Skip to content

Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Art. 1 – Se a vida ativa é mais principal que a contemplativa.

O primeiro discute–se assim. – Parece que a vida ativa é mais principal que a contemplativa.

1. – Pois o que pertence a melhores parece ser mais digno de honra e melhor, como diz o Filósofo. Ora, a vida ativa é própria dos maiores, isto é, dos prelados, investidos de honra e poder. E por isso diz Agostinho, que entregando–nos à vida ativa neste mundo não devemos visar a honra nem o poder. Logo, parece que a vida ativa é mais principal que a contemplativa.

2. Demais. – Em todo gênero de hábito e de atos mandar é próprio do mais principal; assim, a arte militar, como sendo mais principal, regula a de fazer freios. Ora, é vida ativa pertence dispor e regular a contemplativa, como é claro pelas palavras de Moisés: Desce e notifica ao povo não suceda que para ver o Senhor queira passar os limites. Logo, a vida ativa é mais principal que a contemplativa.

3. Demais. – Ninguém deve deixar o maior para buscar o menor; assim, diz o Apóstolo: Aspirai aos dons melhores. Ora, – alguns deixam de lado o estado da vida contemplativa e se entregavam à vida ativa; tal o caso dos que assumem o estado de superior. Logo, parece que a vida ativa é mais principal que a contemplativa.

Mas, em contrário, diz o Senhor: Maria escolheu a melhor parte que lhe não será tirada. Ora, Maria significa a vida contemplativa. Logo, a vida contemplativa é mais principal que a ativa.

SOLUÇÃO. – Nada impede ser em si mesmo mais excelente o que contudo é, de certo modo, inferior. Ora, devemos dizer que a vida contemplativa é, absolutamente considerada, melhor que a ativa. O que o Filósofo o prova por oito razões. – A primeira é que a vida contemplativa convém ao homem pelo que ele tem de melhor, que é o intelecto, e tem objetos mais próprios, que são os inteligíveis. Por isso o nome de Raquel, símbolo da vida contemplativa, se interpreta visão do princípio; ao passo que a vida ativa, como ensina Gregório, é simbolizada por Lia, a de olhos remelosos. – Segundo, porque a vida contemplativa pode ser mais contínua, embora não quanto ao sumo grau da contemplação, como dissemos. Por isso de Maria, símbolo da vida contemplativa, diz o Evangelho que sempre estava assentada aos pés do Senhor. – Terceiro, porque o prazer da vida contemplativa é maior que o da ativa. E por isso diz Agostinho, que enquanto Marta cuidava, Maria se deliciava. ­ Quarto, porque na vida contemplativa, que exige poucas causas, o homem basta–se mais a si mesmo. Donde o dizer o Evangelho: Marta, Marta, tu andas muito inquieta e te embaraças com o cuidar em muitas coisas. – Quinto, porque a vida contemplativa é em si mesma digna de maior amor; ao passo que a vida ativa se ordena para ela. Por isso diz a Escritura: Uma só coisa pedi ao Senhor, esta tornarei a pedir que habite eu na casa do Senhor todos os dias da minha vida para ver as delícias do Senhor. ­

Sexto, porque a vida contemplativa supõe uma certa vacação e repouso, segundo a Escritura: Cessai e vede que eu vou a Deus. – Sétimo porque a vida –contemplativa se entrega às coisas de Deus, ao passo que a vida ativa se aplica às coisas humanas. Por isso diz Agostinho: No princípio era o Verbo a que ouvia Maria; e o verbo se fez carne – a quem Marta servia. ­ Oitavo, porque a vida contemplativa convém ao homem pelo que mais próprio lhe é, a saber, o intelecto; ao passo que das operações da vida ativa participam também as faculdades inferiores, que nos são comuns com os brutos. Por isso depois de a Escritura ter dito – Tu salvarás os homens e as bestas – ajunta, especialmente para os homens: No teu lume veremos o lume. ­ A nona razão o Senhor a acrescenta, quando diz: Maria escolheu a melhor parte que não lhe será tirada. O que assim expõe Agostinho: Não por ser a tua parte má, mas é que ela escolheu a melhor. E ouve: a melhor, porque não lhe será tirada; ao passo que tu perderás um dia esse encargo a ti imposto pela necessidade; pois é eterna a doçura da verdade.

Mas pode acontecer que, num caso dado, seja mais para se escolher a vida ativa, por causa das necessidades da vida presente. Assim, o Filósofo também diz: Filosofar é melhor que ganhar dinheiro; mas ganhar dinheiro é melhor para quem sofre necessidade.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Os prelados não somente devem–se entregar à vida ativa mas ainda ser excelentes na contemplativa. Por isso Gregório diz: Seja o superior o primeiro na ação, sem deixar de viver enlevado, mais que todos, na contemplação.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A vida contemplativa supõe uma certa liberdade da alma. Pois, como diz Gregório, a vida contemplativa nos dá uma certa liberdade do espírito, aplicado às coisas eternas, sem cogitar das temporais. E Boécio: As almas humanas hão de necessariamente ser mais livres, quando se mantêm na contemplação do pensamento divino; menos livres, ao contrário, quando recaem no mundo dos corpos. Por onde é claro, que a vida ativa não dá diretamente regras, à vida contemplativa; mas, dispondo para ela, ordena a prática de certos atos, servindo assim, antes, à vida contemplativa do que lhe dando regras. Por isso diz Gregório, que a vida ativa é considerada escravidão e a contemplativa, a liberdade.

RESPOSTA À TERCEIRA. – As vezes, premido pelas necessidades, temos de deixar a contemplação para nos darmos às obras da vida ativa; mas não de modo que devamos abandonar completamente a contemplação. Por isso diz Agostinho: O amor da verdade deseja um santo repouso. Mas, a caridade, se for preciso, faz–nos aceitar um justo trabalho, isto é, o da vida ativa. Se ninguém, contudo, nos impuser essa carga entreguemo–nos ao estudo e à contemplação da verdade. Mas, sendo–nos ela imposta, a caridade mesmo nos impõe a necessidade de aceitá–la. Nem por isso, contudo, devemos abandonar de todo a doce contemplação da verdade, não seja que, privados dessa suavidade, sintamos a opressão da necessidade. Por onde é claro que quem é chamado da vida contemplativa para a ativa, não sofre um subtração, mas deve fazer antes uma adição.

