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Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Art. 1 – Se a matéria da estudiosidade é propriamente o conhecimento.

O primeiro discute–se assim. – Parece que a matéria da estudiosidade não é propriamente o conhecimento.

1 – Pois, diz–se de alguém que é estudioso por aplicar–se a alguma coisa. Mas a qualquer matéria deve o homem aplicar–se para fazer retamente o que deve ser feito. Logo, parece que o conhecimento não é matéria especial da estudiosidade.

2. Demais. – A estudiosidade se opõe à curiosidade. Ora, a palavra curiosidade, derivada de cura, pode também referir–se ao ornato do vestuário e a coisas semelhantes, relativas ao corpo. Donde o dizer o Apóstolo: Não façais caso da carne em seus apetites. Logo, a estudiosidade não tem como objeto próprio só o conhecimento.

3. Demais.  – A Escritura diz: Desde o mais pequeno até o maior todos estão entregues é avareza. Ora, o objeto próprio da avareza não é o conhecimento, mas antes a posse das riquezas, como dissemos. Logo, a estudiosidade, palavra derivada de estudo, não tem como matéria própria o conhecimento.

Mas, em contrário, a Escritura: Trabalha filho meu, por adquirir a sabedoria, e alegra o meu coração, afim de poderes responder ao que te impropera. Ora, a mesma estudiosidade louvada como virtude é aquela à qual a lei convida. Logo, a estudiosidade tem como sua matéria própria o conhecimento.

SOLUÇÃO. – O estudo supõe propriamente uma aplicação veemente do espírito a um objeto. Ora, a nenhum objeto o espírito se aplica, que não o conheça. Por onde, primeiro é espírito se aplica ao conhecimento; segundo, àquilo a que é levado, pelo conhecimento. Por isso, o estudo busca primeiramente o conhecimento e, secundariamente, a tudo o mais que para o realizarmos, precisamos da direção do conhecimento. Ora; às virtudes propriamente se lhe atribui a matéria sobre a qual primária e principalmente recaem. Assim, a fortaleza tem como sua matéria os perigos mortais; e a temperança, os prazeres do tato. Logo, a estudiosidade tem como objeto próprio o conhecimento.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. –­ Não podemos agir retamente, em relação a outras matérias, se não for o nosso ato preordenado pelo conhecimento da razão. Por isso a estudiosidade visa, primeiro, o conhecimento seja qual for a matéria a que apliquemos o nosso estudo.

RESPOSTA À SEGUNDA. – O desejo leva a alma do homem a buscar o desejado, conforme aquilo do Evangelho: Onde está o teu tesouro aí está também o teu coração. E como sobretudo buscamos aquilo a que a carne nos impele, há de por consequência o nosso conhecimento versar sobre os desejos da carne, de modo a inquirirmos o melhor modo de lhe podermos servir a ela. E, assim, a curiosidade tem como objeto o que respeita a carne, em razão daquilo que pertence ao conhecimento.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A avareza se esforça por conseguir lucros, para o que é sobretudo necessária uma certa experiência das coisas terrenas. E, assim, o estudo é atribuído aos bens a que se reporta a avareza.

Art. 2 – Se foi conveniente o modo e a ordem da primeira tentação.

O segundo discute–se assim. – Parece não foi conveniente o modo e a ordem da primeira tentação.

1. – Pois, assim como, na ordem da natureza, o anjo era superior ao homem, assim também, o homem era mais perfeito que a mulher. Ora, o pecado veio do anjo para o homem. Logo, pela mesma razão, devia ter vindo do homem para a mulher, de modo a ter sido ela tentado por ele e não ao contrário.

2. Demais. – A tentação dos nossos primeiros pais foi por sugestão. Ora, o diabo pode fazer sugestão ao homem sem nenhuma criatura exterior sensível. Mas, como os nossos primeiros pais eram dotados de alma espiritual, deixando–se levar, antes, pelo inteligível que pelo sensível, teria sido mais conveniente fosse o homem tentado, antes, por uma tentação espiritual, que por uma exterior.

3. Demais. – Ninguém pode convenientemente sugerir um mal senão por meio de um bem aparente. Ora, muitos outros animais têm maior aparência de bem, que a serpente. Logo, o homem não foi convenientemente tentado pelo diabo, por meio da serpente.

4. Demais. – A serpente é um animal irracional. Ora, um animal irracional não é susceptível de sabedoria, nem de palavra, nem de pena. Portanto, inconvenientemente diz a Escritura, ser a serpente o mais astuto de todos os animais, ou, o mais prudente de todos os brutos, segundo outra versão. Logo, afirma inconvenientemente, que falou à mulher e foi punida por Deus.

Mas, em contrário, o que é primeiro, num gênero, deve ser proporcionado ao que, nesse gênero, se lhe segue. Ora, em todo gênero de pecados há uma ordem a que se subordina a primeira tentação. Assim, na sensualidade, significada pela serpente, precede a concupiscência do pecado; na razão inferior, significada pela mulher, o prazer; na razão superior, significada pelo homem, o consentimento no pecado, como diz Agostinho. Logo, foi congruente a ordem da primeira tentação.

SOLUÇÃO. – O homem é composto de duas naturezas, a saber, a intelectiva e a sensitiva. Por isso, o diabo, ao tenta–lo, empregou um duplo incitamento ao pecado. Um apropriado ao intelecto, quando prometeu a semelhança com a divindade, pela consecução da ciência, que o homem naturalmente deseja. Outra relativa ao sentido; e então usou daquelas coisas sensíveis, que maiores afinidades têm com os homens. Em parte, na mesma espécie, tentando o homem pela mulher; em parte, afinal, pelo gênero próximo, propondo comessem o fruto da árvore proibida.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – No ato da tentação, o diabo foi como o agente principal; mas, a mulher foi empregada como instrumento da tentação, para fazer cair o homem. Quer porque, sendo a mulher mais fraca que o homem, podia ser mais facilmente seduzida; quer também porque, pela sua união com o homem, oferecia ao diabo um meio excelente para seduzi–lo. Mas, o mesmo não se dá com o agente principal e com o instrumental; pois,

o agente principal deve ser superior, o que não é necessário no agente instrumental.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A sugestão, pela qual o diabo espiritualmente sugere alguma cousa ao homem, mostra ter ele um poder maior sobre o homem do que a sugestão exterior. Pois, pela sugestão interior o diabo altera pelo menos a fantasia do homem; ao passo que, pela exterior, altera a criatura só exteriormente. O diabo porém tinha um poder mínimo sobre o homem, antes do pecado. Por isso, não podia tentá–lo pela sugestão interior, mas só, pela exterior.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Como diz Agostinho, não devemos pensar, que o diabo preferiu a serpente, como o meio de tentar. Mas, nutrindo o desejo de enganar, só por meio a esse animal pôde realizar o que lhe foi permitido.

