Category: Santo Tomás de Aquino
(Iª IIae, q. 9, a. 1; II Cont. Gent., cap. XXVI; De Verit., q. 22, a. 12; De Malo, q. 6).
O quarto discute-se assim. ― Parece que a vontade não move o intelecto.
1. ― Pois o motor é mais nobre que o movido e anterior a este, porque é agente e o agente é mais nobre que o paciente, como diz Agostinho e o Filósofo. Ora, o intelecto tem prioridade sobre a vontade e é mais nobre que ela, como acima se disse (a. 3). Logo, ela não move o intelecto.
2. Demais. ― Só por acidente talvez é que o movido move o motor. Ora, o intelecto move a vontade, porque o desejável apreendido pelo intelecto é motor não movido; ao passo que o apetite é motor movido. Logo, o intelecto não é movido pela vontade.
3. Demais. ― Não podemos querer nada que não seja inteligido. Se, portanto, à vontade, querendo o inteligir, é quem o provoca, será necessário que também a esse querer preceda outro inteligir, e a este, outro querer, e assim até ao infinito, o que é impossível. Logo, a vontade não move o intelecto.
Mas, em contrário, Damasceno diz, que em nós está o conhecer ou não qualquer arte que quisermos. Ora, alguma coisa está em nós pela vontade, ao passo que conhecemos as artes pelo intelecto. Logo, a vontade move o intelecto.
Solução. ― De dois modos se diz que uma coisa move. ― Como fim, como quando se diz que o fim move a causa eficiente. E, deste modo, o intelecto move a vontade, porque o bem inteligido é o objeto dela e a move, como fim. ― De outro modo, como agente; assim, o alterante move o alterado e o impelente, o impelido. E, desta maneira, a vontade move o intelecto e todas as virtudes da alma, como diz Anselmo (Eadmeros). E a razão é que, em todas as potências ativas ordenadas, a potência que visa o fim universal move as que visam fins particulares. O que se vê tanto nas coisas naturais como nas políticas. Assim, o céu, que causa a conservação universal dos seres susceptíveis de geração e de corrupção, move todos os corpos inferiores, dos quais cada um trata da conservação da própria espécie ou mesmo, do indivíduo. Também o rei, que visa o bem comum do reino todo, move pelo seu império cada um dos prepostos das cidades, que se esforçam por conservar o regime em cada uma delas. Ora, o objeto da vontade é o bem e o fim, em comum; e cada potência respeita um bem próprio, que lhe é conveniente; assim, a visão, a percepção da cor e o intelecto, o conhecimento da verdade. Por onde, à vontade, a modo de agente, move todas as potências da alma para os atos próprios delas, excetuando as virtudes naturais da parte vegetativa, independentes do nosso arbítrio.
Donde a resposta à primeira objeção. — O intelecto pode ser considerado sob duplo aspecto; como apreensivo do ente e da verdade universal; e como uma realidade e uma potência particular, tendo um determinado ato. E, semelhantemente, a vontade também pode ser considerada sob duplo aspecto: em relação à comunidade do seu objeto, como apetitiva do bem comum; e como uma determinada potência da alma, tendo um determinado ato. Se, pois, se comparar o intelecto com a vontade, quanto à noção de comunidade dos objetos de ambos, então, como já se disse antes (a. 3), o intelecto é, em si, mais elevado e mais nobre que à vontade. Se porém considerarmos o intelecto e a vontade, aquele quanto à comunidade do seu objeto, e esta como uma determinada potência, então, o intelecto ainda é mais elevado que à vontade e tem prioridade sobre ela; porque, nas noções de ente e de verdade, apreendidas pelo intelecto, está contida a própria vontade com o seu ato e o seu objeto. Por onde, o intelecto intelige à vontade com o seu ato e o seu objeto, bem como as demais coisas inteligidas em especial, como a pedra ou a madeira, que se contêm na noção comum de ente e de verdadeiro. Se, porém, for considerada a vontade, quanto à essência comum do seu objeto, que é o bem, e o intelecto, como uma realidade e uma potência especial, então, em a noção comum do bem está contido o intelecto, como algo de especial, e o inteligir, com o seu objeto, que é a verdade, sendo cada um bem especial. E, sob este aspecto, a vontade é mais elevada que o intelecto e pode movê-lo. Por onde se vê a razão por que essas potências; pelos seus atos, se incluem uma na outra; pois, o intelecto intelige o querer da vontade; e esta quer o inteligir do intelecto. E, por semelhante razão, o bem está contido em a noção do verdadeiro, como um certo verdadeiro inteligido; e o verdadeiro, em a noção do bem, como um certo bem desejado.