Art. 4 – Se a vida ativa perdura após esta vida.

O quarto discute–se assim. – Parece que a vida ativa não perdura após esta vida.

1. – Pois, à vida ativa pertencem os atos das virtudes morais, como se disse. Ora, as virtudes morais perduram após esta vida segundo Agostinho. Logo, parece que a vida ativa também perdura após esta vida.

2. Demais – Ensinar os outros pertence à vida ativa, como se disse. Ora, na vida futura, em que seremos semelhantes aos anjos, poderá se exercer a doutrina. Assim como também a exercem os anjos pois uns iluminam, purificam e aperfeiçoam os outros, o que implica a transmissão da ciência como esta claro em Dionísio. Logo, parece que a vida ativa perdura depois desta vida.

3. Demais. – O que em si mesmo é mais durável parece que mais é capaz de durar, depois desta vida. Ora, a vida ativa parece mais durável, em si mesma; pois, diz Gregório, que podemos permanecer fixos na vida ativa; ao contrário, conservar a contenção do espírito, na contemplativa, de nenhum modo o podemos. Logo, muito mais que a contemplativa, pode a vida ativa permanecer depois desta vida.

Mas, em contrário, diz Gregório: Passada esta vida, com ela desaparece a vida ativa; ao contrário, começa da nesta vida, a vida contemplativa se consuma na pátria celeste.

SOLUÇÃO. – Como dissemos, a vida ativa tem o seu fim nos atos externos; os quais, referidos à quietude da contemplação, já pertencem à vida contemplativa. Ora, na vida futura dos bem–aventurados cessará toda prática de atos externos, e se alguns deles existirem serão todos referidos ao fim da contemplação. Pois, como diz Agostinho, lá descansaremos e veremos; veremos e amaremos; amaremos e louvaremos. E na mesma obra já tinha dito, que no céu Deus será contemplado sem fim, sem tédio será amado, e louvado, sem fatiga; essa será a função, esse o afeto, essa a atividade de todos.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Como dissemos, as virtudes morais permanecerão, não pelos atos em que escolhem os meios, mas pelos que se referem ao fim. Ora, esses atos são os pelos quais constituem a quietude da contemplação. A qual Agostinho, nas palavras referidas, exprime pelo vocábulo repouso, significativa não só da ausência de toda agitação exterior, mas também da perturbação interior das paixões.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A vida contemplativa, como dissemos, consiste sobretudo na contemplação de Deus. E então um anjo não pode ensinar a outro, porque, como diz o Evangelho, estão incessantemente vendo a face do Pai, referindo aos anjos da guarda das crianças, que são de ordem inferior. Assim também, na vida futura, nenhum homem ensinará nada a outro sobre Deus, mas todos o veremos como ele é. E é o que está na Escritura: Não ensinará daí em diante varão ao seu próximo, dizendo – conhece ao Senhor; porque todos me conhecerão desde o mais pequeno deles até ao maior. – Mas, no atinente à dispensação dos mistérios de Deus, um anjo ensinará o outro, purificando–o, iluminando–o e aperfeiçoando–o. E, então, praticarão certos atos da vida ativa, enquanto durar o mundo, por se aplicarem ao governo das criaturas inferiores. O que é simbolizado pela visão de Jacó, da escada por onde subiam os anjos, expressão da vida contemplativa, e por onde desciam expressão da vida ativa. Mas, como explica Gregório, eles não se apartam da visão divina de modo a ficarem privados das alegrias da contemplação interna. Por isso neles não se distingue a vida ativa da contemplativa, como em nós, que ficamos impedidos da contemplação pelos atos da vida ativa. – Mas, não nos é prometida a semelhança com os anjos quanto ao governo das criaturas interiores, que não nos cabe pela ordem da nossa natureza, como o cabe aos anjos, mas, pela visão de Deus.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A durabilidade da vida ativa, que em o nosso estado presente excede a da vida contemplativa, não provém da natureza dessas vidas em si mesmas consideradas; mas, da vossa deficiência, impedidos que estamos de subir às alturas da contemplação, pela materialidade do nosso corpo. Por isso Gregório acrescenta, no mesmo lugar: Arrastada pela sua própria fraqueza, da imensidade de tão grande altura, a alma recai sobre si mesma.

Art. 3 – Se ensinar é ato da vida ativa ou da contemplativa.

O terceiro discute–se assim. – Parece que ensinar não é ato da vida ativa, mas da contemplativa.

1. – Pois, diz Gregório, que os varões perfeitos, que puderam contemplar os bens celestes, os revelam aos irmãos e lhes acendem as almas no amor da luz interior. Ora, isto é ensinar. Logo, ensinar é ato da vida contemplativa.

2. Demais. – Parece que os atos e os hábitos se reduzem ao mesmo gênero de vida. Ora, ensinar é um ato da sabedoria, pois, como adverte o Filósofo, o sinal do ciente é poder ensinar. Ora, pertencendo a sabedoria ou a ciência à vida contemplativa, parece que também a ela há de pertencer a doutrina.

3. Demais. – Como a contemplação, também a oração é um ato da vida contemplativa. Ora, a oração pela qual oramos por outrem não pertence de nenhum modo à vida contemplativa. Logo, parece que transmitir pela doutrina ao conhecimento de outrem a verdade meditada parece pertencer à vida contemplativa.

Mas, em contrário, Gregório diz: A vida acima consiste em dar o pão a quem tem fome e pela palavra da sabedoria ensinar o ignorante.

