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Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Art. 3 – Se a perfeição desta vida está na observância dos preceitos ou se na dos conselhos.

O terceiro discute–se assim. – Parece que a perfeição desta vida não está na observância dos preceitos, mas na dos conselhos.

1. – Pois, diz o Senhor: Se queres ser perfeito vai, vende o que tens e dá–o aos pobres; depois vem e segue–me. Ora, isto é um conselho. Logo, a perfeição está na observância dos conselhos e não na dos preceitos.

2. Demais. – Todos estamos obrigados à observância dos preceitos, pois, são necessários à salvação. Se, portanto, a perfeição da vida cristã consistisse na observância dos preceitos, resultaria ser a perfeição necessária para a salvação e que todos deveriam tê–la. O que evidentemente é falso.

3. Demais. – A perfeição da vida cristã se funda na caridade, como se disse. Ora, a perfeição da caridade parece. não consistir na observância dos preceitos, pois, essa perfeição a precede o aumento e o começo da mesma, como está claro em Agostinho. Ora, a caridade não pode existir sem a observância dos preceitos, porque, como diz a Escritura, se alguém me ama guardará a minha palavra. Logo, a perfeição dá vida não se funda na observância dos preceitos mas, na dos conselhos.

Mas, em contrário, a Escritura: Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração. E noutro lugar: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Ora, desses dois preceitos diz o Senhor: Destes dois mandamentos depende toda a lei e os profetas. Ora, a perfeição da caridade, que faz a perfeição da vida cristã, consiste em amarmos a Deus de todo o coração e ao próximo como a nós mesmos. Logo, parece que a perfeição consiste na observância dos preceitos.

SOLUÇÃO. – A perfeição de dois modos a dizemos consistir em alguma coisa: em si mesma e essencialmente, e secundária e acidentalmente.

Em si e essencialmente a perfeição da vida cristã consiste na caridade; mas, principalmente, no amor de Deus e, secundariamente, no amor do próximo; e tal é o objeto dos principais mandamentos da lei divina, como dissemos. Ora, o amor de Deus e o do próximo não constituem objeto de preceito só numa determinada medida, de modo que o excedente a essa medida seja matéria de conselho; e o demonstra a forma mesma do preceito, que revela a perfeição:

Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, pois, todo é o mesmo que perfeito, segundo o Filósofo. E quando a Escritura ordena amarás ao teu próximo como a ti mesmo, pois, é a nós mesmo a quem mais amamos. E isto é assim porque o fim do preceito é a caridade, como diz o Apóstolo. Ora, o fim não está sujeito a nenhuma medida, mas só os meios; assim, como ensina o Filósofo, o médico não usa de nenhuma medida para curar, mas só mede a qualidade do remédio e o uso da dieta que devem produzir a cura. Por onde é claro, que a perfeição consiste essencialmente na observância dos preceitos. Donde o dizer Agostinho: Por que pois não se imporia ao homem esta perfeição, embora ninguém nesta vida a realize?

Secundária, porém, e instrumentalmente a perfeição está na observância dos conselhos, que se ordenam todos, como os preceitos, para a caridade, mas de maneira diferente. Pois, os preceitos, que não os da caridade, ordenam–se a remover os obstáculos a ela contrários e com os quais a caridade não pode subsistir. Ao passo que os conselhos se ordenam a remover os impedimentos aos atos de caridade, mas que não lhe contrariam a ela, como o matrimônio, a ocupação com os negócios seculares e outros semelhantes. Donde o dizer Agostinho: Todos os preceitos divinos como este – não fornicarás; e tudo o que sem ser preceito nos é todavia aconselhado de maneira especial, como o aquilo ­ é bom ao homem não ter mulher, todos esses preceitos e conselhos nós os observamos retamente quando os referimos ao amor de Deus e do próximo, por causa de Deus, tanto neste como no futuro século. E por isso também diz o Abade Moisés: Os jejuns, as vigílias, a meditação das Escrituras, a nudez e a privação de todos os bens não constituem a perfeição, mas são apenas os instrumentos dela; pois, não é nessas práticas que consiste o fim da referida disciplina, que são somente os meios para chegarmos ao fim. E antes tinha dito, que nós nos esforçamos subindo por esses degraus, por chegar à perfeição da caridade.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – As palavras referidas do Senhor incluem uma parte que é como a via para a perfeição, e é quando diz – vai, vende o que tens e dá–o aos pobres. Outra mostra em que consiste a perfeição, quando acrescenta: Segue–me. Por isso diz Jerônimo, que não basta somente abandonar, mas Pedro acrescenta o que é perfeito quando diz ­ e nós te seguimos. Também Ambrósio assim comenta o dito – segue–me: Manda segui–lo não pelo andar do corpo, mas pelo aspecto da alma, o que se faz pela caridade. E assim, do modo mesmo de falar resulta, que os conselhos são uns instrumentos para chegarmos à perfeição. Tal o sentido da exortação: se queres ser perfeito vai, vende o que tens etc., quase dizendo: assim fazendo, chegarás ao fim.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Como diz Agostinho, a perfeição da caridade é imposta ao homem nesta vida, pois, não correrá acertadamente quem não sabe para onde corre; e como o saberia se nenhuns preceitos lho mostrassem? Ora, o que cai sob o preceito pode ser cumprido de diversos modos. Por onde, não se torna transgressor do preceito quem não o cumpre do melhor modo possível, bastando que o cumpra de qualquer modo. Ora, a perfeição do amor divino cai universalmente sob o preceito, de modo que dele não fica excluída a perfeição da pátria, como diz Agostinho; e assim, não o transgride quem de qualquer modo atinge a perfeição do amor divino. – Ora, o ínfimo grau do amor divino consiste em não amarmos nada, mais que a Deus, ou contra ele ou tanto quanto a ele; e quem decai desse grau de perfeição de nenhum modo cumpre o preceito. – Mas há outro grau do perfeito amor, a que não podemos chegar nesta vida, como dissemos; e quem dele decai não é manifestamente transgressor do preceito. – E semelhantemente, não transgride o preceito quem não atinge os graus médios da perfeição, contanto que atinja o ínfimo.

RESPOSTA À TERCEIRA. – O homem, desde que nasce e pela sua mesma natureza específica, já tem uma certa perfeição da natureza; mas também há outra perfeição a que chega pelo crescimento. Assim, há uma perfeição da caridade pertinente à espécie mesma da caridade, que nos leva a amar a Deus acima de tudo e não amar nada de contrário a ele; mas há também outra perfeição da caridade, mesmo nesta vida, a que chegamos crescendo espiritualmente, como quando nos abstemos mesmo das causas lícitas para vacarmos mais livremente ao serviço divino.

Art. 2 – Se alguém pode ser perfeito nesta vida.

O segundo discute–se assim. – Parece que ninguém pode ser perfeito nesta vida.

1. – Pois, diz o Apóstolo: Quando vier o que é perfeito, abolido será o que é em parte. Ora, nesta vida não será abolido o que é em parte; pois, durante ela perduram a fé e a esperança, que são em parte. Logo, ninguém nesta vida é perfeito.

2, Demais. – Perfeito é aquilo a que nada falta, como diz Aristóteles. Ora, ninguém há nesta vida a quem não falte alguma coisa, conforme a Escritura: Todos nós tropeçamos em muitas causas. E noutro lugar: Os teus olhos me viram quando era imperfeito. Logo, ninguém é perfeito nesta vida.

3. Demais. – A perfeição da vida cristã, como se disse, se funda na caridade, que compreende o amor de Deus e o do próximo, Ora, quanto ao amor de Deus, ninguém pode tê–lo nesta vida com perfeita caridade, pois, como diz Gregório, o fogo do amor, que já começa a arder nesta vida, mais ainda se acenderá quando virmos aquele mesmo a quem amamos. Nem quanto ao amor do próximo, pois, não podemos nesta vida amar todos os próximos atualmente embora os amemos habitualmente: e esse amor habitual é imperfeito. Logo, parece que ninguém pode ser perfeito nesta vida.

Mas, em contrário, a lei divina não exige de nós nenhuma impossibilidade. Exige porém a perfeição, segundo o Evangelho: Sê de perfeito como também vosso Pai celestial é perfeito. Logo, parece possível sermos perfeito nesta vida.

SOLUÇÃO. – Como dissemos a perfeição da vida cristã se funda na caridade. Ora, a perfeição implica uma certa universalidade, pois, como diz Aristóteles, perfeito é aquilo a que nada falta. Por onde, podemos distinguir três sortes de perfeição. Uma absoluta, fundada numa totalidade, não só por parte do amante, mas também por parte do ser amado, isto é, a pela qual Deus é amado tanto quanto é amável. Ora, essa perfeição a nenhuma criatura é possível, mas cabe só a Deus, que é o bem integral e essencial.

Outra é a perfeição fundada na totalidade absoluta por parte de quem ama; isto é, quando o seu afeto, com todas as suas forças, tende sempre e atualmente para Deus. E essa perfeição não é possível nesta vida, mas haverá na pátria.

A terceira é a perfeição não fundada na totalidade por parte do ser amado nem na totalidade por parte do amante, pela qual este buscaria a Deus sempre e atualmente. Mas é a que exclui o movimento do amor que leva para Deus; assim, diz Agostinho, que o veneno da caridade é a cobiça, sendo a perfeição a ausência de toda cobiça. Ora, essa perfeição podemos tê–la nesta vida. E de dois modos. – Primeiro, quando excluirmos do nosso afeto tudo o que contraria a caridade, como é o pecado mortal. E sem essa perfeição não pode existir a caridade; e portanto, é de necessidade para a salvação. – Segundo, excluindo do nosso afeto não só o que é contrário à caridade mas também tudo o que nos impede o afeto do coração de se dirigir totalmente para Deus. E sem esta perfeição não pode haver a caridade, como não há nos principiantes e nos proficientes.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O Apóstolo, no lugar citado, se refere à perfeição da pátria, não possível nesta vida.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Os nesta vida considerados como perfeitos diz a Escritura, que tropeçam em muitas coisas, por causa dos pecados veniais, resultantes das misérias da vida presente. E por aí são de certo modo imperfeitos, relativamente à perfeição da pátria.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Assim como o estado da vida presente não se compadece com a nossa tendência sempre e atual para Deus, assim também não se compadece com o amar atual e singularmente cada próximo. Basta porém, amarmos a todos em geral e cada um habitualmente e pela preparação do nosso coração, mas também no amor ao próximo podemos, como no amor de Deus, fundar uma dupla perfeição. Uma é a que não pode existir sem a caridade, de modo que não depositemos o nosso afeto em nada de contrário ao amor do próximo. A outra é a sem a qual a caridade não pode existir. E essa tem um tríplice aspecto. – O primeiro é o da extensão do amor, de modo que não somente amemos os amigos e os conhecidos, mas também os estranhos e, ulteriormente, os inimigos; o que, como diz Agostinho, é próprio dos perfeitos filhos de Deus. O segundo é o da intenção, revelada no que desprezamos, por amor do próximo; de modo que desprezemos por amor dele não só os bens exteriores, mas, ainda os sofrimentos do corpo e, ulteriormente, a morte, segundo a Escritura: Ninguém tem maior amor do que este, de dar um a própria vida por seus amigos. – O terceiro é o efeito da dileção, de modo que sacrifiquemos ao amor do próximo não só os benefícios temporais, mas também os espirituais e, além deles, a nossa própria pessoa, segundo aquilo do Apóstolo: Eu de muito boa vontade darei o meu e me darei a mim mesmo pelas vossas almas.

