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Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Questão 85: Do modo e da ordem de inteligir.

Em seguida deve-se considerar o modo e a ordem de inteligir. E, sobre este ponto, oito artigos se discutem:

Art. 8 — Se o pecado do primeiro anjo foi causa de outros pecarem.

O oitavo discute-se assim. — Parece que o pecado do primeiro anjo não foi causa de os outros pecarem.
 
1. — Pois, a causa é anterior ao efeito. Ora, todos pecaram simultaneamente, como diz Damasceno. Logo, o pecado de um não foi causa de os outros pecaram.
 
2. Demais. — O primeiro pecado do anjo só pôde ser a soberba, como antes se disse. Ora, a soberba busca a excelência, e mais repugna a esta que alguém se submeta a um inferior do que a um superior. E, assim, não parece tivessem os demônios pecado por terem querido antes se submeter a algum dos anjos superiores, do que a Deus. O pecado de um anjo teria sido, sim, a causa de os outros pecarem se esse tivesse induzido os outros a se lhe submeterem. Logo, resulta que o pecado do primeiro anjo não foi a causa de os outros pecarem.
 
3. Demais. — É maior pecado querer submeter-se a outrem, contra Deus, do que querer, contra Deus, governar a outrem, porque, neste último caso, é menor o motivo de pecar. Se, pois, o pecado do primeiro anjo foi causa de os outros pecarem pelos ter induzido a se lhe submeterem, mais gravemente pecaram os anjos inferiores que o superior; o que vai contra a Escritura: Este dragão que formaste; ao que diz a Glossa: O que era mais excelente do que todos os outros, pelo ser, tornou-se maior pela malícia. Logo, o pecado do primeiro anjo não foi causa de os outros pecarem.
 
Mas, em contrário, diz a Escritura que o dragão arrastou consigo a terceira parte das estrelas.
 
Solução. — O pecado do primeiro anjo foi causa de os outros pecarem, não os obrigando, mas os induzindo por uma quase exortação. E a prova disto resulta de se submeterem todos os demônios ao demônio supremo, como se vê manifestamente do que diz o Senhor, na Escritura: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, que foi preparado para o diabo e para os seus anjos. Pois, a ordem da divina justiça determina que quem consentiu na culpa, sugestionado por outrem, a este deve submeter-se, na pena, segundo a Escritura: Todos aquele que é vencido, é escravo daquele que o venceu.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Embora os demônios tivessem pecado simultaneamente, contudo o pecado de um podia ser a causa de os outros pecarem. Pois, o anjo não precisa de nenhum lapso de tempo para escolher, exortar ou consentir, como o homem, que precisa deliberar para eleger e consentir, e carece da locução vocal para exortar; coisas todas que se realizam no tempo. Ora, como é claro, também no mesmo instante concebemos algo na mente e começamos a falar; e no último instante da locução, quem compreendeu o pensamento já pode assentir ao que dissemos; e isso de dá sobretudo com os princípios primeiros, simultaneamente ouvidos e admitidos. Portanto, eliminado o tempo da locução e da deliberação, necessário para nós, no mesmo instante em que o primeiro anjo exprimiu o seu desejo por meio duma locução inteligível, foi possível aos outros consentir nele.
 
Resposta à segunda. — O soberbo, prefere em igualdade de situação, submeter-se antes ao superior que ao inferior. Mas, se conseguir, sob o inferior, alguma excelência maior que sob o superior, antes prefere obedecer àquele do que a este. Portanto, não era contra a soberba dos demônios o terem querido obedecer ao inferior, consentindo-lhe no principado e querendo tê-lo como príncipe e chefe, para conseguirem, pela virtude natural, a beatitude última; sobretudo porque, por então, estavam também sujeitos ao anjo supremo na ordem da natureza.
 
Resposta à terceira. — Como já ficou dito antes, nada há no anjo que lhe retarde as tendências; antes, é movido para o seu objeto, bom ou mau, em toda a sua virtude. Assim, pois, tendo o anjo supremo virtude natural maior que os inferiores, resvalou no pecado com mais intenso movimento. Por onde, também veio a ser maior na malícia.

Art. 7 — Se o anjo supremo, dentre os que pecaram, era o supremo de todos.

O sétimo discute-se assim. — Parece que o anjo supremo, dentre os que pecaram, não era o supremo de todos.
 
1. — Pois, diz a Escritura: Tu eras um Querubim que estendia as suas asas e protegia (o trono de Deus), e eu coloquei-te sobre o monte santo de Deus. Ora, a ordem dos Querubins está subordinada à dos Serafins, como diz Dionísio. Logo, o anjo superior, dentre os que pecaram, não era superior a todos.
 
2. Demais. — Deus fez a natureza intelectual para que ela conseguisse a beatitude. Se portanto o anjo superior a todos pecou, segue-se que o plano divino, na mais nobre das criaturas, ficou frustrado, o que é inconveniente.
 
3. Demais. — Quanto mais um ser se inclina para outro, tanto menos poderá deste separar-se. Ora, o anjo, quanto mais elevado, tanto mais se inclina para Deus. Logo, tanto menos poderá, pecando, perder a Deus; e, assim, resulta que o anjo que pecou não foi o supremo de todos, mas estava entre os inferiores.
 
Mas, em contrário, diz Gregório: o primeiro anjo que pecou, por ser o chefe de todas as ordens dos anjos e lhes transcender o esplendor, era, comparado com eles, mais esplêndido.
 
Solução. — Duas coisas se devem considerar no pecado: a propensão e o motivo para pecar. Se, pois, considerarmos, nos anjos, a propensão, menos parece terem pecado os superiores que os inferiores. Por isso Damasceno diz que o maior dos que pecaram era o chefe dos da ordem terrestre. E esta opinião parece consoante à posição dos Platônicos referida por Agostinho. Pois, diziam eles, que todos os deuses eram bons; mas, dos demônios, uns bons, outros maus, chamando deuses às substâncias intelectuais superiores ao globo lunar e, demônios, as inferiores a esse globo, mas superiores aos homens na ordem da natureza. Nem se deve rejeitar esta opinião como alheia à fé, pois toda criatura corporal é governada por Deus, por meio dos anjos, como diz Agostinho. Donde, nada impede dizer-se, que os anjos inferiores estão divinamente ordenados a administrar os corpos inferiores; os superiores, porém, a administrar os corpos superiores; e por fim, os mais elevados de todos, a assistirem a Deus. E segundo esta opinião, Damasceno diz que os que caíram foram dos inferiores, na ordem dos quais, todavia, permaneceram alguns bons.
 