SOLUÇÃO. – O ato de ensinar tem duplo objeto, pois, a doutrina há de ser manifestada pela palavra e esta é o sinal audível do conceito interior. – Por onde, um objeto da doutrina é o que constitui a matéria ou o objeto do conceito interior. E, por este objeto, a doutrina ora pertence li vida ativa, ora à contemplativa. A ativa, quando concebemos interiormente uma verdade para, por meio dela, dirigirmos as nossas ações externas. A contemplativa, quando interiormente concebemos uma verdade inteligível na consideração e no amor do qual nos comprazemos. Por isso diz Agostinho: Escolham para si a melhor parte, isto é, da vida contemplativa; exerçam a palavra, abeberem–se da doce doutrina, cultivem a ciência da salvação. O que indica manifestamente pertencer a doutrina li vida contemplativa. – O outro objeto da doutrina diz respeito li palavra audível. E então o objeto da doutrina é a pessoa mesma que ouve. E quanto a este objeto, toda doutrina pertence à vida ativa, à qual pertencem às ações externas.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A autoridade aduzida se refere expressamente à matéria da doutrina, que versa sobre a consideração e o amor da verdade.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Os hábitos e os atos têm o mesmo objeto. Por onde, a objeção manifestamente procede quanto à matéria do conceito interior. Pois, o sábio e o ciente podem ensinar na medida mesma em que podem exprimir por palavras o conceito interior, de modo a conduzir os ouvintes ao conhecimento da verdade.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Quem ora por outrem não se põe em relação com ele, pois, o seu ato se dirige só a Deus, que é a verdade inteligível. Ao passo que quem o ensina, pratica uma ação exterior que a esse outrem diz respeito. Logo, a comparação não colhe.

Art. 2 – Se a prudência pertence à vida ativa.

O segundo discute–se assim. – Parece que a prudência não pertence à vida ativa.

1. – Pois, assim como a vida contemplativa pertence à potência cognitiva, assim a ativa, à potência apetitiva, Ora, a prudência não pertence à potência apetitiva, mas antes, à cognitiva. Logo, a prudência não pertence à vida ativa.

2. Demais. – Gregório diz, que a vida ativa, ocupada com as obras exteriores, tem o olhar da alma menos penetrante; por isso é simbolizada por Lia, a de olhos remelosos. Ora, a prudência exige olhos de clara visão, para bem julgarmos do que devemos praticar. Logo, parece que a prudência não pertence à vida ativa.

3. Demais. – A prudência é um termo médio entre as virtudes morais e as intelectuais. Ora, assim como as virtudes morais pertencem à vida ativa, como se disse, assim as intelectuais, à contemplativa. Logo, parece que a prudência não pertence nem à vida ativa nem à contemplativa mas constitui um género médio de vida, como a considera Agostinho.

Mas, em contrário, o Filósofo diz que a prudência respeita à felicidade ativa, à qual pertencem as virtudes morais.

SOLUÇÃO. – Como dissemos o que se ordena para outra coisa como para o fim, sobretudo na ordem moral, passa a pertencer à espécie daquilo para que se ordena. Assim, quem fornica para furtar, é mais ladrão do que fornicador, ensina o Filósofo. Ora, é manifesto que o conhecimento da prudência se ordena às operações das virtudes morais como ao fim, pois, é a razão reta das nossas ações, como diz Aristóteles. Por onde, os fins das virtudes morais são os princípios da prudência como ensina ainda o Filósofo. Assim, pois, como dissemos que as virtudes morais, quando ordenam à quietude da contemplação, pertencem à vida contemplativa, assim, o conhecimento da prudência, que de si mesma se ordena aos atos das virtudes morais, pertence diretamente à vida ativa; contanto que a prudência seja considerada no seu sentido próprio em que o Filósofo dela trata. Tomada porém em sentido geral, em que abrange qualquer conhecimento humano, então a prudência pertence, em parte, à vida contemplativa. E nessa acepção Túlio diz que quem puder, com penetração e rapidez, descobrir a verdade e explicar–lhe a razão esse será tido justamente como prudentíssimo e sapientíssimo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Os atos morais se especificam pelo fim, como dissemos. Por onde, o conhecimento próprio à vida contemplativa é aquele cujo fim é o conhecimento mesmo da verdade. Ao passo que o conhecimento da prudência, cujo fim é antes um ato da potência apetitiva, pertence à vida ativa.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A ocupação com as coisas externas torna–nos menos aptos à compreensão do mundo inteligível, separado das coisas sensíveis, que constituem o objeto dos atos da vida ativa. Contudo, a ocupação exterior da vida ativa dá–nos um juízo mais claro dos nossos atos, objeto da prudência. Quer por causa da experiência, quer pela atenção do espírito, pois, como diz Salústio, o engenho desenvolve todo o seu poder quando se concentra num ponto.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A prudência é considerada como um meio termo entre as virtudes intelectuais e morais, por convir, pelo seu sujeito, com as virtudes intelectuais, e totalmente, pela sua matéria, com as morais. Ora, esse terceiro gênero de vida é uma mediedade entre a vida ativa e a contemplativa, quanto ao objeto com que se ocupa; pois, ora se entrega à contemplação da verdade, ora se ocupa com as coisas externas.

Art. 1 - Se a vida ativa abrange os atos de todas as virtudes morais.

O primeiro discute–se assim. – Parece que a vida ativa não abrange os atos de todas as virtudes.

1. – Pois, a vida ativa parece só consistir em relações com terceiros; assim, diz Gregório, que a vida ativa consiste em dar o pão a quem tem fome; e no fim, depois de ter enumerado muitos atos relativos a terceiros, acrescenta: e dar a cada um, o de que tem necessidade. Ora, nós não nos ordenamos aos outros pelos atos de todas as virtudes morais, mas só pelo da justiça e das suas partes, como do sobredito resulta. Logo, a vida ativa não abrange os netos de todas as virtudes morais:

2. Demais. – Gregório diz que Lia, de olhos remelosos, mas fecunda, significa a vida ativa, que, ocupada com as obras exteriores, tem o olhar da alma menos penetrante; mas, ora por palavras, ora pelo exemplo, provoca os outros a imitá–la e engendra numerosos filhos pelas suas boas obras. Ora, parece que isto constitui sobretudo a caridade, pela qual amamos o próximo, do que às virtudes morais. Logo, parece que os atos das virtudes morais não pertencem à vida ativa.

