Category: Santo Tomás de Aquino
Em seguida devemos tratar da causa do pecado por parte do homem. Pois, como um homem é causa do pecado de outrem, sugerindo-o, como o diabo, externamente, ele causa o pecado alheio, de maneira especial, quanto à sua origem. Por onde, devemos tratar do pecado original. E, neste ponto, três questões ocorrem à consideração. Primeira, da transmissão do pecado original. Segunda, da sua essência. Terceira, do seu sujeito.
Na primeira questão discutem-se cinco artigos:
(I, q. 114, a. 3; De Malo, q. 3, a. 5).
O quarto discute-se assim. — Parece que todos os pecados dos homens provém da sugestão do diabo.
1. — Pois, como diz Dionísio, a multidão dos demônios é-lhes, para si e para os outros, a causa de todos os males.
2. Demais. — Quem peca mortalmente faz-se escravo do diabo, conforme aquilo da Escritura (Jo 8): todo o que comete pecado é escravo do pecado. Mas, todo o que é vencido é também escravo daquele que o venceu. Logo, quem cometer o pecado é vencido pelo diabo.
3. Demais. — Gregório diz, que o pecado do diabo é irreparável, por ter caído sem sugestão de ninguém. Portanto, seria irremediável o pecado de quem pecasse por livre arbítrio, sem sugestão alheia, o que é patentemente falso. Logo, todos os pecados humanos são sugeridos pelo diabo.
Mas, em contrário: Nem todos os nossos maus pensamentos são provocados pelo diabo, mas às vezes surgem provocado pelo nosso arbítrio.
Solução. — Por certo, ocasional e indiretamente, o diabo é causa de todos os nossos pecados. Pois, induziu o primeiro homem a pecar; e esse pecado viciou a tal ponto a natureza humana, que todos somos inclinados a pecar. Do mesmo modo poderíamos considerar como causa da combustão da madeira quem a tivesse secado, fazendo com que se ela facilmente queimasse. Diretamente porém, não é causa de todos os pecados humanos, no sentido de nos persuadir a cada um deles. E isso o prova Orígenes, por haverem de ter os homens, mesmo que o diabo não existisse, o apetite da comida, do ato venéreo e semelhantes. E esse desejo poderia ser desordenado, se não se sujeitasse à razão; o que depende do livre arbítrio.
Donde a resposta à primeira objeção. — A multidão dos demônios é causa de todos os nossos males, relativamente à origem primeira, como se disse.
Resposta à segunda. — Torna-se escravo de outrem, não somente quem foi por esse dominado, mas ainda quem voluntariamente se lhe submeteu. E deste modo torna-se escravo do diabo quem peca de propósito deliberado.
Resposta à terceira. — O pecado do diabo foi irremediável, por ter pecado sem sugestão de ninguém; nem sentir qualquer inclinação a pecar causada por alguma sugestão precedente. Ora, tal se não pode dizer do pecado de nenhum homem.
(De Malo, q. 3 a. 3, ad 9).
O terceiro discute-se assim. — Parece que o diabo pode nos necessitar a pecar.
1. — Pois, o poder maior pode impor necessidade ao menor. Ora, a Escritura diz, do diabo (Jó 41): Não há poder sobre a terra que a se lhe possa comparar. Logo, pode necessitar o homem terreno a pecar.
2. Demais. — A nossa razão não pode mover-se senão pelos objetos externos propostos aos sentidos e representados à imaginação. Pois, todo o nosso conhecimento tem a sua origem nos sentidos e não podemos inteligir sem o fantasma, como diz Aristóteles. Ora, o diabo pode mover-nos a imaginação, como já se disse, e também os sentidos externos. Pois, no dizer de Agostinho, o mal, suscitado pelo diabo serpeia por todos os acessos sensíveis, corporifica-se em figuras, acomoda-se as cores, adere aos sons, infunde-se nos sabores. Logo, pode inclinar-nos necessariamente a razão a pecar.
3. Demais. — Segundo Agostinho, nenhum pecado há no desejo da carne contra o espírito. Ora, o diabo pode causar a concupiscência da carne, bem como as demais paixões, do modo por que já foi dito. Logo, pode induzir, como necessidade, a pecar.