Se porém se considerar o motivo para pecar, é este maior nos superiores que nos inferiores. Pois, o pecado dos demônios foi a soberba, como antes se disse; e desta o motivo é a excelência, maior nos superiores. Por isso diz Gregório que pecou o mais elevado de todos; opinião que parece mais provável. Porquanto o pecado do anjo não procedeu de nenhuma propensão, mas somente do livre arbítrio. Por onde, mais digna de consideração parece ser a razão tirada do motivo para pecar. — Mas nem por isto se deve rejeitar a outra opinião, porque mesmo nos chefes dos anjos inferiores podia haver algum motivo para pecar.
 
Donde a resposta à primeira objeção. Querubim quer dizer plenitude da ciência e, Serafim, ardentes ou que incendeiam. Assim, é claro que o Querubim tira a sua denominação da ciência, que pode ir com o pecado mortal; porém, a denominação de Serafim vem do ardor da caridade, que não pode coexistir com tal pecado. Por isso, o primeiro anjo pecador não era denominado Serafim, mas Querubim.
 
Resposta à segunda. — A intenção divina não se frustra nem nos que pecam nem nos que se salvam. Pois, Deus tem a presciência de um e outro acontecimento, dos quais tira glória para si, salvando a uns pela sua bondade, punindo aos outros pela sua justiça. Ora, a criatura intelectual, pecando, desvia-se do último fim. E nem isso repugna a qualquer criatura sublime, pois, a criatura intelectual foi criada por Deus, de natureza tal que esteja no arbítrio dela agir visando o fim.
 
Resposta à terceira. — Por maior inclinação que o mais elevado de todos os anjos tivesse para o bem, ela, todavia, não se lhe impunha com necessidade. Donde, podia não a seguir, com seu livre arbítrio.

Art. 8 — Se o juízo do intelecto fica impedido, por privação dos sentidos.

(IIª IIae, q. 154, a. 5; III Sent., dist. XV, q. 2, a. 3, qª 2. ad 2; De Verit., q. 12, a. 3, ad 1 sqq.; q. 28, a. 3, ad 6).
 
O oitavo discute-se assim. ― Parece que o juízo do intelecto não fica impedido, por privação dos sentidos.
 
1. ― Pois, o superior não depende do inferior. Ora, o juízo do intelecto é superior aos sentidos. Logo, não fica impedido pela privação deles.
 
2. Demais. ― Silogizar é ato do intelecto. Ora, no sono há privação dos sentidos, como se diz em certa obra; todavia, acontece que alguém, dormindo, silogize. Logo, o juízo do intelecto não fica impedido pela privação dos sentidos.
 
Mas, em contrário, não se imputam, como pecado, as coisas contrárias, durante o sono, aos costumes lícitos. Ora, tal não se daria se o homem, dormindo tivesse o livre uso da razão e do intelecto. Logo, fica impedido o uso da razão, pela privação dos sentidos.
 
Solução. ― Como já se disse, o objeto próprio e proporcionado ao nosso intelecto é a natureza da coisa sensível. Ora, não é possível fazer juízo perfeito de uma coisa sem que se conheça tudo o que pertence a tal coisa; e, sobretudo, se se ignorar o termo e o fim do juízo. Pois, o Filósofo diz: como o fim da ciência operativa é a obra, o fim da ciência natural é aquilo que é apreendido sempre e propriamente pelos sentidos. Assim, o ferreiro não procura o conhecimento da faca, senão por causa da operação, que o leva a fazer uma determinada faca; e, semelhantemente, o naturalista não procura conhecer a natureza da pedra e do cavalo, senão para conhecer as razões do que é percebido pelo sentido. Ora, é claro que o ferreiro não poderia formar um juízo perfeito a respeito da faca, se ignorasse como se faz uma faca; e, semelhantemente, o naturalista não poderia fazer um juízo perfeito das causas materiais, se ignorasse os sensíveis. Ora, todas as coisas que inteligimos, no estado da vida presente, nós as conhecemos por comparação com as coisas sensíveis naturais. Por onde, é impossível haver em nós um juízo perfeito do intelecto, durante a privação dos sentidos, pelos quais conhecemos as coisas sensíveis.
 
Donde a resposta à primeira objeção. ― Embora o intelecto seja superior ao sentido, recebe contudo deste, de certo modo, os seus dados; e os seus objetos primeiros e principais fundam-se nos sensíveis. Por onde, necessariamente; o juízo do intelecto fica impedido pela privação dos sentidos.
 
Resposta à segunda. ― Nos adormecidos, a privação dos sentidos é causada por certas evaporações e fumosidades que se desprendem, como se diz na obra citada. Por onde, segundo a disposição de tais evaporações, assim maior ou menor é a privação dos sentidos. E por isso, se for intenso o movimento dos vapores, haverá privação não só dos sentidos, mas também da imaginação, de modo que nenhum fantasma aparecerá; como acontece, principalmente quando alguém começa a dormir depois de muito haver comido e bebido. Se porém, o movimento dos vapores for um pouco remisso, aparecerão os fantasmas, mas disformes e desordenados, como acontece com os febricitantes. Mas se o movimento for ainda mais calmo, aparecerão os fantasmas ordenados, como costuma acontecer, sobretudo, no fim do sono, com os homens sóbrios e dotados de forte imaginação. Se por fim, o movimento dos vapores for módico, não só a imaginação ficará livre, mas também o próprio sentido comum fica-lo-á, em parte ; de modo que o homem julga, por vezes, dormindo, que as coisas vistas são sonhos, discernindo, por assim dizer, entre as coisas e as semelhanças delas. Mas por outro lado, o sentido comum permanece ligado; e por isso, embora discirna, das coisas, algumas semelhanças, contudo cai sempre em alguns enganos. Assim pois, do modo pelo qual o sentido e a imaginação ficam livres, no sono, desse mesmo fica livre o juízo do intelecto, não, porém, totalmente, Por onde, aqueles que, dormindo, silogizam, quando acordam sempre reconhecemos que, em algo, se enganaram.

Art. 7 — Se o intelecto pode inteligir em ato, pelas espécies inteligíveis, que traz em si mesmo, sem se valer dos fantasmas.