RFSPOSTA À QUARTA. – Diz Agostinho: A serpente é chamada astuta, ardilosa ou prudente, por causa da astúcia do diabo, que a tornava calosa; assim como também chamamos prudente ou astuta à língua, a qual o prudente ou o astuto move a persuadir alguma causa, prudente e astutamente. Nem a serpente entendia: o som delas palavras, que proferia a mulher; nem devemos crer, que a sua alma se lhe transformasse em natureza racional. Pois, às vezes, nem os próprios homens, dotados de natureza racional, compreendera o que diz o demônio, quando fala por meio deles. Assim, pois, a serpente falou ao homem, como lhe falou a Balaão a burra em que montava; salvo que uma foi obra diabólica e outra, angélica. Por isso, a serpente não foi interrogada por que assim procedera; pois, não o fez pela sua natureza mesma, mas, o diabo é quem agiu por meio dela, o qual, pelo seu pecado, já tinha sido precipitado no fogo eterno. Quanto às palavras ditas à serpente, elas se referem ao que a empregou como instrumento.

E, como diz ainda Agostinho, agora a sua pena, isto é, do diabo, é a da qual devemos nos acautelar e não a que está reservada para o último juízo. Assim, quando a Escritura diz ­ Tu és maldita entre todos os animais e bestas da terra, isso significa, que os outros animais lhe são superiores, não pelo poder, mas pela conservação da sua natureza. porque os animais não perderam a felicidade celeste, pois, nunca a tiveram nenhuma, senão que conservam, na vida, a natureza, que receberam. – Também se lhe disse: Andarás de rasto sobre o teu peito e o teu ventre, segundo outra versão. Aí a palavra – peito significa a soberba, porque nele domina o ímpeto da alma; e a palavra – ventre exprime o desejo carnal, porque essa é a parte mais mole do corpo. Pois, é desses dois modos, que a serpente rasteja para chegar aqueles que quer enganar. – Quanto ao dito – Comerás terra todos os dias da tua vida pode ele ser entendido em duplo sentido. Num significa: a ti pertencerão os que enganares com a cobiça terrena, isto é, os pecadores expressos pela palavra – terra. Ou então essas palavras figuram o terceiro gênero de tentação, que e a curiosidade; pois, quem come terra penetra as causas profundas e tenebrosas. – Quanto à inimizade posta entre a serpente e a mulher, ela mostra, que só podemos ser tentados pelo diabo, por aquela parte animal, que revela ou mostra no homem unta quase imagem da mulher. Quanto o semen do diabo, ele é a sugestão perversa; o da mulher é o fruto das boas obras, pelo qual resiste às sugestões perversas. Por isso, a serpente soma traições ao calcanhar da mulher para que se deixe invadir do prazer quando cair em pecado; e a mulher procura esmagar–lhe a cabeça para excluir desde o principio a tentação.

Art. 1 – Se foi conveniente o homem ter sido tentado pelo diabo.

O primeiro discute–se assim. – Parece que não foi conveniente o homem ter sido tentado pelo diabo.

1. – Pois, tanto o pecado do anjo como o do homem merecem a mesma pena final, conforme a Escritura: Ide, malditos, para o fogo eterno, que está aparelhado para o diabo e para os seus anjos. Ora, o primeiro pecado do anjo não provém de nenhuma tentação exterior.

2. Demais. – Deus, presciente dos futuros, sabia que o homem cairia no pecado, pela tentação do demônio; e assim bem sabia, que não devia ele ser tentado. Logo, parece que não foi conveniente ter permitido fosse tentado.

3. Demais. – O ser alguém tentado é uma pena, segundo parece; assim como também parece um prémio o ser alguém livre de tentação, conforme a Escritura: Quando os caminhos do homem agradarem ao Senhor, até reduzirá à paz os seus inimigos. Ora, não deve a pena preceder à culpa. Logo, foi inconveniente o homem ter sido tentado antes do pecado.

Mas, em contrário, a Escritura: Que ciência é a daquele, que não foi tentado?

SOLUÇÃO. – A divina sabedoria dispõe todas as causas com suavidade, porque a sua providência dá a cada ser o que lhe convém à natureza; pois, no dizer de Dionísio, não é próprio da providência destruir a natureza, mas, conservá–la. Ora, é próprio à condição da natureza humana ser auxiliada ou embaraçada pelas outras criaturas. Por isso, foi conveniente, que Deus tivesse permitido o homem ser tentado, no estado de inocência, pelos maus anjos, e ter feito com que fosse ajudado pelos bons. E o benefício especial da graça foi–lhe conferido de nenhuma criatura exterior poder fazer–lhe mal contra a sua própria vontade, podendo ele também, por esse benefício, resistir à tentação do demônio.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. –­ Superior à natureza humana há outra, susceptível do mal da culpa; mas, nenhuma há superior à natureza angélica. Ora, tentar, induzindo ao mal, só é próprio do ser já depravado pela culpa. Por isso, foi conveniente o homem ter sido tentado, pelo mau anjo a pecar; assim como também estava na ordem da natureza fosse promovido à perfeição, pelo anjo bom. Ora, o anjo podia ser levado à perfeição no bem, por Deus, seu superior; não podia, porém, ser por ele induzido a pecar, porque, como diz a Escritura, Deus é incapaz de tentar para o mal.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Assim como Deus sabia que o homem, pela tentação, ia cair no pecado, assim também sabia, que podia resistir ao tentador, pelo livre arbítrio. Ora, a condição da sua natureza exigia fosse abandonado à sua vontade própria, segundo aquilo da Escritura: Deus deixou o homem na mão do seu conselho. For isso diz Agostinho: Parece–me não ter ia sido grande mérito do homem se vivesse bem, porque ninguém houvesse para persuadi–lo ao mal; pois, na sua natureza estava e no seu poder não consentir nessa persuasão.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A tentação a que com dificuldade resistimos constitui uma pena. Ora, o homem, no estado de inocência, podia, em nenhuma dificuldade, resistir à tentação. Por onde, o ataque do tentador não lhe constituiu uma pena.

Art. 10 – Se orar é próprio da criatura racional.

O décimo discute–se assim. – Parece que orar não é próprio da criatura racional.

1. – Pois, a quem pertence pedir pertence receber. Ora, receber também convém às Pessoas incriadas, isto é, ao Filho e ao Espírito Santo. Logo, do mesmo modo lhes convém orar; pois, o Filho diz: Eu rogarei ao meu pai; e o Apóstolo afirma, do Espírito Santo: O Espírito ora por nós.

2. Demais. – Os anjos, sendo substâncias intelectuais, são superiores às racionais. Ora, eles oram; donde o dizer a Escritura: Adorei ao Senhor todos os seus anjos. Logo, orar não é próprio da criatura racional.

3. Demais. – A quem pertence orar também pertence invocar a Deus, o que, sobretudo fazemos quando oramos. Ora, os brutos podem invocar a Deus, conforme aquilo da Escritura: o que dá aos animais o alimento conveniente e aos filhinhos dos corvos que clamam a ele. Logo, orar não é próprio da criatura racional.

Mas, em contrário. – A oração e um ato de razão, como já se estabeleceu. Ora, a criatura racional é assim chamada por ter razão. Logo, orar é próprio da criatura racional.

SOLUÇÃO. – Como do sobredito se colhe, a oração é um ato racional pelo qual pedimos alguma coisa a quem nos é superior; assim como o império é um ato pelo qual mandamos a um nosso inferior fazer alguma coisa. Portanto, propriamente deve orar quem é racional e pode fazer pedidos a um superior. Ora, nenhum ser é superior às Pessoas divinas; e quanto aos brutos, eles – não têm razão. Por onde, a oração não convém nem às Pessoas divinas nem aos brutos; mas é própria da criatura racional.

DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. – As Pessoas divinas convêm–lhes por natureza o receber; ao passo que orar é próprio de quem recebe por graça. Mas, dizemos que o Filho roga ou ora, levando em conta a natureza humana que assumiu e não, considerando–lhe a natureza divina. E quanto ao Espírito Santo, dizemos que pede porque nos faz pedir.

RESPOSTA À SEGUNDA. – O intelecto e a razão não são em nós faculdades diversas, como na Primeira Parte ficou estabelecido; pois, diferem como o perfeito, do imperfeito. Por onde, às vezes, as criaturas intelectuais, que são os anjos, distinguem–se das – racionais; outras vezes compreendem–se nestas e, neste sentido, dizemos que orar é próprio da criatura racional.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Dizemos que os filhotes dos corvos invocam a Deus, por causa do desejo natural, com que cada ser, a seu modo, deseja ser beneficiado pela bondade divina. Assim como também dizemos que os brutos obedecem a Deus por causa do instinto natural com que são por ele movidos. 

Art. 3 – Se a contemplação ou meditação é causa da devoção.

O terceiro discute–se assim. – Parece que a contemplação ou meditação não é a causa da devoção.

1. – Pois, nenhuma causa impede o seu efeito. Ora, as meditações subtis dos intelegíveis muitas vezes impedem a devoção. Logo, a contemplação ou meditação não é a causa da devoção.

2. Demais. – Se a contemplação fosse a causa própria e essencial da devoção, necessáriamente a matéria da contemplação mais a1ta mais excitaria a devoção. Ora, é o contrário que vemos; pois, frequentem ente excita maior devoção considerarmos a paixão de Cristo e os outros mistérios da sua humanidade, do que a grandeza divina. Logo, a contemplação não é a causa própria da devoção.

3. Demais. – Se a contemplação fosse a causa própria da devoção, por fôrça, os mais aptos para a contemplação também se–lo–iam para a devoção. Ora, vemos o contrário: a devoção encontrar–se mais frequentemente em certos varões simples e no sexo feminino, a que contudo falta a contemplação. Logo, a contemplação não é a causa própria da devoção.

Mas, em contrário, a Escritura: Na minha meditação se acendera fogo. Ora, o fogo espiritual causa a devoção. Logo, a meditação é a causa da devoção.

SOLUÇÃO. – A causa principal e extrínseca da devoção é Deus. E a propósito diz S. Ambrósio: Deus chama a quem quer e faz: religioso a quem quer; e se quisesse transformaria em devotos os indevotos Samaritanos. E quanto à causa intrínseca, por nossa parte, há de ser a meditação ou contemplação. Pois, como dissemos, a devoção é um certo ato da vontade que leva a nos darmos prontamente ao serviço ele Deus. Ora, todo ato da vontade procede de alguma consideração, porque o bem inteligido é o objeto da vontade. Donde o dizer Agostinho, que a vontade nasce da inteligência. Portanto, a meditação é necessariamente a causa da devoção, por nos persuadir que devemos nos dar ao serviço divino.

E uma dupla consideração nos leva a pensar assim. – Uma se funda na divina bondade e nos seus benefícios, conforme aquilo da Escritura: Para mim me é bom unir–me a Deus e pôr no Senhor Deus a minha confiança. E esta consideração excita o amor, que é a causa próxima da devoção. – A outra deriva de refletimos nos nossos defeitos, que nos fazem precisar do auxílio de Deus, segundo a Escritura: Levantei os meus olhos aos montes, de donde me virá o socorro; o meu socorro vem do Senhor, que fez o céu e a terra. E esta consideração exclui a presunção que nus impede de nos sujeitar a Deus, confiando na nossa virtude própria.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A consideração do que naturalmente excita em nós o amor de Deus, causa a devoção; ao passo que a impede a consideração de tudo o que não conduz a ela, mas, ao contrário, dela distrai o espírito.

RESPOSTA À SEGUNDA. – O que respeita à divindade excita soberanamente o amor e, por consequência, a devoção, porque Deus deve ser amado sobre todas as coisas. Ora, por ser fraco é que o nosso espírito precisa de certos dados sensíveis conhecidos, para chegar ao amor, assim como precisa ser guiado para chegar ao conhecimento das coisas divinas. E entre eles o principal é a humanidade de Cristo, como diz o Prefácio do Natal: Para visivelmente que conhecendo visivelmente a Deus, sejamos arrebatados ao amor do invisível. Por isso, o que respeita à humanidade de Cristo excita soberanamente em nós a devoção, como que nos guiando, pois que a devoção consiste principalmente no que diz respeito à divindade.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A ciência e tudo o que implica a grandeza é ocasião de o homem confiar–se em si mesmo e não se dar portanto absolutamente a Deus. Donde vem que tais coisas, às vezes e ocasionalmente, impedem a devoção; ao passo que nos simples e nas mulheres abunda a devoção, compressora do orgulho. Porém, se submetermos a Deus perfeitamente a ciência e qualquer outra perfeição, isso mesmo aumentará a devoção.

Art. 1 – Se a devoção é um ato especial.

O primeiro discute–se assim. – Parece que a devoção não é um ato especial.

1. – Pois, parece que o pertencente ao modo dos outros atos não é um ato especial. Ora, parece que a devoção pertence ao modo dos outros atos, conforme ao lugar da Escritura: Ofereceu toda a multidão hóstias e louvores e holocaustos com um espirito cheio de devoção. Logo, a devoção não é um ato especial.

2. Demais. – Nenhum ato especial se inclui nos diversos gêneros de atos. Ora, a devoção se inclui nesses diversos géneros, a saber, nos atos corpóreos e também nos espirituais. Assim, dizemos que alguém medita devotamente e devotamente genuflecte. Logo, a devoção não é um ato especial,

3. Demais. – Todo ato especial pertence à virtude, ou à potência apetitiva ou à cognoscitiva, Ora, a devoção a nenhuma delas é própria, como claramente o verá quem discorrer por todas as espécies de atos de uma e outra potência, espécies que já foram enumeradas. Logo, a devoção não é um ato especial.

Mas, em contrário, nós merecemos, pelos nossos atos, como foi estabelecido. Ora, a devoção (em uma razão especial de merecer. Logo, a devoção é um ato especial.

SOLUÇÃO. – Devoção deriva de devotar–se; por isso, chamam–se devotos os que de certo modo se devotam a Deus, submetendo–se–lhe totalmente. Donde vem. que, antigamente, entre os gentios, chamavam–se devotos os que por si mesmos se devotavam. à morte, aos ídolos, pela salvação dos seus exércitos, como o narra Tito Lívio a respeito dos dois Décios. Por onde, a devoção não é mais do que uma certa vontade de se dar prontamente ao que respeita o serviço de Deus. Donde o dizer a Escritura que a multidão dos filhos d'Israel ofereceram ao Senhor com prontíssima e afetuosa vontade as primícias. Ora, é manifesto que a vontade de fazer prontamente o que pertence ao serviço de Deus é um certo ato especial. Logo, a devoção é um ato especial da vontade.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O motor imprime o modo ao movimento do móvel. Ora, a vontade move ás outras potências da alma para os seus atos; e a vontade, como fim, move–se a si mesma à busca dos meios, como já estabelecemos. Por onde, sendo a devoção um ato da vontade do homem que se oferece a si mesmo para servir a Deus, que é o fim último, consequentemente ela impõe o modo aos atos humanos, quer sejam atos da vontade mesma relativamente aos meios, quer das outras potências, movidas pela vontade.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A devoção se inclui nos diversos gêneros de atos, não como espécie desses gêneros, mas, como a moção do motor se inclui virtualmente nos movimentos dos móveis.

RESPOSTA À TERCEIRA – A devoção é um ato da parte apetitiva da alma e é um certo movimento da vontade, como se disse.

Art. 2 – Se as penas particulares dos nossos primeiros pais estão convenientemente determinadas na Escritura.

O segundo discute–se assim. – Parece que as penas particulares dos nossos primeiros pais estão inconvenientemente determinadas na Escritura.

1. – Pois, não deve ser considerada como pena do pecado o que existiria mesmo sem ele. Ora, as dores do parto, parece que existiriam, mesmo sem o pecado; pois, a disposição do sexo feminino exige que a prole não possa nascer, sem as dores da parturiente. Semelhantemente, também a sujeição da mulher ao marido resulta da perfeição do sexo masculino e da imperfeição do feminino. E, ainda, a produção de espinhos e abrolhos resulta da natureza da terra e ter–se–ia dado mesmo sem o pecado. Logo, não são essas as penas convenientes ao primeiro pecado.

2. Demais. – O que pertence à dignidade de alguém não se lhe pode atribuir como pena. Ora, a multiplicação dos filhos pertence à dignidade da mulher. Logo, não se lhe deve irrogar como pena.

3. Demais. – A pena do pecado dos nossos primeiros pais se transmitiu a todos, como dissemos em relação à morte. Ora, nem todas as mulheres têm partos multiplicados; nem todos os homens ganham o pão com o suor do seu rosto. Logo, essas não são penas convenientes do primeiro pecado.

4. Demais. – O lugar do Paraíso foi feito pua o homem. Ora, nada deve ser vão na ordem das causas. Logo, parece não ter sido uma pena conveniente ao homem o ter sido excluído do Paraíso.

5. Demais. – Desse lugar do Paraíso terrestre se diz, que é em si mesmo inacessível. Logo, em vão se puseram outros obstáculos a que o homem voltasse para ele, a saber, um querubim com uma espada de fogo e versátil.

6. Demais. – O homem, depois do pecado, foi logo sujeito à necessidade de morrer, e assim, não podia recuperar a imortalidade pela virtude da árvore da vida. Logo, em vão lhe foi proibido comer do fruto dessa árvore, como se lê na Escritura: Vede não suceda tome da árvore da vida e viva eternamente.

7. Demais. – Insultar um miserável repugna à clemência e à misericórdia, as quais a Escritura atribui por excelência a Deus, quando diz: As suas misericórdias são sobre todas as suas obras. Logo, a Escritura diz inconvenientemente que Deus insultou os nossos primeiros pais, já dignos de misericórdia por causa do pecado: Eis aí está feito Adão como um de nós, conhecendo o bem e o mal.

8. Demais. – A necessidade impõe ao homem o vestuário, como o alimento, segundo o Apóstolo: Tendo com que nos sustentarmos e com que nos cobrirmos, contentemo–nos com isto. Logo, como a comida foi dada aos nossos primeiros pais, antes do pecado, também o vestuário devia tê–lo sido. Logo, inconvenientemente se diz, que depois do pecado Deus lhes fez umas túnicas de peles.

9. Demais. – A pena infligida a um pecado deve causar mais mal do que o proveito que o pecador auferiu do pecado, do contrário a pena não afastaria ninguém de pecar. Ora, os nossos primeiros pais conseguiram, pelo pecado, que os olhos se lhe abrissem, como se lê na Escritura. Ora, isto sobrepuja como bem, a todos os males penais infligidos como consequência do pecado. Logo, a Escritura enumera inconvenientemente as penas consequentes ao pecado dos nossos primeiros pais.

Em contrário é, que tais penas foram divinamente determinadas por Deus, que tudo faz com medida, peso e número, no dizer da Escritura.

SOLUÇÃO. – Como dissemos os nossos primeiros pais, pelo seu pecado, ficaram privados do benefício divino, que preservava neles a integridade da natureza humana; e essa privação fê–las sofrer certos castigos penais. E por isso foram punidos duplamente. –– Primeiro, porque perderam o que lhes cabia pela integridade do estado, a saber, o lugar do Paraíso terrestre, o que a Escritura assim significa: E o Senhor Deus o lançou fora do Paraíso de delícias. E como, por si mesmo, não podia o homem voltar a esse estado da pristina inocência, convenientemente se lhe puseram obstáculos, afim de não tornar a obter o que lhe cabia, no estado primeiro, a saber, a comida, para que não suceda que tome da árvore da vida; e o lugar, e, por isso, pôs Deus diante do Paraíso um querubim com uma espada de fogo. – Em segundo lugar, foram punidos por lhes ter sido atribuído o que convém à natureza destituída de um tal benefício. E isto quanto ao corpo e quanto à alma.

Quanto ao corpo, ao qual respeita a diferença dos sexos, uma foi a pena atribuída à mulher e outra, ao homem. – À mulher foi infligida a pena quanto aos dois laços, que a prendem ao homem, a saber, a geração da prole e a comunidade das obras relativas à vida doméstica. Quanto à geração da prole, foi duplamente punida. Primeiro, pelos sofrimentos, que padece durante a gestação, e que a Escritura exprime quando diz: Eu multiplicarei os teus trabalhos e os teus partos. E no concernente às dores, que sofre no parto, a que se refere o texto, quando diz – Tu em dor parirás. Quanto à vida doméstica, foi punida por ter sido sujeita à dominação do homem, o que assim refere a Escritura: Estarás sob o poder de teu mando. – Mas, assim como cabe à mulher estar sob o poder do homem, no que respeita à convivência doméstica, assim é a obrigação do homem grangear o necessário à vida. E, por aqui, foi triplicemente punido. Primeiro, pela esterilidade da terra, o que exprimem as palavras: A terra será maldita na tua obra. Segundo. pelo sofrimento do trabalho, sem o qual não colhe os frutos da terra, segundo refere o texto: Tu tirarás o teu sustento dela com muitas fadigas, todos os dias da tua vida. Terceiro, pelos obstáculos, que a terra impõe aos que a cultivam, o que a Escritura assim exprime: Ela te produzirá espinhos e abrolhos.

Semelhantemente, no concernente à alma, a Escritura descreve a tríplice pena dos nossos primeiros pais. – A primeira relativa à confusão que sofreram, pela rebelião da carne contra o espírito, expressa pelas palavras: Abriram–se­lhes os olhos a ambos e conheceram que estavam nus. – A segunda estava na increpação da própria culpa, conforme o relata a Escritura: Eis – aí está feito Adão como um de nós. ­ A terceira consistiu na lembrança da morte futura, segundo o que lhes foi anunciado: Tu és pó e em pó te hás de tornar. No que também se inclui o lhes ter Deus feito umas túnicas de pele, símbolo da mortalidade deles.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – No estado de inocência o parto não teria sido acompanhado de dores. – Assim, diz Agostinho: Então, para dar à luz, à mulher se lhe abririam as vísceras, não os gemidos da dor, mas o impulso da maturidade; assim como também para fecundar e conceber não seria o apetite libidinoso, mas antes, o uso voluntário, que teria unido a natureza dos sexos. – Quanto à sujeição da mulher ao marido, deve ela ser entendida como uma pena infligida à mulher. Não quanto ao regime de vida, porque mesmo antes do pecado, o marido seria o chefe da mulher e seu governador; mas, porque, atualmente, a mulher há de necessariamente obedecer à vontade do marido, mesmo contra a vontade dela. – Quanto aos espinhos e abrolhos produzidos pela terra, eles teriam servido, sem o pecado do homem, ao alimento dos animais e não de pena para ele; porque poderiam então esses abrolhos nascer sem deles advir nenhum sofrimento ou castigo para o homem, que trabalhava a terra, como ensina Agostinho. Embora Alcuíno diga que, antes do pecado, a terra de nenhum modo produzia espinhos e abrolhos. Mas; é preferível a primeira opinião.

RESPOSTA À SEGUNDA. – O multiplicar–se das concepções foi infligido como pena à mulher, não quanto à procriação mesma da prole, que se daria antes do pecado; mas, por causa da multidão das aflições sofridas pela mulher durante a gestação. Por isso, a Escritura sinaladamente acrescenta: Eu multiplicarei os teus trabalhos e os teus partos.

RESPOSTA À TERCEIRA. – As referidas penas de certo modo atingem a todas. Pois, toda mulher, que concebe, há de necessariamente padecer trabalhos e ter parto com dores; salvo a Bem–aventurada Virgem, que concebeu sem pecado e pariu, sem dores; por não ter sido a sua concepção conforme à lei da natureza derivada dos nossos primeiros pais. A mulher, ao contrário, que não concebe nem pare, sofre o defeito da esterilidade, preponderante ainda às penas referidas. Semelhantemente, também todo o que cultiva a terra há de necessariamente comer o pão com o suor do seu rosto; e os que não exercem a agricultura, ocupam–se com outros trabalhos; pois, o homem nasce para o trabalho, como diz a Escritura; e assim, estes últimos comem o pão preparado pelos que suaram nesse labor.

RESPOSTA À QUARTA. – Aquele local do Paraíso terrestre, embora já não servisse ao homem para uso, servia–lhe contudo de documento, fazendo–lhe conhecer que desse lugar ficou privado por causa do seu pecado. E também porque as coisas, que corporalmente existiam nesse Paraíso, advertem–no do que existe no Paraíso celeste, a entrada no qual Cristo preparou ao homem.

