Category: Santo Tomás de Aquino
O primeiro discute–se assim. – Parece que os que alcançaram o dom das línguas não falavam todas as línguas.
1. – Pois, o dom concedido por Deus a alguém é óptimo no género; assim o Senhor converteu a água em bom vinho, como se lê no Evangelho. Ora, os que tiveram o dom das línguas falaram melhor na própria língua. Pois, diz a Glosa: Não é para admirar se a Epístola aos Hebreus é ilustrada com maior facúndia que outras, por nos ser natural falar melhor a nossa que as outras línguas. As outras epístolas o Apóstolo as compôs em grego, língua para ele estrangeira; mas, aos Hebreus escreveu na língua própria. Logo, pela graça gratuita que receberam os Apóstolos não alcançaram a ciência de todas as línguas.
2. Demais. – A natureza não faz por muitos meios o que pode fazer para um só; e ainda menos Deus, autor da natureza. Ora, Deus podia fazer os seus discípulos falarem uma só língua e serem compreendidos por todos. Por isso, àquilo da Escritura – A eles os ouvia falar cada um na própria língua – diz a Glosa: Porque falavam todas as línguas; ou porque falando a própria a eles, isto é, a hebraica, eram entendidos por todos como se falassem a língua particular de cada um. Logo, parece que não tiveram a ciência de falar todas as línguas.
3. Demais. – Todas as graças derivam de Cristo para seu corpo, que é a Igreja, conforme a Escritura: Todos nós participámos da sua plenitude. Ora, como lemos no Evangelho, Cristo falou uma só língua; nem atualmente cada um dos fiéis fala mais de uma. Logo, parece que os discípulos de Cristo não receberam a graça de falar todas as línguas.
Mas, em contrário, a Escritura: Foram todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar em várias línguas. conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem. O que assim comenta a Glosa de Gregório: O Espírito Santo apareceu sobre os discípulos em línguas de fogo e lhes deu a ciência de todas as línguas.
SOLUÇÃO. – Cristo escolheu os seus primeiros discípulos para percorrerem o mundo pregando a sua fé a todos, como se lê no Evangelho: Ide e ensinei todas as gentes. Ora, não era conveniente que os enviados a ensinar os outros precisassem de ser instruídos por eles sobre o modo com que lhes houvessem de falar ou de lhes entender a língua. Sobretudo que os discípulos enviados eram da mesma nação, a Judéia, como diz a Escritura: Os que investem com ímpeto a Jacó encherão de fruto a face do orbe. Além disso os discípulos enviados eram pobres e sem poder; nem poderiam a principio encontrar facilmente quem com fidelidade lhes interpretassem aos outros as suas palavras, ou lhas explicasse. principalmente por terem sido enviados a povos infiéis. Por isso era necessário sempre a Providência vír–Ihes em socorro com o dom das línguas. De modo que assim como as gentes, que caíram na idolatria, vieram a falar línguas diversas, segundo o refere a Escritura, assim também, quando foram convertidas ao culto de um só Deus, o dom das línguas vem a ser o remédio a essa diversidade.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Como diz o Apóstolo, a manifestação do Espírito é dada para proveito. Por isso, Paulo e os outros Apóstolos foram suficientemente instruídos por Deus nas línguas de todas as gentes, quanto o exigia o ensinamento da fé. Mas, no concernente a certas particularidades acrescentadas pela arte, como ornato e elegância da locução, nisso o Apóstolo fora instruído na própria língua e não nas alheias. Assim também foram suficientemente instruídos na sabedoria e na ciência, quanto o exigia a doutrina da fé; mas não em relação a tudo o que se conhece pela ciência adquirida, por exemplo, sobre as conclusões da aritmética ou da geometria.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Bem podiam ambas as coisas se darem: serem os apóstolos, falando uma só língua, entendidos de todos; ou falarem as línguas de todos. Contudo era mais conveniente falarem eles as línguas de todos; porque a perfeição da ciência deles exigia não somente o falarem, mas ainda o poderem entender a fala dos outros. Mas se todos entendessem a língua única, que os discípulos falassem, sê–lo–ia pela ciência dos que lhes entendessem a fala, ou uma como ilusão, pela qual as palavras dos discípulos chegassem aos ouvintes em sentido diferente daquele com que foram proferidas. Por isso a Glosa diz que por um milagre maior começaram a falar em várias línguas. E Paulo diz: Graças dou ao meu Deus, que falo todas as línguas que vós falais.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Cristo devia pregar, em pessoa, à única nação dos Judeus. Por isso, embora sem nenhuma dúvida tivesse perfeitissimamente a ciência de todas as línguas, não tinha contudo necessidade de as falar todas. Por isso, diz Agostinho: Atualmente, quando recebe o Espírito Santo, ninguém fala as línguas de todos os povos, porque já a Igreja as fala todas; e quem a ela não pertence recebe o Espírito Santo.
O sexto discute–se assim. – Parece que Paulo não ignorava, que a sua alma estava separada do corpo.
1. – Pois, ele próprio o diz: Conheço a um homem em Cristo, que foi arrebatado até ao terceiro céu. Ora, homem designa um composto de corpo e alma; e arrebatado difere de morto. Logo, parece que Paulo sabia, que a sua alma não estava separada do corpo pela morte; tanto mais quanto é esta a opinião comum dos doutores.
2. Demais. – Das palavras mesmo do Apóstolo resulta, que ele sabia ter sido arrebatado, pois, diz que o foi até ao terceiro céu. Donde se segue, que sabia se sua alma continuava unida ao corpo ou não. Pois, se sabia que o terceiro céu é um céu material, sabia por consequência que a alma não lhe ficou separada do corpo; porque a visão de uma coisa corpórea não pode dar–se senão por meio do corpo. Logo, parece que não ignorava de todo se a sua alma estava separada do corpo.
3. Demais. – Como diz Agostinho, Paulo, durante o rapto, viu a Deus pela visão com que os santos o contemplam na pátria. Ora, os santos, pelo fato mesmo de verem a Deus, sabem se a alma lhes está separada do corpo. Logo, também o sabia Paulo.