3. Demais. – Como se disse, as virtudes morais dispõem para a vida contemplativa. Ora, disposição e perfeição dizem respeito ao mesmo objeto. Logo, parece que a vida ativa não abrange as virtudes morais.

Mas, em contrário, Isidoro diz: Pela vida ativa devemos primeiro, por meio do exercício das boas obras, eliminar todos os vícios, para passarmos depois à contemplação de Deus, na vida contemplativa, com o puro acume da alma. Ora, os vícios não os expungimos totalmente senão praticando as virtudes morais. Logo, a vida contemplativa implica os atos dessas virtudes.

SOLUÇÃO. – Como dissemos a vida ativa e a contemplativa se distinguem entre si pelas direções diversas que os homens dão aos seus esforços em vista de certos fins. E desses, um é a contemplação da verdade, objeto da vida contemplativa, e o outro é a atividade exterior, a que se ordena a vida ativa. Ora, é manifesto que as virtudes morais não buscam principalmente a contemplação da verdade, mas se ordenam à ação. Donde o dizer o Filósofo, que para a prática da virtude nada ou pouco adianta a ciência. Por onde é manifesto que as virtudes morais pertencem essencialmente à vida ativa. Por isso, o Filósofo ordena as virtudes morais à felicidade ativa.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. –­ Dentre as virtudes morais a mais principal é a justiça que nos ordena para outrem, como o prova o Filósofo. Por isso a vida ativa é discriminada relativamente aos atos que nos ordenam para outrem; não que só nisso ela consiste, mas por ser mais principalmente esse o seu fim.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Praticando todas as virtudes morais podemos, pelo nosso exemplo, levar os próximos ao bem, o que Gregório atribui à vida ativa.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Assim como uma virtude ordenada ao fim de outra fica–lhe pertencendo de certo modo à espécie, assim também, quando vivemos a vida ativa, somente enquanto ela nos dispõe à contemplação, fica ela compreendida na vida contemplativa. Mas quando praticamos as virtudes morais simplesmente em vista do bem que produzem e não enquanto dispõem para a vida contemplativa, essas virtudes entram na vida ativa. – Embora também se possa dizer que a vida ativa é uma disposição para a contemplativa.

Art. 8 – Se a vida contemplativa é diuturna.

O oitavo discute–se assim. – Parece que a vida contemplativa não é diuturna.

1. – Pois, a vida contemplativa essencialmente consiste nas coisas do intelecto. Ora, todas as perfeições intelectuais desta vida desaparecerão, segundo o Apóstolo: Ou deixem de ter lugar as profecias ou cessem as línguas ou seja abolida a ciência. Logo, a vida contemplativa desaparecerá.

2. Demais. – A doçura da contemplação todos os homens a gozam momentânea e transitivamente. Donde o dizer Agostinho: Vós me penetrais de um sentimento bem estranho, de não sei que doçura interior, mas, de novo descambo para as coisas da terra pelo peso da minha miséria. E também Gregório, expondo aquilo da Escritura – E ao passar diante de mim um espírito – diz: A alma não se fixa diuturnamente na suavidade da contemplação íntima, porque reentra em si mesma ofuscada pela intensidade da luz divina. Logo, a vida contemplativa não é diuturna.

3. Demais. – O que não é conatural ao homem não lhe pode ser diuturno. Ora, a vida contemplativa é superior à capacidade humana, como ensina o Filósofo. Logo, parece que não pode ser diuturna.

Mas, em contrário, diz o Senhor: Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada. Pois, como diz Gregório, a vida contemplativa começa neste mundo e se consuma na palha.

SOLUÇÃO. – Uma coisa pode ser diuturna de dois modos: pela sua natureza mesma e relativamente a nós. – Ora, em si mesma, é manifestamente diuturna a vida contemplativa, a dupla luz. Primeiro, porque versa sobre o incorruptível e o imóvel. Segundo, porque nada lhe é contrário: pois, como ensina o Filósofo, o prazer da contemplação não tem nenhuma contrariedade. – Mas também relativamente a nós a vida contemplativa é diuturna. Quer porque, sendo­nos própria, pela ação da parte incorruptível da alma, que é o intelecto, pode perdurar depois desta vida; quer também por que os atos da vida contemplativa, não demandando nenhum trabalho material. podemos persistir mais continuadamente neles, como diz o Filósofo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O modo da contemplação não é o mesmo nesta vida e na pátria; mas, dizemos que a vida contemplativa subsiste em razão da caridade, na qual tem o seu principio e o seu fim. E é o que diz Gregório: A vida contemplativa começa neste mundo e se consuma na pátria; porque o fogo do amor, que aqui começa a arder, mais se acenderá no amor daquele a quem não somente amamos; mas também contemplamos.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Nenhuma ação pode durar muito quando atingiu o seu sumo grau. Ora, o sumo grau da contemplação é atingir a uniformidade da contemplação divina, como diz Dionísio, segundo estabelecemos. Por onde, embora por aí a contemplação não possa durar muito, contudo o pode, quanto aos outros atos dela.

RESPOSTA À TERCEIRA. – O Filósofo diz que a vida contemplativa excede a capacidade humana, porque nos cabe pelo que de divino temos em nós, a saber, o intelecto, o qual, sendo em si mesmo incorruptível e impassível, a sua ação pode ser mais diuturna.

Art. 7 – Se a contemplação produz prazer.

O sétimo discute–se assim. Parece que a contemplação não produz prazer.

1. – Pois, o prazer pertence à potência apetitiva. Ora, contemplação sobretudo reside no intelecto. Logo, parece que a contemplação não produz o prazer.