RESPOSTA À QUINTA. – Salvos os mistérios do sentido espiritual, o local do Paraíso é sobretudo inacessível, por causa da violência dos calores nos lugares intermediários, provenientes da proximidade do sol. E isto a Escritura o significa pela espada de fogo, chamada versátil por causa da propriedade do movimento circular, causa dos referidos calores. E como o movimento da criatura corporal é disposto pelo ministério dos anjos, como está claro em Agostinho, convenientemente se acrescentou à espada versátil um Querubim para guardar o caminho da árvore da vida. Por isso Agostinho diz: Devemos crer que foi pelo ministério das potestades celestes, que o Paraíso terrestre foi defendido por uma guarda de fogo.

RESPOSTA À SEXTA. – O homem, se depois do pecado tivesse comido do fruto da vida, nem por isso teria recuperado a imortalidade; mas, pelo benefício desse fruto, poderia ter prolongado mais a vida. Por isso, quando a Escritura diz – E viva eternamente – aí se entende eternamente por diuturnamente. Mas, não convinha ao homem permanecer mais longo tempo na Miséria desta vida.

RESPOSTA À SÉTIMA. – Diz Agostinho: Essas palavras de Deus não constituíam tanto um insulto nos nossos primeiros pais, mas foram, antes, escritas para infundir nos outros homens o horror da soberba; e isso porque não somente Adão não se tornou no que queria, mas riem ainda se conservou no estado em que tinha sido feito.

RESPOSTA À OITAVA. – As roupas são necessárias ao homem, no estado da miséria presente, por duas razões. Primeiro, para proteger–se contra as injúrias externas, por exemplo, as intempéries do calor e do frio. Segundo, para cobrir a sua ignomínia e não expor a vergonha dos membros em que sobretudo se revela a rebelião da carne contra o espírito. Ora, estas duas coisas não existiam no estado primitivo, porque, então, o corpo do homem não podia sofrer nenhum mal extrínseco, como se disse na Primeira Parte. Nem havia, nesse primeiro estado, nenhuma vergonha no corpo humano, que causasse confusão; por isso, diz a Escritura: Ora, Adão e sua mulher estavam ambos nus e não se envergonhavam. – Mas, outra coisa se dá com o alimento, necessário para fomentar o calor natural e o crescimento do corpo.

RESPOSTA À NONA. – Como ensina Agostinho, não devemos crer tivessem sido os nossos primeiros pais criados com os olhos fechados. Sobretudo, que a Escritura diz, da mulher, que viu que a árvore era boa para comer e formosa. E assim abriram–se–lhes os olhos a ambos para ver e cogitar o em que não tinham antes advertido isto é, para ter um concupiscência do outro, o que antes não acontecia.

Art. 1 – Se a morte foi a pena do pecado dos nossos primeiros pais.

O primeiro discute–se assim. – Parece que a morte não foi a pena do pecado dos nossos primeiros pais.

1. – Pois, o que é natural ao homem não pode ser considerado pena do pecado, porque o pecado não aperfeiçoa a natureza, mas a corrompe. Ora, a morte é natural ao homem, como o demonstra o fato de ser o seu corpo composto de elementos contrários; e também o de ser o termo mortal introduzido na definição do homem. Logo, a morte não foi a pena do pecado elos nossos primeiros pais.

2. Demais. – A morte e as demais deficiências corporais tanto se encontram no homem como nos outros animais, segundo a Escritura: Uma é a morte dos homens e dos brutos e de uma e de outros é igual a condição. Ora, nos brutos a morte não é a pena do pecado. Logo, nem nos homens.

3. Demais. – O pecado dos nossos primeiros pais foi de pessoas especiais. Ora, a morte resulta da natureza humana total. Logo, não parece ser a pena do pecado dos nossos primeiros pais.

4. Demais. – Todos nos originamos igualmente dos nossos primeiros pais. Se, pois, a morte fosse a pena do pecado dos nossos primeiros pais, resultaria que todos os homens haveriam de sofrer igualmente a morte. O que é evidentemente falso, pois, uns morrem mais depressa e com maiores sofrimentos que outros. Logo, a morte não é a pena do primeiro pecado.

5. Demais. – O mal da pena vem de Deus, como se estabeleceu. Ora, parece que a morte não vem de Deus; pois, no dizer da Escritura, Deus não fez a morte. Logo, a morte não é a pena do primeiro pecado.

6. Demais. – Parece que as penas não são meritórias; pois, ao passo que o mérito supõe o bem, a pena supõe o mal. Ora, a morte às vezes é meritória, como o é a dos mártires. Logo, parece que a morte não é uma pena.

7. Demais. – A pena implica um sofrimento. Ora, a morte não pode implicá–lo, segundo parece; pois, quando ela chega, nós não a sentimos e, quando ainda não chegou, não podemos senti–la. Logo, a morte não é pena do pecado.

8. Demais. – Se a morte fosse a pena do pecado, teria resultado imediatamente dele. Ora, tal não é verdade, pois, os nossos primeiros pais viveram muito tempo depois do pecado, como lemos na Escritura. Logo, não parece a morte a pena do pecado.

Mas, em contrário, o Apóstolo diz: Por um homem entrou o pecado neste mundo e pelo pecado, a morte.