Mas, em contrário, Paulo mesmo diz: Se foi no corpo ou fora do corpo, não no sei, Deus o sabe.
SOLUÇÃO. – A verdade, nesta questão, devemos hauri–la nas palavras mesmo do Apóstolo, quando diz que sabia ter sido arrebatado até ao terceiro céu, e não sabia se foi no corpo ou fora do corpo. O que de dois modos podemos entender.
Num sentido, a expressão – se foi no corpo ou fora do corpo – não se refere ao ser mesmo do raptado, como se ignorasse o estar ou não a sua alma unida do corpo; mas, ao modo do rapto, isto é, que ignorava se o seu corpo foi raptado ao terceiro céu juntamente com a alma ou se assim não se deu, tendo sido só a alma a arrebatada; assim, Ezequiel diz que foi levado a Jerusalém em visão de Deus. E Jerônimo refere ser esta a interpretação de um certo judeu, quando escreve: Um judeu, finalmente, dizia que o nosso Apóstolo não ousou afirmar ter sido arrebatado em corpo, mas declarou – se foi no corpo ou fora do corpo, não no sei. Mas Agostinho refuta esta interpretação, fundado em o Apóstolo afirmar, que sabia ter sido arrebatado até ao terceiro céu. Portanto, sabia ser verdadeiramente o terceiro céu aquele a que foi arrebatado e não uma semelhança imaginária dele.
Do contrário, se chamasse terceiro céu a uma imagem dele, pela mesma razão podia dizer que foi arrebatado em corpo, chamando corpo à imagem do próprio corpo, tal como ela aparece nos sonhos, – Se, pois, sabia que o terceiro céu verdadeiramente o era. sabia também por consequência se era um céu espiritual e incorpóreo; e assim o seu corpo não podia ter sido arrebatado até ele. Ou então, se material fosse tal céu, só a alma não poderia ter sido arrebatada até ele, com exclusão do corpo, sem se separar do corpo.
Por onde, devemos entender essas palavras num outro sentido. E é que o Apóstolo sabia ter–lhe sido arrebatada só a alma e não o corpo; não sabia, contudo, em que relação se mantinha a alma com o corpo. isto é, se estava com ou sem corpo.
Mas, neste ponto variam as opiniões.
Assim, uns pensam que o Apóstolo sabia que a alma lhe estava unida ao corpo como forma, mas não sabia se havia sofrido separação dos sentidos, ou mesmo se ficou alheado às operações da alma vegetativa. – Mas, que houve separação dos sentidos, isso não o podia ele ignorar, desde que sabia ter sido arrebatado. – Quanto ao fato de ficar alheado da atividade da alma vegetativa, não era isso causa de tanta monta de que devesse fazer solícita menção. Donde se conclui, que o Apóstolo não sabia se a alma lhe continuava unida, como forma, ao corpo, ou se se separou dele pela morte.
Outros porém, embora o concedam, dizem que o Apóstolo quando foi arrebatado, perdeu o discernimento, porque ficou totalmente enlevado em Deus; mas voltou depois a discernir, quando entrou a considerar o que viu. – Mas isto também contraria às palavras do Apóstolo, que distingue com as suas palavras o passado, do futuro. Pois, diz no presente, que não sabe se foi arrebatado catorze anos antes; e que, no presente, não sabe se foi no corpo ou fora do corpo.
Por onde, devemos pensar, que tanto antes como depois do rapto não sabia se a alma lhe ficou separada do corpo. Por isso, após longo exame, Agostinho conclui: Resta portanto talvez, que Paulo ignorava, quando foi arrebatado ao terceiro céu, se a alma lhe estava no corpo como o está quando o corpo vive – quer esteja a pessoa acordada, quer dormindo, quer alheada dos sentidos corpóreos pelo êxtase – ou se de todo tinha se separado dele, de modo que ficasse o corpo sem vida.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Por sinédoque, às vezes chamamos homem a uma parte dele; sobretudo à alma, que é a parte mais nobre do homem. – Embora também se possa entender, que aquele de quem o Apóstolo diz ter sido arrebatado, não era homem então quando sofreu o rapto, mas só o foi depois de catorze anos. E por isso diz: Eu conheço a este tal homem – e não – Eu conheço a este tal homem como tendo sido raptado. Mas também nada impediria chamar rapto à morte causada por Deus. Assim, Agostinho diz: Se o Apóstolo duvidava, quem de nós ousará dizer que tem certeza? Por isso, os que falam deste fato o fazem antes por conjecturas do que por estarem certos.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O Apóstolo sabia ou que esse céu era de natureza imaterial, ou que nele viu algo de imaterial. Pois, isso lhe era accessível à inteligência, mesmo que a alma lhe não ficasse separada do corpo.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A visão de Paulo, durante o rapto, em parte foi semelhante à visão dos bem–aventurados, isto é, quanto ao que viu. E em parte, dissemelhante, isto é, quanto ao modo de ver, pois não viu tão perfeitamente como o veem os santos na pátria. Por isso, diz Agostinho: Embora o Apóstolo fosse arrebatado ao terceiro céu, com o alheamento aos sentidos do corpo, não teve um conhecimento das coisas tão pleno e tão perfeito como o têm os anjos, pois, ignorava se estava no corpo ou fora dele; mas isto não se dará quando a alma se reunir ao corpo, depois da ressurreição dos mortos, tornando–se ele, imortal, de mortal que agora é.
O quinto discute–se assim. – Parece que a alma de Paulo, durante o rapto, ficou totalmente separada do corpo.
1. – Pois, diz o Apóstolo: Enquanto estamos no corpo, vivemos ausente do Senhor, porque andamos por fé e não por visão. Ora, Paulo, durante o rapto, não vivia ausente do Senhor, porque o via por visão, como se disse. Logo, não estava unido ao corpo.
2. Demais. – A potência da alma não pode elevar–se acima da sua essência, na qual está fundada. Ora, o intelecto, que é uma potência da alma, foi, durante o rapto, separado do corpo pela elevação à contemplação divina. Logo, muito mais a essência da alma foi separada do corpo.