Resposta à segunda. ― O intelecto move a vontade diferentemente do modo pelo qual a vontade move o intelecto, como já se disse.
Resposta à terceira. ― Não é preciso proceder até ao infinito, mas deve-se parar no intelecto como no primeiro termo. Pois é necessário que a apreensão preceda a qualquer movimento da vontade; mas nem a toda apreensão precede um movimento da vontade, pois, o princípio do conselho e da intelecção é um princípio intelectivo mais elevado que o nosso intelecto e que é Deus, como o reconhece Aristóteles, mostrando, desse modo, que não é preciso proceder até o infinito.
(A. seq., ad 1; IIª IIae, q. 23, a. 6, ad1; II Sent., dist. XXV, a. 2, ad 4; III, dist. XXVII, q. 1, a. 4; III Cont. Gent., cap. XXVI; De Verit., q. 22, a. 2; De Virt., q. 2, a. 3 ad 12, 13).
O terceiro discute-se assim. ― Parece que a vontade é potência mais elevada que o intelecto.
1. ― Pois, o bem é o fim e o objeto da vontade. Ora, o fim é a primeira e a mais alta das causas. Logo, a vontade é a primeira e a mais elevada das potências.
2. Demais. ― Vemos que as coisas naturais passam de imperfeitas a perfeitas. E isso também vemos nas potências da alma, em que se passa do sentido para o intelecto, que é mais nobre. Ora, há uma passagem natural do ato do intelecto para o da vontade. Logo, a vontade é potência mais perfeita e mais nobre que o intelecto.
3. Demais. ― Os hábitos são proporcionados às potências, como as perfeições, aos perfectíveis. Ora, o hábito pelo qual a vontade se aperfeiçoa, que é a caridade, é mais nobre que aqueles pelos quais se aperfeiçoa o intelecto; pois diz a Escritura (Cor 13, 2): Se eu conhecer todos os mistérios e se tiver toda a fé e não tiver caridade, não sou nada. Logo, a vontade é potência mais elevada que o intelecto.
Mas, em contrário, o Filósofo ensina que a potência altíssima da alma é o intelecto.
Solução. ― A eminência de uma coisa em relação à outra pode considerar-se sob duplo aspecto: absoluta e relativamente. Absolutamente, quando se considera uma coisa tal qual ela é; relativamente, quando se diz que ela é tal, por comparação com outra.
Assim, considerados o intelecto e a vontade em si mesmos, resulta que o primeiro é mais eminente; o que bem se verá, comparando entre si os seus objetos. Pois, o objeto do intelecto é mais simples e absoluto que o da vontade, porque é a noção mesma do bem desejável; ao passo que o objeto da vontade é o bem desejável, cuja noção está no intelecto. Ora, quanto mais um objeto é simples e abstrato, tanto mais é, em si, nobre e elevado. Por onde, o objeto do intelecto é mais elevado que o da vontade. Ora, como é a relação com o objeto que determina a essência própria de uma potência, segue-se que o intelecto, em si e absolutamente, é mais elevado e nobre que à vontade.
Relativamente, porém, e por comparação, com outra coisa, resulta que, às vezes, a vontade é mais elevada que o intelecto, por consistir o seu objeto em algo de mais elevado que o objeto do intelecto. Assim, se dissesse que o ouvido é, relativamente, mais nobre que a vista, por ser o objeto, de que provém um som, mais nobre que o que tem a cor; embora, em si mesma, seja a cor mais nobre e simples que o som. Ora, como se disse antes (q. 16, a. 9; q. 27, a. 4), a ação do intelecto consiste em a noção da coisa inteligida nele residir; ao passo que a ação da vontade se completa pela sua inclinação à coisa como em si mesma é. E por isso o Filósofo diz, que o bem e o mal, objetos da vontade, estão nas coisas; enquanto que o verdadeiro e o falso, objetos do intelecto, estão na mente. Por onde, comparando: quanto mais a coisa, em que consiste o bem, for mais nobre que a alma mesma, na qual reside à noção inteligida, tanto a vontade será mais elevada que o intelecto. Porém, quanto mais a coisa, em que consiste o bem, for inferior à alma, também, por comparação com tal coisa, o intelecto é mais elevado que à vontade. Por isso, melhor é o amor, que o conhecimento de Deus; e, ao contrário, melhor é o conhecimento, que o amor das coisas materiais. Todavia, absolutamente, o intelecto é mais nobre que à vontade.
