Skip to content

Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Art. 2 — Se a mácula permanece na alma depois do ato do pecado.

(Infra, q. 87, a. a. 6).
 
O segundo discute-se assim. — Parece que a mácula não permanece na alma depois do ato do pecado.
 
1. — Pois, nada permanece na alma depois do ato, salvo o hábito ou a disposição. Ora, a mácula não é hábito nem disposição, como já se demonstrou (a. 1, arg. 3). Logo, não permanece na alma depois do ato do pecado.
 
2. Demais. — A mácula está para o pecado como a sombra, para o corpo, conforme já se disse (a. 1, ad 3). Ora, desaparecido o corpo, não permanece a sombra. Logo, passado o ato do pecado, não permanece a mácula.
 
2. Demais. — Todo efeito depende da sua causa. Ora, a causa da mácula é o ato do pecado. Logo, removido este, não permanece a mácula na alma.
 
Mas, em contrário, diz a Escritura (Js 22, 17): Acaso parece-vos pouco ter pecado em Belfegor, e que a mácula deste crime ainda até hoje não esteja apagada em vós?
 
Solução. — A mácula do pecado subsiste na alma, mesmo depois de cessado o ato. E a razão é que a mácula, como já dissemos (a. 1), implica a falta de lustre, pela privação da luz da razão ou da lei divina. Portanto, enquanto o homem ficar fora dessa luz, nele subsiste a mácula do pecado; mas, quando voltar à luz da razão divina, o que se dá pela graça, então cessará a mácula. Embora porém cesse o ato do pecado, pelo qual o homem se afastou da luz da razão ou da lei divina, nem por isso volta imediatamente ao estado anterior; mas, para tal, é necessário um movimento da vontade contrário ao primeiro movimento. Assim como quem se distanciar de outrem, por um movimento, deste não fica próximo, imediatamente com o cessar do movimento, mas é preciso que se aproxime, voltando, por um movimento contrário.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Depois do ato do pecado, nada permanece de positivo na alma, senão a disposição ou o hábito. Permanece contudo algo de privativo, a saber, a privação da união com a luz divina.
 
Resposta à segunda. — Desaparecido o obstáculo corpóreo, o corpo diáfano permanece na mesma proximidade e relação anterior com o corpo que ilumina, e portanto imediatamente desaparece a sombra. Ao passo que, removido o ato do pecado, não permanece a alma na mesma relação com Deus. Portanto, a comparação não colhe.
 
Resposta à terceira. — O ato do pecado distancia de Deus; e desse distanciamento resulta a falta de lustre, assim como o movimento é provocado pela distância local. Por onde, assim como, cessando, o movimento local, não fica eliminada a distância local; assim também a mácula não desaparece por haver cessado o ato pecaminoso.

Art. 1 — Se o pecado causa mácula na alma.

(Infra, q. 89, a. I; IV Sent., dist. XVIII, q. 1, a. 2, qª 1).
 
O primeiro discute-se assim.  — Parece que o pecado não causa mácula nenhuma na alma.
 
1. — Pois, a natureza superior não pode ser contaminada pelo contato da inferior; por isso, o raio solar não se contamina pelo contato com os corpos fétidos, como diz Agostinho. Ora, a alma humana é de natureza muito superior às coisas mutáveis, que busca, pecando. Logo, pelo pecado, não contrai, delas, mácula.
 
2. Demais. — O pecado está principal­mente na vontade, como já se disse (q. 74, a. 1, 2). Ora, a von­tade está na razão, como diz Aristóteles; e a razão ou intelecto não se macula por pensar em qualquer objeto, mas ao contrário, se aperfei­çoa. Logo, também a vontade não se macula pelo pecado.
 
3. Demais. — Se o pecado causa mácula, esta ou é algo de positivo ou é privação pura. Se for algo de positivo, não pode ser senão uma disposição ou hábito, pois nada mais pode ser causado pelo ato. Ora, não é disposição nem hábito; pois pode se dar que, removida a dis­posição ou o hábito, ainda permaneça a mácula, como o patenteia o caso de quem pecou mortal­mente por prodigalidade e depois, pecando mor­talmente, adquiriu o hábito do vício oposto. Logo, a mácula não introduz nada de positivo na alma. E nem por outro lado, é privação pura; porque todo pecado resulta do afasta­mento e da privação da graça; donde se se­guiria que todos os pecados haviam de constituir uma só mácula. Logo, a mácula não é efeito do pecado.
 