3. Demais. – As potencias da alma vegetativa são mais materiais que a da alma sensitiva, como se disse, para que possa ser arrebatada à visão da essência divina. Ora, era necessário o intelecto ficar separado das potências da alma sensitiva, como se disse, para ser arrebatado à visão da essência divina. Logo, muito mais necessário seria, que fosse separado das potências da alma vegetativa, cujas operações, se cessarem, já de nenhum modo a alma continua unida ao corpo. Portanto, parece que, durante o rapto, a alma de Paulo deveria ter ficado totalmente separada do corpo.
Mas, em contrário, diz Agostinho: Não é incrível, que alguns santos tivessem tido essa excelente visão, isto é, de ver a Deus em essência, mas, sem terem sido privados de vida a ponto de se lhes poder sepultar os cadáveres. Logo, não foi necessário que, durante o rapto, a alma de Paulo ficasse totalmente separada do corpo.
SOLUÇÃO. – Como se disse, no rapto de que agora tratamos, o homem é elevado, pela virtude divina, do que lhe é natural, para o que lhe é sobrenatural. Por onde, duas coisas devemos considerar: primeira, o que é natural ao homem; segunda, o que a virtude divina nele obra, que lhe supera a natureza. Ora, do fato de estar a alma unida ao corpo, como sendo a forma natural dele, resulta–lhe a ela o hábito de inteligir por meio da conversão aos fantasmas. E disso não a priva, durante o rapto, a virtude divina, porque não lhe muda o estado, como dissemos. Mas, enquanto permanece nesse estado, fica ela privada da conversão atual aos fantasmas e aos sensíveis, afim de não ficar impedida de ser elevada ao que excede todos os fantasmas, como dissemos. Por isso, durante o rapto, não foi necessário a alma do Apóstolo ficar separada do corpo a ponto de não mais lhe ficar unida como forma. Mas foi necessário, que o seu intelecto ficasse separado dos fantasmas e da percepção dos sensíveis.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. Paulo, durante o rapto, estava ausente do Senhor, pelo seu estado, pois, vivia ainda neste mundo. Não, porém pela visão atual que tinha de Deus, como do sobre dito resulta.
RESPOSTA À SEGUNDA. – As faculdades da alma não se sobre elevam, pela sua virtude natural, ao modo que lhe convém à essência. Mas, por virtude divina podem ser elevadas a um estado mais alto, assim como o corpo, por violência de uma força maior, eleva–se a um lugar superior ao que lhe cabe pela sua natureza específica.
RESPOSTA À TERCEIRA. – As potências da alma vegetativa não obram por influência da alma, como as potências sensitivas, mas por uma operação natural. Por isso o rapto não exige a separação delas, como das potências sensitivas, cujas operações diminuiriam a contenção da alma aplicada ao conhecimento intelectual.
O quarto discute–se assim. – Parece que Paulo, durante o rapto, não ficou alheado dos sentidos.
1. – Pois, diz Agostinho: Por que não havemos de crer que a um tão grande Apóstolo, Doutor das Gentes, arrebatado até essa excelentíssima visão, Deus quis mostrar a vida que, depois desta, viveria eternamente? Ora, nessa vida futura, os santos, depois da ressurreição, verão a essência de Deus sem se separarem dos sentidos do corpo. Logo, também Paulo não sofreu essa separação.
2. Demais. – Cristo, vivendo neste mundo, gozou sempre da visão da essência divina, e contudo não sofreu alheação dos sentidos. Logo, também Paulo não teve necessidade de a sofrer para que visse a essência divina.
3. Demais. – Paulo, depois de ter contemplado a essência divina, ficou lembrado do que viu nessa visão e por isso diz: Ouvi lá palavras secretas que não é permitido a um homem referir. Ora, a memória faz parte da sensibilidade, como está claro no Filósofo. Logo, parece que também Paulo, vendo a essência de Deus, não sofreu alienação dos sentidos.
Mas, em contrário, diz Agostinho: Quem não morrer de algum modo a esta vida, quer por se apartar a alma completamente do corpo, quer por separar–se e alhear–se dos sentidos carnais, não poderá ser levado à visão celeste.
SOLUÇÃO. – A essência divina não pode ser contemplada por uma potência cognoscitiva outra que o intelecto. Ora, o intelecto humano não se converte aos sensíveis senão mediante os fantasmas, por meio dos quais recebe dos sentidos as espécies inteligíveis e nos quais, considerando–os, julga–os e os dispõe. Por onde, sempre que no seu ato o nosso intelecto se aparta dos fantasmas, há de também necessariamente alhear–se dos sentidos. Ora, o nosso intelecto, nesta vida, há de necessariamente apartar–se dos fantasmas, se vir a essência de Deus. Pois, a essência divina não pode ser vista por meio de nenhum fantasma; nem muito menos, por nenhuma espécie inteligível criada, porque a essência de Deus excede infinitamente não só todos os corpos, susceptíveis de fantasmas, mas também todas as criaturas inteligíveis. Ora, quando o intelecto do homem é elevado à altíssima visão da essência divina, é necessário que toda a contenção da mente nela se concentre, de modo a nada mais inteligir, por meio de fantasmas, e a ficar totalmente enlevada em Deus. Por isso, é impossível o homem, nesta vida, ver a Deus em essência, sem sofrer a alheação dos sentidos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. Como se disse, nos bem–aventurados, que virem a essência de Deus, depois da ressurreição, haverá uma redundância do intelecto para as potências inferiores que chegará até o corpo. Por onde, a regra mesma da visão divina é que governará a alma nas suas relações com os fantasmas e com os sensíveis. Mas essa redundância não se dá naqueles que são objeto de rapto, como se disse. Por isso não há semelhança de razão.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A inteligência da alma de Cristo foi glorifica da pelo habitual lume da glória, pelo qual via a divina essência muito mais que qualquer anjo ou homem. Mas, vivia esta vida mortal por causa da passibilidade do corpo, segundo a qual por um pouco foi feito menor que os anjos, como diz o Apóstolo, por uma dispensa divina e não porque houvesse qualquer deficiência no seu intelecto. Por isso, a comparação não colhe, feita entre ele e os outros mortais.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Depois que cessou de contemplar a essência divina, Paulo se lembrava do que conhecera nessa visão, por meio de certas espécies inteligíveis que, desde então, lhe permaneciam habitualmente no intelecto. Assim como também, na ausência do sensível, permanecem certas impressões na alma, de que ela se lembra quando, depois, as relaciona com os fantasmas. Por isso, aquele conhecimento, que o Apóstolo haurira da visão, não podia totalmente trazê–la ao pensamento nem exprimi–la por palavras.
