Category: Santo Tomás de Aquino
(II Sent., dist. XLII, q. 2, a. 3; De Malo, q. 8, a. 1).
O quarto discute-se assim. — Parece não devamos admitir sete vícios capitais, a saber, a vanglória, a inveja, a ira, a avareza, a tristeza, a gula e a luxúria.
1. — Pois, os pecados se opõem às virtudes. Ora, destas são quatro as principais, como já se disse (q. 61, a. 2). Logo, também só quatro hão de ser os vícios principais ou capitais.
2. Demais. — As paixões da alma estão entre as causas do pecado, como já se disse (q. 77). Ora, as principais paixões da alma são quatro, e duas delas — a esperança e o temor — não se mencionam entre os referidos pecados. Enumeram-se porém certos vícios que supõem o prazer e a tristeza. Pois, aquele está incluído na gula e na luxúria; e esta, na preguiça e na inveja. Logo, os pecados principais são inconvenientemente enumerados.
3. Demais. — A ira não é uma paixão principal. Logo, não devia ser colocada entre os vícios principais.
4. Demais. — Assim como a cobiça ou avareza é a raiz do pecado, assim a soberba é dele o início, como já se disse (q. 84, a. 2). Ora, a avareza é considerada como um dos sete vícios capitais. Logo, a soberba também devia ser enumerada entre esses vícios.
5. Demais. — Cometemos certos pecados, que não podem ser causados por nenhum dos vícios capitais. Assim, quando erramos por ignorância ou quando alguém comete um pecado, como roubar, para dar esmola, mas com boa intenção. Logo, os vícios capitais são enumerados insuficientemente.
Mas, em contrário, é a autoridade de Gregório, que assim os enumera.
Solução. — Como já se disse (q. 84, a. 3), chamam-se vícios capitais aqueles de que se originam os outros, principalmente em relação à idéia de causa final. Ora, esta origem pode ser considerada à dupla luz. — Primeiro, segundo a condição do pecador, disposto de maneira tal a buscar sobretudo um fim, donde vem a praticar, no mais das vezes, outros pecados. Ora, tal origem não a pode compreender a arte, por serem infinitas as disposições particulares dos homens. — Segundo, quanto à relação natural dos próprios fins entre si. E a esta luz um vício nasce quase sempre de outro. E por isso, a arte pode abranger esse modo de se originar. Então chamam-se capitais os vícios, cujos fins implicam certas razões primárias de mover o apetite; e conforme a distinção delas assim eles se distinguem.
Ora, um objeto pode mover o apetite de dois modos. — Diretamente e por si; assim, o bem o move a buscá-lo e o mal, pela mesma razão, a evitá-lo. — Ou indireta e como mediatamente; assim quando buscamos um mal em vista de algum bem concomitante; ou evitamos um bem por causa de algum mal adjunto.
Ora, tríplice é o bem do homem. — O primeiro é o da alma, cuja razão de apetibilidade depende da só apreensão, e tal é a excelência do louvor ou da honra. E esse bem é buscado desordenadamente pela vanglória. — Outro é o bem do corpo. E este diz respeito ou à conservação do indivíduo, como a comida e a bebida, e é buscado desordenadamente pela gula; ou respeita a conservação da espécie, como o coito, ao qual se ordena a luxúria. — O terceiro bem é exterior e são as riquezas, às quais se ordena a avareza. — E esses mesmos quatro vícios fogem desordenadamente os quatro males contrários.
Ou de outro modo, o bem principalmente move o apetite, por participar de certa maneira da natureza da felicidade, que todos naturalmente desejam. — Ora, em primeiro lugar a felicidade implica por essência uma certa perfeição; pois é o bem perfeito, a que diz respeito a excelência ou esplendor, desejado pela soberba ou vanglória. Em segundo lugar, implica essencialmente a suficiência, que as riquezas prometem e é desejada pela avareza. — Em terceiro lugar, é condição da felicidade o prazer, sem o qual não pode ela existir, como diz Aristóteles, e é desejado pela gula e pela luxúria.