Art. 1 – Se a perfeição da vida cristã se funda especialmente na caridade.

O primeiro discute–se assim. – Parece que a perfeição da vida cristã não se funda especialmente na caridade.

1. – Pois, diz o Apóstolo: Sede meninos na malícia e sede perfeitos no sentido. Ora, a caridade não concerne ao juízo, mas antes, ao afeto. Logo, parece que a perfeição da vida cristã não consiste principalmente na caridade.

2. Demais. – O Apóstolo diz: Tomai a armadura de Deus para que possais resistir no dia mau e estar completos em tudo. Quanto à armadura de Deus, acrescenta: Estai firmes, tendo cingido os vossos lombos em verdade e vestidos da couraça da justiça, embraçando sobretudo o escudo da fé. Logo, a perfeição da vida cristã não somente se funda na caridade, mas também nas outras virtudes.

3. Demais. – As virtudes, como os outros hábitos, se especificam pelos atos. Ora, a Escritura diz, que a paciência deve ser perfeita nas suas obras. Logo, parece que o estado de perfeição se funda, antes, na paciência.

Mas, em contrário, o Apóstolo: Sobretudo revesti–vos de caridade, que é o vínculo da perfeição, pois, de certo modo ela liga todas as outras virtudes por uma unidade perfeita.

SOLUÇÃO. – Um ser é considerado perfeito quando atinge o fim próprio, que é a sua última perfeição. Ora, pela caridade nós nos unimos a Deus, fim último da alma humana, pois, aquele que permanece na caridade permanece em Deus, como diz a Escritura. Logo, é especialmente na caridade que se funda a perfeição da vida cristã.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A perfeição dos juízos humanos está em conviver na verdade una, segundo o Apóstolo: Sede perfeitos em um mesmo sentimento e em um mesmo parecer. Ora, isto o realiza a caridade, que unifica as opiniões dos homens. Por onde, também a perfeição dos juízos se radica totalmente na perfeição da caridade.

RESPOSTA À SEGUNDA. – De dois modos pode uma pessoa ser considerada perfeita. – Primeiro essencialmente falando, e essa perfeição se funda no que respeita à natureza mesma do ser; tal o caso do animal que é considerado perfeito por não ter nenhuma falha na disposição dos seus membros e no mais que é exigido pela sua vida. – Noutro sentido a perfeição é relativa e se funda nalgum atributo externo, por exemplo, na brancura, na negrura ou outra semelhante. Ora, a vida cristã consiste especialmente na caridade, pela qual a nossa alma se une com Deus, donde o dito da Escritura: Aquele que não ama permanece na morte. Por isso, na caridade é que se funda, essencialmente falando, a perfeição da vida cristã; e nas outras virtudes, relativamente. Ora, como o essencial é principalíssimo e máximo em relação a tudo o mais, dai resulta que a perfeição da caridade é principalíssima em relação à perfeição fundada nas outras virtudes.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A paciência é considerada perfeita nas suas obras em ordem à caridade, enquanto que a abundância desta faz tolerarmos pacientemente as adversidades, segundo aquilo do Apóstolo: Quem nos separará do amor de Deus? Será a tribulação? ou de angústia? etc.

Art. 4 – Se a diferença dos estados se funda na que há entre os incipientes, os proficientes e os perfeitos.

O quarto discute–se assim. – Parece que a diferença dos estados não se funda na que há entre os incipientes, os proficientes e os perfeitos.

1. – Pois, de gêneros diversos são diversas as espécies e as diferenças. Ora, os graus da caridade se dividem relativamente ao principio, ao progresso e à perfeição, como se disse quando se tratou da caridade. Logo, parece que de acordo com esse tríplice critério deve se fazer a diferença dos estados.

2. Demais. – O estado, como se disse, respeita a condição de servitude ou de liberdade, com que parece não relacionar–se a referida diferença entre incipientes, proficientes e perfeitos. Logo, é esse um critério insuficiente de divisão dos estados.

3. Demais. – Os incipientes, os proficientes e os perfeitos entre si se distinguem por mais e menos, o que é, antes, próprio e essencial ao grau. Ora, uma é a divisão dos graus e outra a dos estados, como se disse. Logo, não se dividem convenientemente os estados pelos incipientes, pelos proficientes e pelos perfeitos.

Mas, em contrário, diz Gregório: Há três sortes de convertidos – os do começo, os do meio e os da perfeição. E comentando a Escritura ensina: Uma é a virtude dos principiantes, outra a dos provectos e outra a dos perfeitos.