O terceiro discute–se assim. Parece que Paulo, durante o rapto, não viu a essência de Deus.
1. – Pois, assim como lemos que Paulo foi arrebatado até o terceiro céu, assim, que a Pedra lhe sobreveio um rapto de espírito. Ora, Pedra no seu rapto não viu a essência de Deus, mas uma certa e imaginária visão. Logo, parece que também Paulo não viu a essência de Deus.
2. Demais. – A visão de Deus torna o homem feliz. Ora, Paulo, durante o rapto, não foi feliz; do contrário nunca voltaria a esta miserável vida, mas o seu corpo teria sido, redundantemente glorificado pela alma, como se dará com os santos depois da ressurreição. O que é evidentemente falso. Logo, durante o rapto, Paulo não viu a essência de Deus.
3. Demais. – A fé e a esperança não podem coexistir com a visão da essência divina, como diz o Apóstolo. Ora, Paulo, durante o rapto, teve a fé e a esperança. Logo, não viu a essência de Deus.
4. Demais. – Como diz Agostinho, pela visão imaginária se veem umas imagens dos corpos. Ora, a Escritura diz que Paulo, durante o rapto, viu umas certas imagens; por exemplo, do terceiro céu e do Paraíso: Logo, parece ter sido, antes, um rapto de visão imaginária do que de visão da divina essência.
Mas, em contrário, Agostinho ensina, que a substância mesma· de Deus pôde ser vista por certos, durante esta vida; assim, Moisés e Paulo que, durante o rapto, ouviu palavras inefáveis que não é permitido a um homem referir.
SOLUÇÃO. – Alguns disseram que Paulo, durante o rapto, não viu a essência mesmo de Deus, mas uma certa refulgência do seu esplendor. Mas Agostinho ensina manifestamente o contrário, e o mesmo faz a Glosa e o demonstram as próprias palavras do Apóstolo. Pois, diz ter ouvido inefáveis palavras, que não é permitido a um homem referir. Ora, o mesmo se dá com a visão dos bem–aventurados, que excede a condição da vida presente, segundo aquilo da Escritura: O olho não viu, exceto tu, Ó Deus, o que tens preparado para os que te amam. Logo e mais convenientemente se diz, que viu a Deus por essência.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A mente humana é arrebatada por Deus à contemplação da verdade divina, de três modos. – Primeiro, para o contemplar por meio de certas imagens imaginárias. E tal foi o arroubo de alma que sucedeu a Pedro. De outro modo, para contemplar a verdade divina por meio dos efeitos inteligíveis, como aconteceu a Davi no seu êxtase, de que declarou: Eu disse no meu êxtase – todo homem é mentiroso. – Em terceiro lugar, para que a contemple na sua essência. E tal foi o rapto de Paulo e também o de Moisés; no que há bastante congruência, pois, como Moisés foi o primeiro Doutor dos Judeus, assim Paulo foi o primeiro Doutor das Gentes.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A essência divina não pode ser contemplada pelo intelecto criado senão pelo lume da glória, do qual diz a Escritura: No teu lume veremos o lume. O qual porém pode ser participado de dois modos. Primeiro, a modo de forma imanente; e é assim que faz bem–aventurados os santos na pátria. Segundo, a modo de uma como paixão transeunte, como dissemos a respeito do lume de profecia. E deste modo teve Paulo esse lume, quando foi arrebatado. Por isso tal visão não a tornou feliz, em sentido absoluto, de modo que houvesse redundância para o corpo, senão só de certa maneira. Por onde, esse rapto de algum modo pertence à profecia.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Paulo durante o rapto não teve a felicidade dos Santos habitualmente, mas só atualmente. E por consequência não praticou então simultaneamente um ato de fé, mas simultaneamente nele existiu a fé habitual.
RESPOSTA À QUARTA. – Pelo nome de terceiro céu podemos, num sentido, entender um céu material. E então terceiro céu é o chamado empíreo denominado terceiro em relação ao céu aéreo e ao céu sideral, e em relação ao céu aquoso ou cristalino. Assim, o Apóstolo diz ter sido arrebatado ao terceiro céu, não por ter sido arrebatado à visão da imagem de um ser corpóreo, mas por ser esse lugar o da contemplação dos bem–aventurados. Donde a explicação da Glosa, que o terceiro céu é o céu espiritual em que os anjos e as almas santas gozam da contemplação de Deus. E quando anuncia que foi arrebatado até ele, significa ter–lhe Deus mostrado a vida em que deverá ser contemplado eternamente.
Noutro sentido, pode–se entender por terceiro céu alguma visão ultramundana, susceptível desse nome de terceiro céu por três razões. – Primeiro, relativamente à ordem das potências cognoscitivas. Então, chamar–se–ia primeiro céu a visão ultramundana corporal, por meio dos sentidos; assim foi vista a mão de quem escrevia na parede. O segundo céu seria uma visão imaginária, por exemplo, como a de Isaías e João. O terceiro céu, uma visão intelectual – como expõe Agostinho. – Num segundo sentido o chamado terceiro céu pode ser assim considerado em relação à ordem dos cognoscíveis. Então, primeiro céu. se chama u conhecimento dos corpos celestes; segundo, o dos espíritos celestes; terceiro, o conhecimento de Deus mesmo. – Num terceiro sentido, pode chamar–se terceiro céu a contemplação de Deus, quanto aos graus do conhecimento em que ele é contemplado. Então, o primeiro grau pertence aos anjos da ínfima hierarquia; o segundo, aos anjos da média; o terceiro, aos da suprema, como diz a Glosa.