SOLUÇÃO. – Se alguém, por culpa sua, foi privado de algum benefício, que lhe fora dado, a privação desse benefício será a pena da culpa cometida. Ora, como dissemos na Primeira Parte, o homem, desde o primeiro instante da sua criação, recebeu de Deus o benefício de, enquanto tivesse o seu espírito sujeito a Deus, ter sujeita à alma racional as potências inferiores dela, e o corpo, à alma. Ora, tendo o espírito do homem repelido, pelo pecado, a sujeição divina, daí resultou que as potências inferiores já não se sujeitaram totalmente à razão, donde procedeu a tão grande rebelião dos apetites carnais contra ela, nem já o corpo se subordinou totalmente à alma: donde resultou a morte e as outras deficiências corporais. Ora, a vida e a saúde do corpo consiste em sujeitar–se à alma, como o perfectível, à sua perfeição. Por onde e ao contrário, a morte, a doença e todas as misérias do corpo resultam da falta de sujeição do corpo à alma. Donde, é claro que, assim corno a rebelião do apetite carnal contra o espírito é a pena do pecado dos nossos primeiros pais, assim também o é a morte e todas as misérias do corpo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Chama–se natural o que é causado pelos princípios da natureza. Ora, os princípios essenciais da natureza são a forma e a matéria. Ora, a forma do homem é a alma racional, por essência imortal. Por onde, a morte não é natural ao homem, quanto à sua forma. Quanto à matéria do homem, ela é um corpo tal que é composto de elementos opostos, donde resulta necessariamente a corruptibilidade. E, por aí, a morte é natural ao homem. Mas, essa condição da natureza do corpo humano é uma consequência necessária da matéria; porque o corpo humano haveria de ser o órgão do tato e, por consequência, o medianeiro entre as cousas tangíveis; e isto não podia dar–se se não fosse composto de elementos contrários, como está claro no Filósofo. Mas, essa condição não é a pela qual a matéria se adapta à forma; pois, se fosse possível, desde que a forma é incorruptível, a matéria deveria ser, antes, incorruptível. Assim como, o ser uma serra de ferro é exigido pela sua forma e pela sua atividade, pois, deve ter uma dureza que a torne apta para cortar; mas, o ser susceptível de enferrujar–se resulta necessariamente da matéria de que é feita e não, da eleição do agente, pois, se o artífice o pudesse, faria a serra de um ferro, que não pudesse enferrujar–se. Ora, Deus, criador do homem, é onipotente. Por isso, por benefício seu, livrou o homem, desde o primeiro instante da sua criação, da necessidade de morrer, resultante da matéria que o constituía. Ora, esse benefício perderam–no pelo pecado os nossos primeiros pais. E assim, a morte é natural pela condição da matéria; e é penal pela perda do beneficio divino, que dela preservava.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A referida semelhança entre os homens e os brutos se funda na condição da matéria, isto é, no corpo enquanto composto de elementos contrários; mas não, na forma, pois, ao passo que a alma do homem é imortal, as almas dos brutos são mortais.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Os nossos primeiros pais foram criados por Deus, não só enquanto pessoas singulares, mas, como os princípios de toda a natureza humana, que deles deveria derivar para os pósteros, simultaneamente com o benefício divino preservativo da morte. Por isso, pelo pecado deles, toda a natureza humana, nos pósteros, destituída desse benefício, incorreu na morte.

RESPOSTA À QUARTA. – Uma privação pode resultar do pecado de dois modos. – De um modo, como pena determinada pelo juiz. E essa privação deve ser igual em todos os que igualmente pecaram. – Outra privação é a resultante por acidente da, referida pena; tal o caso de quem, cegado por culpa sua, caiu no caminho. E essa privação não se proporciona à culpa, nem é pesada pelo juiz, que não pode ter a presciência dos acontecimentos fortuitos. – Assim, pois, a pena infligida ao primeiro pecado e que proporcionalmente lhe corresponde foi a subtração do benefício divino, pelo qual se conservava à natureza humana a sua retidão e a sua integridade. E as misérias consequentes à subtração desse benefício são a morte e as outras penalidades da vida presente. Por onde, não é necessário sejam tais penas iguais naqueles que foram igualmente atingidos pelo primeiro pecado. – Ora, tendo Deus a presciência de todos os acontecimentos futuros, por disposição da sua presciência e da sua providência, tais penalidades se aplicam a diversos diversamente. Não, certo, por causa de quaisquer méritos precedentes a esta vida, como pensava Orígenes; o que vai contra as palavras do Apóstolo: Não tendo eles ainda jeito bem ou mal algum, e também contra o demonstrado na Primeira Parte, a saber, que a alma não foi criada antes do corpo. Mas, ou como pena dos pecados paternos, pois, sendo o filho de certo modo parte do pai, frequentemente os pais são punidos na prole; ou ainda como remédio para a salvação do que sofre tais penalidades, que o faça deixar o pecado ou não ensoberbecer–se pelas suas virtudes, de modo a ser coroado pela paciência.

RESPOSTA À QUINTA. – A morte pode ser considerada a dupla luz. – Primeiro, como um mal da natureza humana. E, como tal, não vem de Deus, mas, de uma certa privação resultante da culpa humana. – Segundo, enquanto implica de certo modo o bem, isto é, enquanto uma certa e justa pena. E, nesse sentido, vem de Deus. Por isso, diz Agostinho, que Deus não é autor da morte senão como pena.

RESPOSTA À SEXTA. – Diz Agostinho: Assim como os maus usam mal não somente dos males, mas também dos bens; assim, os bons usam bem, não só dos bens, mas ainda dos males. Donde vem o usarem os maus mal da lei, embora a lei seja um bem; e o morrerem bem os bons, embora a morte seja um mal. Na medida, pois, em que os santos usam bem da morte, ela se lhes torna meritória.

RESPOSTA À SÉTIMA. – A morte pode ser considerada em duplo sentido. – Primeiro, como a privação mesma da vida. E, então, não pode ser sentida, pois, é a privação dos sentidos e da vida. Portanto, a esta luz, não é pena do sentido, mas, do dano. – Segundo, enquanto designa a corrupção mesma, cujo termo é a referida privação. – A corrupção, porém, bem como a geração, podemos compreendê–las de dois modos. De um modo, enquanto termo da alteração; e, nesse sentido, dizemos chegar a morte, no primeiro instante mesmo em que há a privação da vida; e, então, também não é a morte pena do sentido. Mas, de outro modo, a corrupção pode ser entendida como acompanhada de uma alteração precedente, no sentido em que dizemos, que morre quem caminha para a morte, e em que também consideramos como sendo gerado o ser que se encaminha à geração, e, então, a morte pode ser causa de sofrimento.

RESPOSTA À OITAVA. – Diz Agostinho: A referida morte se consumou no dia em que foi praticado o que Deus proibiu: porque então os nossos primeiros pais contraíram, no corpo mortal, uma qualidade mórbida e mortífera. Ou, como diz noutra parte, embora os nossos primeiros pais vivessem ainda durante muitos anos, começaram porém a morrer no dia em que sofreram a lei da morte pela qual principiaram a envelhecer.

Art. 4 – Se o pecado de Adão foi mais grave que o de Eva.

O primeiro discute–se assim. – Parece que o pecado de Adão foi mais grave que o de Eva.

1. – Pois, diz o Apóstolo, que Adão não foi seduzido, mas a mulher foi enganada em prevaricação, donde resulta ter o pecado da mulher provindo da ignorância, ao passo que o do homem, de uma ciência certa. Ora, este último pecado é mais grave, segundo aquilo do Evangelho: Aquele servo, que soube a vontade de seu senhor e não obrou conforme a sua vontade, dar–se–lhe–ão muitos açoites; mas aquele, que não a soube e fez coisas dignas de castigo, levará poucos açoites. Logo, Adão pecou mais gravemente que Eva.