2. Demais. – Toda contenção e toda luta impede o prazer. Ora, a contemplação implica contenção e luta. Assim, diz Gregório, que a alma, no seu afã de chegar à contemplação de Deus, trava um como combate em que, ora, se exalça, quando goza alguma coisa do prazer de inteligir e sentir o lume incircunscrito; ora, sucumbe porque desfalece depois de ter assim gozado. Logo, a vida contemplativa não traz consigo o prazer.

3. Demais. – O prazer resulta da operação perfeita, como diz o Filósofo. Ora, a contemplação desta vida é imperfeita, segundo o Apóstolo: Nós agora vemos como por um espelho, em enigmas. Logo, parece que a vida contemplativa não produz o prazer.

4. Demais. – Uma lesão corpórea impede o prazer. Ora. a contemplação pode produzi–la. Assim, como lemos na Escritura, Jacó, depois de ter dito: Eu vi a Deus face a face – coxeava do pé porque tocou o nervo da sua coxa e ficou entorpecido. Logo, parece não haver prazer na vida contemplativa.

Mas, em contrário, da contemplação da sabedoria diz a Escritura: A sua conversação nada tem de desagradável nem a sua companhia nada de fastidioso, mas o que nela se acha é satisfação e prazer. E Gregório diz, que a vida contemplativa, toda amável, é cheia de doçura.

SOLUÇÃO. – Uma contemplação pode ser deleitável de dois modos. – Primeiro, em razão do próprio operante. Pois, a cada um é agradável a operação que lhe convém à natureza própria ou ao hábito. Ora, contemplar a verdade convém ao homem pela sua natureza mesma, como animal racional. Donde vem que todos os homens por natureza desejam saber, e por consequência se comprazem no conhecimento da verdade. O que ainda se torna mais deleitável a quem tem o hábito da sabedoria e da ciência, que tornam fácil a contemplação. – De outro modo, a contemplação se torna deleitável por parte do objeto, quando contemplamos uma coisa amada; e como também se dá na visão corpórea, tornada deleitável, não só porque já o seja o ato mesmo de ver, mas pelo se ver uma pessoa amada. Ora, como a vida contemplativa sobretudo consiste na contemplação de Deus, a que nos move a caridade, como se disse, daí resulta que na vida contemplativa o prazer promana não só da contemplação mesma, mas também do amor divino. – E sob este duplo aspecto, o prazer inerente à contemplação excede todos os prazeres humanos. Pois, de um lado, o prazer espiritual é superior ao carnal, como demonstrámos quando tratamos das paixões. E, de outro, o amor mesmo com o qual amamos a Deus pela caridade excede todo outro amor. Por isso, a Escritura diz: Gostai e vede quão suave é o Senhor.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Embora a vida contemplativa essencialmente existe no intelecto, tem contudo o seu princípio no afeto, enquanto que a caridade nos leva à contemplação de Deus. E como o fim corresponde ao princípio, daí vem que também o termo e o fim da vida contemplativa promanam do afeto, pois, nós nos deleitamos com a visão da coisa amada e, por sua vez, o prazer causado pela coisa vista provoca o amor. Por isso, diz Gregório que vendo aquele mesmo a quem amamos, mais nos incendemos no seu amor. E esta é a perfeição última da vida contemplativa não só contemplarmos a verdade divina mas também amá–la.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A contenção ou o combate proveniente da contrariedade da coisa exterior impede nos deleitarmos com ela, pois, ninguém se compráz com aquilo contra o que luta. Mas quando, em igualdade de circunstâncias, alcançamos aquilo pelo que lutámos, mais com isso nos deleitamos; assim, diz Agostinho, que quanto maior foi o perigo na luta, tanto maior será a alegria do triunfo. Ora, da verdade contemplada não resulta, por qualquer contrariedade nossa com ela, nenhuma contenção e nenhuma luta; senão só por deficiência da nossa inteligência e da corruptibilidade do nosso corpo, que nos arrasta para as coisas inferiores, segundo a Escritura: O corpo que se corrompe faz pesada a alma e esta morada terrestre abate o espírito, que pensa muitas coisas. Donde vem que, quando chegamos ao conhecimento da verdade, mais ardentemente a amamos; e ao contrário, mais odiamos a nossa própria deficiência e o peso do nosso corpo corruptível, e somos levados a dizer com o Apóstolo: Infeliz homem eu, quem me livrará do corpo desta morte? Por isso diz Gregório: Deus, quando o conhecemos pelo desejo e pelo intelecto, purificar–nos–á de todo o prazer da carne.

RESPOSTA A TERCEIRA. – A contemplação de Deus nesta vida é imperfeita, comparada com a da pátria; do mesmo modo, o prazer da contemplação desta vida é imperfeito comparado com o da contemplação da pátria, da qual diz a Escritura: Fá–los–ás beber na torrente das tuas delícias. Mas, a contemplação das causas divinas, nesta vida, embora imperfeita é contudo mais agradável que qualquer outra contemplação por mais perfeita que seja, por causa da excelência do objeto contemplado. Por isso diz o Filósofo: As nossas teorias são fracas relativamente a essas nobres e divinas substâncias; mas, embora o que delas conhecemos seja pouco, contudo, a elevação mesma desse conhecimento nos causa um prazer maior que tudo o mais que ele possa abranger. E o mesmo ensina Gregório: A vida contemplativa é muito amável e cheia de doçura, exalça a alma acima de si mesma, abre–nos os tesouros celestes e torna patente o mundo espiritual aos olhos da alma.

RESPOSTA À QUARTA. – Jacó depois da contemplação coxeia de um pé para significar que, debilitados pelo amor do século devemos convalescer para o amor de Deus como diz Gregório; e assim, depois de termos conhecido a suavidade de Deus, um dos nossos pés permanece são enquanto que o outro claudica. Ora, todo aquele que claudica de um pé se arrima ao outro, que conserva são.

Art. 6 – Se o ato da contemplação se discrimina pelos três movimentos – o circular, o retilíneo e o oblíquo.

O sexto discute–se assim. – Parece que o ato da contemplação se discrimina inconvenientemente pelos três movimentos: o circular, o retilíneo e o oblíquo.