E como a visão de Deus não pode deixar de ser acompanhada de prazer, por isso o Apóstolo não somente disse que foi arrebatado ao terceiro céu, por causa da contemplação; mas também, que o foi ao Paraíso, em razão do prazer consequente.
O segundo discute–se assim. – Parece que o rapto não pertence, antes, à potência apetitiva que à cognoscitiva.
1. – Pois, diz Dionísio: O divino amor produz o êxtase. Ora, o amor pertence à potência apetitiva. Logo, também o êxtase ou rapto.
2. Demais. – Gregório diz: Quem apascenta porcos cai abaixo de si mesmo, pela dissipação do espírito e da imundície; mas Pedro, que o anjo livrou e cuja alma arrebatou em êxtase, ficou alheio de si, mas, elevado acima de si. Ora, o filho pródigo caiu abaixo de si, pelo afeto. Logo, também os arrebatados a bens superiores tal sofrem, pelo afeto.
3. Demais. – Aquilo da Escritura – Em ti, Senhor esperei; não permitas que eu seja eternamente confundido – diz a Glosa, na exposição do título: Êxtase, em grego, significa em latim rapto da alma, que se dá de dois modos: por temor dos males terrenos ou por ser a alma raptada aos bens supernos e ficar esquecida dos bens inferiores. Ora, o temor dos males terrenos pertence ao afeto. Logo, também o rapto da alma para os bens supernos, enumerado em sentido oposto, pertence ao afeto.
Mas, em contrário, àquilo da Escritura. Eu disse no meu êxtase: Todo homem é mentiroso – comenta a Glosa: Chama–se aqui êxtase à alienação da mente, sem temor, mas quando é assumida por uma inspiração de revelação divina. Ora, a revelação diz respeito à potência intelectiva. Logo, também o êxtase ou rapto.
SOLUÇÃO. – Podemos tratar do rapto a dupla luz. – Primeiro, relativamente àquilo a que alguém é arrebatado. E então, propriamente falando, o rapto não pode pertencer à potência apetitiva, mas só à cognoscitiva. Pois, como dissemos o rapto está fora da inclinação própria do raptado. Ora, o movimento mesmo da potência apetitiva é uma determinada inclinação para o bem desejável. Por onde, propriamente falando, quem deseja alguma coisa por isso mesmo não é arrebatado para ela, mas, move–se por si. – A outra luz podemos considerar o rapto na sua causa. E então pode ela fundar–se na potência apetitiva. Pois, da veemência mesmo com que o apetite afeta alguma coisa pode resultar a alienação do sujeito em relação a tudo o mais. E também o rapto manifesta o seu efeito na potência apetitiva, quando o arrebatado se deleita com as coisas para as quais foi arrebatado. Por isso o Apóstolo disse ter sido arrebatado não somente ao terceiro céu – o que pertence à contemplação do intelecto, mas também ao Paraiso – o que pertence ao afeto.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O rapto acrescenta alguma coisa ao êxtase. Pois, o êxtase implica a separação absoluta do indivíduo, de si mesmo, no sentido em que é posto fora da sua ordem natural; ao que o rapto acrescenta uma certa violência. Por onde, pode o êxtase pertencer à potência apetitiva; por exemplo, quando o apetite tende para o que lhe é superior. E neste sentido Dionísio diz, que o amor divino produz o êxtase, por fazer o apetite humano tender para os bens amados. E por isso depois acrescenta que mesmo o próprio Deus, causa de todos os seres, pela riqueza da sua amante bondade sai de si mesmo e se faz a providência de tudo quanto existe. – Embora, se tal disséssemos expressamente, do rapto, quereríamos somente dar a entender que o amor seria a causa dele.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Há no homem um duplo apetite: o intelectual, chamado vontade; e o sensitivo, chamado sensualidade. Ora, é próprio do homem sujeitar o apetite inferior ao superior e mover o inferior pelo superior. Por onde, de dois modos pode o homem, pelo apetite, alhear–se de si mesmo. – Primeiro, quando o apetite intelectual tende totalmente para Deus, deixando de lado tudo o que inclina o apetite sensitivo. E nesse sentido Dionísio diz, que Paulo, por força do divino amor, que o fez entrar em êxtase, exclamou: Não sou eu já o que vivo, mas Cristo é que vive em mim. – Segundo, quando abandonado o apetite superior, o homem é totalmente levado pelo apetite inferior. Assim, aquele que apascentava porcos caiu abaixo de si mesmo. E esse alheamento de si ou êxtase mais contém da natureza do rapto que o primeiro; porque o apetite superior é mais próprio ao homem e portanto quando ele, pela violência do apetite superior, se alheia do movimento do apetite superior, mais se separa do que lhe é próprio. Mas, como não há aí violência, porque a vontade pode resistir à paixão, esse estado não é o do verdadeiro rapto; salvo se a paixão for veemente a ponto de privar totalmente do uso da razão, como se dá com os que enlouquecem por veemência da ira ou do amor. – Devemos porém considerar que uma e outra alheação de si, fundadas no apetite, podem causar a alienação da potência cognoscitiva. Quer por ser a alma arrebatada a certos inteligíveis, com a alienação dos sentidos; quer por o ser a alguma visão imaginária ou aparição fantástica.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Assim como o amor é o movimento do apetite para o bem, assim o temor é o movimento do apetite em relação ao mal. Por isso e pela mesma razão, tanto um como o outro pode causar a alienação da alma, sobretudo quando o temor é causado pelo amor, como diz Agostinho.
O primeiro discute–se assim. – Parece que a alma do homem não é arrebatada pelas causas divinas.
1. – Pois, certos definem o rapto: Elevação do natural ao sobrenatural por força de uma natureza superior. É natural ao homem elevar se para Deus, como diz Agostinho: Tu nos fizeste, Senhor, para ti; e o nosso coração permanece inquieto até que descanse em ti. Logo, a
alma do homem não é arrebatada para as causas divinas.
2. Demais. – Dionísio diz, que pela sua justiça Deus dá a todas as coisas o que lhes convém ao modo e à dignidade. Ora, não é próprio do modo nem da dignidade do homem o ser ele elevado ao que lhe supera a natureza. Logo, parece que a alma do homem não é arrebatada por Deus, para as coisas divinas.