Donde a resposta à primeira objeção. ― A noção de causa se deduz da comparação de uma coisa com outra; e, de tal comparação, deduz-se que a noção do bem é a principal. Mas a verdade tem significação mais absoluta e exprime a noção do próprio bem. Por onde, o bem é uma espécie de verdade. Mas, por sua vez, também a verdade é uma espécie de bem, enquanto o intelecto é uma realidade e tem, como fim, a verdade. E, entre os demais fins, este é o mais excelente, como o intelecto o é, entre as outras potências.
Resposta à segunda. ― O que é anterior, na geração e no tempo, é mais imperfeito; pois, num mesmo ser, a potência precede ao ato, temporalmente, e a imperfeição, à perfeição. Mas o que é, em si mesmo e na ordem da natureza, anterior, é mais perfeito; assim, o ato é anterior à potência. E deste modo, o intelecto é anterior à vontade, como o motor, ao móvel, e o ativo, ao passivo; pois, é o bem inteligido que move a vontade.
Resposta à segunda. ― Essa razão procede, em relação à vontade comparada com o que é superior à alma; pois, pela virtude da caridade é que amamos a Deus.
(Iª IIae, q. 10, a. 2; II Sent., dist. XXV, a. 2; De Verit., q. 22, a. 6; De Malo, q. 3, a. 3; q. 6; I Periherm., lect XIV).
O segundo discute-se assim. ― Parece que a vontade quer, necessariamente, tudo quanto quer.
1. ― Pois, diz Dionísio, que o mal está fora do alcance da vontade. Logo, a vontade busca, necessariamente, o bem a si proposto.
2. Demais. ― O objeto da vontade está para a mesma, como o motor, para o móvel. Ora, o movimento do móvel resulta, necessariamente, do motor. Logo, o objeto da vontade move-se necessariamente.
3. Demais. ― Assim como o apreendido pelo sentido é o objeto do apetite sensitivo; assim o apreendido pelo intelecto é o objeto do apetite intelectivo, chamado vontade. Ora, o apreendido pelo sentido move, necessariamente, o apetite sensitivo, conforme o dito de Agostinho: os animais são movidos pelas coisas vistas. Logo, o apreendido pelo intelecto move, necessariamente, à vontade.
Mas, em contrário, diz Agostinho que pela vontade pecamos e por ela vivemos bem; e, então ela se exerce sobre termos opostos. Logo, não quer, necessariamente, tudo o que quer.
Solução. ― A vontade não quer, necessariamente, tudo o que quer. E isso se evidencia considerando que, assim como o intelecto adere aos primeiros princípios natural e necessariamente, assim a vontade adere ao último fim, como já se disse (a. 2). Ora, há certos inteligíveis que não têm conexão necessária com os primeiros princípios; assim, as proposições contingentes, de cuja remoção não resulta a remoção dos primeiros princípios. E a essas o intelecto não assente, necessariamente. Há, porém proposições necessárias, que têm conexão necessária com os sobreditos princípios; assim, as conclusões demonstráveis, de cuja remoção resulta a remoção dos primeiros princípios. E, a esses, o intelecto assente necessariamente, conhecida que seja a conexão necessária das conclusões com os princípios, pela dedução da demonstração; não assente, porém, necessariamente, antes de conhecer, pela demonstração, a necessidade da conexão. Ora, o mesmo se passa com a vontade. Assim, há, certos bens particulares sem conexão necessária com a beatitude, porque, sem eles, pode um ser feliz. E a tais bens a vontade não adere necessariamente. Há outros, porém que têm com ela conexão necessária e pelos quais o homem adere a Deus, em quem só consiste a verdadeira beatitude. Contudo, antes de ser demonstrada, pela certeza da visão divina, a necessidade de tal conexão, a vontade não adere, necessariamente, a Deus nem às coisas de Deus. Mas à vontade de quem vê a Deus em essência adere a Ele necessariamente, assim como, nesta vida, queremos necessariamente, ser felizes. Por onde é claro, que a vontade não quer necessariamente tudo o que quer.