SOLUÇÃO. – Como dissemos o estado respeita à liberdade ou à servitude. Ora, na ordem espiritual, há uma dupla servitude e uma dupla liberdade. Uma é a servitude do pecado e outra a da justiça. Do mesmo modo, dupla liberdade – a do pecado e a da justiça, conforme o Apóstolo quando diz: Quando éreis escravos do pecado tostes livres da justiça; mas agora que estais livres do pecado haveis sido feitos servos de Deus. A servitude do pecado ou da justiça consiste na inclinação para o mal pelo hábito do pecado, ou na inclinação para o bem, pelo hábito da justiça. Simultaneamente, a libertação do pecado consiste em dominarmos a inclinação para ele; e há libertação da justiça quando pelo amor dela não evitamos o mal. Contudo, como o homem se inclina à justiça pela sua razão natural, e o pecado vai contra a razão natural, consequentemente a libertação do pecado é a verdadeira liberdade, que vai junto com a servitude da justiça; pois, por uma e por outra busca o homem o que lhe é conveniente. Semelhantemente, a verdadeira servitude é a do pecado, que vai junto com a libertação da justiça, pois, por aquela e por esta o homem se priva do que lhe é próprio. Ora, o tornar–se ele servo da justiça ou do pecado é resultado da sua atividade, conforme o Apóstolo: Seja qual for o a quem vos ofereceis por servos para lhe obedecer, ficais servos do mesmo a quem obedeceis – ou do pecado, para a morte, ou da obediência, para a justiça. Ora, em toda atividade humana devemos distinguir o princípio, o meio e o termo. Por onde e consequentemente, o estado da servitude e da liberdade espiritual distinguem–se entre si por três razões. Pelo princípio, ao qual pertence o estado dos incipientes; pelo meio, ao qual pertence o estado dos proficientes; e, terceiro, pelo fim, ao qual pertence o estado dos perfeitos.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A libertação do pecado se opera pela caridade, derramada em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi dado, no dizer do Apóstolo. Donde vem o dizer ele ainda: Onde há o espírito do Senhor aí ha liberdade. Por onde, será a mesma a divisão da caridade que a dos estados pertinentes à liberdade espiritual.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Quando dividimos os homens nas três categorias – dos incipientes, dos proficientes e dos perfeitos – como formando três classes diferentes, não nos referimos a uma ocupação qualquer dele, mas à concernente à liberdade ou à servitude, como dissemos.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Como se disse nada impede o grau e o estado de convergirem ao mesmo fim. Pois, também na ordem social, os livres não somente têm um estado diferente dos servos, mas também são de outro grau.

Art. 3 – Se os ofícios se distinguem pelos atos.

Parece que os ofícios não se distinguem pelos atos.

1. – Pois, são infinitas as diversidades dos atos humanos, tanto na ordem espiritual como na temporal. Ora o infinito não pode ser objeto de nenhuma distinção certa. Logo, as diversidades dos atos não podem fundar uma distinção certa dos ofícios humanos.

2. Demais. – A vida ativa se distingue da contemplativa pelos respectivos atos, como se disse. Ora, a distinção entre os ofícios é diferente da que existe entre as vidas. Logo, os ofícios não se distinguem pelos atos.

3. Demais. – As ordens, mesmo as eclesiásticas, os estados e os graus parece que se distinguem pelas atos. Se, pois, os ofícios se distinguem pelos atos, parece daí resultar a mesma distinção, fundada neles, entre os ofícios, os graus e os estados. Ora, isto é falso porque as partes destes se dividem diversamente. Logo, não parece que os ofícios se distinguem pelos atos.

Mas, em contrário, Isidoro diz, ofício é palavra derivada de eficiente, como se ofício viesse de efficium, com a mudança de uma só letra, para maior elegância do vocábulo. Ora, ser eficiente é próprio da ação. Logo, pelos atos se distinguem os ofícios.

SOLUÇÃO. – Como dissemos a diversidade de membros da Igreja se ordena a um tríplice fim: a perfeição, a ação e o decoro. E esta tríplice finalidade funda a tríplice diversidade dos fiéis. – Uma é relativa à perfeição; o que funda a diferença dos estados, por serem uns mais perfeitos que outros. – A outra é relativa à ação; e essa é a dos ofícios, pois, diremos terem ofícios diversos os que são destinados a atividades diversas. – A última é relativa à ordem da beleza eclesiástica, o que funda a diferença de graus, enquanto que num mesmo estado ou ofício, um é superior ao outro. Por isso, diz a Escritura, segundo outra letra: Deus será conhecido nos graus de Sião.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A diversidade material dos atos humanos é infinita e por isso não distingue os ofícios. Distingue–os a diversidade formal, fundada nas diversas espécies dos atos, e pela qual os atos humanos não são infinitos.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Vida é vocábulo empregado em sentido absoluto. Por onde, a diversidade das vidas se funda nos diversos atos, que convêm ao homem como tal. Mas, a eficiência, donde deriva a palavra ofício, como se disse, implica uma ação tendente a um determinado fim, como diz Aristóteles. Por isso, os ofícios propriamente se distinguem pelos atos referentes a outrem; assim dizemos que um doutor tem o seu ofício, um juiz o seu e assim por diante. Donde o ensinar Isidoro que o ofício nos leva a agir de modo a não estorvarmos (officere) aos outros, isto é, não lhes prejudicarmos, mas a sermos útil a todos.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A diversidade dos estados, dos ofícios e dos graus tem fundamentos diversos, como se disse. Mas estados, ofícios e graus têm um mesmo ponto de convergência. Assim, quem é chamado a uma situação mais eminente, por isso mesmo adquire um ofício e um grau; e, além disso, entra num certo estado de perfeição, pela sublimidade da sua atividade, como se dá com o bispo. Quanto às ordens eclesiásticas, elas se distinguem especialmente pelos diversos oficias. Assim, diz Isidoro: Há muitos gêneros de ofícios, mas o principal é o que tem por objeto as causas sagradas e divinas.