3. Demais. – O rapto implica de certo modo a violência. Ora, Deus não governa o mundo pela violência e pela coação, como diz Damasceno. Logo, a alma do homem não é arrebatada para as coisas divinas.
Mas, em contrário, o Apóstolo: Conheço a terceiro céu. O que comenta a Glosa: raptado, isto é, elevado, contra a natureza.
SOLUÇÃO. – O rapto implica de certo modo a violência, como dissemos. Ora, violento se chama aquilo cujo princípio é exterior e para o que em nada coopera o paciente. Ora, cada ser coopera para o fim a que tende, conforme a sua inclinação própria, voluntária ou natural. Por onde e necessariamente, quem é arrebatado por uma força externa, o é para uma causa diversa daquela para a qual a leva a sua inclinação. Ora, essa diversidade pode ser considerada a dupla luz. Primeiro, quanto ao fim da inclinação; por exemplo, quando a pedra, cuja inclinação é cair, é atirada para cima. Segundo, quanto ao modo da tendência; por exemplo, quando uma pedra é atirada para baixo com maior rapidez do que aquela com que naturalmente cairia.
Assim, pois, dizemos, de dois modos, que a alma do homem é arrebatada ao que lhe está fora da natureza. – Primeiro, quanto ao termo do movimento; por exemplo, quando é arrebatada para sofrer uma pena, como no sentido da Escritura: Não suceda que vos arrebate e não haja quem vos livre. – Segundo, quando o homem é arrebatado do modo que lhe é conatural, que consiste em entender a verdade por meio dos sensíveis. Por onde, quando fica privado da apreensão das causas sensíveis, dizemos que é arrebatado, mesmo se for elevado ao que naturalmente se ordena. Contanto que isso não se dê por intenção própria, como acontece no sono que, sendo natural, não pode propriamente se chamar rapto.
Ora, essa separação do mundo sensível, seja como for que se realize, pode resultar de uma tríplice causa. – Primeiro, de uma causa corpórea; como se dá com aqueles que, por alguma enfermidade, sofrem a alienação dos sentidos. – Segundo, da obra dos demônios, como no caso dos possessos. – Terceiro, da ação divina. E é neste sentido que agora tratamos do rapto; isto é, quando alguém, por ação do Espírito divino, é elevado a certas visões sobrenaturais acompanhadas de alienação dos sentidos, como no caso referido pela Escritura: O Espírito me levantou entre a terra e o céu e me levou a Jerusalém em visão de Deus.
Devemos porém saber, que às vezes dizemos ser arrebatado do quem sofre privação não só dos sentidos, mas também do fim que visava; assim, quando o espírito lhe é desviado daquilo que buscava. Mas isto não constitui propriamente rapto.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – É natural ao homem alçar–se às causas divinas por meio da apreensão sensível, conforme aquilo do Apóstolo: As coisas invisíveis de Deus se veem, consideradas pelas obras que foram feitas. Mas, esse modo de ser elevado às causas divinas, com alienação dos sentidos, não é natural ao homem.
RESPOSTA À SEGUNDA. – É natural, ao modo e à dignidade do homem ser elevado às causas divinas pelo fato mesmo de ter sido feito à imagem de Deus. E como o bem divino excede infinitamente a capacidade humana, o homem precisa de ser ajudado, para conseguir esse bem; o que se realiza por meio dos benefícios da graça. Por onde, o ser ele elevado para Deus por meio do rapto, não lhe contraria a natureza, mas lhe excede a capacidade.
RESPOSTA À TERCEIRA. – As palavras do Damasceno devem entender–se dos atos que o homem deve praticar. – Mas, ao que excede a faculdade do livre arbítrio é necessário que ele seja elevado por uma atuação mais forte. – O que, de certo modo, pode chamar–se coação, se se considerar o modo de agir; mas não, considerando–se o termo da operação, para o qual se ordenam tanto a natureza do homem como a sua intenção.
O sexto discute–se assim. – Parece que os graus da profecia variam no decurso do tempo.
1. – Pois, a profecia se ordena ao conhecimento das coisas divinas, como do sobre dito resulta. Ora, como diz Gregório, na sucessão dos tempos aumentou o conhecimento da verdade divina. Logo, também os graus da profecia devem se distinguir em relação ao decurso do tempo.
2. Demais. – A revelação profética se faz por meio da palavra divina dirigida ao homem. Ora, as suas revelações os profetas as anunciam falando e escrevendo. Assim, como refere a Escritura, antes de Samuel, a palavra de Deus era preciosa, isto é rara; contudo, depois, foi dirigida a muitos. Do mesmo modo, não se encontra escrito nenhum livro dos profetas, antes do tempo de Isaías, a quem foi dito: Toma um livro grande e escreve nele em estilo d’homem, como se lê na Escritura. E depois desse tempo muitos profetas escreveram as suas profecias. Logo, parece que, no decurso do tempo, aumentaram os graus da profecia.
3. Demais. – O Senhor diz: Todos os profetas e a lei até João profetizaram. Mas, depois o dom da profecia, nos discípulos de Cristo, foi muito mais excelente que o dos antigos profetas, conforme o Apóstolo: Em outras gerações não foi conhecido dos filhos dos homens, isto é, o mistério de Cristo, assim como agora tem sido revelado aos seus santos Apóstolos e profetas pelo espírito. Logo, parece, que os graus da profecia cresceram no decurso do tempo.
