nesta miragem do mundo belo, cheio de prazeres e coisas lindas e gostosas. Viciou o homem, de modo que o remédio espiritual tem para ele, hoje, um amargor insuportável. E ele foge. E fugindo, perde a única tábua de salvação, que é o retorno aos parâmetros essenciais da vida humana: Deus e a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

O que vou lhes dizer agora são pensamentos que me foram vindo diante de um mundo que beira a caduquice, a barbárie mais abjeta, a loucura coletiva. Não sou profeta do Apocalipse, apenas olho para o mundo que temos diante de nós com os olhos da objetividade, da clareza de um pensamento assentado em bases filosóficas e doutrinárias ensinadas ao longo de dois mil anos de catolicismo.

E pergunto: vocês vêem na atitude dos homens comuns, dos magistrados e governantes, dos padres, algo que lhes inspire confiança quanto ao futuro? Não digo certeza, digo inspirar uma certa e tênue esperança de que o caminho esteja certo.

Não tenho nada de pessimista, e devo lhes dizer que esta palavra nada significa quando nos deparamos com um mundo enlouquecido como está o nosso.

Eis o que vejo.

Nosso Senhor, na sua grande misericórdia, tem nos dado sinais de que está separando o joio do trigo. Ele ceifa neste momento e recolherá ao seu celeiro o grão bom, deitando fogo na palha e na erva daninha. E que sinais são esses?

O primeiro sinal é o flagelo da Aids que castiga os maus e purifica os bons no que toca a concupiscência da carne. Eis o que nos ensina S. Paulo: «Porque as suas próprias mulheres mudaram o uso natural em outro uso, que é contra a natureza. E, do mesmo modo, também os homens, deixando o uso natural da mulher, arderam nos desejos, mutuamente, cometendo homens com homens a torpeza, e recebendo em si mesmos a paga que era devida ao seu desregramento.»

Com este flagelo, Deus nos alerta para que pratiquemos a virtude da castidade, cada um segundo o seu estado, fugindo com força e gana dos pecados e dos prazeres ilícitos de uma sociedade liberada dos antigos tabus, ou seja, da lei de Deus. Que os casais usem corretamente dos direitos matrimoniais, que os adolescentes fujam sem medo das intimidades ilícitas dos namoros sexuais, que as crianças sejam afastadas da televisão que lhes ensinam que tudo é lindo num mundo alegre e feliz onde reina a liberdade total, sem Deus, sem os ultrapassados 10 mandamentos, sem pais.

O segundo flagelo é o que nos ocupa mais particularmente aqui. Ele atinge em cheio a concupiscência dos olhos, castigando os homens que só pensam em riquezas, em bem estar, em dinheiro, em ser dono disso, em comprar aquilo. É a atitude que vem se agravando desde o século XIV, de resumir a vida no dinheiro, o que acarreta em estabelecer parâmetros de classificação dos homens pela produtividade. Não interessa mais se ele é virtuoso e honesto ou se, ao contrário, desonesto e vicioso. O que conta é a relação custo/benefício. E a massificação realizada pela mídia, hoje agravada pela Internet, iguala todos os homens no que toca a procura. Todos querem porque todos assistem aos mesmos programas de televisão. Basta perceber o que ocorre na época do Natal. De Ipanema a Madureira, de São Gonçalo a Tijuca, nos prédios, nos condomínios ou nas favelas, todas as crianças brincam com os mesmos brinquedos.

E nós, como escaparemos disso, como receberemos este flagelo do desemprego (ou do excesso de necessidade de emprego) de modo a purificar a concupiscência dos olhos? Creio que só há um caminho, para isso. É a virtude da pobreza, que brota da gruta de Belém e se derrama sobre nós da Cruz do Gólgota. Com dinheiro ou sem dinheiro, o pobre Jesus exige de nós a comunhão na sua Santa Pobreza. Possuir como se não possuísse, viver no mundo como se não vivesse. Renunciar aos bens materiais, ao supérfluo, por amor de Deus, porque a Ele pertencem, como tudo o mais. Estarmos submissos à sua Santa Vontade, como Jó, simplex et rectus, que dizia no meio de sua amargura: «Nu saí do ventre de minha mãe e nu me tornarei para lá; o Senhor o deu, o Senhor o tirou, como foi do agrado do Senhor, assim sucedeu; bendito seja o Nome do Senhor». (Jó, 1,20). Me parece que Nosso Senhor pede que sejamos mais modestos no uso dos bens materiais.

A grande confusão que paira sobre a humanidade, seguindo esta linha de raciocínio, é que faltaria um flagelo para o castigo dos maus e purificação dos eleitos. Este último flagelo agiria sobre a última e mais terrível das concupiscências, a soberba da vida. A carne, as riquezas, o poder, assim se dividem os pecados dos homens.

Não há dúvida que já vivemos dentro de um ambiente de orgulho total, de ódio ao próximo, de busca desenfreada de poder. Não apenas por governantes estúpidos e corruptos. São todos que assim agem. Este ambiente é o que mais se assemelha ao inferno, por isso é o pior e mais terrível flagelo que poderia cair sobre os homens. Esse ambiente de soberba universal já existe e exerce sua influência em tudo o que se realiza hoje sobre a terra. Mas não me parece que já seja um flagelo, pois ainda não é imposto individualmente a cada um, sem escolha, sem dia nem hora marcada. Já respiramos o seu ar, mas talvez ainda não estejamos vendo o seu rosto demoníaco. A não ser que, pela soberba atingir essencialmente à alma e não ao corpo, já estejamos vivendo este derradeiro flagelo, sem no entanto percebe-lo. Contra ele, o único remédio é a virtude da obediência, pela qual nos submetemos de bom grado aos mandamentos de Deus, à orientação segura da Igreja Católica, fiéis ao que Ela sempre ensinou, cheios de profunda humildade, desconfiando e desprezando nossas próprias opiniões.

Desde já estejamos no combate contra este flagelo horrível, contra os três flagelos dos fins dos tempos. Dentro de nossas casas, em nossas vidas, participemos das coisas do mundo com cuidado, desconfiando das nossas próprias forças para resistir a tamanho mal, pedindo socorro numa oração constante para que Deus tenha pena de nós. Os remédios que apresentei estão no Evangelho: são os três conselhos de perfeição que Jesus nos ensina.

Tenhamos uma certeza, porém: existe um lugar, um único lugar, onde estaremos ao abrigo de forças tão destruidoras da nossa alma. Junto à Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. É lá, com Maria, nossa boa Mãe, de pé diante de seu Filho crucificado que receberemos as luzes necessárias para escapar da morte eterna. É lá, neste Calvário eterno que é a Santa Igreja, junto à Cruz da Santa Tradição, que receberemos a vida de Jesus ressuscitado, que permanece conosco na Sagrada Hóstia até a consumação dos séculos. Com esta vida, viveremos. «Nós devemos gloriar-nos na Cruz de N. S. Jesus Cristo, em quem está, para nós, a salvação, vida e ressurreição; por Ele fomos salvos e nos tornamos livres» (Gálatas, 6,14).

Temos pela frente três dias Santos para acompanhar a Paixão, Morte e Ressurreição de Nosso Senhor, na Semana Santa. Depois de nos termos preparado, pela Quaresma, ressuscitemos com Ele, cantemos o nosso Alleluia, cheios da única esperança verdadeira. A vida da graça, semente de glória, que nos é dada hoje para a vida eterna.  

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