2. Demais. – Agostinho diz: Se a cabeça é o homem, deve viver melhor e dar à sua esposa o exemplo de todas as boas obras, para que o imite. Ora, quando aquele, que deve proceder melhor, peca, o seu pecado é mais grave. Logo, Adão pecou mais gravemente que Eva.

3. Demais. – O pecado contra o Espírito Santo é considerado como o gravíssimo. Ora, parece ter Adão pecado contra o Espírito Santo, pois, pecou pensando na misericórdia divina, o que constitui o pecado da presunção. Logo, parece ter Adão pecado mais gravemente que Eva.

Mas, em contrário, a pena corresponde à culpa. Ora, a mulher foi punida mais gravemente que o homem, como se lê na Escritura. Logo, pecou mais gravemente que o homem.

SOLUÇÃO. – Como dissemos, a gravidade do pecado depende mais principalmente da espécie do que da circunstância dele. Donde devemos concluir, que, consideradas ambas as pessoas, a da mulher e a do varão, o pecado deste foi mais grave porque era mais perfeito que a mulher.

Mas, considerado o gênero mesmo do pecado, o pecado de ambos foi igual por terem ambos pecado pela soberba.· Por isso diz Agostinho, que a mulher desculpou–se do seu pecado pela desigualdade do sexo, mas, com a mesma soberba.

Quanto à espécie às soberba, porém, a mulher pecou mais gravemente por tríplice razão. – Primeiro, porque maior foi a sua soberba, que a do homem. Pois, a mulher acreditou verdadeira a persuasão da serpente, isto é, que Deus proibiu comer do fruto para não chegarem a ser semelhantes a ele; e assim, querendo conseguir assemelhar–se a Deus, comendo do fruto proibido, a soberba alçou–a a querer obter o que era contra a vontade de Deus. Ao contrario, o homem não acreditou ser verdadeira a persuasão. Por onde, não quis obter a semelhança divina, contra a vontade de Deus. Mas, pecou por soberba, querendo alcançá–la por si mesmo. – Segundo, porque a mulher, não somente pecou ela própria, mas também sugeriu o pecado ao homem. Por onde, pecou contra Deus e contra o próximo. – Terceiro, porque o pecado do homem ficou diminuído por haver consentido nele por uma certa amigável benevolência que nos leva a ofender a Deus para não perdermos um amigo; e que não o devia ter feito o julgou o justa determinação da divina sentença, como ensina Agostinho. – Por onde é claro ter sido mais grave o pecado da mulher que o ao homem.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A sedução referida, da mulher, resultou da soberba precedente. Por isso essa ignorância não escusa; antes, agrava o pecado, porque, ignorando, alçou–se a maior soberba.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A objeção colhe, quanto à circunstância da condição da pessoa, pela qual o pecado do homem foi mais grave de certo modo.

RESPOSTA À TERCEIRA. – O homem não pensou na divina misericórdia para desprezar a divina justiça, o que constitui o pecado contra o Espírito Santo. Mas, como diz Agostinho, inexperiente da divina severidade, pensou que esse pecado fosse venial, isto é, facilmente perdoável.

Art. 3 – Se o pecado dos nossos primeiros pais foi mais grave que os outros.

O terceiro discute–se assim. – Parece que o pecado dos nossos primeiros pais foi mais grave que os outros.

1. – Pois, diz Agostinho: A grandeza da malícia desse pecado deriva da grande facilidade que havia em não o cometer. Ora, os nossos primeiros pais tinham a máxima facilidade de não pecar, porque nenhuma causa intrínseca os impelia a faze–la. Logo, o pecado dos nossos primeiros pais foi mais grave que os outros.

2. Demais. – A pena é proporcional à culpa. Ora, o pecado dos nossos primeiros pais foi gravissimamente punido: pois, por ele é que entrou a morte neste mundo, como diz o Apóstolo. Logo, esse pecado foi mais grave que os outros.

3. Demais. – O que é primeiro num determinado género é também máximo, como diz Aristóteles. Ora, o pecado dos nossos primeiros pais foi o primeiro, entre os outros pecados dos homens. Logo, foi o máximo.

Mas, em contrário, diz Orígenes: Não penso que ninguém, daqueles que foram postos no sumo e perfeito grau, subitamente ceda e caia; mas, sim, que, se cair, sê–lo–á paulatinamente e por partes. Ora, os nossos primeiros pais estavam colocados no sumo e perfeito grau. Logo, o primeiro pecado deles não foi o maior de todos.

SOLUÇÃO. – Podemos descobrir no pecado dupla gravidade. Uma, fundada na espécie mesma dele; assim, consideramos o adultério como um pecado mais grave que a simples fornicação. A outra gravidade do pecado é a fundada nalguma circunstancia de lugar, de pessoa ou de tempo. Ora. a primeira gravidade é mais essencial ao pecado e mais principal. Por isso, ela torna o pecado mais grave; que a segunda.

Donde devemos concluir, que o pecado do primeiro homem não foi mais grave do que todos os outros pecados humanos, quanto à espécie dele. Embora, pois, a soberba tenha, no seu gênero, uma certa excelência entre os outros pecados, contudo, maior é a soberba pela qual negamos a Deus ou contra ele blasfemamos do que a soberba pela qual desejamos desordenadamente nos assemelharmos com Deus, como foi a dos nossos primeiros pais, segundo dissemos. Mas, pela condição das pessoas que pecaram, o referido pecado teve a máxima gravidade, por causa da perfeição do estado delas. Donde devemos concluir foi, de certo modo, o gravíssimo, embora, não, absolutamente falando.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. –­ A objeção colhe, quanto à gravidade do pecado, relativamente à circunstância do pecador.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A grandeza da pena resultante desse primeiro pecado não lhe corresponde, quantitativamente falando, à espécie própria, mas sim, enquanto foi o primeiro. Pois, destruiu a inocência do primeiro estado, destruída a qual, desordenou–se roda a natureza humana.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Nas coisas submetidas a uma ordem essencial, necessariamente a que é primeira é máxima. Ora, tal não é a ordem realizada pelo pecado, senão que um se segue a outro, por acidente. Donde não se conclui tenha sido o máximo o primeiro pecado.

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