Mas, em contrário, Moisés foi o excelentíssimo dos profetas como se disse; e contudo foi anterior aos outros profetas. Logo, os graus da profecia não aumentaram no decurso do tempo.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, a profecia se ordena para o conhecimento da verdade divina; com a ciência da qual, não somente somos instruídos na fé, mas também somos dirigidos nas nossas obras, conforme aquilo da Escritura: Envia a tua luz e a tua verdade; estas me conduzirão. Ora, a nossa fé consiste principalmente em duas causas: Primeiro, no verdadeiro conhecimento de Deus, segundo o Apóstolo: E necessário que o que se chega a Deus creia que há Deus. Segundo, no mistério da encarnação de Cristo, conforme o Evangelho: Credes em Deus, credes também em mim. Se, pois, tratamos da profecia, enquanto ordenada à fé em Deus, então ela aumentou, relativamente às três divisões dos tempos: os anteriores à lei, os da lei e os da graça, – Pois, antes da lei, Abraão e os outros Patriarcas foram instruídos profeticamente em matéria da fé em Deus. Por isso, chama–lhes profetas a Escritura: Não maltrateis aos meus profetas, o que especialmente se refere a Abraão e a Isaac. – No regime da lei, a revelação profética teve por objeto a fé em Deus, de modo mais excelente que antes. Porque então era necessário instruir, nessa matéria, não só determinadas pessoas ou famílias, mas, todo o povo. Por isso, o Senhor disse a Moisés: Eu sou o Senhor, que apareci a Abraão, a Isaac e a Jacó, como o Deus todo poderoso; mas eu não lhes declarei o meu nome Adonai. E isso porque os Patriarcas precedentes foram instruídos na fé, na omnipotência de um só Deus; enquanto que Moisés o foi mais plenamente, sobre a simplicidade da divina essência, quando o Senhor lhe disse: Eu sou o que sou nome que os judeus exprimem pela palavra Adonai, por causa da veneração que votavam ao inefável nome de Deus, – Enfim, mais tarde, no tempo da graça, pelo próprio Filho de Deus foi revelado o mistério da Trindade, conforme o Evangelho: Ide e ensinai a todas as gentes, batizando–as em nome do Padre, e do Filho, e do Espírito Santo.
Ora, em todas estas épocas, a primeira revelação foi a mais excelente. – Pois, a primeira revelação, antes da lei, foi feita a Abraão, no tempo de quem os homens começavam a se desviar da fé num só Deus e declinar para a idolatria; ao passo que, antes, não era necessária essa revelação, quando todos perseveravam no culto de um único Deus. Quanto a Isaac, foilhe feita uma revelação inferior, quase fundada na revelação feita a Abraão. Por isso foi–lhe dito: Eu sou o Deus de Abraão, teu pai, e Deus de Isaac. – Do mesmo modo, no tempo da lei, a primeira revelação feita a Moisés foi mais excelente; e nela se fundam todas as outras revelações dos profetas. – E assim também, no tempo da graça, na revelação feita aos Apóstolos, sobre a fé na Unidade e na Trindade, se funda toda a fé da Igreja, como está no Evangelho, sobre esta pedra, isto é, na tua confissão, edificarei a Minha Igreja.
Quanto à fé na Encarnação de Cristo, é manifesto que os mais próximos dele, quer antes, quer depois, foram, em geral, mais plenamente instruídos nessas verdades. Mas depois, mais que antes, como o diz o Apóstolo.
Quanto à direção dos atos humanos, a revelação profética se diversifica, não pelo decurso dos tempos, mas, pela condição dos atos; pois, como diz a Escritura, quando faltar a profecia dissipar–se–á o povo. Por onde, em todos os tempos os homens foram instruídos por Deus sobre o que devem praticar, conforme as exigências da salvação dos eleitos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – As palavras de Gregório devem entender–se dos tempos anteriores à Encarnação de Cristo, quanto ao conhecimento desse mistério.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Diz Agostinho: Assim como, na origem do império dos Assírios, existiu Abraão, a quem foram conferidas promessas evidentes, assim, era preciso que elas se espalhassem, no nascimento da Babilônia do ocidente, isto é, da cidade de Roma; porque, sob o seu império, devia nascer Cristo, em quem se cumpririam os oráculos dos profetas, cujas palavras e cujas escritos atestam esse sublime acontecimento, isto é, da promessa feita a Abraão. Pois, desde o tempo dos reis, os projetas não faltaram nunca ao povo de Israel e não surgiram, a princípio, senão no interesse desse povo. Mas, ao era menos obscura das profecias e que se dirige às nações devia começar com a era dessa cidade, isto é, de Roma, futura soberana das nações. Por isso, sobretudo no tempo dos reis, era necessário abundassem os profetas no meio desse povo, porque então este não andava oprimido pelos estrangeiros, mas tinha um rei próprio. Por onde, havia de ser instruído pelos profetas sobre como devia proceder, para agir quase livremente.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Os profetas que predisseram o advento de Cristo não puderam durar senão até o advento de João, que mostrava com o dedo Cristo presente. E contudo, como diz Jerónimo, no mesmo lugar, isto não significa que depois de João não haveria mais profetas; pois, como lemos nos Atos dos Apóstolos, Agabo projetou, bem como as quatro virgens filhas de Filipe. E também, João escreveu um livro profético sobre o fim da Igreja. E em todos os tempos não deixou de haver quem tivesse o espírito de profecia, não para ensinar uma nova doutrina sobre a fé, mas, para dirigir os atos humanos. Assim, Agostinho refere que Teodósio Augusto mandou consultar no deserto do Egito um eremita chamado João, de quem lhe chegou aos ouvidos a fama geral do seu dom de profetizar, e dele recebeu a predição certíssima da vitória.
O quinto discute–se assim, – Parece que também os bem–aventurados têm algum grau de profecia.
1. – Pois, Moisés, como se disse, viu a essência divina, e contudo é chamado profeta. Logo, pela mesma razão também os bem–aventurados merecem sê–lo.
2. Demais. – A profecia é uma revelação divina. Ora, revelações divinas também se fazem por meio dos santos anjos. Logo, também os santos anjos podem chamar–se profetas.
3. Demais. – Cristo contemplou a essência divina desde o instante da sua concepção, e contudo ele se chama a si mesmo profeta, quando diz: Não há projeta sem honra senão na sua pátria. Logo, também os bem–aventurados, que contemplam a divina essência, podem se chamar profetas.
4. Demais. – A Escritura diz de Samuel: Saindo da terra, levantou a sua voz, profetizando o golpe que estava para se descarregar sobre a impiedade da nação. Logo, pela mesma razão, os outros santos, depois da morte, podem chamarse profetas.