1. – Pois, a contemplação é toda ela fundada no repouso, segundo a Escritura: Entrando em minha casa, acharei o descanso com ela. Ora, o movimento se opõe ao repouso. Logo, as operações da vida contemplativa não devem ser designadas pelo movimento.

2. Demais. – A atividade contemplativa pertence ao intelecto, pelo qual o homem se assemelha aos anjos. Ora, Dionísio atribui esses movimentos aos anjos diferentemente do que o faz aos homens. – Assim, diz que o movimento circular do anjo é segundo as iluminações do belo e do bem. Ao passo que no movimento circular da alma distingue vários elementos. O primeiro é o separar–se a alma das coisas exteriores e concentrar–se em si. O segundo é o concentrar–se a alma nas suas potências, livrando–se assim do erro e das agitações exteriores. O terceiro é a união ao que lhe é superior. – Também discrimina diferentemente de uma e de outro. Assim, diz que o movimento retilíneo do anjo consiste em tomar providências dos seus subordinados. Enquanto que atribuiu dois objetos ao movimento retilíneo da alma: pelo primeiro ela dirige a sua atividade aos seres que a rodeiam; pelo segundo, eleva–se das coisas exteriores à contemplação pura – E ainda, o movimento Oblíquo ele o determina diversamente nos dois casos. Assim, considera como o movimento oblíquo dos anjos o proverem os superiores aos inferiores, permanecendo nas mesmas relações para com Deus. Ao passo que o movimento Oblíquo da alma ele o faz consistir em ser a alma iluminada pelo conhecimento racional e difusivamente de Deus. Logo, os modos supra–referidos não discriminam convenientemente as operações da contemplação.

3. Demais. – Ricardo de S. Vitor introduz muitas outras diferenças de movimentos, à semelhança do das aves do céu. Assim, certas elevam–se às maiores alturas para de lá arremessarem–se para baixo, uma e muitas vezes; outras voam repetidamente para a esquerda e para a direita; ainda outras volteiam mil vezes da frente para trás; certas voam girando em circuitos mais dilatados ou mais reduzidos; outras enfim quase imóveis pairam suspensas no ar. Logo, parece não serem só três os movimentos da contemplação.

Em contrário, a autoridade de Dionísio.

SOLUÇÃO. – Como dissemos a operação do intelecto, no qual consiste essencialmente a contemplação, é considerada movimento, no sentido em que este é o ato de um ser perfeito, segundo o Filósofo. Pois, como chegamos ao conhecimento dos inteligíveis por meio dos sensíveis, e as operações sensíveis implicam o movimento, por isso também as operações inteligíveis são discriminadas quase como movimentos, sendo as diferenças delas assinaladas corretamente às dos diversos movimentos. Ora, dos movimentos dos corpos, o mais perfeito e o primeiro é o local, como o prova Aristóteles. Por isso é sobretudo, por semelhança com ele, que se discriminam as operações intelectuais. Ora, há três movimentos diferentes. O circular, pelo qual um corpo se move uniformemente em torno do mesmo centro; o retilíneo, pelo qual vai de um ponto para outro; e o terceiro é o oblíquo, quase composto de um e de outro. Por onde, nas operações inteligíveis, ao que tem a uniformidade pura se atribui o movimento circular; à operação inteligível pela qual procedemos de uma para outra coisa, se atribui o movimento retilíneo; e à operação inteligível, que tem uma certa uniformidade simultânea com o movimento para pontos diversos, se atribui o movimento oblíquo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O movimento exterior dos corpos se opõe à quietude da contemplação, enquanto que esta é contrária às ocupações externas. Ao contrário, o movimento das operações inteligíveis implica essa quietude mesma da contemplação.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Pelo intelecto o homem convém genericamente com o anjo, embora a penetração intelectiva seja muito mais aguda neste que naquele. Por onde, tal movimento há de discriminar–se diferentemente num e noutro, enquanto realizam diversamente a uniformidade. Pois, o conhecimento do· intelecto angélico é uniforme a dupla luz. Primeiro, porque não haure a verdade inteligível da variedade das coisas compostas. Segundo, porque não intelige a verdade dos inteligíveis discursivamente, mas por uma simples intuição. Ao contrário, o intelecto da alma haure a verdade inteligível nas coisas sensíveis; e a intelige mediante um certo discurso da razão.

Por isso Dionísio atribui o movimento circular aos anjos, por contemplarem eles a Deus, uniforme e ininterruptamente, sem princípio nem fim; assim como o movimento circular, carecente de princípio e de fim gira uniformemente em torno de um mesmo centro. – Ao passo que a alma, antes de chegar a essa uniformidade, há de livrar–se da sua dupla deformidade. – Primeiro, da que provém da diversidade das coisas externas; e isso ela o consegue apartando–se delas. Por isso, Dionísio compreende, primeiramente, no movimento circular da alma, o separar–se a alma das coisas exteriores e concentrar–se em si. – Depois, há de a alma remover a sua segunda deformidade, proveniente do discurso da razão. E isto ela o alcança reduzindo todas as suas operações à pura contemplação da verdade inteligível. Por isso exige em segundo lugar o concentrar–se a alma nas suas potências intelectuais, de modo a, cessado todo discurso, aplicar o seu intuito à contemplação da pura e única verdade. Nem há erro nesta operação da alma, como o demonstra o fato de não errarmos na inteleção dos primeiros princípios, que conhecemos por simples intuição. ­ E então, vencidos esses dois obstáculos, Dionísio coloca em terceiro lugar a conformidade uniforme com os anjos, resultante de a alma, separada de tudo, perseverar na só contemplação de Deus. Por isso diz: Depois, assim feita toda ela uniformidade, unidamente, isto é, conforme às potências perfeitamente unas, e entregar–se à contemplação do belo e do bem.