Mas, em contrário, diz a Escritura (Sr 47, 22): Puseste mácula na tua glória. E (Ef 5, 27): Para a apresentar a si mesmo a Igreja gloriosa, sem mácula nem ruqa. E ambos os lugares se referem à mácula do pe­cado. Logo, esta é o efeito do pecado.
 
Solução. — A mácula se atribui, pro­priamente, ao corpo límpido que perde o lustre pelo contato com outro corpo, como se dá com a roupa, o ouro, a prata e corpos semelhantes. E é por semelhança que havemos de atribuir a mácula aos seres espirituais. Ora, a alma hu­mana tem um duplo lustre: o proveniente da refulgência da luz natural da razão, pela qual se dirige nos seus atos; e o da refulgência da luz divina, i. é, da sabedoria e da graça, que também aperfeiçoa o homem para agir acertada e convenientemente. Ora, há um como tato da alma quando ela adere a um objeto, pelo amor. Por onde, quando peca, adere a um objeto, contra a luz da razão e da lei divina, como do sobredito resulta (q. 71, a. 6). Donde o chamar-se me­taforicamente mácula da alma ao detrimento que lhe sofre o lustre, proveniente desse con­tacto.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — A alma não se contamina com as coisas infe­riores, por virtude delas mesmas, como se nela influíssem. Mas antes e inversamente, a alma é a que se contamina pela sua ação, aderindo a essas coisas, desordenadamente, contra a luz da razão e da lei divina.
 
Resposta à segunda. — A ação do intelecto se aperfeiçoa, por estarem nele, ao seu modo, objetos inteligíveis. Por isso, longe de se contaminar com eles, o intelecto por eles se aperfeiçoa. O ato da vontade porém consiste no movimento para os objetos, de modo que o amor une a alma à coisa amada. E por isso, a alma se macula, quando adere desordenada­mente, conforme aquilo da Escritura (Os 9, 10): e se tor­naram abomináveis como as coisas que amaram.
 
Resposta à terceira. — A mácula não é nada de positivamente existente na alma, nem exprime só uma privação; mas, significa a privação do lustre da alma relativamente à sua causa, que é o pecado. Por isso pecados diversos produzem máculas diversas. E o mesmo se dá com a sombra, que é privação pela interposição de algum corpo; e conforme a diversidade dos corpos interpostos, assim as sombras se diversificam.

Questão 86: Da mácula do pecado.

Em seguida devemos tratar da mácula do pecado. E, nesta questão, discutem-se dois artigos:

Art. 6 — Se a morte e as demais misérias do corpo são naturais ao homem.

(IIª-IIªª, q. 164, a. 1, ad 1; II Sent., dist. XXX, q. 1, a. 1; III. Dist. XVI q. 1. a. 1; IV, dist. XXXVI, a. 1, ad 2; IV Cont. Gent., cap. LII; De Malo, q. 5. a. 5; Ad Rom., cap. V, lect III; Ad Hebr., cap. IX, lect. V).
 
O sexto discute-se assim. — Parece que a morte e as demais misérias do corpo são natu­rais ao homem.
 
1. — Pois, o corruptível difere genericamente do incorruptível, como diz Aristóteles. Ora, o homem é do mesmo gênero que os brutos, que são naturalmente corruptíveis. Logo, também ele é naturalmente corruptível.
 
2. Demais. — Tudo o que é composto de princípios contrários é corruptível, quase tendo em si mesmo a causa da corrupção própria. Ora, tal é o corpo humano. Logo ele é naturalmente corruptível.
 
3. Demais. — O quente naturalmente con­some o úmido. Ora, a vida humana se conserva pelo calor e pela umidade. E como as operações vitais se exercem pelo ato do calor natural, como diz Aristóteles, resulta que a morte e as demais misérias do corpo são naturais ao homem.
 
Mas, em contrário. — 1. Tudo o natu­ral ao homem foi Deus quem o fez. Ora, Deus não fez a morte, como diz a Escritura (Sb 1, 13). Logo, ela não é natural ao homem.
 
2. Demais.  — O conforme à natureza não pode ser considerado pena nem mal, a todo ser é conveniente o que lhe é natural. Ora, a morte e as demais misérias do corpo são a pena do pecado original, como já se disse (a. 5). Logo, não são naturais ao homem.
 