(Infra, q. 89, a. 1; II Sent., dist. XX, q. 2, a. 2, ad 3; III, dist. XXXI, q. 2, a. 4; II Cont. Gent., cap. LXXIII, LXXXI; De Verit., q. 10, a. 2, ad 7; a. 8, ad 1; q. 19, a. 1; I Cor., cap. XIII, lect. XII; De Mem. et Remin., lect. III).
 
O Sétimo discute-se assim. ― Parece que o intelecto pode inteligir, em ato, pelas espécies que traz em si, sem se valer dos fantasmas.
 
1. ― Pois, o intelecto é atualizado pela espécie inteligível que o informa. Ora, o intelecto atualizado é o inteligir mesmo. Logo, as espécies inteligíveis bastam para o intelecto se atualizar sem se valer dos fantasmas.
 
2. Demais. ― Mais depende a imaginação, do sentido, do que o intelecto, da imaginação. Ora, esta pode imaginar em ato, estando ausentes os sensíveis. Logo, com maioria de razão, o intelecto pode inteligir em ato, sem se valer dos fantasmas.
 
3. Demais. ― Não há fantasmas de seres incorpóreos, porque a imaginação não transcende o tempo e o contínuo. Se, pois, o nosso intelecto não pudesse inteligir nada em ato, sem se valer dos fantasmas, resultaria que não poderia inteligir nada de incorpóreo. O que é claramente falso; pois inteligimos a verdade mesma, Deus e os anjos.
 
Mas, em contrário, diz o Filósofo que, a alma não intelige nada sem o fantasma.
 
Solução. ― É impossível ao nosso intelecto, no estado da vida presente, enquanto unido ao corpo, inteligir qualquer coisa, em ato, sem se valer dos fantasmas. O que ressalta de dois indícios. ― Primeiro, sendo o intelecto uma virtude que não se serve de órgão corpóreo de nenhum modo seria impedido, no seu ato, por uma lesão em qualquer desses órgãos, se não fosse necessário, para tal ato, o ato de alguma potência que se serve do sobredito órgão. Ora, o sentido, a imaginação, e outras virtudes pertencentes à parte sensitiva servem-se de órgão corpóreo. Por onde, é manifesto que, para o intelecto inteligir em ato, não só adquirindo ciência nova, mas usando da ciência já adquirida, é necessário o ato da imaginação e das outras virtudes. Pois, vemos que, impedido o ato da virtude imaginativa, por lesão do órgão, como nos frenéticos, e, semelhantemente, impedido o ato da virtude memorativa, como nos letárgicos, o homem fica impedido de inteligir em ato, mesmo aquelas coisas cuja ciência já possuía. ― Segundo, qualquer pode experimentar em si mesmo que, quando se esforça por inteligir uma coisa, forma fantasmas, para si, a modo de exemplos, nos quais como que vê o que se esforça por inteligir. E daí procede também que quando queremos fazer alguém inteligir alguma coisa, propomos-lhe exemplos pelos quais pode formar, para si, fantasmas, afim de inteligir.
 
E a razão disto é que a potência cognoscitiva é proporcionada ao cognoscível. Por onde, o intelecto angélico, totalmente separado do corpo, tem como objeto próprio à substância inteligível separada do corpo e, nesse inteligível, conhece as coisas materiais. Porém o intelecto humano, unido ao corpo, tem como objeto próprio a qüididade ou natureza existente na matéria corpórea; e, por tais naturezas, do conhecimento das coisas visíveis ascende a um certo conhecimento das invisíveis. Ora, é da essência de tal natureza existir num indivíduo, o qual não existe sem matéria corpórea; como é da essência da natureza da pedra existir numa determinada pedra; da essência da natureza do cavalo, existir num determinado cavalo, e assim por diante. Por onde, a natureza da pedra, ou de qualquer coisa material, não pode ser conhecida completa e verdadeiramente, senão enquanto conhecida como existente num ser particular. Ora, este nós o apreendemos pelo sentido e pela imaginação. E por isso, é necessário, para inteligir em ato o seu objeto próprio, que o intelecto se valha dos fantasmas a fim de conhecer a natureza universal existente no particular. Se, porém o objeto próprio do nosso intelecto fosse a forma separada, ou se as formas das coisas sensíveis não subsistissem nos particulares, segundo Platão, não seria necessário que o nosso intelecto sempre, inteligindo, se voltasse para os fantasmas.
 
Donde a resposta à primeira objeção. ― As espécies conservadas no intelecto possível neste existem habitualmente, quando ele não intelige em ato, como já se disse antes. Por onde, para inteligirmos em ato, não basta à conservação mesma das espécies; mas é necessário que delas nos sirvamos como convém às coisas das quais são espécies, que são as naturezas existentes nos particulares.
 
Resposta à segunda. ― Mesmo o próprio fantasma é semelhança da coisa particular; por onde, a imaginação não precisa de nenhuma outra semelhança particular, como precisa o intelecto.
 
Resposta à terceira. ― Os seres incorpóreos, dos quais não há fantasmas, são conhecidos por nós por comparação com os corpos sensíveis, de que existem os fantasmas. Assim, inteligimos a verdade considerando a coisa sobre a qual procuramos a verdade; ao passo que Deus, como diz Dionísio, o conhecemos como causa, quer por excesso, quer pela remoção. Porém, as outras substâncias incorpóreas não podemos conhecê-las, no estado da vida presente, senão pela remoção ou por alguma comparação com as coisas corpóreas. E portanto, quando de tais substâncias inteligimos alguma coisa, necessário é que nos valhamos dos fantasmas dos corpos, embora elas mesmas não tenham fantasmas.

Art. 6 — Se o conhecimento intelectivo é derivado das coisas sensíveis.

(De Verit., q. 10, a. 6; q. 19, a. 1; Qu De Anima, a. 15; Quodl. VIII q. 2, a. 1; Compend. Theol., cap. LXXXI).
 
O sexto discute-se assim. ― Parece que o conhecimento intelectivo não é derivado das coisas sensíveis.
 
1. ― Pois, diz Agostinho, não se deve derivar a plenitude da verdade, dos sentidos do corpo. O que prova de duplo modo. Primeiro, porque tudo o que o sentido corpóreo atinge, sofre comutação, sem nenhuma intermissão de tempo; ora, o que não permanece não pode ser percebido. De outro modo, porque todas as coisas que sentimos pelo corpo, conservamos as imagens, mesmo quando já não estejam presentes aos sentidos; como se dá no sono ou na loucura. Ora, pelos sentidos, não podemos discernir se sentimos os próprios sensíveis ou se as falsas imagens deles. Ora, nada pode ser percebido se não for discernido do que é falso. Donde conclui que não deve derivar a verdade, dos sentidos. Ora, como o conhecimento intelectual é apreensivo da verdade, não se pode derivá-lo, dos sentidos.
 
2. Demais. ― Agostinho diz: Não é admissível que o corpo opere alguma coisa no espírito, sendo este como a matéria sobre a qual opera aquele; pois, de qualquer modo, o ser que opera é mais presente que o ser do qual jaz alguma coisa. Donde conclui que não é o corpo que opera no espírito a sua própria imagem, mas é o espírito que a causa em si mesmo. Logo, o conhecimento intelectual não é derivado dos sentidos.
 
3. Demais. ― O efeito não se estende para além da virtude da sua causa. Ora, o conhecimento intelectual, inteligindo o que o sentido não pode perceber, vai além dos sensíveis. Logo, o conhecimento intelectual não é derivado das coisas sensíveis.
 
Mas, em contrário, como o prova o Filósofo, o princípio do nosso conhecimento provém do sentido.
 
Solução. ― Os filósofos se repartiram em três opiniões, no tocante a este assunto. ― Assim, Demócrito dizia, que toda causa de qualquer conhecimento nosso está somente em que, dos corpos em que pensamos, provêm imagens que entram em as nossas almas, segundo refere Agostinho. E, como Aristóteles também refere, Demócrito ensinava que o conhecimento se opera por influições das imagens. E a razão desta opinião é que tanto Demócrito, como os antigos fisiólogos, não diferençavam o intelecto, do sentido segundo Aristóteles. E portanto, como o sentido é imutado pelo sensível, pensavam que todo o nosso conhecimento se faz só pela imutação causada pelos sensíveis. E essa imutação Demócrito a explicava pelas influições das imagens.
 
Platão porém, contrariamente, ensinava que o intelecto difere do sentido e é uma virtude imaterial, que não se serve, para o seu ato, de órgão corpóreo. E como o incorpóreo não pode ser imutado pelo corpóreo, concluía que o conhecimento intelectual não se faz pela imutação do intelecto, causada pelos sensíveis, mas sim pela participação das formas inteligíveis separadas, como já se disse. E também dizia ser o sentido uma virtude que opera por si mesma. Por onde, o próprio sentido, por ser uma virtude espiritual, não é imutado pelos sensíveis, mas sim os órgãos dos sentidos; por cuja imutação, a alma é, de certo modo, excitada de maneira a formar em si as espécies dos sensíveis. E parece que Agostinho alude a esta opinião quando diz: o corpo não sente; mas a alma, por ele, do qual usa, como de núncio, para formar em si mesma o que é anunciado, de fora. Assim, pois, segundo a opinião de Platão, nem o conhecimento intelectual procede do sensível, nem este, totalmente, das coisas sensíveis; mas, os sensíveis excitam a alma sensível para que sinta; e, semelhantemente, os sentidos excitam a alma intelectiva para que intelija.
 
Aristóteles, por fim, seguiu a via média. De um lado, admite com Platão, que o intelecto difere do sentido; mas, de outro ensina que o sentido não tem, sem comunicação do corpo, operação própria; de modo que sentir não é ato só da alma, mas do conjunto. E o mesmo doutrina em relação a todas as operações da parte sensitiva. Como, pois, não há inconveniência em que os sensíveis, exteriores à alma, causem alguma coisa no conjunto, Aristóteles concorda com Demócrito em que as operações da parte sensitiva são causadas pela impressão dos sensíveis no sentido; não, porém, por influição, como Demócrito ensinara, mas por uma operação. Pois Demócrito também ensinava que toda ação se dá por influição dos átomos, como se vê em Aristóteles. Porém, quanto ao intelecto, Aristóteles ensina que opera sem comunicação do corpo; pois, nada do que é corpóreo pode imprimir-se num ser incorpóreo. Por onde, para causar a operação intelectual, segundo Aristóteles, não basta só a impressão dos corpos sensíveis, mas se requer algo de mais nobre, porque o agente é mais nobre que o paciente, como ele mesmo o diz. Não porém a ponto tal que a operação intelectual Seja causada em nós só pela impressão das outras coisas superiores, como queria Platão; mas, aquele agente mais nobre e superior, a que chamou intelecto agente, e de que já tratamos, torna os fantasmas, recebidos dos sentidos, em inteligíveis atuais, por meio da abstração.
 
Ora, segundo esta doutrina, a operação intelectual, quanto aos fantasmas, é causada pelo sentido. Como porém os fantasmas não bastam para imutar o intelecto possível, mas é preciso que se tornem em inteligíveis atuais, por meio do intelecto agente, não se pode dizer que o conhecimento sensível seja a causa perfeita e total do conhecimento intelectual, mas, antes e de certo modo, a matéria da causa.
 
Resposta à primeira objeção. — Pelas palavras citadas, Agostinho quer dizer que a verdade não deve ser buscada totalmente, nos sentidos. Pois, é necessário o lume do intelecto agente para que conheçamos, imutavelmente, a verdade, nas coisas mutáveis, e discernamos as coisas mesmas, das sua semelhanças.
 
Resposta à segunda. ― Agostinho não se refere ao conhecimento intelectual, mas ao imaginário. E como, segundo a opinião de Platão, a virtude imaginária tem operação pertencente só à alma, Agostinho, para mostrar que os corpos não imprimem as suas semelhanças na virtude imaginária, o que é feito pela própria alma, usou da mesma razão de que usa Aristóteles para provar que o intelecto agente é algo de separado, a saber, que o agente é mais nobre que o paciente. E sem dúvida, é forçoso, segundo esta opinião, admitir, na virtude imaginativa, não só uma potência passiva, mas também uma ativa. Porém, se admitimos, conforme a opinião de Aristóteles, que a operação da virtude imaginativa pertence ao conjunto, desaparece toda dificuldade; pois, o corpo sensível é mais nobre que o órgão do animal, enquanto é comparado com este órgão como ser atual para o potencial, ao mesmo modo porque o colorido em ato se compara com a pupila, que é colorida em potência. ― Mas também se pode dizer que, embora a primeira imutação da virtude imaginária se realize pelo movimento dos sensíveis, por ser a fantasia um movimento sensível, contudo, há certa operação da alma, no homem, que, dividindo e compondo, forma as diversas imagens das coisas, mesmo as que não são recebidas dos sentidos. E nesta acepção podem-se admitir as palavras de Agostinho.
 
Resposta à terceira. ― O conhecimento sensitivo não é a causa total do conhecimento intelectual. Por onde, não é para admirar se estenda para além daquele.

Art. 5 ― Se a alma intelectiva conhece as coisas materiais nas razões eternas.

 

(Supra, q. 12 a. 2 ad 3; De Verit., q. 8, a. 7, ad 13; q. 1a. 8 ).
 
O quinto discute-se assim. ― Parece que a alma intelectiva não conhece as coisas materiais nas razões eternas.
 
1. ― Aquilo, no que alguma coisa é conhecida, é objeto de conhecimento maior e anterior. Ora, a alma intelectiva do homem, no estado da vida presente, não conhece as razões eternas, porque não conhece a Deus, em quem existem tais razões e a quem está unido como a um ignoto, segundo diz Dionísio. Logo, a alma não conhece todas as coisas nas razões eternas.
 
2. Demais. ― A Escritura diz: as coisas invisíveis de Deus vêm-se por aquelas que foram feitas. Logo, entre as coisas invisíveis de Deus enumeram-se as razões eternas. Portanto, estas razões são conhecidas pelas criaturas materiais, e não inversamente.
 
3. Demais. ― As razões eternas não são senão as idéias. Pois, Agostinho diz, que as idéias são as razões estáveis das coisas existentes na mente divina. Se, portanto, se admite que a alma intelectiva conhece todas as coisas nas razões eternas, há-se de admitir a opinião de Platão, ensinando que toda ciência deriva das idéias.
 
Mas, em contrário, diz Agostinho: Se ambos vemos ser verdade o que dizes, e ambos vemos ser verdade o que digo, onde, pergunto, o vemos? Por certo não o vejo eu em ti, nem tu em mim, mas ambos o vemos na verdade incomutável superior às nossas mentes. Ora, a verdade incomutável está contida nas razões eternas. Logo, a alma intelectiva conhece todas as coisas verdadeiras, nas razões eternas.
 
Solução. ― Como diz Agostinho, os chamados filósofos, se porventura, disseram algumas coisas verdadeiras e acomodadas à nossa fé, devemos indicá-las a eles, como de possuidores injustos, para o nosso uso. Pois, as doutrinas dos gentios tem certas ficções simuladas e supersticiosas que cada um de nós, saindo da sociedade deles, deve evitar. E por isso Agostinho, que fora imbuído das doutrinas dos Platônicos, tomou o que encontrou de acomodado à verdade, nos ditos deles; porém o que achou contrário à nossa fé, mudou para melhor. Assim, como já se viu antes, Platão ensinava que as formas das coisas subsistem por si, separadas da matéria, e lhes chamava idéias, por participação das quais – dizia – o nosso intelecto conhece todas as coisas; pois, como a matéria corpórea, participando da idéia de pedra, faz-se pedra, assim o nosso intelecto, por participação da mesma idéia, conhece a pedra. Ora, é alheio à fé que as formas das coisas subsistam por si, fora delas, sem matéria, como queriam os Platônicos, dizendo que a vida em si ou a sapiência em si são certas substâncias criadoras, como refere Dionísio. Por onde, Agostinho ensinou, em lugar dessas idéias que Platão admitia, que as razões de todas as coisas existem na mente divina, de acordo com as quais todas as coisas são formadas, e segundo as quais também a alma humana conhece tudo.
 
Quando, pois, se pergunta se a alma humana conhece tudo nas razões eternas, deve-se responder que de duplo modo se pode dizer que uma coisa é conhecida em outra. ― De um modo, corno no objeto conhecido; como quando alguém vê num espelho as coisas cujas imagens nele se refletem. E deste modo, a alma, no estado da vida presente, não pode ver tudo nas razões eternas; pois esse é o conhecimento dos bem-aventurados que vêm a Deus e, nEle, tudo. ― De outro modo, diz-se que uma coisa é conhecida em outra, como no princípio da cognição; como quando dizemos que no sol se vêm as coisas vistas por meio do sol. E assim, necessário é admitir que a alma humana conhece tudo nas razões eternas, por cuja participação conhecemos todas as coisas. Pois, o mesmo lume intelectual existente em nós não é senão uma semelhança participada do lume incriado, no qual estão contidas as razões eternas. Por onde, diz a Escritura: Muitos dizem: Quem nos patenteará os bens? A cuja pergunta o Salmista dá a seguinte resposta: Gravada está sobre nós, Senhor, a luz do teu rosto; como se dissesse: pela sigilação mesma do divino lume em nós todas as coisas são reveladas.
 
Como, porém, além do lume intelectual, são necessárias, em nós, espécies inteligíveis derivadas das coisas, para que possamos ter ciência das coisas materiais, por isso, não é só pela participação das razões eternas que temos ciência destas, como ensinavam os Platônicos, dizendo que só a participação das idéias basta para a aquisição da ciência. Por onde, diz Agostinho: Pois, pelo fato de os filósofos terem persuadido, com ensinamentos certíssimos que, pelas razões eternas se fazem todas as coisas temporais, puderam, por isso, contemplar nessas razões ou delas coligir quantos são os gêneros dos animais e quais as origens de cada um? Pois, não indagaram todas estas coisas pela história dos Lugares e dos tempos?
 
E que Agostinho não era de opinião que todas as coisas são conhecidas nas razões eternas, ou na verdade incomutável, como se essas próprias razões fossem vistas, é claro pelo que diz em outro passo: assegura-se, que não toda e qualquer alma racional é idônea para essa visão; a saber, das razões eternas, mas a que for santa e pura; como são as almas dos bem-aventurados.
 
E daqui se deduzem as respostas às objeções.

 

Art. 4 — Se as espécies inteligíveis efluem, para a alma, de algumas foras separadas.

(De Verit., q. 10 a. 6; q. 11, a. 1; Qu. De Anima, a. 15 ).
 
O quarto discute-se assim. ― Parece que as espécies inteligíveis efluem, para a alma, de algumas formas separadas.
 
1. ― Todo ser participado é causado por um ser essencial; assim, um corpo ígneo se reduz ao fogo, como à sua causa. Ora, a alma intelectiva, enquanto intelige em ato, participa dos inteligíveis; pois, o intelecto em ato é, de certo modo, a coisa inteligida em ato. Logo, as coisas que, em si e por essência, são inteligidas em ato, são as causas de a alma intelectiva inteligir em ato. Ora, as coisas inteligidas em ato, por essência, são formas agentes, sem matéria. Logo, as espécies inteligíveis, pelas quais a alma intelige, são causadas por certas formas separadas.
 