Donde a resposta à primeira objeção. ― A vontade não pode buscar nada senão sob a noção de bem. Ora, como este é múltiplo, ela, por isso, não fica determinada a um só, necessariamente.
Resposta à segunda. ― O motor causa, necessariamente, o movimento no móvel, só quando o poder do motor excede o móvel, de modo que toda a sua possibilidade fique sujeita ao motor. Ora, como a possibilidade da vontade é em relação ao bem universal e perfeito, a possibilidade dela não fica totalmente sujeita a nenhum bem particular. E, portanto, não é movida por este, necessariamente.
Resposta à terceira. ― A virtude sensitiva não compara noções diversas, como a razão, mas apreende, absolutamente o seu objeto como uno. E por isso, por esse objeto uno, move, determinadamente, o apetite sensitivo. Mas a razão, comparando muitas noções, o apetite intelectivo ou vontade pode ser movido por muitos objetos, e não por um só, necessariamente
(Iª IIae, q. 10, a. 1; II Sent., dist. ., q. 22, a. 5; De Malo, q. 6).
O primeiro discute-se assim. ― Parece que a vontade não deseja nada necessariamente.
1. ― Pois, como diz Agostinho, se alguma coisa é necessária não é voluntária. Ora, tudo o que a vontade deseja é voluntário. Logo, ela nada deseja necessariamente.
2. Demais. ― As potências racionais, segundo o Filósofo, se exercem sobre termos opostos. Ora, a vontade é uma potência racional, pois, como se disse, ela reside na razão. Logo, ela se exerce sobre termos opostos e, portanto, não está determinada, necessariamente, a nada.
3. Demais. ― Pela vontade somos senhores dos nossos atos. Ora, não o somos do que é necessário. Logo, o ato da vontade não pode ter necessidade.
Mas, em contrário, diz Agostinho, que todos, com vontade una, desejam a beatitude. Ora, se este desejo não fosse necessário, mas contingente, falharia, pelo menos em alguns casos. Logo a vontade quer alguma coisa, necessariamente.
SOLUÇÃO. ― O vocábulo ― necessidade ― tem muitas significações. Assim, é necessário o que não pode deixar de ser; podendo tal convir a uma coisa, quer por princípio intrínseco ou material, como quando dizemos que todo composto de elementos contrários deve necessariamente corromper-se; quer pelo princípio formal, como quando dizemos ser necessário que todo triângulo tenha três ângulos iguais e dois retos. E essa necessidade se chama natural e absoluta. ― De outro modo, diz-se que uma coisa não pode deixar de ser, por um princípio intrínseco, que é fim ou agente. Fim, como quando alguém não pode, sem este, conseguir ou bem conseguir qualquer outro fim; assim, diz-se que o alimento é necessário à vida e um cavalo, para uma viagem. E essa é a necessidade de fim, chamada também, às vezes, utilidade. Porém a necessidade pode provir do agente, como quando alguém é por ele coagido de modo a não ser possível agir em sentido contrário. E essa é à vontade de coação, que repugna, absolutamente, à vontade, pois, denominamos violento o que vai contra a inclinação de um ser. Ora, o movimento mesmo da vontade é uma certa inclinação para alguma coisa. Por onde, assim como se chama natural ao que é conforme, à inclinação da natureza, assim se chama voluntário ao que é conforme a inclinação da vontade. Ora, como é impossível a simultaneidade do violento e do natural, assim também o é que absolutamente, o coagido ou violento seja voluntário. Porém, a necessidade de fim não repugna à vontade, quando esta não pode obtê-lo senão de um modo; assim, o desejo de atravessar o mar faz com que a vontade queira, necessariamente, o navio. Semelhantemente, a necessidade natural também não repugna à vontade. Antes, é necessário que, assim como o intelecto necessariamente adere aos primeiros princípios, assim a vontade adira necessariamente ao último fim, que é a beatitude. Pois, o fim está para a operação, como o princípio para a especulação, segundo já se disse. Por onde, é forçoso que o que convém a um ser, natural e imovelmente, seja o fundamento e o princípio de todas as demais conveniências; porque a natureza da coisa é, em cada ser, o que é primário, todo movimento procedendo de algum ser imóvel.