Por outro lado, há três razões pelas quais evitamos um bem por causa de algum mau conjunto. — Pois, assim agimos quanto ao nosso bem próprio, pela preguiça, que repugna ao trabalho corpóreo, exigido para obtermos bem espiritual. — Ou quanto ao bem alheio. E isto, sendo sem excitação, é próprio da inveja, que se entristece com o bem de outrem por ser obstáculo à nossa própria excelência. — Havendo excitação, que provoca a vingança, tem lugar a ira. E aos mesmos vícios é próprio a prossecução do mal oposto.
Donde a resposta à primeira objeção. — Os vícios e as virtudes não têm a mesma origem. Pois, estas são causadas por ordenar-se o apetite à razão ou ao bem imutável, que é Deus; ao passo que aqueles nascem do desejo dos bens mutáveis. Por onde, os vícios principais não hão de necessariamente se opor às virtudes principais.
Resposta à segunda. — O temor e a esperança são paixões do irascível. Ora, todas as paixões do irascível nascem das do concupiscível, todas as quais se ordenam também, de certo modo, ao prazer e à dor. Por isso, o prazer e a dor principalmente se enumeram entre os pecados capitais, como as principalíssimas das paixões, segundo já se estabeleceu (q. 25, a. 4).
Resposta à terceira. — A ira, embora não seja uma paixão principal, distingue-se contudo dos outros vícios capitais, por desempenhar papel especial na atividade apetitiva; pois, atacamos o bem de outrem levados pela idéia do homem, i. e, da justiça vindicativa.
Resposta à quarta. — A soberba é considerada como o início de todo pecadolevando-se em conta a idéia de fim, como já se disse (q. 84, a. 2). E nessa mesma idéia se funda o serem principais os vícios capitais. Por onde, a soberba não entra na enumeração, por ser um quase vício universal; mas antes, é considerada a rainha de todos os vícios, no dizer de Gregório. E é por outra razão que se considera a avareza como a raiz, conforme já se disse (q. 84, a. 1; a. 2).
Resposta à quinta. — Os vícios capitais assim se chamam por nascerem deles, mui freqüentemente, os outros. Mas isso não impede tenham por vezes certos pecados, outras causas. — Também é possível dizer que todos os pecados provenientes da ignorância podem se reduzir à preguiça a que é próprio a negligência, causa de recusarmos adquirir os bens espirituais, por via do trabalho. Pois, a ignorância, que pode ser causa do pecado, provém da negligência, como já dissemos (q. 76, a. 2). E o cometermos um pecado com boa intenção supõe a ignorância de que se não deve praticar o mal para conseguir bem.
(II Sent., dist. XLII, q. 2, a. 3; De Malo, q. 8, a. 1).
O terceiro discute-se assim. — Parece que além da soberba e da avareza não há outros pecados especiais chamados capitais.
1. — Pois, a cabeça está para os animais, como a raiz, para as plantas, conforme diz Aristóteles; porque as raízes se assemelham à boca. Se portanto a cobiça é considerada raiz de todos os males, só ela, e nenhum outro pecado, deve ser tida como vício capital.
2. Demais. — A cabeça está numa certa ordem relativa aos outros membros, enquanto dela derivam, de algum modo, para todos eles, o sentido e o movimento. Ora, o pecado assim se chama por implicar privação da ordem. Logo, não exerce função capital; e portanto, não se devem admitir nenhuns pecados capitais.
3. Demais. — Chamam-se capitais os crimes expiados com pena capital. Ora, certos pecados, em cada gênero deles, são punidos com essa pena. Logo, os vícios capitais não são vícios especificamente determinados.
Mas, em contrário, Gregório enumera certos vícios especiais a que chama capitais.
Solução. — Capital vem de cabeça. Ora, esta propriamente é o membro principal e diretivo de todo o animal. Por isso, chama-se metaforicamente, cabeça a tudo o que é princípio e diretivo; e também os homens, que dirigem e governam, são chamados cabeças. Por onde, de um modo, a denominação de vício capital vem de cabeça, em sentido próprio. E nesta acepção chama-se pecado capital o punido com a pena capital. Mas não é neste sentido que tratamos agora dos pecados capitais, mas consideramos aqui o pecado capital como derivado de cabeça, em outra acepção, a saber, a metafórica, significando que ele é o princípio ou o diretivo dos outros pecados. E assim chama-se vício capital aquele donde os outros nascem, e principalmente quanto à origem da causa final que é a origem formal como já se disse (q. 72, a. 6). Por onde, o vício capital não só é o princípio dos outros, mas também os dirige e de certo modo os chefia. Pois sempre a arte ou o hábito, a que pertence o fim, tem o principado e o império sobre os meios. Por isso Gregório compara esses vícios capitais com os chefes dos exércitos.
Donde a resposta à primeira objeção. — A denominação de capital vem de cabeça. E implica uma certa derivação ou participação da cabeça, como tendo alguma propriedade desta e não como sendo a cabeça, em sentido literal. Por isso chamam-se capitais não só os vícios que desempenham a função de origem primeira, como a avareza, denominada raiz, e a soberba, denominada início; mas também os que desempenham a função de origem próxima de vários pecados.
Resposta à segunda. — O pecado carece de ordem pelo afastamento que causa, pois, por aí é um mal; e na verdade, segundo Agostinho, o mal é a privação do modo, da espécie e da ordem. Quanto ao que busca, contudo, o pecado implica um certo bem e, por este lado é susceptível de ordem.
Resposta à terceira. — A objeção colhe quanto ao pecado capital, enquanto assim chamado por causa do reato da pena. Ora, não é neste sentido que agora dele tratamos.
(IIª-IIªª, q. 162, a. 2; a. 5, ad 2 II Sent., dist. V, q. 1, a. 3; dist. XLII, q. 2, a. 1, ad 7; a. 3, ad 1 ; De Malo, q. 8, a. 1, ad 1, 16; II Cor., cap. XII. lect. III; I Tim., cap. VI, lect. II).
O segundo discute-se assim. — Parece que a soberba não é o início de todo pecado.
1. — Pois, a raiz é um princípio da árvore; e, assim, parece que o mesmo é ser raiz e início do pecado. Ora, a cobiça é a raiz de todo pecado, como já se disse (a. 1). Logo, ela também, e não a soberba, é o início de todo pecado.
2. Demais. — A Escritura diz (Sr 10, 14): O princípio da soberba do homem é apostatar de Deus. Ora, a apostasia de Deus é um pecado. Logo, há um pecado que é o início da soberba; e esta não é o início de todo pecado.
3. Demais. — É início de todos os pecados o que os causa a todos. Ora, tal é o amor desordenado de si, que gera a cidade de Babilônia, como diz Agostinho. Logo, é o amor de si, e não a soberba, o início de todo o pecado.
Mas, em contrário, diz a Escritura (Sr 10, 15): o princípio de todo o pecado é a soberba.
Solução. — Certos consideram a soberba em tríplice acepção. Numa, significa o desejo desordenado da própria excelência, e então a têm como pecado especial. Noutra, importa um certo desprezo atual de Deus, quanto ao seu efeito, que consiste em não nos sujeitarmos à lei divina; e então a consideram como um pecado geral. Noutra enfim, implica uma inclinação para esse referido desprezo, pela corrupção da natureza; e então a consideram como o início de todos os pecados. E difere da cobiça, que implica o pecado por prender-se aos bens mutáveis, o que, de certo modo, nutre e favorece o pecado; e por isso é considerada como raiz dele. Ao passo que a soberba implica o pecado por afastar de Deus, a cujo preceito o homem recusa submeter-se; e é chamada início do pecado, porque esse afastamento é o início do mal.
Ora, se bem essas distinções sejam verdadeiras, não entram na intenção do Sábio, quando disse: o princípio de todo o pecado é a soberba. Pois manifestamente, ele se refere à soberba como desejo desordenado da própria excelência, como bem o esclarece o que acrescenta: Deus destruiu os tronos dos príncipes soberbos. E trata desse assunto em quase todo esse capítulo. Donde devemos concluir, que a soberba, mesmo enquanto pecado especial, é o início de todo o pecado. Pois, é mister considerar que, nos atos voluntários, como o são os pecados, há uma dupla ordem: a da intenção e a da execução.Na primeira, o fim exerce a função de princípio, como já muitas vezes dissemos. Ora, o fim de todos os bens temporais, que podemos adquirir, é levar-nos a uma certa perfeição e excelência. E portanto, por aqui, a soberba, que é o desejo da excelência, é considerada como o início de todo pecado. Por outro lado, quanto à execução, vem em primeiro lugar o que dá a oportunidade de realizar todos os desejos pecaminosos; e tais são as riquezas, que por isso exercem a função de raiz. Por isso, a avareza é considerada como a raiz de todos os males, como já se disse (a. 1).
Donde se deduz clara a resposta à primeira objeção.
Resposta à segunda. — Por causa do afastamento, é que se considera o apostatar de Deus como início da soberba. Pois, de não querer o homem sujeitar-se a Deus resulta o querer desordenadamente a própria excelência, na ordem temporal. E assim, a apostasia de Deus não é considerada, no lugar em questão, como um pecado especial; mas antes, como uma condição geral de todo pecado, que é o afastamento do bem imutável. — Ou se pode dizer que o apostatar de Deus é considerado o início da soberba, por ser a primeira espécie dela. Pois, é próprio da soberba não querer submeter-se a nenhum superior e, principalmente, não querer submeter-se a Deus. Donde resulta que o homem se exalta indebitamente acima de si mesmo, quanto às outras espécies de soberba.
Resposta à terceira. — O homem se ama a si mesmo querendo a sua excelência; pois, o amar-se a si é querer para si o bem. Por onde, vem a dar no mesmo considerar como o início de todo o pecado a soberba ou o amor próprio.
(Art. seq.; IIª-IIae, q 119, a.2. ad 1; II Sent., dist., V, q. q. 1. a. 3, ad 1; dist. XXII, q. 1, a. 1, ad 7; dist. XLII, q. 2, a. 1 ; a. 3, ad 1; De Malo, q. 8, a. 1, ad 1; I ad Tim., cap. VI, lect. II).
O primeiro discute-se assim. — Parece que a cobiça não é a raiz de todos os pecados.
1. — Pois, a cobiça, que é o desejo imoderado das riquezas, opõe-se à virtude da liberalidade. Ora, esta não é a raiz de todas as virtudes. Logo, a cobiça não o é de todos os vícios.
2. Demais. — O desejo dos meios procede do desejo do fim. Ora, as riquezas são desejadas pela cobiça só por serem úteis a algum, como diz Aristóteles. Logo, a cobiça não é a raiz de todos os pecados, mas se radica numa origem anterior.
3. Demais. — A avareza, considerada como cobiça, nasce freqüentemente de outros pecados; assim, quando se deseja o dinheiro por causa da ambição, ou para satisfazer à gula. Logo, não é a raiz de todos os pecados.
Mas, em contrário, diz o Apóstolo (1 Tm 6, 10): a raiz de todos os males é a avareza.
Solução. — Certos tomam a cobiça em tríplice acepção. Primeiro, como o desejo desordenado das riquezas, sendo então, um pecado especial. Segundo, como implicando o desejo desordenado de qualquer bem temporal e, então constitui o gênero de todos os pecados, pois, todos implicam a tendência desordenada para os bens transitórios, como já se disse (q. 72, a. 2). Terceiro, como significando uma certa inclinação da natureza corrupta para desejar desordenadamente bens corruptíveis. E, então se diz que a cobiça é a raiz de todos os pecados, por semelhança com a raiz da árvore, que tira da terra o alimento. Do mesmo modo, todos os pecados nascem do amor das coisas temporais.
Ora, não obstante verdadeiras, essas distinções parecem não se incluírem na intenção do Apóstolo, que considerou a cobiça como a raiz de todos os pecados. Pois, ele se dirige manifestamente contra aqueles que, querendo fazer-se ricos, caem na tentação e no laço do diabo, porque a raiz de todos os males é a avareza. Por onde é manifesto que se refere à cobiça como desejo desordenado das riquezas. E, a esta luz, devemos ter que a cobiça, como pecado especial, é considerada raiz de todos os pecados, por semelhança com a raiz da árvore, a toda a qual dá o alimento. Pois, segundo vemos por meio das riquezas o homem adquire a faculdade de cometer qualquer pecado e de satisfazer o desejo de qualquer deles. Porque o dinheiro o ajuda a possuir quaisquer bens temporais, conforme aquilo da Escritura (Ecle 10, 19): todas as coisas obedecem o dinheiro. Por onde é claro que a cobiça das riquezas é a raiz de todos os pecados.
Donde a resposta à primeira objeção. — A virtude e o pecado não têm a mesma origem. Pois, este nasce do desejo dos bens mutáveis; e por isso se considera como raiz de todos os pecados o desejo daqueles bens temporais que ajudam a conseguir todos os outros. Ao passo que a virtude nasce do desejo do bem imutável e, por isso, a caridade, que é o amor de Deus, é considerada a raiz das virtudes, conforme aquilo da Escritura (Ef 3, 17): arraigados e fundados na caridade.
Resposta à segunda. — Considera-se o desejo das riquezas como raiz dos pecados, não, certo, por serem elas buscadas por si mesmas, como fim último; mas por serem muito procuradas como úteis para todos os fins temporais. E sendo o bem universal mais desejável que qualquer bem particular, ele move mais o apetite, do que quaisquer bens particulares, que, simultaneamente com muitos outros, podem ser possuídos por meio do dinheiro.
Resposta à terceira. — A ordem natural não implica na realização inevitável dos fatos, senão o que se dá na maior parte das vezes, porque a natureza das coisas corruptíveis pode ser impedida de agir sempre do mesmo modo. Assim também, na ordem moral, consideramos o que é mais freqüente, e não o que se deva realizar sempre, porque a vontade não obra necessariamente. Por onde, o considerar-se a avareza raiz de todos os males não significa que, às vezes, algum outro mal não seja a sua raiz, mas que, no mais das vezes, dela nascem os outros, pela razão já exposta.
Em seguida devemos tratar da causa do pecado, enquanto é um causa de outro. E, nesta questão discutem-se quatro artigos:
(II Sent., dist., XXXI, q. 2, a. 2: De Verit., q. 25; a. 6; De Malo, q. 4, a. 2, ad 12; a. 5, ad 1).
O quarto discute-se assim. — Parece que as referidas potências não foram mais contaminadas que as outras.
1. — Pois, parece que o contágio do pecado original há de ter atingido sobretudo aquela parte da alma susceptível de ser o sujeito primário do pecado. Ora, esta é a parte racional, e sobretudo à vontade. Logo, esta foi sobretudo à contaminada pelo pecado original.
2. Demais. — Nenhuma potência da alma é contaminada pela culpa, senão enquanto pode obedecer à razão. Ora, a potência geratriz não o pode, como o diz Aristóteles. Logo, não foi sobretudo essa a potência contaminada pelo pecado original.
3. Demais. — Dentre os sentidos é o da visão o mais espiritual e achegado à razão, por distinguir mais diferenças entre as coisas, como diz Aristóteles. Ora, o contágio da culpa atingiu principalmente a razão. Logo, o sentido da visão foi mais contaminado que o tato.
Mas, em contrário, Agostinho diz, que o contágio da culpa original manifestou-se sobretudo no movimento dos membros genitais, desobedientes à razão. Ora, esses membros servem à potência geratriz, no comércio sexual, onde o prazer depende do tato, que excita sobretudo a concupiscência. Logo, o contágio do pecado original atingiu sobretudo estas três potências: a geratriz, a concupiscível e o sentido do tacto.
Solução. — Costuma-se chamar contaminação sobretudo aquela corrupção que naturalmente se transmite a outrem; por isso as doenças contagiosas, como a lepra, a sarna e semelhantes, chamam-se contaminações. Ora, a corrupção do pecado original se transmite pelo ato da geração, como já se disse. Por onde, consideram-se sobretudo como contaminadas as potências concorrentes nesse ato. Ora, tal ato serve à potência geratriz, como ordenado para a geração; e implica o prazer do tacto, objeto por excelência da potência concupiscível. E portanto, como se consideram corruptas pelo pecado original todas as partes da alma, corruptas principalmente e contaminadas se consideram as três referidas potências.
Donde a resposta à primeira objeção. — O pecado original, enquanto inclina para os pecados atuais, atingiu principalmente a vontade, como já se disse. Mas enquanto se transmite à prole, atingiu as faculdades preditas, proximamente, e a vontade, remotamente.
Resposta à segunda. — A contaminação da culpa atual só atinge as potências movidas pela vontade do pecador. Ora, a contaminação da culpa original derivou não, da vontade daquele que a contraiu, mas, da geração natural, à qual serve a potência geratriz. Logo, há nela a contaminação do pecado original.
Resposta à terceira. — A visão não concerne ao ato gerador senão como disposição remota, enquanto que, por ela, se manifesta a forma concupiscíve1. Ao passo que o prazer se completa pelo tacto. Por isso o contágio em questão se atribui mais ao tacto que à vista.
(II Sent., dist. XXX, q. 1, a. 3; De Verit., q. 25, a 6; De Malo, q. 4, a. 5).
O terceiro discute-se assim. — Parece que o pecado original não contaminou mais a vontade que as outras faculdades.
1. — Pois, todo pecado pertence principalmente à potência por cujo ato foi causado. Ora, o pecado original foi causado pelo ato da potência geratriz. Logo, dentre as demais potências da alma, parece pertencer antes à potência geratriz.
2. Demais. — O pecado original transmite-se pelo sêmen carnal. Ora, as outras potências da alma são mais próximas da carne, que a vontade; como se vê claramente em todas as potências sensitivas, que se servem de órgão corpóreo. Logo, nelas, mais que na vontade, está o pecado original.
3. Demais. — O intelecto tem prioridade sobre a vontade, pois esta não pode querer senão o bem conhecido. Se portanto o pecado original contaminou todas as potências da alma, parece que contaminou primeiro o intelecto, como sendo a mais importante.
Mas, em contrário, a justiça original diz respeito, primariamente, à vontade, pois, consiste na retidão da vontade, como diz Anselmo. Logo, o pecado original, que se lhe opõe, respeita, antes de tudo, a vontade.
Solução. — Dois aspectos devemos levar em conta no contágio do pecado original. Primeiro, a sua inerência ao sujeito; e por aí diz respeito, primariamente, à essência da alma, como já se disse. Em seguida devemos considerar-lhe a inclinação para o ato; e, por aí respeita às potências da alma. Ora, ele há de respeitar, primária e necessariamente a que tem a inclinação primeira para o pecado. E como esta é a vontade, segundo já se demonstrou, o pecado original há de lhe dizer respeito em primeiro lugar.
Donde a resposta à primeira objeção. — O pecado original não é causado no homem pela potência geratriz da prole; mas pelo ato da potência geratriz do pai. Por onde, não é necessário seja a sua potência geratriz o sujeito primeiro do pecado original.
Resposta à segunda. — O pecado original tem dupla derivação: uma, da carne para a alma; outra, da essência da alma para as potências. A primeira é conforme à ordem da geração; a segunda, à da perfeição. E portanto, embora as potências sensitivas sejam mais próximas à carne; como porém a vontade está mais chegada à essência da alma, como potência superior que é, será a primeira a receber a contaminação do pecado original.
Resposta à terceira. — O intelecto de certa maneira precede à vontade, por propor-lhe o seu objeto. De outro modo porém a vontade precede o intelecto, na ordem da moção para o ato, moção essa que implica o pecado.
(II Sent., dist. XXXI, q. 2, a. 1; De Verit., q. 25, a. 6; q. 27, a. 6, ad 2; De Malo, q. 4, a. 4).
O segundo discute-se assim. — Parece que o pecado original não está mais na essência da alma que nas potências.
1. — Pois é natural à alma ser sujeito do pecado, por poder ser movida pela vontade. Ora, não a essência da alma é a movida pela vontade, mas sim as suas potências. Logo, o pecado original não atingiu a essência da alma, mas só as suas potências.
2. Demais. — O pecado original se opõe à justiça original. Ora, esta havia de estar em alguma potência da alma, sujeito da virtude. Logo, também o pecado original está mais nas potências que na essência da alma.
3. Demais. — Assim como da carne o pecado original derivou para a alma, assim da essência desta derivou-lhe para as potências. Ora, o pecado original está mais na alma que na carne. Logo, também mais nas potências, que na essência da alma.
4. Demais. — Tem-se como concupiscência o pecado original, conforme já se disse. Ora, a concupiscência tem sua sede nas potências da alma. Logo, também o pecado original.
Mas, em contrário, o pecado original é considerado um pecado natural, como já se disse. Ora, a alma é por essência, e não pelas suas potências, como já se estabeleceu na Primeira Parte, a forma e a natureza do corpo. Logo, ela é principalmente e por essência o sujeito do pecado original.
Solução. — A alma é principalmente sujeito de um pecado, pelo que a torna primariamente causa motora desse pecado. Assim, se a causa motiva do pecado for o deleite sensível, residente na potência sensitiva, como seu objeto próprio, segue-se que essa potência é o sujeito próprio desse pecado. Ora, é manifesto, o pecado original foi causado pela geração. Portanto, por onde a alma entra primeiramente em contato com a geração do homem, por aí ela é o sujeito primeiro do pecado original. Ora, a geração entra em contato com a alma, como seu termo, enquanto forma do corpo, o que por essência própria lhe convém, segundo já demonstramos na Primeira Parte. Logo, a alma é por essência o sujeito primeiro do pecado original.
Donde a resposta à primeira objeção. — Assim como o movimento da vontade do homem atinge-lhe propriamente, as potências, e não a essência da alma, assim o movimento da vontade do primeiro gerador atinge primeiramente, por via da geração, a essência da alma, como já se disse.
Resposta à segunda. — Também a justiça original se inclina, primordialmente na essência da alma;pois, era um dom de Deus à natureza humana, próprio mais de tal essência, que das suas potências. Pois, estas pertencem mais à pessoa, enquanto princípio de atos pessoais. Por onde, os sujeitos próprios dos pecados atuais é que são pecados pessoais.
Resposta à terceira. — O corpo está para a alma como a matéria para a forma; esta, embora posterior na ordem da geração, é anterior na da perfeição e da natureza. Ora, a essência da alma está para as potências, como o sujeito para os acidentes próprios, posteriores ao sujeito, tanto na ordem da geração, como na da perfeição. Portanto a comparação não colhe.
Resposta à quarta. — A concupiscência desempenha, no pecado original, o papel de matéria e conseqüência, segundo já se disse.
(II Sent., dist. XVIII, q. 2, a. 1, ad. 3; dist. XXX, q. q, a. 2, ad 4; dist. XXXI, q. 1, a. 1, ad 2, 4; dist. XXXIII, q. 1, a. 3, ad 4; De Malo, q. 4, a. 3).
O primeiro discute-se assim. — Parece que o pecado original está mais na carne que na alma.
1. — Pois, a repugnância da carne com a alma procede da corrupção do pecado original. Ora, a raiz dessa repugnância está na carne, conforme aquilo do Apóstolo (Rm 7): sinto nos meus membros outra lei que repugna à lei do meu espírito. Logo, o pecado original está principalmente na carne.
2. Demais. — Tudo está mais na causa que no efeito; assim o calor esta mais no fogo que aquece, do que na água aquecida. Ora, a alma sofre a contaminação do pecado original, por meio do sêmen carnal. Logo, o pecado original está mais na carne que na alma.
3. Demais. — Contraímos o pecado original do primeiro pai, porque preexistimos nele pelo gérmen seminal. Ora, nele não preexistimos pela alma, mas só pela carne. Logo, o pecado original não está na alma, mas na carne.
4. Demais. — A alma racional criada por Deus é infundida no corpo. Se portanto, a alma fosse contaminada pelo pecado original, sê-lo-ia desde a sua criação ou infusão. E assim, Deus, causa da criação e da infusão, seria também a causa do pecado.
5. Demais. — Ninguém que tenha sabedoria iria despejar um licor precioso num vaso, do qual sabe que o contaminará. Se portanto a alma, pela sua união com o corpo, pudesse contaminar-se com a mácula da culpa original, Deus, que é a sabedoria mesma, nunca haveria de infundi-la em tal corpo. Ora, se a infunde, é que ela não fica maculada pela carne. Portanto, o pecado original não está na alma, mas na carne.
Mas, em contrário, o sujeito de uma virtude e de um vício ou pecado, é o mesmo que o da virtude ou vício contrários. Ora, a carne não pode ser sujeito da virtude, pois, como diz o Apóstolo (Rm 7), eu sei que em mim, quero dizer, na minha carne, não habita o bem. Logo, a carne não pode ser o sujeito do pecado original, mas só a alma.
Solução. — Uma coisa pode estar em outra de dois modos: como na causa, principal ou instrumental, ou como no sujeito. Por onde, o pecado original de todos os homens preexistiu por certo, em Adão, como na causa primeira principal, conforme aquilo do Apóstolo (Rm 5): no qual todos pecaram. Por outro lado, o pecado original preexistia no sêmen do corpo, como na causa instrumental, porque é pela virtude ativa do sêmen que ele se transmite à prole simultaneamente com a natureza humana. Mas, o pecado original de nenhum modo pode ter a carne como sujeito, mas só a alma.
E a razão é que, como já dissemos, pela vontade do primeiro pai, o pecado original se lhe transmitiu aos descendentes, por via de geração, assim como da vontade de um homem o pecado atual se lhe deriva para as outras partes. E nesta derivação notamos o seguinte. Tudo o redundante da moção da vontade, de pecar, para qualquer parte do homem, de algum modo participante do pecado, seja, como sujeito, seja, como instrumento, tudo isso implica essencialmente a culpa. Assim, a vontade da gula faz o concupiscível desejar o alimento, e leva as mãos e a boca a tomarem-no, que, enquanto movidas pela vontade ao pecado, são instrumentos deste. Porém o ulterior redundante na potência nutritiva, e nos membros interiores, de natureza a não serem movidos pela vontade, não implica a culpa essencialmente.
Assim pois, podendo a alma ser sujeito da culpa, e a carne, em si mesma, não, toda a corrupção do primeiro pecado, que atinge a alma, implica a culpa; o que porém não a atinge implica, não culpa, mas a pena. Portanto, a alma, e não a carne, é o sujeito do pecado original.
Donde a resposta à primeira objeção. — Como diz Agostinho, o Apóstolo se refere no lugar citado ao homem já redimido, libertado da culpa, mas sujeito à pena, e por isso diz que o pecado habita na carne. Mas daqui se não segue seja a carne sujeito da culpa, mas só da pena.
Resposta à segunda. — O pecado original tem no sêmen a sua causa instrumental. Ora, não é necessário que o existente na causa instrumental nesta exista mais principalmente que no efeito, senão só na causa principal. E deste modo o pecado original existiu mais principalmente em Adão, em quem existiu como pecado atual.
Resposta à terceira. — A alma de um homem qualquer não preexistiu, seminalmente em Adão pecador, como no seu princípio efetivo, mas como no princípio dispositivo. Porque o sêmen corpóreo, transmitido por Adão, não tem a virtude de produzir a alma racional, mas, só a de dispô-la.
Resposta à quarta. — A mácula do pecado original de nenhum modo foi causada por Deus, mas só pelo pecado do primeiro pai, mediante a geração carnal. Logo, a criação, implicando relação da alma só com Deus, não se pode dizer que por ela fosse maculada. A infusão porém implica relação com Deus, que infunde, e com a carne, na qual é a alma infundida. Logo, considerada a relação com Deus, que infunde, não se pode dizer que pela infusão a alma seja maculada, mas só levando-se em conta a relação com o corpo em que é infundida.
Resposta à quinta. — O bem comum tem preferência sobre o particular. Por isso, Deus, de conformidade com a sua sabedoria, não derroga para evitar o contágio particular de uma alma, a ordem universal das coisas, que exige seja ela infundida em tal corpo. Sobretudo por ser da natureza da alma não começar a existir senão unida ao corpo, como se demonstrou na Primeira Parte. Pois, é-lhe melhor a ela assim existir, segundo a natureza, do que não existir de nenhum modo; sobretudo por poder, pela graça, livrar-se da condenação.
Em seguida devemos tratar do sujeito do pecado original. E nesta questão discutem-se quatro artigos: