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Donde há de vir julgar os vivos e os mortos

101 — Julgar é função do rei: “O rei, que está sentado no trono da justiça, pelo seu olhar dissipa todo o mal”. (Pr 20, 8). Porque Cristo subiu ao céu e sentou-se à direita de Deus como Senhor de todos, evidentemente compete-lhe o juízo. Por isso pela Regra da Fé Católica confessamos que virá julgar os vivos e os mortos. Isto também foi dito pelo Anjo: “Este Jesus, que do meio de vós foi elevado aos céus, virá também assim como o vistes subir par aos céus” (Mt 1, 11).
 
102 — Devemos considerar nesse Juízo três coisas: primeiro, a sua forma; segundo, que ele deve ser temido, e, terceiro, como para ele devemos nos preparar.
 
103 — No juízo devemos ainda distinguir três elementos concorrentes: quem é o juiz, quem deve ser julgado e qual a matéria do julgamento.
 
104 — Cristo é o Juiz, conforme se lê no Livro dos Atos: “Ele que foi constituído por Deus Juiz dos vivos e dos mortos” (Mt 10, 42). Pode este texto ser interpretado, ou chamando de mortos os pecadores e, de vivos, os que vivem retamente, ou designando vivos, por interpretação literal, os que agora vivem, e mortos, todos os que morreram. Ele é Juiz não só enquanto Deus, mas também como homem, por três motivos1.
 
Primeiro, porque é necessário, aos que vão ser julgados, verem o juiz. Como a Divindade é de tal modo deleitável que ninguém a pode ver sem se deleitar, e nenhum condenado poderia vê-la sem que não sentisse logo alegria, foi necessário que Cristo aparecesse só em forma de homem, para que fosse visto por todos. Lê-se em S. João: “Deu-lhe o poder de julgar, porque é Filho do Homem” (Jo 5, 27).
 
Segundo, porque Ele mereceu este ofício como homem. Ele, enquanto homem, foi injustamente julgado e, por isso, Deus O fez Juiz de todos. Lê-se: “A tua causa foi julgada como a de um ímpio; receberás o julgamento das causas” (Jo 36, 17).
 
Terceiro, para que os homens não mais desesperem, vendo-se julgados por um homem. Se somente Deus julgasse, os homens ficariam desesperados, devido ao temor. (Mas todos verão um homem julgar), pois se lê em São Lucas: “Verão o Filho do Homem vindo na nuvem” (Lc 21, 27). Serão julgados os que existiram, os que existem e existirão, conforme ensina São Paulo: “Convém que todos nós sejamos apresentados diante do tribunal de Cristo, para que cada um manifeste o que fez de bom e de mal enquanto estava neste corpo” (2 Cor 5, 10).
 
105 — Há quatro diferenças, segundo São Gregório, entre os que devem ser julgados. Estes, ou são bons, ou são maus.
 
Entre os maus, alguns serão condenados, mas não julgados, como os infiéis, cujas ações não serão discutidas, por que, como está escrito, “o que não crer já está julgado” (Jo 3, 18). Outros, porém, serão condenados e julgados, como os fiéis que morreram em estado de pecado mortal. Disse o Apóstolo: “o salário do pecado é a morte” (Rm 6, 23). Estes não serão excluídos do Julgamento por causa da fé que tiveram.
 
Entre os bons também haverá os que serão salvos sem o Julgamento, os pobres de espírito por amor de Deus. Lê-se em São Mateus: “vós que me seguistes, na regeneração, quando o Filho do Homem estiver sentado em seu trono majestoso, sentar-vos-eis também sobre doze tronos, julgando as doze tribos de Israel” (Mt 19, 28).
 
Estas palavras não se dirigem só aos discípulos, mas a todos os pobres de espírito. Caso assim não fosse, São Paulo que trabalhou mais que todos, não estaria nesse número.
 
Este texto deve, portanto, ser aplicado a todos os que seguiram os Apóstolos, e aos varões apostólicos. Eis porque São Paulo escreve: “Não sabeis que julgamos os Anjos?” (1 Cor 6, 3). Lê-se ainda em Isaías: “O Senhor virá com seniores e com os príncipes do seu povo” (Is 3, 14).
 
Outros serão salvos e julgados, isto é, aqueles que morreram em estado de justificação. Bem que tivessem morrido neste estado, erraram todavia em alguma coisa durante a vida terrestre. Serão, por isso, julgados, mas receberão a salvação.
 
106 — Todos serão julgados pelos atos bons e maus que praticaram. Lê-se na Escritura: “Segue os caminhos do teu coração... mas fica certo de que Deus te levará ao julgamento por causa deles” (Ecle 11, 9); “Deus citará no julgamento todas as tuas ações, até as ocultas, quer sejam boas, quer sejam más” (Ecle 13, 14).
 
Serão julgados também pelas palavras inúteis: “Toda palavra inútil pronunciada por alguém, este dará conta dela no dia do juízo” (Mt 12, 36).
 
Serão julgados, por fim, pelos pensamentos que tiveram. Lê-se no Livro da Sabedoria: “Os ímpios serão argüidos a respeito dos seus pensamentos” (Sb 1, 9).
 
Fica assim esclarecida qual a matéria do julgamento.
 
107 — Por quatro motivos deve ser aquele Juízo temido.
 
Primeiro, devido à sabedoria do Juiz, porque Ele conhece todas as coisas, os pensamentos, as palavra e as ações, já que, como se lê na Carta aos Hebreus, “todas as coisas estão nuas e descobertas aos seus olhos” (Heb 4, 13). Lê-se ainda na Escritura: “Todos os caminhos dos homens estão diante dos seus olhos” (Pr 16, 1).
 
Conhece Ele as nossas palavras: “Os seus ouvidos atentos ouvem tudo” (Sb 1, 10).
 
Conhece os nossos pensamentos: “O coração do homem é depravado e impenetrável. Quem o pode conhecer? Eu, o Senhor, penetro nos corações e sondo os rins, retribuo a cada um conforme o seu caminho e conforme os pontos dos seus pensamentos” (Jr 17, 9).
 
Haverá também neste Juízo testemunhas infalíveis, isto é, as próprias consciências dos homens, segundo se lê em São Paulo: “A consciência deles servirá de testemunho no dia em que o Senhor julgar as coisas ocultas dos homens, enquanto pelos pensamentos se acusam ou se defendem” (Rm 2, 15-16).
 
108 — Segundo, devido ao poder do Juiz, porque Ele é em si mesmo todo poderoso. Lê-se: “Eis que o Senhor virá com fortaleza” (Is 11, 10).
 
É poderoso também sobre os outros, porque toda criatura estava com Ele. Lê-se:
O universo inteiro combaterá com ele contra os insensatos” (Sb 5, 2); “Ninguém há que possa livrar-se da Vossa mão” (Jo 10, 7); e ainda: “Se subo aos céus, Vós ali estais; se desço aos infernos, estais lá também” (Sl 138, 8).
 
109 — Terceiro, devido à justiça inflexível do Juiz. Agora é o tempo da misericórdia. Mas o tempo futuro é tempo só de justiça. Por isso, o tempo de agora é nosso; mas o tempo futuro será só de Deus.
 
Lê-se: “No tempo que eu determinar, farei justiça” (Sl. 134, 3). “O varão furioso de ciúmes não lhe perdoará no dia da vingança, não atenderá às suas súplicas, nem receberá como satisfação presentes, por maiores que sejam” (Pr 6, 34).
 
110 — Quarto, devido à ira do Juiz. Aparecerá aos justos doce e deleitável, porque, conforme diz Isaías: “Verão o rei na sua beleza” (Is 33, 17). Aos maus, porém, aparecerá tão irado e cruel, que eles dirão aos montes: “Cai sobre nós, e escondei-nos da ira do cordeiro” (Ap 6, 16).
 