Art. 2 – Se na Igreja deve haver diversidade de ofícios ou de estados.

O segundo discute–se assim. – Parece que na Igreja não deve haver diversidade de ofícios ou de estados.

1. – Pois, a diversidade repugna à unidade. Ora, os fiéis de Cristo são chamados à unidade, segundo o Evangelho: Para que eles sejam um em nós como nós somos um. Logo, na Igreja não deve haver diversidade de ofícios ou de estados.

2. Demais. – A natureza não faz por muitos meios o que pode fazer por um só. Ora, a ação da graça é muito mais ordenada que a da natureza. Logo, seria mais conveniente, que o pertencente aos atos da graça fosse administrado pelos mesmos homens, sem que houvesse na Igreja diversidade de ofícios ou de estados.

3. Demais. – O bem da Igreja consiste sobretudo na paz, conforme a Escritura: O que estabeleceu a paz nos teus limites. E o Apóstolo: Tende a paz e o Deus da paz estará convosco. Ora, a diversidade é um obstáculo para a paz, que parece causada pela semelhança, segundo a Escritura: Todo animal ama ao seu semelhante. E o Filósofo diz que uma pequena diferença provoca o dissídio na cidade. Logo, parece que não deve haver na Igreja diversidade de estados e de ofícios.

Mas, em contrário, a Escritura diz, em louvor da Igreja, que está toda vestida de vários adornos. O que explica a Glosa: A Rainha, isto é, a Igreja, está ornada pela doutrina dos Apóstolos, pela confissão dos mártires, pela pureza das virgens e pelas lágrimas dos penitentes.

SOLUÇÃO. – A diversidade dos estados e dos ofícios na Igreja se explica por três razões. ­ Primeiro, para a perfeição da própria Igreja. Pois, assim como, na ordem dos seres naturais, a perfeição absoluta e uniforme de Deus não pode existir senão diversa e multiplicadamente na universalidade das criaturas, assim também a plenitude da graça, unificada em Cristo, que é a cabeça, redunda diversamente para os seus membros afim de ser perfeito o corpo da Igreja. E é o que o Apóstolo diz: sie mesmo fez a uns certamente apóstolos e a outros profetas e a outros evangelistas e a outros pastores e doutores para a consumação dos santos. – Segundo, por força das atividades necessárias à Igreja. Pois, atos diversos hão de ser praticados por homens diversos, para que tudo se faça expeditamente e sem confusão. Talo diz o Apóstolo: Da maneira que em um corpo temos muitos membros, mas todos os membros não têm uma mesma função, assim, ainda que muitos somos um só corpo em crista. – Terceiro, por assim o exigir a dignidade e a pulcritude da Igreja, fundada numa certa ordem. Donde o dizer a Escritura, que vendo a rainha de Sabá toda a sabedoria de Salomão – os aposentos dos seus oficiais e as diversas classes dos que os serviam, estava toda transportada. E por isso o Apóstolo também diz: Numa grande casa não há somente vasos de ouro e de prata, mas também vasos de pau e de barro.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A diversidade dos estados e dos ofícios não impede a unidade da Igreja, que se consuma pela unidade da fé, da caridade e do auxilio mútuo. Dí–lo o Apóstolo: Do qual todo o corpo coligado, isto é, pela fé, e unido, isto é, pela caridade, por todas as juntas por se lhe subministrar, isto é, servindo uns aos outros.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Assim como a natureza não faz por muitos meios o que pode fazer por um só, assim também não concentra num só o que deve ser executado por muitos, segundo aquilo do Apóstolo: Se o corpo todo fosse olho, onde estaria o ouvido? Por isso é necessário na Igreja, que é o corpo de cristo, diversificarem–se os membros pelos diversos ofícios, estados e graus.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Assim como os diversos membros do corpo físico são reduzidos à unidade pela virtude do espírito vivificante, cuja separação acarreta a dos membros do corpo, assim também, no corpo da Igreja, conserva–se a paz dos diversos membros por virtude do Espírito Santo, que o vivifica. Por isso diz o Apóstolo: Trabalhando cuidadosamente por conservar a unidade d'espírito pelo vínculo da paz. Ora, divorcia–se dessa unidade do Espírito quem busca o bem que a si lhe é próprio; assim como desaparecerá a paz da cidade terrena se cada cidadão só tratar dos seus interesses particulares. Ao contrário, a distinção dos ofícios e dos estados conservará tanto mais a paz da alma como da cidade terrena, quanto tornou assim mais numerosos os participantes da atividade pública. Por isso diz o Apóstolo: Deus atemperou o corpo para que não haja cisma no corpo mas antes conspirem mutuamente todos os membros a se ajudarem uns aos outros.