2. Demais. ― Os inteligíveis estão para a coisa inteligida como os sensíveis para o sentido. Ora, os sensíveis, que estão em ato, fora da alma, são as causas dos mesmos sensíveis que estão no sentido e pelos quais sentimos. Logo, as espécies inteligíveis, pelas quais o nosso intelecto intelige, são causadas por certos inteligíveis em ato existentes fora da alma. Ora, estes não são senão formas separadas da matéria. Logo, as formas inteligíveis do nosso intelecto efluem de certas substâncias separadas.
 
3. Demais. ― Tudo o que está em potência se reduz ao ato por aquilo que já está em ato. Portanto, a causa de o nosso intelecto, ser primeiramente potencial, e em seguida inteligir em ato, é algum intelecto sempre atual. Ora, este é o intelecto separado. Logo, é por certas substâncias separadas que são causadas as espécies inteligíveis, pelas quais inteligimos em ato.
 
Mas, em contrário, se fosse assim, não precisaríamos dos sentidos para inteligir. O que é evidentemente falso, principalmente pelo fato de não poder, de nenhum modo, quem carece de um sentido ter ciência dos sensíveis desse sentido.
 
Solução. ― Alguns ensinaram que as espécies inteligíveis do nosso intelecto procedem de certas formas ou substâncias separadas. E isso, de duplo modo.
 
Assim, para Platão, como já se disse, as formas das coisas sensíveis são subsistentes por si, sem matéria; p. ex., a forma do homem a que chamava homem em si, a forma ou idéia do cavalo, a que chamava cavalo em si, e assim por diante. Ora, tais formas separadas, ensinava, são participadas tanto pela nossa alma como pela matéria corpórea; por aquela, a fim de conhecer; por esta, a fim de existir. Pois, assim como a matéria corpórea, participando da idéia da pedra, faz-se pedra, assim o nosso intelecto, participando dessa mesma idéia intelige a pedra. E a participação da idéia faz-se por uma certa semelhança da idéia mesma, naquele que dela participa, ao modo pelo qual o exemplar é participado pelo exemplado. Portanto, ensinando que as formas sensíveis, existentes na matéria corpórea, efluem das idéias, como certas semelhanças delas que são, ensinava também que as espécies inteligíveis do nosso intelecto são certas semelhanças das idéias das quais efluem. E por isso, como se disse antes, Platão referia as ciências e as definições às idéias. Mas, sendo contra – essência das coisas sensíveis que as formas delas subsista sem as matérias, como Aristóteles o prova super abundantemente, por isso Avicena, rejeitando tal posição, ensinou que as espécies inteligíveis de todas as coisas, não subsistem, por certo, sem matéria, mas preexistem imaterialmente, nos intelectos separados. E destes derivam, primariamente, tais espécies para o intelecto seguinte; e assim por diante, até o último intelecto separado, a que chamava intelecto agente, do qual, como dizia, efluem as espécies inteligíveis para as nossas almas, e as formas sensíveis, para a matéria corpórea. ― E assim, Avicena concorda com Platão em que as espécies inteligíveis do nosso intelecto efluem de certas formas separadas; ao passo que, para Platão, elas subsistem por si, como o refere Aristóteles, para Avicena elas existem no intelecto agente. E ainda Avicena, diferindo de Platão, ensina que as espécies inteligíveis não permanecem em o nosso intelecto, depois de ter este acabado de inteligir em ato, sendo preciso que o intelecto se converta a recebê-las de novo, reiteradamente. Por onde, não admite que a ciência seja naturalmente inata na alma, como Platão, que ensinava permanecerem na alma, imovelmente, as participações das idéias. Mas, segundo tal posição, não se poderia dar a razão suficiente porque a nossa alma está unida ao corpo. Pois, não se poderia dizer que a alma intelectiva está unida ao corpo, por causa do corpo; porque, nem a forma existe para a matéria, nem o motor para o móvel, mas antes, ao contrário. Mas, principalmente, o corpo é necessário à alma intelectiva para a operação própria dela, que é o inteligir, pois, pela sua essência, não depende do corpo. Se, pois, a alma fosse apta, por natureza, a receber as espécies inteligíveis, por influência somente de certos princípios separados, sem que as recebesse pelos sentidos, não precisaria, então, de corpo para inteligir e estaria unida ao corpo em vão. E nem é suficiente dizer que a nossa alma precisa dos sentidos para inteligir, sendo por eles excitada, de certo modo, à consideração das coisas, cujas espécies inteligíveis recebe, dos princípios separados. Porque tal excitação não é necessária à alma, senão por estar de certo modo adormecida, segundo os Platônicos, e esquecida, por causa da união com, o corpo. De modo que então, os sentidos só serviriam à alma intelectiva para eliminar o impedimento que lhe advém da união com o corpo. Logo, resta indagar qual a causa da união da alma com o corpo. Ora, não basta admitir, com Avicena, que os sentidos são necessários à alma, para, excitada por eles, converter-se à inteligência agente, da qual recebe as espécies. Porque, se estivesse em a natureza da alma inteligir por espécies influídas da inteligência agente, seguir-se-ia que, às vezes; a alma poderia converter-se à inteligência agente, por inclinação da sua natureza; ou ainda, excitada por um sentido, poderia converter-se a tal inteligência para receber as espécies de sensíveis próprios a outro sentido de que, p. ex., alguém estivesse privado. E, então, o cego de nascença poderia ter ciência das cores, coisa manifestamente falsa. ― Por onde, deve-se concluir que as espécies inteligíveis, pelas quais a nossa alma intelige, não efluem de formas separadas.
 
Donde a resposta à primeira objeção. ― As espécies inteligíveis, participadas pelo nosso intelecto, reduzem-se, como à causa primeira, a algum princípio inteligível por sua essência, que é Deus. E desse princípio procedem elas, mediante as formas das coisas sensíveis e materiais, das quais obtemos a ciência, como diz Dionísio.
 
Resposta à segunda. ― As coisas materiais, segundo o ser que têm fora da alma, podem ser sensíveis em ato, não porém, inteligíveis em ato. Por onde não há símile entre o sentido e o intelecto.
 
Resposta à terceira. ― O nosso intelecto possível reduz-se da potência ao ato por algum ser em ato, i. é., pelo intelecto agente, que é uma virtude da nossa alma, como já se disse; e não por algum intelecto separado, como pela causa próxima, embora talvez como pela causa remota.

Art. 3 — Se a alma intelige todas as coisas por meio de espécies que lhe são naturalmente inatas.

(II Cont. Gent., cap. LXXXIII; De Verit., q. 10, a. 6; q. 11, a. 1; q. 18, a. 7; q. 19, a. 1; Qu. De Anima, a. 15 ).
 
O terceiro discute-se assim. ― Parece que a alma intelige todas as coisas por espécies que lhe são naturalmente ínsitas.
 
1. ― Pois, diz Gregório, o homem tem comum com o anjo o inteligir. Ora, o anjo intelige tudo por formas que lhe são naturalmente ínsitas; por onde, se diz no livro De causis, que toda inteligência está cheia de formas. Logo, também a alma tem ínsitas em si as espécies das coisas naturais, pelas quais intelige as coisas corpóreas.
 
2. Demais. ― A alma intelectiva é mais nobre que a matéria prima corpórea. Ora, esta foi criada por Deus com formas, em relação às quais está em potência. Logo, com maioria de razão, a alma intelectiva foi criada por Deus com as espécies inteligíveis. E assim, intelige as causas corpóreas por espécies que lhe são naturalmente ínsitas.
 
3. Demais. ― Ninguém pode responder a verdade senão do que sabe. Mas, qualquer pessoa, sem ciência adquirida, pode responder a verdade atinente a cada assunto, contanto que seja habilmente interrogado, como narra Platão de um certo indivíduo. Logo, antes de alguém adquirir a ciência já tem conhecimento das causas; o que não se daria, se a alma não tivesse espécies que lhe são naturalmente ínsitas. Logo, por tais espécies é que ela intelige as coisas corpóreas.
 
Mas, em contrário, diz o Filósofo, falando do intelecto, que este é como uma tábua na qual nada está escrito.
 
Solução. ― Como a forma é o princípio da ação, necessário é que uma coisa esteja para a forma, seu princípio de ação, como está para a ação. Assim, se o ser movido para o alto provém da levidade, o que só potencialmente é levado para cima é leve só em potências; o que, porém, é levado em ato é leve em ato. Ora, vemos que o homem conhece às vezes, só em potência, tanto quanto ao sentido como quanto ao intelecto. E de tal potência é reduzido ao ato: para sentir, pelas ações dos sensíveis no sentido; para inteligir, pela disciplina ou invenção. Por onde, deve-se dizer que a alma cognoscitiva está em potência tanto para as semelhanças, que são os princípios do sentir, como para as semelhanças, que são os princípios do inteligir. E por isto Aristóteles ensinou, que o intelecto, pela qual a alma intelige, não tem nenhumas espécies que lhe sejam naturalmente ínsitas, mas é, no princípio, potencial em relação a todas essas espécies.
 
Mas, o que tem forma atual, não pode, às vezes, agir segundo essa forma, por causa de algum impedimento; assim se dá com um corpo leve se ficar impedido de ser levado para cima. E por isso Pia tão ensinava, que o intelecto do homem está naturalmente cheio de todas as espécies inteligíveis, mas, pela união com o corpo, é impedido de atualizar-se.
 
Mas esta opinião não é conforme a verdade. ― Primeiro, porque, se a alma tem ciência natural de todas as coisas, não é possível que se esqueça de tal modo dela que não tenha consciência de a possuir. Pois, ninguém esquece o que naturalmente conhece; p. ex., que qualquer todo é maior que a sua parte e coisas semelhantes. E, sobretudo, ver-se-á a incongruência de tal opinião, se se admite como natural à alma estar unida ao corpo, como antes ficou estabelecido; pois, é incongruente que a operação natural a qualquer ser seja totalmente impedida por aquilo que lhe é natural a ele. ― Em segundo lugar, aparecerá manifesta a falsidade de tal opinião no fato de, faltando algum sentido, faltar à ciência daquilo que, por esse sentido, é apreendido; assim, o cego de nascença não pode ter nenhum conhecimento das cores. O que não se daria se ao intelecto da alma fossem naturalmente ínsitas as noções de todos os inteligíveis. ― E portanto, deve-se concluir que a alma não conhece as coisas corpóreas por espécies que lhe sejam naturalmente ínsitas.
 
Donde a resposta à primeira objeção. ― O homem tem de comum com os anjos o inteligir; mas não tem a eminência do intelecto deles. Assim como os corpos inferiores, que apenas existem, segundo Gregório, são deficientes em relação à existência dos corpos superiores. Pois, a matéria destes não é totalmente completa pela forma, mas é potencial em relação às formas que não tem; ao passo que a matéria dos corpos celestes é totalmente completa pela forma, de modo que não é potencial em relação à outra forma, como já se demonstrou. E, semelhantemente, o intelecto do anjo é perfeito, na sua natureza, pelas espécies inteligíveis; ao passo que o intelecto humano é potencial, em relação a tais espécies.
 
Resposta à segunda. ― A matéria prima tem o ser substancial, pela forma; por onde, era necessário que fosse criado sob alguma forma, pois, do contrário, não existiria em ato. Porém, existindo sob uma forma, é potencial em relação às outras. Ao passo que o intelecto não tem o ser substancial, pela espécie inteligível; por isso não há símile.
 
Resposta à terceira. ― A interrogação ordenada procede de princípios comuns, conhecidos por si mesmos, para as noções próprias. E por tal processo é causada a ciência na alma do discente. Por onde, quando este responde a verdade a respeito daquilo sobre que é pela segunda vez interrogado, não é porque já a conhecesse de antemão, mas porque a aprende de novo. E nada importa se quem ensina, propondo ou interrogando, procede de princípios comuns, para a conclusão. Pois, de qualquer modo, o espírito do ouvinte se certifica do que é posterior pelo que é anterior.

Art. 2 — Se a alma, pela sua essência, intelige os seres corpóreos.

(II Sent., dist. III, parte II, q. 2, a. 1; III dist. XIV, a. 1, qª 2; II Cont. Gent., cap. XCVIII; Ve Verit., q. 8, a. 8 ).
 
O segundo discute-se assim. ― Parece que a alma, pela sua essência, intelige as coisas corpóreas.
 
1. ― Pois, diz Agostinho, a alma resolve as imagens dos corpos e as tira feitas em si mesma, de si mesma; porquanto dá, para a formação delas, algo de sua substância. Ora, pelas semelhanças dos corpos é que os intelige. Logo, pela sua essência, que dá para a formação de tais semelhanças e da qual as forma, conhece os seres corpóreos.
 
2. Demais. ― O Filósofo diz que a alma, de certo modo, é tudo. Ora, como o semelhante se conhece pelo semelhante, resulta que a alma, por si mesma, conhece os seres corpóreos.
 
3. Demais. ― A alma é superior às criaturas corpóreas. Ora, as inferiores estão nas superiores de modo mais eminente que em si mesmas, como diz Dionísio. Logo, todas as criaturas corpóreas existem de modo mais nobre na essência mesma da alma do que nelas próprias. Logo, pela sua substância, a alma pode conhecer as criaturas corpóreas.
 
Mas, em contrário, diz Agostinho: a mente colige os conhecimentos das coisas corpóreas pelos sentidos do corpo. Ora, a alma mesma não é cognoscível pelos sentidos do corpo. Logo, não conhece os seres corpóreos pela sua substância.
 
Solução. ― Os antigos filósofos ensinaram que a alma, pela sua essência, conhece os corpos. Pois, é ínsito em comum às almas de todos os animados conhecer o semelhante pelo semelhante. Assim, pensavam que a forma do conhecido está no conhecente do modo pelo qual está na coisa conhecida. Porém os Platônicos pensavam de modo contrário. Pois Platão, conhecendo que a alma intelectual é imaterial e conhece imaterialmente, ensinou a subsistência imaterial das formas das causas conhecidas. Ao passo que os primitivos fisiólogos, considerando que as coisas conhecidas são corpóreas e materiais, ensinavam ser necessário estejam na alma conhecente, materialmente. E como atribuíam à alma o conhecimento de tudo, diziam que a natureza dela é comum com a de todos os seres. E ainda, como a natureza dos principiados é constituída pelos princípios, atribuíram à alma a natureza de princípio; de modo que, quem admitia o fogo como princípio de tudo admitia que a alma é de natureza ígnea; e, semelhantemente, em relação ao ar e à água. Porém Empédocles, que admitia quatro elementos materiais e dois motores, ensinou que também a alma é composta deles. Assim que, introduzindo as coisas na alma, materialmente, concluíram que todo conhecimento da alma é material, sem discernirem entre o intelecto e o sentido.
 
Mas tal opinião não tem provas. ― Primeiro, porque no princípio material, do qual falavam, existem os principiados só em potência. Ora, nada é conhecido como potencial, mas como atual, como já se evidenciou. Por onde, nem a potência mesma se conhece senão pelo ato. Portanto, não basta atribuir à alma a natureza dos princípios, para que ela conheça tudo, sem existirem nela as naturezas e as formas dos efeitos singulares, p. ex., do osso, da carne e coisas semelhantes, como argumenta Aristóteles contra Empédocles. ― Segundo, porque se fosse necessário à coisa conhecida existir materialmente no conhecente, nenhuma razão haveria de carecerem de conhecimento as coisas que subsistem materialmente fora da alma. P.ex., se a alma conhece o fogo pelo fogo, também este, que existe fora da alma, conheceria o fogo.
 
Conclui-se, portanto, pela necessidade de existirem as coisas materiais conhecidas, no conhecente, não material, mas antes, imaterialmente. E a razão disto é que o ato do conhecimento se estende às coisas existentes fora do conhecente. Ora, nós conhecemos também aquilo que está fora de nós, pois, pela matéria à forma de uma coisa é reduzida à unidade. Por onde é manifesto que a essência do conhecimento é oposta à da materialidade. E por isso, seres que recebem as formas só materialmente, de nenhum modo são cognoscitivas, como as plantas, segundo já se disse. E quanto mais imaterialmente um ser tem em si a forma da coisa conhecida, tanto mais perfeitamente conhece. Por onde, o intelecto, que abstrai a espécie, não só da matéria, mas também das condições materiais individuantes, conhece mais perfeitamente que o sentido, que recebe a forma da coisa conhecida sem matéria, por certo, mas em condições materiais. E dentre os próprios sentidos, a vista é o mais cognoscitivo, por ser menos material, como antes se disse. E, dentre os intelectos, mais perfeito é o mais imaterial.
 
Do sobredito resulta, pois, que, se há algum intelecto que, pela sua essência, conheça todas as coisas, necessário é que a sua essência contenha em si, imaterialmente, a todas elas; e é assim que os antigos ensinavam que a essência da alma é atualmente composta dos princípios de todos os seres materiais, para conhecer todas as coisas. Ora, é próprio de Deus ter a essência imaterialmente compreensiva de todas as coisas, enquanto que os efeitos preexistem virtualmente na causa. Portanto, só Deus intelige, pela sua essência, todas as coisas; não a alma humana nem o anjo.
 
Donde a resposta à primeira objeção. ― No passo aduzido Agostinho fala da visão imaginária, que se faz por imagens corpóreas; para a formação de cujas imagens, a alma dá algo da sua substância, assim como o sujeito é dado para ser informado por alguma forma. E assim faz, de si mesma, tais imagens; não que a alma ou algo da alma se converta a ser tal ou tal imagem, mas no sentido em que se diz que um corpo torna-se colorido por ser informado pela cor. E essa interpretação ressalta do que se vai seguir. Pois, diz ele, que conserva alguma coisa, a saber, não formada com tal imagem, pela qual julgará livremente da espécie de tais imagens; e a isso chama mente ou intelecto. Porém à parte informada por tais imagens, a saber, a imaginativa, chama comum a nós e aos animais.
 
Resposta à segunda. ― Aristóteles não ensinou, como os antigos fisiólogos, que a alma é composta, atualmente, de todas as coisas; mas disse que a alma é de certo modo tudo, enquanto potencial em relação a tudo: pelo sentido, em relação aos sensíveis; pelo intelecto, em relação aos inteligíveis.
 
Resposta à terceira. ― Qualquer criatura tem o ser finito e determinado. Por onde, a essência da criatura superior, embora tenha alguma semelhança da inferior, enquanto tem de comum o mesmo gênero, não tem, contudo, semelhança com ela, completamente; pois, é determinada a uma certa espécie, fora da qual está a espécie da criatura inferior. Mas, a essência de Deus é a semelhança perfeita de tudo, quanto a tudo o que se encontra nas coisas, como o princípio universal de todas elas.

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