Quanto ao movimento retilíneo, não pode ser atribuído aos anjos, como se eles conhecessem passando de uma para outra coisa, mas só em ordem à providência deles, enquanto que os anjos superiores iluminam os inferiores, pelos intermediários. Por isso diz, que os anjos se movem em linha reta, quando os superiores exercem a sua providência sobre os inferiores, que segue sempre a linha reta, isto é, conforme o exige uma reta disposição. – Ao passo que atribui o movimento retilíneo à alma, por proceder ela dos sensíveis exteriores ao conhecimento dos inteligíveis.

Enfim, o movimento oblíquo, composto do retilíneo e do circular, ele o atribui aos anjos, por proverem os superiores aos inferiores, por meio da contemplação divina. – E também à alma atribui esse mesmo movimento, por semelhança, composto do retilíneo e do circular, enquanto que ela, raciocinando, se socorre da iluminação divina.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Estão contidos no movimento retilíneo ou no oblíquo todas as diversidades de movimentos, fundados nas diferenças de cima para baixo, de direita para a esquerda, de diante para trás e pelos diversos circuitos; pois, todas designam o discurso da razão. O qual, se proceder do gênero para a espécie ou do todo para a parte, terá o sentido, como ele o expõe, do movimento de cima para baixo. Se partir de um contrário para outro, será como o movimento da direita para a esquerda. Se passar das causas para os efeitos, será comparável ao de diante para trás. Se, porém tiver por objetos os acidentes circunstanciais das coisas, próximos ou remotos, será como o movimento em circuito. Mas o discurso da razão, quando parte dos sensíveis para chegar ao inteligível, conforme a ordem da razão natural, pertence ao movimento rebilíneo. Quando porém se processar por iluminação divina, constitui o movimento oblíquo, como do sobredito se colhe. Só o que chama imobilidade é que pertence ao movimento circular. – Donde claramente se conclui, que Dionísio muito suficiente e subtilmente discriminou os movimentos da contemplação.

Art. 5 – Se a vida contemplativa, neste mundo, pode chegar à visão da divina essência.

O quinto discute–se assim. – Parece que a vida contemplativa, neste mundo, pode chegar à visão da essência divina.

1. – Pois, como se lê na Escritura, Jacó disse: Eu vi a Deus face a face e a minha alma foi salva. Ora, a visão da face de Deus é a visão da essência divina. Logo, parece que pela contemplação nesta vida, podemos chegar a ver a Deus por essência.

2. Demais. – Gregório diz: Os homens contemplativos se concentram em si mesmos quando perscrutam as coisas espirituais, separando–se totalmente das sombras das coisas corpóreas ou afastando–as com mãos discretas. Ávidos de contemplarem o lume incircunscrito, repelem todas as suas imagens finitas e, pelo esforço por se elevarem acima de si mesmos, triunfam da própria natureza. Ora, o homem não fica impedido de ver a divina essência, que é o lume incircunscrito, senão pela necessidade em que está de se arrimar nos fantasmas sensíveis. Logo, parece que a contemplação da vida presente pode chegar a contemplar na sua essência o lume incircunscrito.

3. Demais. – Gregório diz: Para a alma que vê o Criador toda a criatura é mesquinha. Ora o varão de Deus, S. Bento, que na sua torre via um globo de fogo e via também os anjos voltando para o céu, não podia certamente ver tais causas senão na luz divina. Ora, quando tinha tais visões S. Bento ainda vivia neste mundo. Logo, a contemplação da vida presente pode chegar a ver a essência divina.

Mas, em contrário, Gregório diz: Enquanto preso a esta carne mortal, ninguém se eleva na virtude da contemplação a ponto de fixar os olhos da alma no próprio raio do lume incircunscrito.

SOLUÇÃO. – Diz Agostinho: Ninguém que veja a Deus pode continuar a viver esta vida mortal presa aos sentidos do corpo. Pois, ninguém pode chegar à sublime contemplação de Deus sem de certo modo morrer a esta vida, quer pela total separação do corpo, ou pelo alheamento aos sentidos materiais. O que já tratámos mais minudentemente, quando estudamos o rapto; e quando na Primeira Parte tratámos da visão de Deus. Assim, devemos concluir que o homem pode existir nesta vida de dois modos. De um modo, em ato, quando atualmente se serve dos sentidos do corpo; e então de maneira nenhuma pela contemplação podemos, nesta vida, ver a essência de Deus. De outro, podemos viver nesta vida potencial e não, atualmente, enquanto que, apesar de a nossa alma estar unida como forma a um corpo mortal, não se serve de sentidos corporais nem mesmo da imaginação, como é o caso do rapto. E então pela contemplação podemos, mesmo nesta vida, chegar à visão da essência divina. Por onde, o supremo grau da contemplação da vida presente é como a que teve Paulo no rapto, e que constitui um termo médio entre o estado da vida presente e o da futura.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. –­ Como diz Dionísio, quem viu a Deus e compreendeu o que viu, não o viu a ele, mas alguma coisa a ele. E Gregório: Nós não podemos de nenhum modo contemplar, durante esta vida, a omnipotência divina na sua claridade; mas a alma pode apenas lhe apreender uma radiação longínqua que a sustente e anime de modo a chegar depois à visão da glória. Quanto ao dito de Jacó – Eu vi a Deus face a face – não significa que tivesse visto a essência de Deus; mas, que viu uma forma (imaginária) pela qual Deus lhe falou. – Ou, assim como reconhecemos uma pessoa pela sua face, assim chamou face ao conhecimento de Deus, como o expõe a Glosa de Gregório a esse lugar.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A contemplação humana, no estado da vida presente, não pode deixar de ser acompanhada de fantasmas; porque é conatural ao homem ver nos fantasmas as espécies inteligíveis, como ensina o Filósofo. Mas nem por isso o conhecimento intelectual consiste nos fantasmas mesmos; o que neles se contempla é a pureza da verdade inteligível. E isto se dá não somente no conhecimento natural, mas também no que conhecemos pela revelação. Pois, diz Dionísio, que o lume divino nos manifesta, por meio de certos símbolos figurados, as hierarquias dos anjos, e por virtude desses símbolos percebemos o puro raio, chegamos ao conhecimento simples da verdade inteligível. E é nesse sentido que devemos entender o dito de Gregório, que os contempladores separam–se das sombras das coisas corpóreas; pois, a estas não se lhes limita a contemplação, que sobe à consideração da verdade inteligível.