Donde a resposta à primeira objeção. ― A expressão de Agostinho deve-se entender do que é necessário pela necessidade de coação. Pois, a necessidade natural não tira a liberdade da vontade, como ele próprio o diz, no mesmo livro.
Resposta à segunda. ― A vontade pela qual alguém quer naturalmente mais corresponde ao intelecto dos princípios naturais do que à razão, que se exerce sobre as oposições. Por onde, desse ponto de vista, é uma potência mais intelectual do que racional.
Resposta à terceira. ― Somos senhores dos nossos atos enquanto podemos escolher tal coisa ou tal outra. Ora, a eleição não se refere ao fim, mas ao que leva para o fim, como se disse. Por onde, o desejo do fim último não é daqueles de que somos senhores.
Em seguida deve-se tratar da vontade. Sobre a qual cinco artigos se discutem:
O quarto discute-se assim. — Parece que alguns demônios são naturalmente maus.
1. — Pois, diz Porfírio, como refere Agostinho, que há um certo gênero de demônios de natureza falaz, que simulam os deuses e as almas dos defuntos. Ora, ser falaz é ser mau. Logo, alguns demônios são naturalmente maus.
2. Demais. — Como os anjos foram criados por Deus, assim também os homens. Ora, alguns homens são naturalmente maus, dos quais diz a Escritura: A malícia lhes é natural. Logo, também alguns homens podem ser naturalmente maus.
3. Demais. — Alguns animais irracionais têm certas malícias naturais; assim, as raposas são naturalmente sorrateiras, o lobo naturalmente é rapace; e contudo são criaturas de Deus. Logo, também os demônios, embora criaturas de Deus, podem ser naturalmente maus.
Mas, em contrário, diz Dionísio, que os demônios não são naturalmente maus.
Solução. — Tudo o existente, enquanto existe e tem uma determinada natureza, tende naturalmente para algum bem, por provir de um princípio bom, pois, sempre o efeito se converte no seu princípio. Ora, acontece que todo bem particular vai sempre acompanhado de algum mal; assim, com o fogo vai junto o mal de ser consumido de outros seres; mas nenhum mal pode ir de mistura com o bem universal. Se, portanto, há algum ser cuja natureza se ordene a algum bem particular, esse pode naturalmente tender para algum mal, não como mal, mas acidentalmente, enquanto esse mal vai com algum bem. Se, porém, há algum ser cuja natureza seja ordenada ao bem, segundo a noção comum de bem, esse não pode tender para nenhum mal. Ora, é manifesto, toda natureza intelectual, se ordena ao bem universal, que pode apreender e é o objeto da vontade. Donde, sendo os demônios substâncias intelectuais, de nenhum modo podem ter inclinação natural para qualquer mal. E logo, não podem ser naturalmente maus..
Donde a resposta à primeira objeção. — Agostinho, no passo citado, repreende Porfírio dizendo que os demônios são naturalmente falazes; e afirma que são falazes, não naturalmente, mas por vontade própria. Mas Porfírio ensinou que os demônios são naturalmente falazes, pelos conceber como animais de natureza sensitiva e alma passiva. Ora, a natureza sensitiva se ordena para algum bem particular com o qual pode ir o mal de mistura. E, deste modo, os demônios podem ter inclinação natural para o mal; acidentalmente, porém, enquanto o mal está de mistura com o bem.
Resposta à segunda. — Pode-se dizer que a malícia de alguns homens é natural, quer pelo costume, que é uma segunda natureza, quer por inclinação natural, por parte da natureza sensitiva, a alguma paixão desordenada; assim, certos são chamados naturalmente iracundos ou concupiscentes. Não, porém, por parte da natureza intelectual.
Resposta à terceira. — Os brutos, segundo a natureza sensitiva, têm inclinação natural a certos bens particulares, com os quais vão de mistura certos males. Assim a raposa, a buscar o alimento sagazmente, com o que vai junto o dolo; por isso, ser dolosa não é mal para a raposa, porque lhe é natural, assim como também não é mal para o cão ser furioso, conforme diz Dionísio.
(Iª IIae., q. 17, art. 7; De Verit., q. 25, a. 4; I Ethic., lect. XX).