Mas, em contrário, diz a Escritura (1 Pd): O diabo, vosso adversário, anda ao derredor de vós, como um leão que ruge, buscando a quem possa tragar. Ora, seria inútil essa advertência, se sucumbíssemos necessariamente à tentação diabólica. Logo, o diabo não pode necessitar o homem ao pecado.
Solução. — O diabo, por virtude própria e se não for refreado por Deus, pode nos induzir necessariamente a praticar atos genericamente pecaminosos; mas não pode nos impor a necessidade de pecar. E isso se prova por não podermos resistir ao motivo de pecar senão pela razão. E do uso desta podemos ficar totalmente privados pela moção imaginativa e do apetite sensitivo, como se dá com os processos. Mas, então, desde que estamos privados da razão, não se nos imputa por pecado nenhum ato que pratiquemos. Se porém, não ficarmos totalmente privados da razão, pela parte dela que conservamos livre podemos resistir ao pecado, como já dissemos. Por onde é manifesto, que o diabo de nenhum modo pode impor ao homem a necessidade de pecar.
Donde a resposta à primeira objeção. — Nem todo poder superior ao homem pode mover-lhe a vontade mas, só o de Deus, como já demonstramos.
Resposta à segunda. — O objeto apreendido pelo sentido ou pela imaginação não move necessariamente a vontade, se conservamos o uso da razão, de que nem sempre nos priva a referida apreensão.
Resposta à terceira. — A concupiscência da carne, contrária ao espírito, não é pecado, quando a razão lhe atualmente resiste; mas ao contrário, é ocasião de exercitarmos a virtude. Ora, não está no poder do diabo privar a razão do seu poder de resistir. Logo, não pode impor a necessidade do pecado.
(De Malo, q. 3. a. 4).
O segundo discute-se assim. — Parece que o diabo não pode induzir ao pecado, instigando interiormente.
1. — Pois, os movimentos interiores da alma são atos vitais. Ora, todo ato vital procede de um princípio intrínseco, mesmo o da alma vegetativa, o ínfimo desses atos. Logo, o diabo não pode, por moção interna, instigar o homem ao mal.
2. Demais. — Todos os movimentos interiores nascem, na ordem da natureza, dos sentidos externos. Ora, só Deus pode obrar fora dessa ordem, como já se estabeleceu na Primeira Parte. Logo, o diabo em nada pode influir nos movimentos interiores do homem senão pelo que deles se manifesta nos sentidos externos.
3. Demais. — Os atos internos da alma são inteligir e imaginar. Ora, o diabo não pode influir em nada sobre esses dois atos. Pois, como já se demonstrou na Primeira Parte, ele não pode impressionar o intelecto humano. Porque as formas imaginárias sendo mais espirituais, são de mais elevada dignidade que as existentes na matéria sensível; e contudo o diabo não pode impressionar estas últimas, como ficou provado na Primeira Parte. Logo, não pode, pelos atos interiores do homem, induzi-lo ao pecado.
Mas, em contrário, se assim fosse, nunca poderia tentar o homem, senão aparecendo-lhe visivelmente. O que é claramente falso.
Solução. — A parte interior da alma é intelectiva e sensitiva. A primeira compreende a inteligência e a vontade. Quanto a esta, já dissemos como se comporta o diabo em relação a ela. Por outro lado o intelecto, por natureza, é movido pelo que o ilumina e o leva, assim, ao conhecimento da verdade.Ora, em relação ao homem, não tem tal intenção o demônio, que quer, antes, entenebrecer-lhe a razão, para que consinta no pecado. E esse entenebrecimento provém da fantasia e do apetite sensitivo. Por isso toda a ação interior do diabo se dirige a mover a fantasia e o apetite sensitivo podendo assim induzir ao pecado. Pois pode agir de modo a apresentar à imaginação certas formas imaginárias; e também tomar o apetite sensitivo predisposto à paixão.
Pois, como já se disse, a natureza corpórea obedece naturalmente à espiritual, no concernente ao movimento local. Por isso, o diabo pode causar tudo quanto pode provir do movimento local dos corpos inferiores, se não for reprimido pelo poder divino. Ora, pelo movimento local podem certas formas ser representadas à imaginação. Pois, como diz o Filósofo, quando dormimos, desce a maior parte do sangue para o princípio sensitivo e, simultaneamente com ele, movimentos, — ou impressões remanescentes da moção dos sensíveis, conservadas nas espécies sensíveis, — que movem o princípio apreensivo. De modo que elas surgem como se então o princípio sensitivo fosse imutado pelas próprias coisas exteriores. Daí o poder, esse movimento local dos espíritos ou dos humores ser provocado pelos demônios quer durmamos, quer estejamos acordados, donde lhe resultam certas imaginações.