3. Demais. — A matéria se proporciona à forma, e todas as coisas, ao seu fim. Ora, o fim do homem é a beatitude perpétua, como já se disse (q. 2, 7; q. 5, a. 3-4). E também a forma do corpo humano é a alma racional, que é incorruptível, como já se demonstrou na Primeira Parte (q. 75, 6). Logo, o corpo humano é naturalmente incorruptível.
 
Solução. — De dois modos podemos con­siderar um ser corruptível: relativamente à na­tureza universal, e à particular. — A natureza particular é a virtude ativa e conservativa pró­pria do ser. E sendo assim, toda corrupção e deficiência é contra a natureza, como diz Aris­tóteles; pois, a virtude referida busca a exis­tência e a conservação do ser a que pertence.
 
Por outro lado, a natureza universal é a virtude ativa existente num princípio universal da natureza, p. ex., em algum dos corpos celes­tes ou em alguma substância superior, o que leva certos a darem a Deus a denominação de natureza naturante. E essa virtude busca o bem e a conservação do universo, exigindo esta últi­ma alternem-se a geração e a corrupção das coisas. E sendo assim, as corrupções e as defi­ciências dos seres são naturais; não certo pela inclinação da forma, princípio da existência e da perfeição; mas pela da matéria, atribuída pro­porcionalmente a uma determinada forma, con­forme a distribuição do agente universal. E em­bora toda forma tenda a perdurar no ser, o quanto possível perpetuamente, contudo ne­nhuma forma de ser corruptível pode conseguir a perpetuidade de existência. Exceto a alma racional, por não estar, como as outras formas, sujeita de modo nenhum à matéria corpórea; antes, é dotada da sua atividade imaterial pró­pria, como já demonstramos na Primeira Parte (q. 75, a. 2). Por onde, quanto à sua forma, é natural ao ho­mem, mais que aos outros seres corruptíveis, a incorrupção. Mas como essa forma está ligada à matéria, composta de princípios contrários, da inclinação da matéria resulta a corruptibili­dade do todo. E a esta luz, o homem é natural­mente corruptível, segundo a natureza da ma­téria, abandonada a si mesma, e não segundo a natureza da forma.
 
Ora, as três primeiras objeções se fundam na matéria; e as outras três, na forma. Por onde, para solvê-las, devemos considerar que a forma do homem, a alma racional, é, pela sua incorruptibilidade, proporcionada ao seu fim, que é a felicidade perpétua. O corpo humano porém, corruptível, considerado na sua natureza, é de certo modo proporcionado à sua forma, e de certo, outro, não. Pois, podemos levar em conta, em qualquer matéria, uma dupla condição: escolhida pelo agente, e a não escolhida, por se fundar na condição natural da matéria. Assim, o ferreiro, para fazer uma faca, escolhe matéria dura e ductil, capaz de adelgaçar-se e tornar-se apta à incisão. E nessascondições o ferro é matéria proporcionada à faca. Mas, pela sua natural disposição, o ferro é frágil e contrai a ferrugem; e essa disposição não a escolhe o artífice, antes a repudiaria, se pudesse. Por onde, tal disposição da matéria não é propor­cionada à intenção do artífice nem ao fim da arte. Semelhantemente, o corpo humano é pela sua compleição equilibrada, a matéria escolhida pela natureza para órgão convenientíssimo ao tato e às outras potências sensitivas e motoras. Mas é corruptível, por causa da condição da matéria. E essa corruptibilidade a natureza não a escolheu; antes, se pudesse, escolheria ma­téria incorruptível. Deus porém, a quem está sujeita toda a natureza, supriu, na instituição do homem, essa deficiência da natureza, dando ao corpo uma certa incorruptibilidade, pelo dom da justiça original, como dissemos na Primeira Parte (q. 97, a. 1). E por isso se diz que Deus não fez a morte, e que a morte é a pena do pecado.
 
Por onde é clara a resposta às objeções.

Art. 5 — Se a morte e as outras misérias do corpo são efeitos do pecado.

(IIª-IIªª, q. 164, a 1; II Sent., dist. XXX, q. 1, a 1; III, dist. XVI, q. 1, a. 1; IV, Protog.; dist. IV, q. 2, a. 1, qª 3; IV, Cont. Gent., cap. LII; De Malo, q. 5, a. 4; Compend. Theol., cap. CXCIII; Ad Rom., cap. V, lect. III; Ad Hebr., cap. IX, lect V).
 
O quinto discute-se assim.  — Parece que a morte e as outras misérias do corpo não são efeitos do pecado.
 
1. — Pois, causas iguais produzem efeitos iguais. Ora, as referidas misérias não são iguais para todos, mas abundam nuns mais que em outros; embora, como já disse (q. 82, a. 4), para todos seja o mesmo o pecado original, de que elas são o principal efeito. Logo, a morte e as misérias do corpo não são efeitos do pecado.
 
2. Demais. — Removida a causa, removido fica o efeito. Ora, removido todo pecado, pelo batismo ou pela penitência, não ficam removi­das as misérias do corpo. Logo, não são efeitos do pecado.
 
3. Demais. — O pecado atual é mais essencialmente pecado que o original. Ora, o pecado atual não altera a natureza do corpo, sendo causa de alguma de suas misérias. Logo, com maior razão, nem o pecado original. Portanto, a morte e as outras misérias do corpo não são efeitos do pecado.
 
Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Rm 5, 12): por um homem entrou o pecado neste mundo e, pelo pecado, a morte.
 
Solução. — De dois modos pode uma causa produzir um efeito: essencial e acidentalmente. Essencialmente, quando o produz em virtude da sua natureza ou forma; donde se conclui ter sido o efeito em si mesmo o fim da causa. Por onde, estando a morte e as outras misérias do corpo fora da intenção do pecador, é manifesto que o pecado não é, em si mesmo, causa dessas misérias.
 
Acidentalmente, quando remove um obstáculo; assim, como diz Aristóteles, quem arranca uma coluna move acidentalmente a pedra que lhe estava sobreposta. E deste modo, o pecado do primeiro pai é causa da morte e de todas as misérias do corpo em a natureza humana. Pois, esse pecado nos privou da justiça original, que continha sujeitas à razão, sem nenhuma desordem, não só as potências inferiores da alma, mas sujeitava também todo o corpo à alma, sem nenhuma deficiência, como estabelecemos na Primeira parte (q. 97, a. 1). Por onde, perdida essa justiça original, pelo pecado do primeiro pai, assim como a natureza humana ficou lesada na alma, pela desordem das potências, segundo já provamos (q. 82, a. 3); assim também se tornou corruptível pela desordem do próprio corpo.
 
Ora, a perda da justiça original, como a da graça, constitui uma pena. Por onde, também a morte, e todos as misérias corpóreas conseqüentes, são penas do pecado original. E embora essas misérias não estivessem na intenção do pecador, foram contudo pela justiça punitiva de Deus.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Causas iguais essenciais produzem, por si mesmas, efeitos iguais. Pois, aumentada ou diminuída a causa essencial, aumenta ou diminui o efeito. Mas da igualdade de causas, que removem apenas um obstáculo, não se lhes deduz a igualdade dos efeitos. Assim, de derrubarmos, com igual impulso, duas colunas, não se segue sejam as pedras, que lhes estão sobrepostas, igualmente movidas; mas, há de mover-se mais velozmente a que for mais pesada, segundo a sua propriedade, e que fica abandonada a si mesma, uma vez removido o obstáculo. Do mesmo modo, removida a justiça original, a natureza do corpo humano ficou abandonada a si própria. E desde então, segundo a diversidade da compleição natural, os corpos de uns ficam sujeitos a maiores misérias; os de outros, a menores, embora o pecado original afete igualmente a todos.
 
Resposta à segunda. — A culpa original e a atual removem-se do mesmo sujeito de que se removem as misérias corpóreas, conforme aquilo do Apóstolo (Rm 8, 11): dará vida aos vossos corpos mortais, pelo Espírito, que habita em vós. Mas, uma e outra coisa se realizarão em tempo oportuno, segundo a ordem da divina sabedoria. Pois, havemos de chegar à imortalidade e à impassibilidade da glória, começada em Cristo, que no-la adquiriu, depois de lhe termos, durante a vida, participado dos sofrimentos. Por isso, é necessário que, conformes com Cristo, a sua passibilidade perdure nos nossos corpos, para merecermos a impassibilidade de glória.
 
Resposta à terceira. — Dois elementos podemos considerar no pecado atual: a subs­tância mesma do ato e a culpa. Quanto àquela, o pecado atual pode causar misérias ao corpo; assim muitos adoecem e morrem por comerem demais. Quanto à esta, priva da graça, que nos é dada para retificar os atos da alma, e não para impedir as misérias do corpo, como o fazia a justiça original. Por onde, o pecado atual não causa, como o original, essas misérias.

Art. 4 — Se a privação do modo, da espécie e da ordem são efeitos do pecado.

(De Virtut., q. 1, a. 8, ad 12).
 
O quarto discute-se assim. — Parece que a privação do modo, da espécie e da ordem não são efeitos do pecado.
 
1. — Pois, como diz Agostinho, quando o modo, a espécie e a ordem são grandes, grande é o bem; quando pequenos, pequeno; e nulo, quando são nulos. Ora, o pecado não anula o bem da natureza. Logo, não priva do modo, da espécie e da ordem.
 
2. Demais. — Nada pode ser causa de si mesmo. Ora, o pecado é a privação do modo, da espécie e da ordem, como diz Agostinho. Logo, a privação do modo, da espécie e da ordem não é efeito do pecado.
 
3. Demais. — Pecados diversos têm efeitos diversos. Ora, o modo, a espécie e a ordem, sendo diversos entre si, parece que hão de sofrer pri­vações diversas. Logo, a privação deles é o efeito de pecados diversos; e portanto, não de um pecado qualquer.
 
Mas, em contrário, o pecado afeta a alma, como a doença ocorpo, segundo aquilo da Es­critura (Sl 6, 3): Tem misericórdia de mim, Senhor, por­que sou enfermo. Ora, a enfermidade priva do modo, da espécie e da ordem do corpo. Logo, o pecado priva do modo, da espécie e da ordem da alma.
 
Solução. — Como já dissemos na Primeira Parte (q. 5, 5), o modo, a espécie e a ordem são consecu­tivos a todo bem criado, como tal, e mesmo a todo ser. Pois, todo ser e todo bem é considerado tal pela relação com alguma forma, em que se funda a espécie. Ora, a forma de um ser, substancial ou acidental, depende de uma certa medida; e por isso o Filósofo diz que as formas das coisas são como os números. Donde o ter a forma um certo modo, relativo à medida. E pela sua forma um ser se ordena a outro. E assim, con­forme os diversos graus dos bens são os graus diversos do modo, da espécie e da ordem.
 
Há pois um certo bem pertinente à subs­tância mesma da natureza, que tem o seu modo, a sua espécie e ordem; e esse não sofre priva­ção nem detrimento pelo pecado. Há outro bem, o da inclinação natural, que, por seu lado, tem o seu modo, a sua espécie e a sua ordem, e padece detrimento pelo pecado, como já se disse (a. 1, 2), mas não fica completamente eliminado. Há ainda o bem davirtude e da graça, que por sua vez tem o seu modo, a sua espécie e ordem, e esse fica totalmente destruído pelo pecado mor­tal. Há por fim, o bem consistente no ato ordenado, em si mesmo, e também tem o seu modo, a sua espécie e a sua ordem; e a privação deste constitui o pecado mesmo, essencialmente. Por onde se evidencia como o pecado é priva­ção do modo, da espécie e da ordem; e priva deles ou os diminui.
 
Donde se deduz clara a resposta às duas primeiras objeções.
 
Resposta à terceira. — O modo, a espé­cie e a ordem são consecutivos entre si, como do sobredito resulta. Por isso sofrem privação e diminuição, simultaneamente.

Art. 3 — Se a fraqueza, a ignorância, a malícia e a concupiscência são convenientemente consideradas lesões da natureza conseqüentes ao pecado.

(De Malo, q. 2 a. 11).
 
O terceiro discute-se assim. — Parece que a fraqueza, a ignorância, a malícia e a concupis­cência são inconvenientemente consideradas le­sões da natureza conseqüentes ao pecado.
 
1. — Pois, o efeito não se identifica com a sua causa. Ora, essas lesões consideram-se cau­sas dos pecados, como do sobredito resulta (q. 76, a.1; q. 77, a. 3, 5; q. 78, a. 1). Logo, não devem considerar-se efeitos do pecado.
 
2. Demais. — A malícia designa um pecado. Logo, não deve ser posta entre os efeitos dele.
 
3. Demais. — A concupiscência, sendo ato da potência concupiscível, é natural. Ora, o natural não pode ser considerado lesão da na­tureza. Logo, a concupiscência não deve ser considerada tal.
 
4. Demais. — Como já se disse (q. 77, a. 3), o mesmo é pecar por fraqueza que por paixão. Ora, a con­cupiscência é uma paixão. Logo, não se deve fazer distinção entre ela e a fraqueza.
 
5. Demais. — Agostinho estabelece duas penalidades para a alma pecadora: a ignorância e a dificuldade, donde nasce o erro e os padeci­mentos. Ora, essa quádrupla enumeração não concorda com a de que tratamos. Logo, uma delas há de ser insuficiente.
 
Mas, em contrário, está a autoridade de Beda.
 
Solução. — Pela justiça original, a razão continha perfeitamente as potências inferiores da alma, sendo ela mesma aperfeiçoada por Deus, a quem estava sujeita. Ora, essa justiça original perdeu-se pelo pecado do primeiro pai,como já dissemos (q. 81, a. 2). Por isso, todas as potências da alma ficaram, de certo modo, destituídas da ordem própria, pela qual naturalmente se orien­tavam para a virtude. E a essa destituição mes­ma se chama lesão da natureza.
 
Ora, são quatro as potências da alma capazes de serem sujeitos das virtudes, como já se disse (q. 61, a. 2), e são as seguintes. A razão, sujeito da prudência; a vontade, da justiça; o irascível, da fortaleza; a concupiscência, da temperança. Por onde, a lesão da ignorância consiste em a razão ter ficado privada de ordenar-se para a verdade. A da malícia, em a vontade ter ficado privada de ordenar-se, para o bem. A da fraqueza em o ter o irascível ficado privado de ordenar-se para o árduo. E enfim, a da concupiscência em o ter a concupiscência ficado privada de ordenar-se ao prazer moderado pela razão.
 
Por onde, são essas quatro as lesões infli­gidas a toda a natureza humana pelo pecado do primeiro pai. — Mas, como a nossa inclinação para o bem da virtude, fica diminuída pelo pe­cado atual, conforme do sobredito resulta, essas quatro lesões são conseqüências dos outros pe­cados. Pois a razão se embota pelo pecado, so­bretudo no agir; a vontade se endurece para o bem; aumenta a dificuldade de agir bem; e a concupiscência mais se inflama.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Nada impede seja o efeito de um pecado causa de outro. Assim, o desordenar-se da alma, por um pecado, inclina mais facilmente para outro.
 
Resposta à segunda. — No caso vertente não se considera a malícia como pecado; mas como uma inclinação da vontade para o mal, con­forme aquilo da Escritura (Gn 8, 21): Os sentidos do homem são inclinados para o mal desde a sua mocidade.
 
Resposta à terceira. — Como já se disse (q. 82, a. 3 ad 1), a concupiscência é natural ao homem na medida em que se lhe sujeita à razão. E se excede os limites desta, vai de encontro à natureza humana.
 
Resposta à quarta. — Toda paixão pode ser considerada em geral como fraqueza, por debilitar as forças da alma e se opor à razão. Ora, Beda toma a fraqueza em sentido estrito, enquanto oposta à fortaleza, residente no irascível.
 
Resposta à quinta. — A dificuldade a que se refere Agostinho inclui estas três lesões, das potências apetitivas: a malícia, a fraqueza e a concupiscência. Pois, por causa delas não pode­mos praticar facilmente o bem. O erro, porém, e a dor são lesões conseqüentes; pois, sofre dor quem é fraco para alcançar o objeto da sua concupiscência.

Art. 2 — Se a natureza humana pode ser privada totalmente do seu bem pelo pecado.

(I, q. 48, a. 4; II Sent., dist. VI, a. 4, ad 3; dist. XXXIV, a. 5; De Malo, q. 2, a. 12; III Cont. Gent., cap. XII).
 
O segundo discute-se assim. — Parece que a natureza humana pode ser privada totalmente do seu bem pelo pecado.
 
1. — Pois, o bem da natureza humana é finito, por também o ser ela. Ora, o finito se exaure todo diminuindo continuamente. E como o bem da natureza pode se diminuir continuamente pelo pecado, conclui-se que pode de todo exaurir-se.
 
2. Demais. — Em seres da mesma natureza o todo e as partes tem a mesma essência, como se dá com o ar, a água, a carne e com todos os corpos de partes semelhantes. Ora, o bem da natureza é totalmente uniforme. Logo, como pode ser privada de uma de suas partes pelo pecado, pode também o ser, por ele totalmente.
 
3. Demais. — O bem da natureza, diminuído pelo pecado, consiste em ser capaz da virtude. Ora, em certos essa capacidade fica totalmente destruída pelo pecado, como se dá com os condenados, que não podem readquirir a virtude, como o cego não pode recuperar a vista. Logo, o pecado pode privar totalmente do bem da natureza.
 
Mas, em contrário, diz Agostinho, que o mal só pode existir no bem. Ora, o mal da culpa não pode existir no bem da virtude ou da graça, por lhe ser contrários. Logo, há de existir no bem da natureza, e portanto não priva totalmente dele.
 
Solução. — Como já dissemos (a. 1), o bem da natureza, diminuído pelo pecado, é a inclinação natural para a virtude, a qual convém ao ho­mem só por ser ele racional; pois por isso é que pode agir de conformidade com a razão, e portanto virtuosamente. Ora, o pecado não pode privá-lo totalmente de ser racional, pois então já não seria capaz de pecar. Logo, não é possível seja privado totalmente do referido bem.
 
Certos porém, para explicar como esse bem pode sofrer continuamente detrimento pelo peca­do, recorreram a um exemplo por onde se mostra o finito diminuindo infinitamente sem nunca se desvanecer de todo. Pois, como diz o Filósofo, se subtrairmos continuamente uma mesma quan­tidade, de uma grandeza finita, esta há de de­saparecer totalmente. Assim, se de uma quan­tidade finita qualquer subtrairmos sempre a me­dida de um palmo. Se porém, a subtração se der na mesma proporção e não segundo uma mesma quantidade, a grandeza poderá diminuir infinitamente. Assim, se uma quantidade for dividida em duas partes, e se da metade sub­trairmos a metade, poderemos proceder ao infi­nito; de modo à sempre ser menor o tirado de­pois que o tirado antes. — Mas isto não se dá no caso vertente. Pois, um pecado qualquer não diminui menos o bem da natureza, que o prece­dente; antes, e talvez, mais, sendo mais grave.
 
E portanto, devemos dizer, de modo di­verso, que a inclinação, no caso vertente, deve entender-se como um termo médio entre dois extremos. Pois, tem sua raiz em a natureza racional; e tende para o bem da virtude, como para o termo e o fim. De dois modos, pois, po­demos lhe explicar a diminuição: em relação à raiz e em relação ao termo. Do primeiro modo, ela não fica diminuída pelo pecado, por este não diminuir a natureza, em si mesma, como já dis­semos (a. 1). Mas diminui do segundo modo, encon­trando um obstáculo que a impeça de atingir o termo. Pois, se ficasse diminuída, do primeiro modo, poderia então e forçosamente eliminar-­se totalmente, uma vez desaparecida totalmente a natureza racional. Mas, ficando diminuída, pelo obstáculo que se lhe opõe à consecução do termo, é claro que é susceptível de diminuir in­finitamente, por poderem os obstáculos emergir ao infinito, sendo o homem capaz de acrescentar infinitamente pecado a pecado. Não poderá porém a inclinação desvanecer-se de todo, por sempre lhe permanecer a raiz. Tal se dá com um corpo diáfano, que, por ser tal tem inclina­ção a receber a luz; mas essa inclinação ou ca­pacidade diminui com a sobreveniência das nuvens, embora sempre lhes permaneça na raiz da natureza.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — A objeção colhe tratando-se de diminuição por subtração. Mas no caso vertente, a diminuição se dá por um obstáculo aposto, que não elimina nem diminui a raiz da inclinação, como se disse.
 
Resposta à segunda. — A inclinação na­tural é, certo, totalmente uniforme. Mas diz respeito ao princípio e ao termo; e, segundo essa diversidade, ora diminui, ora não.
 
Resposta à terceira. — Mesmo nos con­denados permanece a inclinação para a virtude; do contrário não sofreriam o remorso da consciência. E se essa inclinação não se atualiza é por lhes faltar a graça, conforme o exige a justiça. Assim também o cego conserva a aptidão para ver, na raiz mesma da natureza, por ser um animal a que a visão é natural. Mas, esta não se atualiza, por lhe faltar a causa adequada, que formaria o órgão necessário para ver.

Art. 1 — Se o pecado diminui o bem da natureza.

(I q. 48, a. 4; II Sent., dist. III, q. 3, ad 5; dist. XXX, q, 1, a. 1, ad 3; dist. XXXIV, a 5; III dist. XX, a. 1, qª 1, ad 1; III Cont Gent., cap. XII ; De Malo, q. 2, a. 11).
 
O primeiro discute-se assim.  — Parece que o pecado não causa detrimento ao bem da natureza.
 
1. — Pois, o pecado do homem não excede em gravidade o do demônio. Ora, os dons naturais permanecem íntegros nos demônios, depois do pecado, como diz Dionísio. Logo, o pecado tam­bém não causa detrimento ao bem da natureza humana.
 
2. Demais. — A alteração do que é pos­terior não implica a do anterior; assim, a substância permanece a mesma, embora se mudem os acidentes. Ora, a natureza preexiste à ação voluntária. Logo, embora o pecado cause a desordem na ação, voluntária, nem por isso se altera a natureza, de modo a lhe ficar diminuído o seu bem.
 
3. Demais. — O pecado é um ato; ao passo, que sofrer detrimento é uma paixão. Ora nenhum agente, como tal, é paciente; é possível porém que atue sobre um paciente e sofra a ação de outro agente. Logo, quem peca não causa detrimento, pelo pecado, ao bem da sua natureza.
 
4. Demais. — Nenhum acidente pode agir sobre o seu sujeito. Pois, sofrer uma ação é próprio do ser potencial; ao passo que o sujeito do acidente já é ser atual, em relação a esse acidente. Ora, o pecado reside no bem da natureza como o acidente, no sujeito. Logo, o pecado não diminui esse bem, pois, diminuir é, de algum modo, agir.
 
Mas, em contrário, como diz o Evangelho (Lc 10, 30): Um homem baixava de Jerusalém a Jericó, i. é, à prevaricação do pecado; é despojado dos bens gratuitos e vulnerado nos naturais, como expõe Beda. Logo, o pecado causa detrimento ao bem da natureza.
 
Solução. — O bem da natureza humana pode ser considerado à tríplice luz. — Primeiro, como os princípios mesmos constitutivos no que ela é; e como as propriedades deles derivadas; p. ex., as potências da alma, e outras. — Segundo, tendo o homem, inclinação natural para a virtude, segundo já estabelecemos (q. 60, 1; q. 63, 1), essa mesma inclinação é um certo bem natural. — Terceiro, pode-se chamar bem natural ao dom da justiça original, conferido, no primeiro homem, a toda a natureza humana.
 
Ora, o bem da natureza, primeiramente enumerado, não o destrói o pecado e nem o diminui. O terceiro, porém, o pecado do primeiro pai totalmente o destruiu. Mas o médio, i. é, a inclinação natural para a virtude, fica diminuído pelo pecado. Pois, os atos humanos produzem uma certa inclinação para outros atos semelhantes, como já se demonstrou (q. 50, a. 1). Necessariamente porém, aquilo que se inclina para um contrário fica com a inclinação diminuída para o outro. Por onde, sendo o pecado contrário à virtude, o próprio pecar do homem diminui-lhe o bem da natureza, que é a inclinação para a virtude.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Dionísio se refere ao bem primeiro da natureza, que é existir, viver e inteligir, como é claro a quem lhe refletir nas palavras.
 
Resposta à segunda. — Embora a natureza seja anterior à ação voluntária, tem contudo inclinação para ela. Por onde, a natureza, em si mesma, não varia com a variação de tal ação; mas é a inclinação mesma a que varia, enquanto ordenada para um termo.
 
Resposta à terceira. — A ação voluntária procede de diversas potências, das quais uma é ativa e a outra, passiva. Donde resulta que as ações voluntárias podem causar no homem, que as pratica, um acréscimo ou um detrimento, conforme já dissemos (q. 51, a. 2), quando tratamos da geração dos hábitos.
 
Resposta à quarta. — O acidente age sobre o seu sujeito, não efetiva, mas formalmente, no sentido em que se diz que a brancura torna branco. E assim, nada impede diminua o pecado o bem da natureza; mas de modo a constituir a diminuição mesma desse bem, por ser um ato desordenado. Quanto porém à desordem do agente, ela é causada pelo que os atos da alma tem de ativo e de passivo. Assim, o sensível move o apetite sensitivo e este inclina a razão e a vontade, como já dissemos (q. 77, a. 1, 2). Donde a desordem; não por atuar o acidente sobre o sujeito próprio, mas pelo objeto agir sobre a potência, e uma potência sobre outra, desordenando-a.

Questão 85: Dos efeitos do pecado e, primeiro, da corrupção do bem da natureza.

Em seguida devemos tratar dos efeitos do pecado. E, primeiro da corrupção do bem da natureza. Segundo, da mácula da alma. Ter­ceiro, do reato da pena. Na primeira questão discutem-se seis artigos:

AdaptiveThemes