O terceiro discute-se assim. ― Parece que o irascível e o concupiscível não obedecem à razão.
1. ― Pois, são partes da sensualidade. Ora, esta não obedece à razão, sendo por isso denominada serpente por Agostinho. Logo, o irascível e o concupiscível também não lhe obedecem.
2. Demais. ― O que obedece a alguém não lhe repugna. Ora, o irascível e concupiscível repugnam à razão, conforme a Escritura (Rm 7, 23): Mas sinto nos meus membros outra lei que repugna à lei do meu espírito. Logo, o irascível e o concupiscível não obedecem à razão.
3. Demais. ― Assim como a virtude apetitiva é inferior à parte racional da alma, assim também o é a sensitiva. Ora, esta não obedece à razão, pois não ouvimos nem vemos quando queremos. Logo, semelhantemente, nem as virtudes do apetite sensitivo, a saber, o irascível e o concupiscível, lhe obedecem.
Mas, em contrário, diz Damasceno, a parte obediente à razão e que se deixa por ela persuadir se divide em concupiscência e ira.
Solução. ― O irascível e o concupiscível obedecem à parte superior, em que residem o intelecto ou razão e a vontade, de dois modos: um quanto à razão; outro, quanto à vontade.
Assim, obedecem à razão, quanto aos atos próprios deles. E isso porque ao apetite sensitivo, nos animais, é natural ser movido pela virtude estimativa; como, p. ex., a ovelha, tendo o lobo como inimigo, teme. Ora, como já ficou dito (q. 78, a. 4), em lugar da estimativa o homem tem a virtude cogitativa, chamada por certos razão particular, por ser a que compara entre si as intenções individuais. Donde o ser natural ao apetite sensitivo, no homem, mover-se por ela. Mas a essa razão particular mesma é natural ser movida e dirigida pela razão universal; e daí vem que, nos raciocínios silogísticos, de proposições universais se tiram conclusões particulares. Por onde, como é claro, a razão universal impera sobre o apetite sensitivo, que se divide em concupiscível e irascível, e obedece àquela. E como deduzir conclusões singulares, de princípios universais, não é função do simples intelecto, mas da razão, resulta o dizer-se que o irascível e o concupiscível mais obedecem à razão do que ao intelecto. E isso todos podem experimentar em si mesmos; pois, a aplicação de certas considerações universais mitiga ou instiga a ira, o temor e afetos semelhantes.
À vontade, porém, está sujeito o apetite sensitivo, quanto à execução, que se faz pela virtude motiva. Pois, nos animais, o movimento se segue, imediatamente, ao apetite concupiscível e ao irascível; assim, a ovelha, temendo o lobo, foge imediatamente; e isso porque não há, nos animais, um apetite superior que repugne. Ao passo que o homem não se move imediatamente pelo apetite concupiscível e pelo irascível; mas espera o império da vontade, que é apetite superior. Ora, em todas as potências motivas ordenadas, o segundo motor não move senão em virtude do primeiro. Por onde, o apetite inferior não basta para mover, sem que nisso consinta o superior. E isso diz o Filósofo: o apetite superior move o inferior, como a esfera superior, a inferior.
É, pois, desse modo, que o irascível e o concupiscível estão sujeitos à razão.
Donde a resposta à primeira objeção. ― A sensualidade é representada pela serpente, naquilo que a primeira é próprio, quanto à parte sensitiva. Porém, o irascível e o concupiscível sobretudo denominam o apetite sensitivo, quanto ao ato ao qual induzem a razão, como já se disse.