Semelhantemente, o apetite sensitivo fica predisposto a certas paixões por um determinado movimento do coração e dos espíritos; e para isso também o diabo pode cooperar. E sendo provocadas certas paixões do apetite sensitivo, percebemos mais acentuadamente o movimento ou intenção sensível, reduzido, do modo sobredito, ao princípio apreensivo. Pois, como o Filósofo diz no mesmo livro, os amantes são levados, por qualquer fraca imagem, à apreensão da coisa amada. E também sucede que, provocada a paixão, julguemos dever buscar o objeto proposto à imaginação. Porque quem é presa da paixão parece-lhe bem aquilo a que ela o inclina. E deste modo o diabo induz interiormente ao pecado.
Donde a resposta à primeira objeção. — Embora as operações vitais sempre procedam de um princípio intrínseco, um agente externo pode vir-lhes em ajuda. Assim como o calor externo contribui para as operações da alma vegetal, tornando mais fácil a digestão de alimento.
Resposta à segunda. — A referida aparição das formas imagináveis não é absolutamente, contra a ordem da natureza; nem resulta só do império da nossa vontade, mas do movimento local, como já se disse.
Donde é patente a resposta à terceira objeção. — Porque as formas em questão primordialmente, as recebem os sentidos.
(Supra, q. 75, a. 3; De Malo, q. 3, a. 3).
O primeiro discute-se assim. — Parece que o diabo é causa direta de o homem pecar.
1. — Pois, o pecado consiste diretamente num afeto. Ora, Agostinho diz que o diabo inspira afetos malignos aos de sua sociedade. E Beda: o diabo arrasta a alma para o afeto maligno. E Isidoro: o diabo enche o coração dos homens de concupiscências ocultas. Logo, é causa direta do pecado.
2. Demais. — Jerônimo diz, que assim como Deus é o autor perfeito do bem, assim o é o demônio, do mal. Ora, Deus é a causa direta dos nossos bens. Logo, o diabo é diretamente a causa dos nossos pecados.
3. Demais. — O Filósofo diz, há um princípio extrínseco necessário do conselho humano. Ora, este tem por objeto, não só o bem, mas ainda o mal. Logo, como Deus move para o conselho bom, e por aí é diretamente a causa do bem; assim o diabo, para o conselho mau, sendo então causa direta do pecado.
Mas, em contrário, Agostinho prova que nenhuma outra causa leva o coração humano a fazer-se escravo da sensualidade, senão a vontade própria. Ora, só o pecado torna o homem escravo da sensualidade. Logo, a causa do pecado não pode ser o diabo, mas só a vontade própria.
Solução. — O pecado é um ato. Por isso a causa direta do pecado poderá sê-la também de sermos a causa direta de um ato. E isto não se pode dar senão pelo princípio próprio desse ato que leva a agir. Ora, o princípio próprio do ato pecaminoso é a vontade, pois todo pecado é voluntário. Logo, só pode ser causa direta do pecado o que pode levar a vontade a agir.
Mas, como já se disse, a vontade é susceptível de dupla moção. Uma, provocada pelo objeto; assim, dizemos que o objeto desejado e apreendido move o apetite. Outra, pelo interiormente inclinante a vontade a querer, e isso só pode ser ou ela mesma ou Deus, como já demonstramos. Ora, Deus não pode ser causa do pecado, como também já demonstramos. Resta, portanto, por este lado, só a vontade do homem como causa direta do seu pecado.
No concernente ao objeto porém, podemos admitir mova ele a vontade de três modos. Primeiro, pela proposição mesma do objeto; assim, dizemos que a comida excita o desejo do homem a comer. Segundo, por meio do oferente ou proponente. Terceiro, persuadindo o proponente, que o objeto realiza a idéia de bem; pois, esse, de certo modo, propõe à vontade o seu objeto próprio, que é o bem racional, verdadeiro ou aparente. Por onde, do primeiro modo, as coisas sensíveis, manifestadas exteriormente, movem a vontade do homem a pecar. Do segundo e do terceiro modos, o diabo, ou mesmo qualquer pessoa pode incitar ao pecado, quer oferecendo algum objeto desejável ao sentido, quer persuadindo a razão. Mas nenhum destes três modos pode constituir causa direta do pecado, porque a vontade não se move necessariamente por nenhum objeto, salvo o fim último, como já se disse. Logo, não é causa suficiente do pecado nem o objeto exteriormente oferecido, nem aquele que o propõe, nem o que persuade. Donde se colhe que o diabo não é causa direta e suficiente do pecado, mas só a modo de quem persuade ou propõe o objeto apetecido.
Donde a resposta à primeira objeção. — Todos os autores citados, e ainda outros que pensam semelhantemente, referem-se ao diabo quando, sugerindo ou propondo certos objetos desejáveis, desperta o afeto pelo pecado.
Resposta à segunda. — A comparação aduzida se funda em que o diabo é de certo modo causa dos nossos pecados, como Deus é, de certo outro, causa de nossos bens. Não se refere porém ao modo de causar, porque Deus causa os bens, movendo interiormente a vontade, o que não pode fazer o diabo.
Resposta à terceira. — Deus é o princípio universal de todo movimento humano interior. Mas, a vontade humana se decide pelo mau conselho, ou diretamente e por si mesma, ou pelo diabo, quando este persuade ou propõe um objeto desejável.
Em seguida devemos tratar da causa do pecado por parte do diabo. E sobre esta questão discutem-se quatro artigos:
(In Matth., cap. XIII: In Ioan., cap. XII, lect. VII).
O quarto discute-se assim. — Parece que a obsecação e o endurecimento sempre se ordenam à salvação do obsecado e endurecido.
1. — Pois, diz Agostinho, que Deus, sendo o sumo bem, de nenhum modo permitiria o mal se não pudesse dele tirar o bem. Portanto e com maioria de razão, ordena para o bem o mal de que é a causa. Ora, Deus é causa da obsecação e do endurecimento, como já se disse. Logo, esta e aquela se ordenam à salvação dos obsecados e endurecidos.
2. Demais. — A Escritura diz: Deus não se alegra na perdição dos ímpios. Ora, haveria de deleitar-se na perdição deles, se não lhes fizesse reverter a obsecação em bem próprio deles. Do mesmo modo um médico haveria de comprazer-se com o sofrimento do enfermo, se não lhe ordenasse à saúde o remédio amargo que lhe propõe. Logo, Deus faz redundar a obsecação no bem dos obsecados.
3. Demais. — Deus não faz acepção de pessoas, como diz a Escritura (At 10). Ora, a obsecação de certos ele lhes ordena para a salvação. Tal o caso de certos judeus obsecados em não crer em Cristo, para, nele não crendo, matarem-no; mas depois, compungidos, converteram-se, como se lê na Escritura (At 2), segundo está claro em Agostinho. Logo, a obsecação de todos Deus a converte na salvação deles.
Mas, em contrário. — Não se deve praticar o mal para dele resultar o bem, como diz a Escritura (Rm 3). Ora, a obsecação é um mal. Logo, Deus não obseca o obsecado em benefício deste.
Solução. — A obsecação é preâmbulo para o pecado. Ora, este se ordena para dois termos: a danação, pelo que é em si mesmo; e a salvação, pela misericórdia e providência de Deus, permitindo certos caírem em pecado para, reconhecendo-o, humilharem-se e converterem-se, como diz Agostinho. Por onde, a obsecação por natureza se ordena à danação do obsecado, sendo, por isso, considerada também efeito da reprovação. Mas às vezes a divina misericórdia a ordena como remédio à salvação dos obsecados. Esta misericórdia porém não é dada a todos eles, mas só aos predestinados, a quem todas as coisas lhes contribuem para seu bem, no dizer da Escritura (Rm 8). Logo, a uns a obsecação os leva a salvamento; mas a outros, à danação, como diz Agostinho.
Donde a resposta à primeira objeção. — Todos os males que Deus faz ou permite se façam ordenam-se para algum bem. Nem sempre porém, para o bem do sujeito do mal, senão que às vezes para o de outrem, ou mesmo, de todo o universo. Assim ordenou a culpa dos tiranos ao bem dos mártires, como ordena a pena dos condenados à glória da sua justiça.