RESPOSTA À TERCEIRA. – As citadas palavras de Gregório não querem significar que S. Bento viu na referida visão, Deus em essência; mas pretendem mostrar que de ser mesquinha toda criatura para quem vê o Criador, resulta a facilidade de vermos quaisquer cousas desde que sejamos iluminados pelo divino lume. E por isso acrescenta: Por pouco que contemple a luz do criador, isso lhe basta para considerar como nada todo o criado.

Art. 4 – Se a vida contemplativa consiste só na contemplação de Deus ou também na consideração de qualquer verdade.

O quarto discute–se assim. – Parece que a vida contemplativa não consiste só na contemplação de Deus, mas também na consideração de qualquer verdade.

1. – Pois, diz a Escritura: Maravilhosas são as tuas obras e a minha. alma o conhece muito. Ora, o conhecimento das obras divinas nós o conseguimos pela contemplação de alguma verdade. Logo, parece que à vida contemplativa pertence contemplar não só a divina verdade, mas qualquer uma.

2. Demais. – Bernardo diz, que a primeira contemplação é a admiração da majestade; a segunda, a dos juízos de Deus; a terceira, a dos seus benefícios; a quarta, a das suas promessas. Ora, destas quatro coisas, só a primeira respeita à divina verdade; as outras três dizem respeito a efeitos dela. Logo, a vida contemplativa não consiste só na contemplação da verdade divina, mas também na consideração da verdade relativamente aos efeitos divinos.

3. Demais. – Ricardo de S. Vitor distingue seis espécies de contemplação. A primeira, só fundada na imaginação, é a pela qual consideramos as coisas corpóreas. A segunda se funda na imaginação racional e por ela consideramos a disposição e a ordem das coisas sensíveis. A terceira se apoia na razão imaginativa, e é quando pelo exame das coisas visíveis nos elevamos às invisíveis. A quarta é a pela qual, apoiada na razão racional, a alma considera as coisas invisíveis, desconhecidas da imaginação. A quinta, superior à razão, é quando, pela divina revelação, conhecemos o que não pode a razão humana alcançar. A sexta, enfim, superior à razão e fora do seu alcance, quando, por iluminação divina, conhecemos o que parece repugnar à razão humana, como por exemplo, a doutrina do mistério da Trindade. Ora, só a última espécie é que tem como objeto a verdade divina. Logo, a contemplação da verdade não só recai sobre a verdade divina mas também sobre a que as criaturas manifestam.

4. Demais. – A vida contemplativa busca a contemplação da verdade, enquanto constitui uma perfeição do homem. Ora, qualquer verdade é uma perfeição do intelecto humano. Logo, a vida contemplativa consiste na contemplação de qualquer verdade.

Mas, em contrário, Gregório diz, que a contemplação tem por objeto Deus, como princípio.

SOLUÇÃO. – Como já dissemos o que constitui a vida contemplativa pode constituí–la de dois modos: principalmente e secundária ou dispositivamente.

Principalmente, à vida contemplativa consiste na contemplação da verdade divina; pois, tal contemplação é o fim de toda a vida humana. Donde o dizer Agostinho: Pela contemplação de Deus é–nos prometida o fim de todas as atividades e a perfeição eterna da alegria. A qual será perfeita na vida futura, quando virmos a Deus face a face; e então ela nos tornará perfeitamente bem–aventurados. Nesta vida porém a nossa contemplação da verdade divina é imperfeita, como por um espelho, em enigmas; o que já nos constitui um começo de bem–aventurança, iniciada nesta vida e que continuará na futura. Por isso o Filósofo põe a felicidade última do homem na contemplação do ótimo inteligível.

Ora, pelos efeitos divinos somos levados à contemplação de Deus, segundo as palavras do Apóstolo: As coisas invisíveis de Deus se veem consideradas pelas obras que foram feitas. Por onde, também a contemplação dos divinos efeitos pertence secundariamente à vida contemplativa, enquanto nos conduz ao conhecimento de Deus. Por isso, diz Agostinho, que a consideração das criaturas não deve ser para nós o exercício de uma curiosidade vã e estéril; mas, um grau para nos elevar ao imortal e permanente. Assim pois, do sobredito se colige que, numa certa ordem, quatro coisas abrange a vida contemplativa: primeiro, as virtudes morais; segundo, outros atos, além da contemplação; terceiro, a contemplação dos efeitos divinos; quarto e complemento do mais a contemplação mesma da verdade divina.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. –­ Davi buscava conhecer as obras divinas, para por meio delas elevar–se até Deus. Por isso, noutro lugar diz: Tenho meditado em todas as tuas obras; meditava nas obras das tuas mãos; estendi as minhas mãos a ti.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A meditação nos juízos de Deus conduz o homem à contemplação da justiça divina. E considerando os benefícios de Deus e as suas promessas, o homem se eleva ao conhecimento da divina misericórdia ou bondade, quase por efeitos manifestados ou que o serão.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Essas seis espécies de contemplação designam os graus pelos quais, por meio das criaturas, subimos à contemplação de Deus. Assim, o primeiro grau consiste na percepção dos próprios sensíveis; o segundo, na ascensão dos sensíveis para os inteligíveis; o terceiro consiste em discernir os sensíveis pelos inteligíveis; o quarto, na consideração absoluta dos inteligíveis a que chegamos pelos sensíveis; o quinto, na contemplação dos inteligíveis que não podemos descobrir por meio dos sensíveis, mas que podemos apreender pela razão; o sexto, na consideração dos inteligíveis, que a razão não pode nem descobrir nem apreender e que constituem a sublime contemplação da divina verdade, complemento final da contemplação.

RESPOSTA À QUARTA. – A perfeição última do intelecto humano é a verdade divina; ao passo que as outras verdades aperfeiçoam o intelecto em ordem à verdade divina.

AdaptiveThemes