Art. 1 – Se o estado, por natureza, importa a condição de liberdade ou de servitude.

O primeiro discute–se assim. – Parece que o estado, por natureza, não importa a condição de liberdade ou de servitude.

1. – Pois, estado vem de estar de pé. Ora, dissemos que está de pé quem está em posição ereta. Assim, lemos na Escritura: Filho do homem, põe–se de pé sobre os teus pés. E Gregório diz: Decaem totalmente da sua rectitude ou do seu estado ereto os que pecam por palavras danosas. Ora, a rectitude espiritual nós a adquirimos sujeitando a nossa alma à vontade de Deus. Por isso, aquilo da Escritura. ­ Aos retos convém que os louvem – diz a Glosa: Retos são os que dirigem o coração de acordo com a vontade de Deus. Logo, parece que a obediência aos mandamentos divinos basta para distinguir os estados.

2. Demais. – Parece que o nome de estado implica imutabilidade, segundo aquilo do Apóstolo: Estai firmes e imutáveis. E Gregório diz: A pedra de cantaria pode ficar estável em qualquer das suas faces e não está exposta a cair, mudando de posição. Ora, a virtude é que nos faz obrar de maneira imutável, segundo o Filósofo. Logo, parece que toda operação virtuosa coloca o homem num estado.

3. Demais. – O nome de estado parece supor uma certa elevação pois, está de pé quem se eleva para o alto. Ora, os diversos ofícios tornam uns mais altos que outros. Semelhantemente, os diversos graus ou ordens constituem os homens em alturas diversas. Logo, a só diversidade dos graus, das ordens ou dos ofícios basta para diversificar os ofícios.

Mas, em contrário, uma decretal diz: Quem for interpelado numa causa capital ou numa causa de estado não pode agir por procurador, mas deve agir por si mesmo; e nesse lugar e chamada causa de estado a relativa à liberdade ou a servitude. Logo, parece que não varia o estado do homem senão pelo que respeita a liberdade ou a servitude.

SOLUÇÃO. – Estado, propriamente falando, designa uma posição especial que nos constitui, conforme a exigência da nossa natureza, numa quase imobilidade. Pois, é natural ao homem ter a cabeça ereta para o céu, os pés firmado na terra e os outros membros dispostos numa posição intermediária conforme a conveniência; o que não se dá quando fazemos ou estamos sentados ou deitados, só quando estamos de pé. E nem se diz que está de pé quem se move, mas, quem está imóvel. Donde vem que, também na ordem dos atos humanos, diremos que um negócio tem um estado, relativamente à ordem da sua disposição própria, quando possui uma certa imobilidade ou um certo repouso. Por isso, o que nos homens facilmente varia e é extrínseco não constitui estado; por exemplo, o ser alguém rico ou pobre, constituído em dignidade ou plebeu ou em casos semelhantes. E assim, o direito civil determina que quem for removido do senado perde antes a dignidade que o estado. Mas, so faz parte do estado do homem o que lhe respeita a uma situação da pessoa; por exemplo, ser dependente ou independente; e isto não por uma causa superficial ou facilmente mutável, mas, por uma causa permanente. Ora, tal é o que constitui a essência da liberdade ou da servitude. Por onde, tanto na ordem espiritual como na civil, a liberdade e a servitude constituem própria mente estados.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Essencialmente falando, não é preciso estar o homem em posição ereta para estar em pé, mas só essa posição lhe é conatural, quando acompanhada da imobilidade. Por isso, para dizermos que um bruto está de pé não é preciso que esteja em posição ereta; nem dizemos que um homem está de pé, embora em posição ereta, se não estiver imóvel.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A imobilidade por si só não faz necessariamente com que estejamos de pé, pois, não diremos que o está quem repousa sentado ou jazendo.

RESPOSTA À TERCEIRA. – O ofício é assim chamado por comparação com o ato; ao passo que o grau supõe a ordem de superioridade e inferioridade. O estado, porém, requer a imobilidade no atinente à condição da pessoa.

Art. 4 – Se a vida ativa tem prioridade sobre a contemplativa.

O quarto discute–se assim. – Parece que a vida ativa não tem prioridade sobre a contemplativa.

1. – Pois, a vida contemplativa diretamente se aplica ao amor de Deus, e a ativa, ao do próximo. Ora, o amor de Deus tem prioridade sobre o do próximo, pois, a este o amamos por amor de Deus. Logo, parece que também a vida contemplativa tem prioridade sobre a ativa.

2. Demais. – Gregório diz: Devemos saber que assim como a boa ordem de viver é passar da vida ativa para a contemplativa, assim no mais das vezes o bem exige que se deixe esta por aquela. Logo. a vida ativa não tem, absolutamente falando, prioridade sobre a contemplativa.

3. Demais. – Coisas que convêm a diversos nos têm entre si ordenação necessária. Ora, a vida ativa e a contemplativa convêm a diversos; pois, como diz Gregório, muitas vezes os que podiam se entregar em paz à contemplação caíram vítimas das preocupações externas; e muitas vezes também homens, que podiam viver felizes entregues à vida ativou, acharam no repouso uma causa de ruina. Logo, a vida ativa não tem prioridade sobre a contemplativa.

Mas, em contrário, Gregório diz: A vida ativa tem prioridade sobre a contemplativa, pois pelas boas obras é que nos alçamos à contemplação.