Resposta à segunda. — Deus não se compraz com a perdição dos homens em si mesma considerada; mas, em razão da sua justiça, ou por causa do bem daí proveniente.
Resposta à terceira. — Por misericórdia Deus ordena a obsecação de muitos à salvação deles; é porém a sua justiça o que ordena a obsecação de outros para a danação. — Mas a misericórdia com que Deus trata a uns, e não a todos, não implica haja nele acepções, como na Primeira Parte já se demonstrou.
Resposta à quarta. — Não devemos praticar o mal da culpa para dele resultar o bem; mas, em vista do bem, devem-se aplicar os males da pena.
(I Sent., dist. XL, q. 4, a. 2; III Cont. Gent., cap. CLXII; De Verit., q. 24, a. 10; In Matth., cap., XIII; In Ioan., cap. XII, lect. VII; Ad Rom., cap. IX, lect. III; II Cor., cap. IV, lect. II).
O terceiro discute-se assim. — Parece não ser de Deus a causa da obsecação e do endurecimento.
1. — Pois, como diz Agostinho, Deus não é a causa de o homem ser pior. Ora, a obsecação e o endurecimento o tornam tal. Logo, Deus não é causa daquela e deste.
2. Demais. — Fulgêncio diz, que Deus não se vinga daquilo de que é o autor. Ora, Deus se vinga do coração endurecido, conforme a Escritura (Ecle 3): O coração duro será oprimido de males no fim da vida. Logo, Deus não é a causa do endurecimento.
3. Demais. — Um mesmo efeito não pode ser atribuído a causas contrárias. Ora, tem-se como causa da obsecação a malícia do homem, conforme aquilo da Escritura (Sb 2): porque à sua malícia os cegou; e também o diabo, segundo outro lugar (2 Cor 4): o Deus deste século cegou os entendimentos dos infiéis. Ora, todas essas são causas contrárias a Deus. Logo, Deus não é causa da obsecação nem do endurecimento.
Mas, em contrário, diz a Escritura (Is 6): Obseca o coração deste povo e ensurdece-lhe os ouvidos; e ainda (Rm 9): Logo ele tem misericórdia de quem quer, e ao que quer endurece.
Solução. — A obsecação e o endurecimento implicam dois elementos. — Um é o movimento da alma humana, aderente ao mal e apartada da luz divina. E por aí Deus não é a causa da obsecação nem do endurecimento, assim como não é a causa do pecado. — Outro é a subtração da graça, donde resulta que a mente não é divinamente iluminada para apreciar com retidão, e o coração do homem não se abranda para viver bem. E por aí Deus é causa da obsecação e do endurecimento. Devemos porém considerar, que Deus é a causa universal da iluminação das almas, conforme aquilo da Escritura (Jo 1): Era a luz verdadeira, que ilumina a todo o homem que vem a este mundo. Assim como o sol é a causa universal da iluminação dos corpos, mas diferentemente. Pois, ao passo que o sol atua iluminando por necessidade de natureza, Deus age voluntariamente, segundo a ordem da sua sabedoria. Mas embora o sol ilumine por natureza todos os corpos, encontrando obstáculo no corpo, deixá-lo-á obscuro, como o vemos numa casa cujas janelas estejam fechadas. Contudo, dessa obscuridade o sol não é de nenhum modo causa, pois não age a seu bel prazer, de modo a não projetar a luz no interior; mas, só é causa dela quem fechou as janelas. Deus porém por juízo próprio, não envia o lume da graça aqueles em quem encontra obstáculo. Por onde, causa da subtração dela é, não só quem lhe opõe obstáculo, mas também Deus que, a seu juízo, não lhe a concede. E deste modo Deus é causa da obsecação, do embotamento dos ouvidos e do endurecimento do coração. Pois, essas coisas se distinguem pelos efeitos da graça que, com o dom da sabedoria aperfeiçoa o intelecto e abranda o afeto com o fogo da caridade. Ora, como para o conhecimento do intelecto contribuem principalmente os dois sentidos, da vista e do ouvido, dos quais aquele serve à invenção e este à instrução, por isso à vista se opõe a obcecação; e à audição, o embotamento dos ouvidos; ao afeto, o endurecimento.
Donde a resposta à primeira objeção. — Sendo a obsecação e o endurecimento, no concernente à subtração da graça, penas determinadas não tornam pior o homem, que nelas incorre, bem como em outras, por ter se tornado pior pela culpa.