Mas, em contrário, a Escritura compara a palavra profética a uma tocha que alumia em um lugar tenebroso. Ora, no reino dos bem–aventurados não há nenhuma treva. Logo, não podem chamar–se profetas.
SOLUÇÃO. – A profecia supõe certa visão de uma verdade sobrenatural, enquanto afastada do conhecimento do profeta. O que de dois modos se dá. – Primeiro, quanto ao conhecimento em si, pois, a verdade sobrenatural não é conhecida em si mesma mas por certos de seus efeitos; e tanto mais afastada estará, da nossa compreensão se a conhecermos por meio de figuras das coisas corpóreas, mais do que pelos seus efeitos inteligíveis. E tal é por excelência a visão profética operada por meio de imagens das coisas corpóreas. – De outro modo, a visão está afastada da inteligência, quanto ao vidente mesmo que a vê, pois, ainda não foi levado totalmente à última perfeição, conforme àquilo do Apóstolo: Enquanto estamos no corpo vivemos ausentes do Senhor. – Ora, de nenhum destes dois modos os bem–aventurados estão afastados. Logo, não podem chamar–se profetas.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A referida visão de Moisés foi passageira, a modo de paixão, e não permanente, como a da bem–aventurança. E assim, era um vidente que via de longe. E por isso, uma tal visão não é totalmente alheia ao que constitui em essência a profecia.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A revelação divina é feita aos anjos, não como a quem está longe, mas como já totalmente unidos a Deus. Por isso, essa revelação em nada participa da essência da profecia.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Cristo ao mesmo tempo vivia neste mundo e contemplava a essência divina. Ora, enquanto a contemplava, não podia ser profeta; mas só, enquanto vivia esta vida.
RESPOSTA À QUARTA. – Também Samuel ainda não tinha chegado ao estado da bem–aventurança. Por onde, constitui profecia o ter a alma de Samuel, por vontade de Deus, predito a Saul o evento da guerra, pela revelação divina que lhe foi feita. Mas, o mesmo não se dá com os santos, que estão agora na pátria. – Nem obsta que se atribua esse fato à arte dos demônios. Pois, embora os demônios não possam evocar a alma de nenhum santo, nem obrigá–la a fazer nada, pode contudo isso dar–se por virtude divina. De modo que, quando o diabo é consultado, Deus mesmo seja quem, por um enviado seu, anuncie a verdade; como quando, por meio de Elias, anunciou a verdade aos mensageiros do rei, enviados a consultar o deus Accaron, como se lê na Escritura. – Embora também possa dizer–se, que não foi a alma de Samuel, mas o demônio, falando em nome dela. E é porque o Sábio lhe dá o nome de Samuel e chama às suas palavras, proféticas, por ser tal a opinião de Saul e dos que o rodeavam.
O quarto discute–se assim. – Parece que Moisés não foi o mais excelente dos profetas.
1. – Pois, diz a Glosa no princípio do Saltério, que Davi é chamado o profeta por excelência. Logo, Moisés não foi o mais excelente de todos.
2. Demais. – Maiores milagres foram realizados por Josué, que fez parar o sol e a lua, e por Isaías, que fez retroceder o sol, como tudo se lê na Escritura, do que por Moisés, que dividiu o mar Roxo. E também por Elias, do qual dizem as Sagradas Letras: Quem se pode igualmente gloriar como tu, que fizeste sair um morto dos infernos? Logo, Moisés não foi o excelentíssimo dos profetas.
3. Demais. – O Evangelho diz, que entre os nascidos de mulheres não se levantou outro maior que João Batista. Logo, Moisés não foi o mais excelente de todos os profetas.
Mas, em contrário, a Escritura: Não se levantou mais em Israel profeta algum como Moisés.
SOLUÇÃO. – Embora, sob certos aspectos, houvesse profetas maiores que Moisés, em absoluto porém, Moisés foi o maior de todos. Pois, na profecia, como do sobre dito resulta, consideram–se: o conhecimento, tanto segundo a visão intelectual, como segundo a visão imaginária; o anúncio e a confirmação por meio de milagres.
Ora, Moisés foi mais excelente que os outros, primeiro, pela visão intelectual, pois, viu a própria essência divina, como Paulo no rapto, segundo o ensino de Agostinho. Por isso, diz a Escritura: Ele vê o Senhor claramente e não debaixo de enigmas.
Segundo, pela visão imaginária, que tinha quase à sua vontade, não somente ouvindo as palavras de Deus, mas ainda vendo–o falar, mesmo sob figura divina; e não só dormindo mas também acordado. Donde o dizer da Escritura: O Senhor lhe falava cara a cara, bem como um homem costuma falar ao seu amigo.
Terceiro, quanto ao seu anunciar, porque falava a todo o povo dos fiéis, em nome de Deus, quase propondo uma nova lei; ao passo que os outros profetas falavam ao povo em nome de Deus, quase induzindo a observar a lei de Moisés, como se lê na Escritura: Lembrai–vos da lei de Moisés, meu servo.
Quarto, quanto à operação dos milagres, que fez a todo o povo dos infiéis. Donde o dizer a Escritura: Não se levantou mais em Israel profeta algum como Moisés, com quem o Senhor tratasse cara a cara; nem semelhante em sinais e portentos, como os que em virtude da sua missão fez na terra do Egito, a Faraó e a todos os seus servos e a todo o seu reino.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A profecia de Davi se aproximou da visão de Moisés, quanto à visão intelectual, pois, ambos receberam a revelação da verdade inteligível e sobrenatural, sem a visão imaginária. Contudo, a visão de Moisés foi mais excelente, quanto ao conhecimento da divindade; ao passo que Davi mais plenamente conheceu e exprimiu os mistérios da encarnação de Cristo.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Os prodígios referidos desses profetas foram maiores quanto à substância do feito; mas, os milagres de Moisés foram maiores, quanto ao modo de os fazer, pois, foram feitos para todo o povo.
RESPOSTA À TERCEIRA. – João pertence ao Novo Testamento, cujos ministros são superiores ao próprio Moisés, como tendo um conhecimento maior da verdade revelada, segundo o Apóstolo.