Esta ira em Deus não significa uma comoção do espírito, mas significa o efeito da ira, a pena infligida aos pecados, isto é, a pena eterna. A propósito disso escreveu Orígenes: “Como serão estreitos os caminhos no juízo! No fim estará o Juiz irado”.
 
111 — Contra este temor devemos aplicar quatro remédios.
 
O primeiro remédio é a boa ação. Lê-se em São Paulo: “Queres não temer a autoridade? Faz o bem e receberás dela o louvor” (Rm 13, 3).
 
O segundo, é a confissão dos pecados cometidos e a penitência feita por eles. Na confissão deve haver três coisas: a dor interior, a vergonha da confissão dos pecados e o rigor da satisfação por eles. São essas três coisas que redimem a pena eterna.
 
O terceiro remédio é a esmola que torna tudo puro, segundo as palavras do Senhor: “Conquistai amigos com dinheiro da iniqüidade, para que, quando cairdes, eles vos recebam nas tendas eternas” (Lc 26, 9) 2.
 
O quarto remédio é a caridade, quer dizer, o amor de Deus e do próximo, pois, conforme a Escritura: “A caridade cobre uma multidão de pecados” (1 Pd 4, 8; Pr 10, 12)3.

  1. 1. Conforme São Tomás, o poder de julgamento compete só a Deus, de modo comum à Santíssima Trindade, por apropriação (isto é, atribuição de uma ação comum das Três Pessoas a uma só, por motivos razoáveis) ao Filho (cfr. S.T. III, 59, 1c). A Cristo, enquanto homem, o poder judicativo compete-lhe por comissão de Deus, enquanto Cristo é a cabeça do corpo da Igreja e tem os membros desse corpo sob a sua jurisdição (cfr. S.T. III, 59, 2c).
  2. 2. Conforme São Tomás, a esmola é um ato externo da virtude teologal da caridade, imperado pela virtude interior (efeito também da caridade) da misericórdia. Somente informada pela caridade a esmola realiza-se plenamente, isto é, por amor de Deus, prontamente, com prazer e adequada (cfr. S T. II. II, 32 c e ad 1). É obrigação para o cristão dar esmola para aos que estão em extrema necessidade; para os outros, é aconselhável (cfr. I, c. art. 5 c). Quer dada por obrigação, quer apenas por respeito ao conselho, a esmola manifesta a caridade que vai no coração do cristão. Mesmo que o cristão esteja dando a esmola como satisfação dos pecados, que é ato de justiça; ou como a oferta a Deus, que é ato de religião, ela não deixa de ser imperada pela caridade (cfr. I. c. art. 1 ad 2). Ainda em nossos dias, quando as obras de justiça social e de beneficência realizam aquilo que pertenceria à esmola, o amor de caridade faz com que o cristão execute aquelas obras com sentimento interior de misericórdia, e, que não deixe de dar esmola, quando se apresenta uma situação que a requer.
  3. 3. A caridade é uma virtude sobrenatural e somente a possuem aqueles que a receberam como um dom gratuito de Deus. não é apenas uma amizade efetiva ou compassiva ao próximo. Aos que assim a entendem, São Tomás responde: “Essa razão seria certa, se Deus e o próximo fossem objeto da caridade no mesmo nível. Mas isso não é verdadeiro. Deus é o principal objeto da caridade; o próximo é amado com caridade por causa de Deus” (II. II. 23, 5 ad 1). Deus deve ser mais amado que o próximo (aliás é doutrina evangélica), conforme o argumento de São Tomás: “Qualquer amizade dirige-se em primeiro lugar para aquilo em que se encontra principalmente o bem sobre o qual se fundamenta a comunicação. [...] A amizade de caridade fundamenta-se sobre a comunicação da felicidade, que consiste essencialmente em Deus, como no primeiro princípio do qual ela deriva para todos os que são capazes de alcançar a felicidade. Por isso, em primeiro lugar, e máxime, Deus deve ser amado com caridade; o próximo, porém, como aquele que conosco juntamente participa da felicidade” (II. II, 26, 2c).
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