Resposta à segunda. — A objeção colhe quanto à obsecação, enquanto culpa.
Resposta à terceira. — A malícia é causa merecedora da obsecação, como a culpa é causa da pena. E deste modo também se diz que o diabo obseca por induzir à culpa.
(II Sent., dist. XXXVII, q. 2, a. 2; De Malo. q. 3, a. 2).
O segundo discute-se assim. — Parece que Deus não é causa do ato pecaminoso.
1. — Pois, como diz Agostinho o ato pecaminoso não é uma realidade. Ora, Toda realidade é causada por Deus. Logo, o ato pecaminoso não o causa Deus.
2. Demais. — Por ser causa do ato pecaminoso dizemos ser o homem causa do pecado; pois ninguém pratica o mal intencionalmente, como diz Dionísio. Ora, Deus não é causa do pecado, segundo já se disse. Logo, não é causa do ato pecaminoso.
3. Demais. — Certos atos são especificamente maus e pecaminosos, como do sobredito se colhe. Ora, a causa de um efeito o é também do que a este convém especificamente. Logo, se Deus fosse causa do ato pecaminoso, sê-lo-ia também do pecado. Ora, tal não é verdade, como já se demonstrou. Logo, Deus não é causa do ato pecaminoso.
Mas, em contrário. — O ato do pecado é do livre arbítrio. Ora, a vontade de Deus é causa de todos os movimentos, como diz Agostinho. Logo, a vontade de Deus é causa do ato pecaminoso.
Solução. — Como realidade e como ato, que é, o ato pecaminoso procede de Deus. — Pois, toda realidade, seja de que modo for, há-de necessàriamente derivar do ser primeiro, como diz claramente Dionísio. — Ora, toda ação só é causada por um ser atual, porque nada age senão como atual. Ora, todo ser atual depende do ato primeiro, que é Deus, como de causa essencialmente atual. Donde se conclui o ser Deus a causa de toda ação como tal.
Mas, pecado significa deficiência no ser e no ato; e esta procede de uma causa criada, que é o livre arbítrio, desviado da ordem do agente primeiro, Deus. Por onde tal deficiência não se atribui a Deus como a causa, mas ao livre arbítrio. Assim como o defeito de coxear reduz-se à tíbia curva, como à causa, e não à virtude motora, que, contudo é causa do movimento no coxear. E a esta luz, Deus é causa do ato do pecado, não porém do pecado, por não ser causa da deficiência do ato.
Donde a resposta à primeira objeção. — No lugar aduzido Agostinho entende pela realidade a realidade pura é simples, i. é, a substância. Ora, em tal sentido o ato pecaminoso não é uma realidade.
Resposta à segunda. — Do homem, como causa, depende não só o seu ato, mas também, sua própria deficiência, por se não sujeitar a quem devia sujeitar-se, embora não tenha principalmente essa intenção. Logo, o homem é causa do pecado. Deus porém é causa do ato, mas de modo a não ser, de maneira nenhuma, causa da deficiência concomitante ao ato. Logo, não é causa do pecado.
Resposta à terceira. — Como dissemos, o ato e o hábito não se especificam pela privação mesma, na qual consiste a essência do mal; mas por algum objeto conexo com essa privação. E assim, a deficiência mesma, considerada não proveniente de Deus, pertence à espécie do ato conseqüentemente, e não como diferença específica.
(I, q. 48, a. 6; q. 49, a. 2; IIª IIae, q, a, 2, ad 2; II Sent., dist. XXXIV, a. 3; dist. XXXVII, q. 2, a. 1; III Cont. Gent., cap. CLXII; De Malo, q. 3, a. 1; Ad Rom., cap. 1, lect. VII).
O primeiro discute-se assim. — Parece ser Deus a causa do pecado.
1. — Pois, diz o Apóstolo (Rm 1): entregou-os Deus a um sentimento depravado, para que fizessem coisas que não convêm. E a Glosa a esse lugar: Deus obra nos corações dos homens, inclinando-lhes a vontade para o que quer, seja para o bem, seja para o mal. Ora, fazer o que não convém e inclinar a vontade para o mal é pecado. Logo, Deus é causa de pecado do homem.