Resposta à segunda. ― Como diz o Filósofo, deve-se distinguir, no animal, o principado despótico e o político. Assim, a alma domina o corpo pelo principado despótico; porém, o intelecto domina o apetite pelo principado político e real. Ora, chama-se principado despótico aquele pelo qual alguém governa escravos, que, como nada têm de seu, nenhuma faculdade têm para resistir, seja no que for, ao império de quem manda. Ao passo que se chama principado político e real aquele em virtude do qual alguém governa homens livres, que, embora sujeitos ao regime de quem preside, tendo contudo algo de próprio, podem opor-se ao império de quem manda. Ora, é pelo principado despótico, que a alma governa o corpo, porque os membros do corpo não podem resistir ao império da alma, em nada; mas, imediatamente, ao desejo desta, movem-se às mãos, os pés e qualquer outro membro susceptível de mover-se pelo movimento voluntário. Porém o intelecto ou razão governam o irascível e o concupiscível pelo principado político; porque o apetite sensível, tendo algo de próprio, pode opor-se ao império da razão. Pois, é natural a esse apetite ser movido, não somente pela estimativa, nos animais, e pela cogitativa, no homem, que é dirigido pela razão universal, mas também pela imaginativa e pelo sentido. Por onde, experimentamos que o irascível ou o concupiscível repugnam à razão, quando sentimos ou imaginamos algo de deleitável, que a razão proíbe, ou de triste, que ela ordena. Assim que, pelo repugnarem, em alguma coisa, à razão, não se exclua que o irascível e o concupiscível obedeçam à mesma.
Resposta à terceira. ― Os sentidos externos necessitam, para os seus atos, dos sensíveis externos, que neles causam mutação e cuja presença não depende do poder da razão. Mas as virtudes internas, tanto as apetitivas como as apreensivas, não necessitam das coisas externas. E, portanto, sujeitam-se ao império da razão, que pode, não somente instigar ou mitigar o afeto da virtude apetitiva, como também formar os fantasmas da virtude imaginativa.
(Infra, q. 82, a. 5; III Sent., dist. XXVI, q. 1, a. 2; De Verit., q. 25, a. 2 De Malo, q. 8, a. 3; III De Anima, lect XIV).
O segundo discute-se assim. ― Parece que o apetite sensitivo não se divide em irascível e concupiscível, como potências diversas.
1. ― Pois, cada potência da alma se refere a uma contrariedade, como a vista, ao branco e ao negro, conforme já foi dito. Ora, o conveniente e o nocivo são contrários. Portanto, como o concupiscível diz respeito ao conveniente, e o irascível, ao nocivo, resulta que à mesma potência da alma pertencem o irascível e o concupiscível.
2. Demais. ― Ao apetite sensitivo pertence o que convém sensualmente. Ora, o que assim convém é objeto do concupiscível. Logo, nenhum apetite sensitivo é diferente do concupiscível.
3. Demais. ― O ódio pertence ao irascível, pois, diz Jerônimo: Possuamos no irascível o ódio dos vícios. Ora, o ódio, como contrário do amor, pertence ao concupiscível. Logo, a faculdade do concupiscível é a mesma que a do irascível.
Mas, em contrário, Gregório Nisseno e Damasceno dizem que são duas as virtudes, o irascível e o concupiscível, partes do apetite sensitivo.
Solução. ― O apetite sensitivo é, genericamente, uma só potência, que se chama sensualidade; mas divide-se em duas potências, que são espécies do apetite sensitivo, a saber, a irascível e a concupiscível. E isto se evidencia considerando que, nas coisas naturais corruptíveis, deve existir, não somente a inclinação para conseguir o conveniente e fugir o nocivo, mas também para resistir às coisas que, corrompendo e sendo contrárias, trazem impedimento e causam dano ao que é conveniente. Assim, o fogo tem inclinação natural, não só para afastar-se do lugar inferior, que não lhe é conveniente, e para tender ao superior, que lho é, mas também para resistir ao que lhe traz corrupção e impedimento. Ora, sendo o apetite sensitivo a inclinação conseqüente à apreensão sensitiva, assim como o apetite natural é a conseqüente à forma natural, necessário é haver, na parte sensitiva, duas potências apetitivas. Uma, pela qual o animal se inclina, absolutamente, a buscar o que lhe é conveniente, conforme ao sentido, e a fugir o que é nocivo; e, essa se chama concupiscível. Outra, porém, pela qual resiste ao que se opõe às coisas convenientes e lhes causam dano, e essa se chama irascível; donde o considerar-se como objeto desta potência aquilo que é árduo, pois ela tende a superar e vencer os contrários.