SOLUÇÃO. – A prioridade de uma coisa sobre outra é susceptível de dupla apreciação. ­ Primeiro essa prioridade por sua natureza. E neste sentido a vida contemplativa tem prioridade sobre a ativa, porque se aplica a um objeto superior e melhor. Por isso move e dirige a vida ativa; pois, a razão superior aplicada à contemplação está para o inferior, aplicada à ação, como o homem está para a mulher, que deve ser governada por ele, como diz Agostinho. – Noutro sentido, a prioridade o é relativamente a nós, isto é, funda–se na ordem de geração. E então a vida ativa tem prioridade sobre a contemplativa, porque dispõe para esta, como do sobredito resulta. Ora, na ordem da geração, a disposição precede a forma, pois, é absolutamente e por natureza anterior a esta.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A vida contemplativa não se ordena a um amor qualquer de Deus, mas, ao amor perfeito. Ao passo que a vida ativa é necessária para o amor do próximo, qualquer que ele seja. Por isso diz Gregório: Sem a vida contemplativa podem entrar na pátria celeste os que não deixam de fazer o bem que podem; mas, sem a ativa, nela não podem entrar se descuram a prática do bem que podem fazer. Donde também se conclui que a vida ativa tem precedência sobre a contemplativa, assim como aquilo que é geral a todos precede, na via da geração, o que é próprio aos perfeitos.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Da vida ativa passamos para a contemplativa, na ordem da geração; mas, da vida contemplativa passamos para a ativa, por via de direção, isto é, dirigindo a vida ativa pela contemplação. Assim como também pelas operações adquirimos o hábito e, pelo hábito adquirido, obramos mais perfeitamente, como diz o Filósofo.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Os levados a agir pelo ímpeto das suas paixões são, absolutamente falando, mais aptos para a vida ativa por causa da mobilidade do seu espírito. Por isso diz Gregório: Certos são de tal modo inquietos que a ausência do trabalho seria para eles mais rude que todos os trabalhos; são vítimas da agitação do coração, tanto mais funesta quanto mais lazer têm de vacarem à meditação. Outros porém são naturalmente dotados da pureza e da quietude da alma que os tornam aptos à contemplação; e sofreriam detrimentos se fossem totalmente destinados à ação. Por isso Gregório diz; que certos têm a alma de tal modo inclinada ao repouso que se os trabalhos da atividade os invadissem, neles sucumbiriam desde o começo. Por onde, os mais aptos à vida ativa podem, exercendo a atividade, preparar–se à contemplação; e por seu lado, os mais inclinados à contemplação podem aplicar–se ao exercício da vida ativa afim de se prepararem melhor para a contemplação.

Art. 3 – Se a vida ativa impede a contemplativa.

O terceiro discute–se assim. – Parece que a vida ativa impede a contemplativa.

1. – Pois, a vida contemplativa exige uma certa quietude da alma, conforme a Escritura: Cessai e vede que eu sou o Deus. Ora, a vida ativa é cheia de agitações, segundo o Evangelho: Marta, Marta, tu andas muito inquieta e te embaraças com o cuidar em muitas coisas. Logo, a vida ativa impede a contemplativa.

2. Demais. – A vida contemplativa exige uma visão clara. Ora, essa visão clara fica impedida pela vida ativa: assim, diz Gregório, que Lia é de olhos remelosos e fecunda, porque, preocupada com o agir, vê menos. Logo, a vida ativa impede a contemplativa.

3. Demais. – Um contrário impede outro. Ora, parece que a vida ativa e a contemplativa são contrárias entre si; pois, a vida ativa se ocupa com muitas coisas, ao passo que a contemplativa se emprega toda numa só, e por isso se separa uma da outra. Logo, parece que a vida ativa impede a contemplativa.

Mas, em contrário, diz Gregório: Os que desejam ocupar a cidadela da contemplação exerçam–se primeiro no campo da ação.

SOLUÇÃO. – A dupla luz pode ser considerada a vida ativa. – Primeiro quanto à aplicação mesma aos atos externos e ao exercício deles. E então é manifesto que a vida ativa impede a contemplativa, por ser impossível nos darmos à atividade exterior e simultaneamente vacarmos à divina contemplação. – De outro modo podemos considerar a vida ativa pela composição e pela ordem que ela introduz nas paixões inferiores da alma. E então, como as paixões desordenadas impedem a vida contemplativa, a vida ativa favorece a contemplação. Por isso diz Gregório: Os que desejam ocupar a cidadela da contemplação exerçam–se primeiro no campo da ação. Para que examinem com o maior cuidado se já não fazem nenhum mal ao próximo; se suportam com equanimidade os males que eles lhes fazem; se, renunciando aos bens exteriores, não se entregam de toda a alma, a uma alegria desordenada; se, ao perdê–los, não se deixam acabrunhar pela desgraça; que examinem mais se, ao se concentrarem em si mesmos para meditar nas coisas espirituais, excluem totalmente de si as sombras das coisas corporais; ou se pelo menos sabem afastar com mão discreta essas sombras importunas. Pois assim, o exercício da vida ativa contribui para a contemplativa, aquietando as paixões internas, donde provêm os fantasmas, que impedem a contemplação.

DONDE SE DEDUZEM CLARAS AS RESPOSTAS ÀS OBJEÇÕES. – Pois, essas objecções procedem quanto à aplicação mesma da alma aos atos externos; não porém quanto ao efeito dela, que é a moderação das paixões.

Art. 2 – Se a vida ativa é mais meritória que a contemplativa.

O segundo discute–se assim. – Parece que a vida ativa é mais meritória que a contemplativa.

1. – Pois, o mérito supõe a recompensa. Ora, a recompensa é devida ao trabalho, segundo o Apóstolo: Cada um receberá a sua recompensa particular segundo o seu trabalho. Ora, da vida ativa é próprio o trabalho; da contemplativa, porém, o repouso. Assim, diz Gregório: Todo o que se converte para Deus há de primeiro suar no trabalho, isto é, receber Lia, para depois, unindo–se com Raquel, subir à contemplação do principio. Logo, a vida ativa é mais meritória que a contemplativa.

2. Demais. – A vida contemplativa é um começo da felicidade futura. Por isso, aquilo de João – Eu quero que ele fique assim até que eu venha – diz Agostinho: A explicação clara desse lugar é – que a ação perfeita me siga, já formada pelo exemplo da minha paixão; que a contemplação ainda imperfeita permaneça até que eu venha e então ela será consumada. E Gregório diz, que a contemplação começa nesta vida e se consuma na pátria celeste. Ora, na vida futura já não é o tempo de merecer mas o de receber a paga do merecimento. Logo, a vida contemplativa parece menos meritória que a ativa, mas é mais digna de prêmio.

3. Demais. – Gregório diz: Nenhum sacrifício é mais agradável a Deus que o zelo das almas. Ora, o zelo das almas supõe que nos aplicamos à vida ativa. Logo, parece que a vida contemplativa não é mais meritória que a ativa.

Mas, em contrário, Gregório diz: Grandes são os méritos da vida ativa, mas são maiores os da contemplativa.

SOLUÇÃO. – A raiz do mérito é a caridade, como estabelecemos. Ora, consistindo a caridade no amor de Deus e do próximo, segundo mostramos, amar a Deus é em si mesmo mais meritório que amar o próximo, como do sobredito se colige. Por onde, o que pertence mais diretamente ao amor de Deus é mais meritório, no seu género, do que o que diretamente pertence ao amor do próximo por amor de Deus. Ora, a vida· contemplativa tem por objeto direto e imediato o amor de Deus; pois, diz Agostinho, o amor da verdade divina, objeto por excelência da vida contemplativa, segundo dissemos, requer a santa quietude da contemplação. Ao passo que a vida ativa se ordena mais diretamente ao amor do próximo, pois, anda toda afadigada na contínua lida da casa, como diz o Evangelho. Por isso, genericamente, a vida contemplativa é mais meritória que a ativa. E é o que diz Gregório: A contemplativa é mais meritória que a ativa, pois, esta trabalha em utilidade da vida presente, em que nos é forçoso socorrer ao próximo, ao passo que aquela desde já goza com um prazer intimo o descanso futuro, isto é, da contemplação de Deus.

Pode porém se dar que um mais mereça pela sua vida ativa do que outro pela contemplativa. Por exemplo, se pela riqueza do amor para com Deus e para lhe cumprir assim a vontade, ou para maior glória divina, consentir em privar–se temporariamente das doçuras da contemplação divina. Assim, o Apóstolo dizia: Eu mesmo desejará ser anátema por Cristo por amor de meus irmãos. Expondo o que, diz Gregório: O amor de Cristo lhe invadira a tal ponto a alma, que até isso mesmo, que lhe era mais agradável que tudo – o estar com Cristo, ele desprezara por amor a Cristo.

DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O trabalho externo contribui para o aumento do prémio acidental. Ora, o aumento do mérito em relação ao premio essencial se funda principalmente na caridade. E dela um sinal é o trabalho exterior suportado por amor de Cristo. Mas sinal da mesma, muito mais expressivo é o nos comprazermos em vacar à só contemplação divina, preterindo tudo o que pertence a esta vida.

RESPOSTA À SEGUNDA. – No estado da felicidade futura o homem chega à perfeição; por isso já não há lugar de aperfeiçoar–se pelo mérito. Se, porém o houvesse, o mérito torná–lo–á mais eficaz à caridade maior. Ora, a contemplação da vida presente, sendo acompanhada de imperfeição, deixa ainda lugar para o aperfeiçoamento. Por isso não exclui a capacidade de merecer, mas torna maior o mérito com o exercício mais intenso da caridade divina.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Oferecemos um sacrifício espiritual a Deus quando lhe consagramos alguma causa. Ora, entre todos os bens do homem, o que mais lhe agrada quando oferecido como sacrifício é o bem da alma. Assim, devemos oferecer a Deus, primeiro, a nossa alma, conforme a Escritura: Tem piedade com a tua alma, fazendo–te agradável a Deus. Segundo, as almas dos outros, segundo ainda a Escritura: O que ouve diga – vem. E quanto mais estreitamente unirmos a Deus a nossa alma ou a do próximo, tanto mais agradável será a Deus o sacrifício. Por onde, mais agradável lhe é aplicarmos a nossa alma ou a de outrem à contemplação que à ação. Quanto ao dito – nenhum sacrifício é mais agradável a Deus que o zelo das almas – ele não implica a preferência do mérito da vida ativa ao da vida contemplativa; mas mostra ser mais meritório oferecermos a Deus a nossa alma e a dos outros, do que quaisquer bens exteriores.

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