2. Demais. — A Escritura diz (Sb 14): as criaturas de Deus se transformaram em objeto de abominação, e em motivo de tentação para as almas dos homens. Ora, costuma-se chamar à tentação provocação ao pecado. E como as criaturas foram feitas por Deus, como se demonstrou na Primeira Parte, parece ser Deus causa do pecado, provocando o homem a pecar.
3. Demais. — Toda causa da causa o é também do efeito. Ora, Deus é a causa do livre arbítrio, causa do pecado. Logo, é também a causa deste último.
4. Demais. — Todo mal se opõe ao bem. Ora, não repugna à bondade divina seja Deus a causa do mal da pena. Pois, deste mal diz a Escritura (Is 45), que Deus é quem cria o mal; e ainda pergunta (Am 3): Se acontecerá algum mal na cidade, que Deus não fizesse. Logo, também à bondade divina não repugna seja Deus causa da culpa.
Mas, em contrário. — A Escritura diz (Sb 11): não aborreces nada de quanto fizeste. Ora, Deus odeia o pecado segundo a mesma Escritura. E Deus igualmente aborrece ao ímpio e à sua impiedade. Logo, Deus não é causa do pecado.
Solução. — De dois modos o homem é causa do pecado, seu ou de outrem. Diretamente, inclinando a pecar a sua vontade ou a de outrem. Indiretamente, não impedindo outros de pecarem. Por isso na Escritura se diz ao Profeta (Ez 3): Se não disseres ao ímpio; Morrerás na tua iniqüidade, eu requererei da tua mão o seu sangue.
Deus, porém não pode ser diretamente causa do pecado, nem seu nem de outrem. Pois todo pecado implica afastamento da ordem existente em Deus como no fim. Ora, Deus inclina todas as coisas e fá-las convergir para si, como para o último fim, no dizer de Dionísio. Portanto, é impossível seja, para si ou para outrem, causa de afastamento da ordem, dele próprio dependente. Logo, não pode ser diretamente causa do pecado.
Mas e do mesmo modo, nem indiretamente. Pois, pode não conceder a certos o auxílio para evitarem o pecado, que não cometeriam se o concedesse. Mas tudo isso o faz segundo a ordem da sua sabedoria e justiça, pois, ele próprio é justiça e sabedoria. Por onde, não se lhe pode imputar a causalidade do pecado de outrem; assim como não atribuímos a um piloto a ser causa da submersão do navio, por não o ter dirigido, salvo se lhe abandonou a direção, podendo e devendo dirigi-lo.
Portanto é claro, que Deus não é de nenhum modo causa do pecado.
Donde a resposta à primeira objeção. — O próprio texto do Apóstolo solve a objeção. Porque, se Deus abandona certos ao senso réprobo deles, é por já o terem eles, esse tal senso, para fazer o que não devem. Ora, dizemos que Deus assim os abandona, pelos não impedir de seguirem o seu senso réprobo, como dizemos que expomos os que não defendemos. E o sentido da expressão de Agostinho, donde foi tirada a Glosa — Deus inclina as vontades dos homens para o bem e para o mal — é que ele inclina a vontade diretamente para o bem;e para o mal, enquanto não o impede, como já se disse. Contudo isto não se dá em razão do pecado precedente.
Resposta à segunda. — Na frase — As criaturas de Deus transformaram-se em objeto de abominação, e em motivo de tentação para as almas dos homens — a preposição em não é usada causal, mas consecutivamente. Pois Deus não fez as criaturas para o mal dos homens, mas, pela insipiência deles é que tal se deu. E por isso se acrescenta: e em laço para os pés dos insensatos, isto é, dos que insipientemente usam das criaturas para um fim diferente daquele para que foram feitas.
Resposta à terceira. — O efeito procedente da causa média, enquanto sujeita à influência da causa primeira, também desta depende. Mas se proceder da causa média, enquanto esta escapa à ordem da causa primeira, não depende da última. Assim, o ato de um ministro, contra a ordem do chefe, a este não se lhe imputa, como à causa. E semelhantemente, o pecado que livremente cometemos contra o preceito de Deus não se atribui a Deus como à causa.
Resposta à quarta. — A pena se opõe ao bem do punido, privando-o assim de algum bem. Ao passo que a culpa se opõe ao bem da ordem, que é Deus, e portanto vai contra diretamente à bondade divina. E por isso culpa e pena não têm o mesmo fundamento.