Mas estas duas inclinações não se reduzem a um mesmo princípio; porque, por vezes, o animal arrosta a dor, contra a inclinação do concupiscível, para se opor ao que lhe é contrário, seguindo a inclinação do irascível. Por onde se vê que as paixões do irascível repugnam às do concupiscível. Pois, a concupiscência, acesa, diminui a ira e esta, acesa, diminui aquela na maior parte dos casos. E por aí é também claro que o irascível pugna pelo concupiscível e o defende, insurgindo-se contra o que, de um lado, impede as coisas convenientes ao concupiscível e por este apetecidas e, de outro, causa danos que o concupiscível quer evitar. Donde vem, que todas as paixões do irascível começam pelas do concupiscível e nelas terminam; assim, a ira, nascendo da pena que a provoca, termina pela alegria, depois que se vingou. E é por isso que os animais lutam pelas coisas do concupiscível, a saber, as que dizem respeito ao alimento e as venéreas, como diz Aristóteles.
Donde a resposta à primeira objeção. ― A virtude concupiscível diz respeito tanto ao conveniente como ao inconveniente; ao passo que a irascível visa resistir ao inconveniente, contra o qual luta.
Resposta à segunda. ― Assim como, nas virtudes apreensivas da parte sensitiva, há uma virtude estimativa, perceptiva das coisas que não causam mutação no sentido, conforme já se disse (q. 78, a. 4); assim também, no apetite sensitivo, há uma virtude apetitiva do que lhe é conveniente, não segundo a deleitação do sentido, mas segundo é útil ao animal, para a sua defesa. E esta é a virtude irascível.
Resposta à terceira. ― O ódio pertence, absolutamente, ao concupiscível; mas, em razão da impugnação causada pelo ódio, pode pertencer ao irascível.
(II Sent., Dist. XXIV, q. 2, a. 1; De Verit., q. 25, a. 1).
O primeiro discute-se assim. ― Parece que a sensualidade não somente é apetitiva mas também cognitiva.
1. ― Pois, Agostinho diz, que o movimento sensual da alma, que se exerce pelos sentidos do corpo, é-nos comum com os animais. Ora, os sentidos do corpo estão contidos na virtude cognitiva. Logo, a sensualidade é virtude cognitiva.
2. Demais. ― Coisas que entram na mesma divisão pertencem ao mesmo gênero. Ora, Agostinho divide a sensualidade por oposição com a razão superior e a inferior, que pertencem ao conhecimento. Logo, também a sensualidade é uma virtude cognitiva.
3. Demais. ― Na tentação do homem, a sensualidade está no lugar da serpente. Ora, a tentação dos nossos primeiros pais, desempenhou-se como anunciante e proponente do pecado, o que pertence à virtude cognitiva. Logo, a sensualidade é uma virtude cognitiva.
Mas, em contrário, a sensualidade se define: o apetite das coisas que pertencem ao corpo.
Solução. ― Sensualidade é palavra tirada do movimento sensual, de que fala Agostinho; assim, como do ato se tira o nome da potência, como da visão a vista. Ora, o movimento sensual é o apetite conseqüente à apreensão sensível; pois, o ato da virtude apreensiva não se chama propriamente movimento, como a ação do apetite. Porque, a operação da virtude apreensiva se completa estando as coisas apreendidas no apreendente; ao passo que a operação da virtude apetitiva se completa pelo inclinar-se do apetente para a coisa apetecida. Por onde, a operação da virtude apreensiva é assimilada ao repouso; ao passo que a da virtude apetitiva mais se assimila ao movimento. Por isso, por movimento sensual se entende a operação da virtude apetitiva. Assim, a sensualidade é o nome do apetite sensitivo.
Donde a resposta à primeira objeção. ― O dito de Agostinho, que o movimento sensual da alma se exerce pelos sentidos do corpo, não quer dizer que os sentidos do corpo estejam compreendidos na sensualidade; mas antes, que o movimento desta é uma como inclinação para os sentidos do corpo, enquanto apetecemos as coisas apreendidas por eles. E assim, estes são como que os preâmbulos da sensualidade.
Resposta à segunda. ― A sensualidade se divide por oposição com a razão superior e a inferior, enquanto estas têm de comum o ato da moção. Pois, a virtude cognitiva, à qual pertencem a razão superior e a inferior, é motiva; como também a virtude apetitiva, à qual pertence a sensualidade.
Resposta à terceira. ― A serpente não só mostrou e propôs o pecado, mas também inclinou para o afeto deste; e por isto é que a sensualidade é representada pela serpente.
Em seguida deve-se tratar da sensualidade, sobre a qual três artigos se discutem: