Category: Santo Tomás de Aquino
O primeiro discute-se assim. — Parece que se não devem distinguir dois modos de receber o corpo de Cristo — o sacramental e o espiritual.
1. — Pois, o batismo é uma regeneração espiritual, segundo àquilo do Evangelho: Quem não renascer da água e do Espírito Santo, etc. Assim também este sacramento é uma comida espiritual, e por isso o Senhor, falando dele, disse: As palavras que eu vos disse são espírito e vida. Ora, no batismo não se distingue um duplo modo de o receber — o sacramental e o espiritual. Logo, também não os devemos distinguir no tocante a este sacramento.
2. Demais. — Duas coisas, das quais uma é para a outra, não se devem uma da outra dividir; pois pertencem ambas a mesma espécie. Ora, a comunhão sacramental se ordena à espiritual como ao fim. Logo, não se deve dividir a comunhão sacramental, da espiritual, por contrariedade.
3. Demais. — Duas coisas, das quais uma não pode existir sem a outra, não devem dividir-se uma da outra, por contrariedade. Ora, parece que ninguém pode receber este sacramento espiritualmente, senão o receber também sacramentalmente. Do contrário, os antigos Patriarcas o teriam recebido de modo espiritual. E também seria vã a comunhão sacramental, se pudesse ser sem ela a espiritual. Logo, não se distingue convenientemente uma dupla comunhão — a sacramental e a espiritual.
Mas, em contrário, àquilo do Apóstolo — Quem come e bebe indignamente, etc., diz a Glosa: Distinguimos dois modos de comunhão: o sacramental e o espiritual.
SOLUÇÃO. — Na recepção deste sacramento duas coisas devemos distinguir: o sacramento em si mesmo e o seu efeito, de ambas as quais já tratamos. Por onde, o modo perfeito de receber este sacramento é recebermos de maneira a lhe colhermos o efeito. Pode se dar porém, como dissemos, que estejamos impedidos de colher o efeito deste sacramento; e esse modo de o receber é imperfeito. Ora, assim como o perfeito se opõe ao imperfeito, assim a comunhão sacramental, na qual recebemos apenas o sacramento, sem o seu efeito, se opõe à comunhão espiritual, na qual recebemos o efeito deste sacramento, por onde nos unimos espiritualmente com Cristo pela fé e pela caridade.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — No tocante ao batismo e os outros sacramentos semelhantes, tem lugar a mesma distinção. Assim, certos recebem só o sacramento; outros, o sacramento e a realidade do sacramento. Mas nisto diferem, pelo seguinte. Como os outros sacramentos se consumam pelo uso da matéria, receber o sacramento é a perfeição mesma dele. Ao passo que este sacramento se consuma pela consagração da matéria e por isso um e outro uso resulta do sacramento. Também no batismo e nos outros sacramentos que imprimem caráter, os que recebem o sacramento recebem o efeito especial, que é o caráter; o que não se dá neste. Por isso antes neste sacramento se distingue, que no batismo, o uso sacramental, do espiritual.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A comunhão sacramental, que chega a ser espiritual, não se divide, por oposição, da comunhão espiritual, mas está inclui da nesta. A manducação sacramental, porém se divide, por oposição, da espiritual que não produz o seu efeito; assim, o imperfeito, por não atingir a perfeição da espécie, se divide do perfeito, por oposição.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como dissemos, o efeito do sacramento pode ser gozado por quem deseja receber o sacramento, embora realmente não o receba. Por isso, assim como certos são batizados pelo batismo de desejo, pelo desejar, antes de serem batizados na água, assim também certos recebem espiritualmente este sacramento, antes de o receberem sacramentalmente. Mas isto de dois modos pode dar-se. Ou pelo desejo de receber realmente o sacramento; e então dizemos que são batizados e comem espiritualmente, e não sacramentalmente, os que desejam receber esses sacramentos já instituídos. Ou, de modo figurado; assim, diz o Apóstolo, que os antigos Patriarcas foram batizados na nuvem e no mar; e que comeram de um mesmo manjar espiritual e beberam de uma mesma bebida espiritual. Mas nem por isso é inútil a comunhão sacramental, porque induz um efeito mais pleno do sacramento o recebê-lo realmente do que só em desejo, como dissemos ao tratar, acima, do batismo.
Em seguida devemos tratar do uso ou da recepção deste sacramento. E primeiro em geral. Segundo, do modo pelo qual Cristo está neste sacramento.
Na primeira questão discutem-se doze artigos:
O quarto discute-se assim. — Parece que o nosso ar não é o lugar da pena dos demônios.
1. — Pois, o demônio é de natureza espiritual. Ora, a natureza espiritual não é afetada pelo lugar. Logo, não há nenhum lugar de pena para os demônios.
2. Demais. — O pecado do homem não é mais grave que o do demônio. Ora, o lugar da pena do homem é o inferno. Logo, muito mais, o do demônio. Logo, não o é o ar caliginoso.
3. Demais. — Os demônios são punidos pela pena do fogo. Ora, no ar caliginoso não há fogo. Logo, esse ar não é o lugar a pena dos demônios.
Mas, em contrário, diz Agostinho, que o ar caliginoso é um quase cárcere para os demônios, até o tempo do juízo.
Solução. — Os anjos, por natureza, são medianeiros entre Deus e os homens. Ora, está na ordem da divina providência, que o bem dos seres inferiores seja obtido pelos superiores. O bem do homem, porém, pode ser obtido duplamente pela divina providência. De um modo, diretamente; induzindo ao bem e retraindo do mal, o que convenientemente se faz pelos anjos bons. De outro modo, indiretamente: p. ex., quando alguém se exerce atacado pela impugnação de um contrário. E era conveniente que esta obtenção do bem humano se realizasse pelos maus anjos, afim de que não fossem eliminados totalmente, depois do pecado, da utilidade da ordem natural. Assim, pois, duplo lugar de pena é devido aos demônios. Um, em razão da culpa, e esse é o inferno. Outro, porém, em razão da exercitação humana e, esse é o ar caliginoso. Mas, como a busca da salvação humana se prolongará até o dia do juízo, até então durará o ministério dos anjos e a exercitação causada pelos demônios. Por isso, até então, também os bons anjos nos serão para cá mandados, e os demônios hão-de exercitar-nos neste ar caliginoso; embora alguns destes estejam também agora no inferno, para atormentar os que induziram ao mal, assim como alguns bons anjos estão com as almas santas no céu. Mas depois do dia do juízo, todos os maus, homens e anjos, estarão no inferno; os bons, porém, no céu.
Donde a resposta à primeira objeção. — Um lugar não é de pena, para o anjo, nem para a alma, porque lhes afete a natureza, alterando-a; mas porque lhes afeta a vontade, contristando-a, enquanto o anjo ou a alma compreende estar num lugar, que não lhe convém à vontade.
Resposta à segunda. — Uma alma, na ordem da natureza, não é superior a outra, como os demônios, na ordem da natureza, são superiores aos homens. Por isso a razão não é a mesma.
Resposta à terceira. — Alguns disseram que a pena sensível dos demônios e das almas, bem como a beatitude dos santos, serão diferidas até o dia do juízo; o que é errôneo e repugna à sentença do Apóstolo: Se a nossa casa terrestre desta morada for desfeita, temos um edifício no céu. Outros, porém, embora não sejam da mesma opinião, quanto às almas, são-no quanto aos demônios. Mas é melhor sentir que se deve fazer o mesmo juízo das almas más e dos maus anjos, de um lado, e das almas boas e dos bons anjos, de outro. Donde, assim como o lugar celeste pertence à glória dos anjos e, contudo, esta não diminui por virem eles a nós, porque consideram esse lugar como seu, do mesmo modo pelo qual dizemos que a honra do bispo não diminui quando não se assenta atualmente na cátedra; semelhantemente, embora os demônios não estejam atualmente ligados ao fogo da Geena, quando estão em o ar caliginoso, contudo, por isso mesmo que sabem que essa prisão lhes é devida, a pena não se lhes diminui. Por isso diz uma certa Glossa, que eles levam consigo o fogo da Geena para onde quer que vão. Nem vai contra o dito da Escritura, que pediram ao Senhor que não os mandasse ir para o abismo; porque assim o pediram reputando por pena se fossem excluídos do lugar em que podem prejudicar aos homens. Por onde, em outra passagem se diz, que pediam-lhe instantemente que os não lançasse fora do país.
O terceiro discute-se assim. — Parece que não há dor nos demônios.
1. — Pois, a dor e a alegria, mutuamente se opondo, não podem simultaneamente existir no mesmo ser. Ora, nos demônios há alegria; porquanto Agostinho diz: O diabo tem poder sobre aqueles que desprezam os preceitos de Deus, e se alegram com esse tão infeliz poder. Logo, neles não há dor.
2. Demais. — A dor é a causa do temor; pois, tememos o futuro daquilo que sofremos, quando é presente. Ora, nos demônios não há temor, conforme a Escritura: Foi feito para que não temesse a nada. Logo, neles não há dor.
3. Demais. — Doer-se do mal é bom. Ora, os demônios não podem fazer o bem. Logo, não podem ter dor, ao menos pelo mal da culpa, o relativo ao verme da consciência.
Mas, em contrário, o pecado do demônio é mais grave que o do homem. Ora, este é punido pela dor, por causa do deleite no pecado, segundo a Escritura: Quanto ela se tem glorificado e vivido em deleites, tanto lhe daí de tormento e pranto. Logo, com maioria de razão, o diabo, que se glorificou maximamente, é punido pelo pranto da dor.
Solução. — O temor, a dor, a alegria e outras paixões, como tais, não podem existir nos demônios; pois, como tais, pertencem propriamente ao apetite sensitivo, virtude que se exerce pelo órgão corpóreo. Mas, enquanto designam atos simples da vontade, podem neles existir; sendo necessário então dizer que neles há dor. Pois esta, significando ato simples da vontade, não é senão o recalcitrar desta quanto ao que é ou ao que não é. Ora, é claro, os demônios querem não fossem muitas coisas que são, e fossem muitas que não são; assim, invejosos, querem fossem danados os que se salvam. Por onde, é forçoso admitir que neles há dor; e, precipuamente, porque é da natureza da pena repugnar à vontade. Ora, eles estão privados da beatitude, que naturalmente desejam; e, em muitos deles, é reprimida a vontade iníqua.
Donde a resposta à primeira objeção. — A dor e a alegria, relativamente ao mesmo objeto, são opostos; não são porém, relativamente a objetos diversos. Por onde, nada impede que alguém simultaneamente se doa de uma coisa e goze com outra; e sobretudo enquanto a dor e a alegria supõem atos simples da vontade, pois não só em relação a coisas diversas,mas também em relação a uma mesma coisa, pode haver algo que queremos e algo que não.
Resposta à segunda. — Assim como, nos demônios, há a dor do presente, assim há o temor do futuro. E a expressão — Foi feito para que não temesse a nada — se entende do temor de Deus, que coíbe o pecado. Pois, alhures está escrito, que os demônios crêem e estremecem.
Resposta à terceira. — O doer-se do mal da culpa, em si mesma, atesta a bondade da vontade, à qual esse mal se opõe. Doer-se porém do mal da pena, ou do mal da culpa, por causa da pena, atesta a bondade da natureza, à qual o mal da pena se opõe. Por isso Agostinho diz, que a dor do bem perdido, no suplício, é testemunho da natureza boa. Logo, o demônio, de vontade perversa e obstinada, não se dói do mal da culpa.
O segundo discute-se assim. — Parece que a vontade dos demônios não está obstinada no mal.
1. — Pois a liberdade do arbítrio pertence à natureza do ser intelectual, que permanece nos demônios, como já se disse. Ora, essa liberdade, por si e primariamente, se ordena ao bem e não ao mal. Logo, a vontade do demônio não está obstinada no mal, de modo que não possa voltar ao bem.
2. Demais. — Maior é a misericórdia infinita de Deus que a malícia finita do demônio. Ora, da malícia da culpa à bondade da justiça ninguém volta senão pela misericórdia de Deus. Logo, também os demônios podem voltar ao estado da malícia para o da justiça.
3. Demais. — Se os demônios têm a vontade obstinada no mal, a teriam obstinada sobretudo no pecado pelo qual pecaram. Mas esse pecado, a soberba, não mais permanece neles por não permanecer o motivo dela, a excelência. Logo, o demônio não está obstinado na malícia.
4. Demais. — Gregório diz que o homem pôde ser resgatado por outrem, porque por outrem caiu. Ora, os demônios inferiores caíram pelo primeiro deles, como se disse antes. Logo, a queda deles podia ser resgatada por outrem. Logo, não está obstinados na malícia.
5. Demais. — Quem está obstinado na malícia nunca pratica boas obras. Ora, o demônio faz algumas boas obras; assim, confessa a verdade, dizendo a Cristo: Sei quem és, o Santo de Deus; também os demônios crêem e estremecem, como diz a Escritura; e Dionísio também diz que eles desejam o bom e o ótimo: existir, viver e inteligir. Logo, não estão obstinados na malícia.
Mas, em contrário, diz a Escritura: A soberba daqueles que te aborrecem, sobe continuamente; o que se entende dito dos demônios. Logo, perseveram sempre obstinados na malícia.
Solução. — Era opinião de Orígines, que toda vontade da criatura pode inclinar-se para o bem e para o mal, por causa da liberdade do arbítrio; exceto a alma de Cristo, por efeito da união do Verbo. — Mas esta opinião destrói a verdade da beatitude em relação aos santos anjos e aos homens; porque a estabilidade sempiterna é da essência da verdadeira beatitude, sendo, por isso, que esta se chama vida eterna. Também repugna à autoridade da Sagrada Escritura, declarando que os demônios e os homens maus serão enviados para o suplício eterno; mas os bons serão transferidos para a vida eterna. Por onde, essa opinião deve ser reputada por errônea e se deve ter firmemente, segundo a fé católica, que a vontade dos bons anjos está confirmada no bem e a dos demônios obstinada no mal.
Porém, a causa desta obstinação deve ser buscada, não na gravidade da culpa, mas na condição da natureza ou do estado. Pois, como diz Damasceno, a morte é para os homens o que é a queda para os anjos. Ora, é manifesto, todos os pecados mortais, grandes ou pequenos, dos homens são remissíveis, antes da morte; porém, depois dela, são irremissíveis e perpetuamente permanecem.
Logo, para se inquirir da causa dessa obstinação, é mister considerar que a virtude apetitiva, em todos os seres, é proporcionada à apreensiva, da qual é movida, assim como é o móvel proporcionado ao motor. Ora, o apetite sensitivo busca o bem particular, ao passo que a vontade atinge o universal, como já antes se disse; do mesmo modo que a apreensão sensível atinge o singular, ao passo que o intelecto, o universal.
Mas, a apreensão do anjo difere da do homem por apreender imovelmente, pelo intelecto, assim como nós apreendemos os primeiro princípios, objeto do intelecto; ao passo que o homem apreende movelmente, pela razão, discorrendo de uma verdade para outra, podendo tender para qualquer de dois opostos. Por onde, a vontade do homem adere a um objeto, movelmente, quase podendo abandoná-lo para aderir ao contrário; a do anjo, porém, adere fixa e imovelmente. E portanto, considerada antes da adesão, pode a vontade angélica aderir livremente a um termo ou ao seu oposto, isso nas coisas que ela não quer necessariamente; mas, depois de já ter aderido, adere imovelmente.
E, por isso, se costuma dizer que o livre arbítrio do homem é flexível e capaz de termos opostos, tanto antes como depois da eleição; porém, o do anjos é flexível quanto aos opostos, antes da eleição, não, porém, depois. Assim, pois, os bons anjos, uma vez tendo aderido à justiça, nela foram confirmados; mas os maus, pecando, obstinaram-se no pecado. Quanto à obstinação dos homens condenados, a seguir se dirá (Supplem. Q. 98, a. 1, 2).
Donde a resposta à primeira objeção. — Tanto os bons como os maus anjos têm o livre arbítrio; mas segundo o modo e a condição da sua natureza, como foi dito.
Resposta à segunda. — A misericórdia de Deus libera do pecado os penitentes. Porém, os incapazes de penitência, por aderirem imovelmente ao mal, esses não são liberados pela divina misericórdia.
Resposta à terceira. — Ao diabo ainda lhe permanece o pecado pelo qual pecou, quanto ao apetite, embora não quanto ao que crê poder alcançar. Como quem pensasse poder cometer um homicídio, e o quisesse sendo, em seguida, privado do poder de o perpetrar; contudo poderia permanecer-lhe a vontade do homicídio, de modo a querer tê-lo cometido ou a cometê-lo, se pudesse.
Resposta à quarta. — Não é a causa total de ser o pecado do homem remissível, o ter pecado por sugestão de outrem. Logo, a objeção não colhe.
Resposta à quinta. — O ato do demônio é duplo. Um procede da vontade deliberada e esse pode ser propriamente chamado ato do demônio. E tal ato sempre é mau, porque, embora algumas vezes faça algo de bom, todavia não o faz bem; assim, dizendo a verdade para enganar, e não a acreditando e confessando voluntariamente, mas coagido pela evidência das coisas. Porém, outro ato do demônio sendo natural, pode ser bom e lhe atesta a bondade da natureza. E todavia abusa também desse ato, para o mal.
(In Boet., De Trin., q. 1, a. 3).
O terceiro discute-se assim. ― Parece que Deus é o que primariamente é conhecido pela mente humana.
1. ― Pois aquilo pelo qual todas as outras coisas são conhecidas e pelo que as julgamos, é primariamente conhecido por nós; assim, a luz, pelos olhos, e os primeiros princípios, pelo intelecto. Ora, à luz da verdade primeira conhecemos e julgamos todas as coisas, como diz Agostinho. Logo, Deus é o que primariamente é conhecido por nós.
2. Demais. ― O que faz uma coisa ser o que é, tem, primariamente, as qualidades desta. Ora, Deus é a causa de todo o nosso conhecimento; pois, como diz a Escritura (Jo 1, 9), é luz verdadeira que ilumina todo homem vindo a este mundo. Logo, Deus é o que primariamente e em máximo grau é conhecido por nós.
3. Demais. O que é primariamente conhecido, em imagem, é o exemplar pelo qual é formada. Ora, a nossa mente é a imagem de Deus, como diz Agostinho. Logo, o que primariamente é conhecido pro ela é Deus.
Mas, em contrário, diz a Escritura (Jo 1, 18): Ninguém jamais viu a Deus.
Solução. ― Como o intelecto humano ao estado da vida presente, não pode inteligir as substâncias imateriais criadas, conforme já se disse (a. 1); não pode, com maior razão, inteligir a essência da substância incriada. Por onde, deve-se dizer, simplesmente, que Deus não é o que primariamente é conhecido por nós; mas, antes, pelas criaturas é que chegamos ao conhecimento de Deus, segundo aquilo da Escritura (Rm 1, 20): As coisas invisíveis de Deus vêm-se, consideradas pelas coisas que foram feitas. E o que primariamente é inteligido por nós, no estado da vida presente, é a qüididade da coisa material, do objeto do nosso intelecto, como muitas vezes já se disse.
Donde a resposta à primeira objeção. ― À luz da verdade primeira inteligimos e julgamos tudo, enquanto a luz mesma do nosso intelecto, natural ou gratuita, não é senão uma certa impressão da verdade primeira, como antes se disse (q. 84, a. 5). Por onde, como essa luz do nosso intelecto não está para este como o que é inteligido, mas como o por que se intelige, com maior razão Deus não é o que primariamente é inteligido pelo nosso intelecto.
Resposta à segunda. ― O dito: o que faz uma coisa ser o que é tem, primariamente, as qualidades desta, deve ser entendido de seres de uma mesma ordem, como antes se disse (q. 87, a. 2, ad 3). Ora, as coisas são conhecidas por causa de Deus; não porque Deus seja o primeiro conhecido, mas porque é a causa primeira da virtude cognoscitiva.
Resposta à terceira. ― Se a nossa alma fosse a perfeita imagem de Deus, como o filho é do Pai, a nossa alma inteligiria Deus imediatamente. Ora, como é uma imagem imperfeita, a objeção não colhe.
(IV Sent., dist, XLIX, q.2, a.7, ad 12 ; II Cont. Gent., cap. XLI; De Verit., q.18, a. 5, ad 6; Qu. De Anima, a.16; In Boet. De Trin., q.6, a.3, 4 ; I Poster., XLI; De Causis, lect. VII).
O segundo discute-se assim. ― Parece que o nosso intelecto pode chegar a inteligir as substâncias imateriais, pelo conhecimento das coisas materiais.
1. ― Pois, como diz Dionísio, não é possível à mente humana subir à contemplação imaterial das hierarquias celestes, sem ajudar-se do auxílio material em si. Logo, conclui-se que, pelas coisas materiais, podemos ser levados a inteligir as substâncias imateriais.
2. Demais. ― A ciência está no intelecto. Ora, há ciências e definições das substâncias imateriais; pois, Damasceno define o anjo; e, tanto as disciplinas teológicas como as filosóficas nos transmitem certos ensinamentos a respeito dos anjos. Logo, as substâncias imateriais podem ser inteligidas por nós.
3. Demais. ― A alma humana pertence ao gênero das substâncias imateriais. Ora, ela pode ser inteligida por nós, por meio do seu ato, pelo qual intelige as coisas materiais. Logo, também as outras substâncias imateriais podem ser inteligidas por nós, por meio dos seus efeitos sobre as coisas materiais.
4. Demais. ― Só não pode ser compreendida pelos seus efeitos a causa que dista infinitamente deles. Ora, isto só é próprio de Deus. Logo, as outras substâncias imateriais criadas podem ser inteligidas por nós, por meio das coisas materiais.
Mas, em contrário, diz Dionísio, que os inteligíveis não podem ser apreendidos pelos sensíveis, nem os seres simples pelos compostos, nem os incorpóreos pelos corpóreos.
Solução. ― Como refere Averróis, um certo Avempace ensinava que, pelos verdadeiros princípios da filosofia, podemos chegar a inteligir as substancias imateriais, por meio da intelecção das materiais. Pois, sendo natural ao nosso intelecto abstrair, da matéria, a qüididade da coisa material, se houver ainda, nessa qüididade, algo de material, o intelecto poderá, de novo abstrair; e, como isto não vai até ao infinito, ele poderá, finalmente, chegar a inteligir uma qüididade absolutamente sem matéria. E isto é inteligir a substância imaterial. O que seria exatamente dito, se as substâncias imateriais fossem as formas e as espécies das matérias, como ensinavam os Platônicos. Não posto, porém, mas suposto que as substâncias imateriais sejam de essência totalmente diversa das qüididades das coisas materiais, por mais que o nosso intelecto abstraia, da matéria, a qüididade da coisa imaterial, nunca chegará a algo de semelhante à substância imaterial. Por onde, pelas substâncias materiais não podemos perfeitamente inteligir as imateriais.
Donde a resposta à primeira objeção. ― Pelas coisas materiais podemos subir a um certo conhecimento das imateriais; não porém, a um conhecimento perfeito. Pois, não há comparação própria entre as coisas materiais e as imateriais; mas as semelhanças são muito dissemelhantes, como diz Dionísio, se porventura algumas se deduzem, dos seres materiais, para se inteligirem os imateriais.
Resposta à segunda. ― É sobretudo por via de remoção que, nas ciências, se tratam as coisas superiores. Assim, Aristóteles dá a conhecer os corpos celestes pela negação das propriedades dos corpos inferiores. Por onde, com maioria de razão, as substâncias imateriais não pode ser conhecidas por nós, de modo que lhes apreendamos as qüididades. Mas as ciências nos transmitem ensinamentos sobre elas, por via de remoção e por certas relações que têm com as coisas materiais.
Resposta à terceira. ― A alma humana se intelige a si mesma pelo seu inteligir, ato próprio dela e que revela perfeitamente a virtude e a natureza da mesma. Mas nem deste modo, nem pelo mais que se descobre nas coisas materiais, pode ser conhecida perfeitamente a virtude e a natureza das substâncias imateriais; porque os meios sobreditos não são adequados às virtudes delas.
Resposta à quarta. ― As substâncias imateriais criadas não têm o mesmo gênero natural que as substâncias materiais, porque não há nelas a mesma essência da potência e da matéria. Têm, todavia, o mesmo gênero lógico, porque também as substâncias imateriais, nas quais a qüididade não se identifica com o ser, entram no predicamento da substância. Ao passo que Deus não tem de comum com as coisas materiais nem o gênero natural nem o lógico; pois Deus não está, absolutamente, em nenhum gênero, como já disse antes (q. 3, a. 5). Por onde, pelas semelhanças das coisas materiais, pode ser conhecido, afirmativamente, algo, sobre os anjo, quanto à essência comum deles, embora não quanto a essência específica. De Deus, porém, de nenhum modo.
(II Cont. Gent., cap. LX ; III, cap. XLII usque ad XLVI; De Verit., q.10, a.11; q.18, a.5, ad 7 . 8 ; Qu. De Anima, a.16 ; In Boet. De Trin., q.6, art. 3; II Metaphys., lect. I).
O primeiro discute-se assim. ― Parece que a alma humana, no estado da vida presente, pode inteligir as substâncias imateriais em si mesmas.
1. ― Pois diz Agostinho: Assim como a alma colhe, pelos sentidos do corpo, os conhecimentos das coisas corpóreas, assim, por si mesma, alcança conhecer os seres incorpóreos. Ora, estes são as substâncias imateriais, Logo, a alma humana intelige tais substâncias.
2. Demais. ― O semelhante pelo semelhante se conhece. Ora, a mente humana mais se assemelha aos seres imateriais que às coisas materiais, pois é imaterial, como resulta do que já disse antes (q. 76, a. 1). Ora, se a nossa mente intelige as coisas materiais, com maior razão inteligirá as materiais.
3. Demais. ― Como a excelência dos sensíveis corrompe o sentido, daí vem que os sensíveis em si, em máximo grau, não são nesse mesmo grau sentidos por nós. Ora, a excelência dos inteligíveis não corrompe o intelecto, como já se disse. Logo, aquilo que é, em si, inteligível em máximo grau, é também inteligível para nós, no mesmo grau. Como, porém, as coisas materiais não são inteligíveis, senão porque as tornamos inteligíveis em ato, abstraindo da matéria, é manifesto que, em si, são mais inteligíveis as substâncias imateriais, por natureza. Por onde, são muito mais inteligíveis por nós, que as coisas materiais.
4. Demais. ― O comentador diz, que se as substâncias abstratas não pudessem ser inteligidas por nós, então a natureza teria operado em vão, fazendo com que não seja inteligido por nenhum intelecto aquilo que é, em si, naturalmente inteligido. Ora, nada é inútil ou vão, em a natureza. Logo, as substâncias imateriais podem ser inteligidas por nós.
5. Demais. ― O sentido está para os sensíveis, como o intelecto para os inteligíveis. Ora, a nossa vista pode ver todos os corpos, quer sejam superiores e incorruptíveis, quer inferiores e corruptíveis. Logo, o nosso intelecto pode inteligir todas as substâncias inteligíveis, mesmo as superiores e imateriais.
Mas, em contrário, diz a Escritura (Sb 9, 16): As coisas que há nos céus, quem as investigará? Ora, as sobreditas substâncias consideram-se como estando no céu, segundo a Escritura (Mt 18, 10): Os seus anjos nos céus vêm incessantemente a face de meu Pai, que está nos céus. Logo, as substâncias imateriais não podem ser conhecidas pela investigação humana.
Solução. ― Na opinião de Platão, as substâncias imateriais são não só inteligidas por nós, mas o são primariamente. Pois, Platão ensinava, que as formas imateriais subsistentes, a que chamava idéias, são os objetos próprios do nosso intelecto, sendo, assim, inteligidas por nós primariamente e por si. Ora, a alma conhece as coisas materiais na medida em que a fantasia e o sentido se imiscuem no intelecto. Por onde, quanto mais depurado for este, tanto mais perceberá a verdade inteligível dos seres imateriais.
Mas, segundo a doutrina de Aristóteles, mais de acordo com a nossa experiência, o nosso intelecto, no estado da vida presente, tem relação natural com as naturezas das coisas materiais; e, por isso, nada intelige senão voltando-se para os fantasmas, como é claro pelo que já foi dito (q. 84, a. 7). E, assim, é manifesto que não podemos inteligir as substâncias imateriais, que não caem primariamente e por si sob a alçada dos sentidos e da imaginação conforme o modo do conhecimentos que experimentamos.
Averróis, porém, diz que por fim, nesta vida, o homem pode chegar a inteligir as substâncias separadas, pela continuação em nós ou pela união conosco de certa substância separada, a que chama intelecto agente, a qual, como substância separada que é, intelige, naturalmente, as substâncias separadas. Por onde, quando estiver unida conosco, de modo que, por ela, possamos inteligir perfeitamente, também inteligiremos as substâncias separadas; como agora, pela nossa união com o intelecto possível, inteligimos as coisas materiais.
E essa união do intelecto agente conosco ele a compreende do modo seguinte. Quando inteligimos pelo intelecto agente e pelos inteligíveis especulados — como quando inteligimos as conclusões pelos princípios já inteligidos — necessário é que o intelecto agente esteja para as coisas especuladas inteligidas, como o agente principal está para os instrumentos ou como a forma para a matéria. Pois, é destes dois modos que a ação é atribuída a dois princípios: ao agente principal e ao instrumento, como, p. ex., a secção, atribuída ao artífice e à serra; à forma e ao sujeito, como, p. ex., a calefação, atribuída ao calor e ao fogo. Ora, de ambos os modos, o intelecto agente há de estar para os inteligíveis especulados, como a perfeição, para o perfectível e ao ato, para a potência. É simultaneamente, porém, que um ser recebe o perfeito e a perfeição; assim a pupila recebe o visível em ato e a luz. Por onde, o intelecto possível recebe simultaneamente os princípios especulados inteligidos, e o intelecto agente. E quanto mais recebemos princípios especulados inteligidos, tanto mais nos aproximaremos do ponto em que o intelecto agente há de unir-se conosco perfeitamente. De modo que, quando conhecermos todos os princípios especulados inteligidos, então o intelecto agente unirá conosco perfeitamente e poderemos, por ele, conhecer todos os seres, tanto os materiais como os imateriais. E nisto faz consistir a felicidade última do homem. Nem importa, para a questão, que Averróis admita por si mesmo que, nesse estado de felicidade, o intelecto possível intelige as substâncias separadas pelo intelecto agente; ou que deduza essa opinião mostrando que, se fosse verdadeira a opinião de Alexandre, considerando como corruptível o intelecto possível, então este nunca poderia inteligir as substâncias separadas.
Ora, também a opinião de Averróis, que acaba de ser exposta, não pode subsistir.
Primeiro, porque, se o intelecto agente é uma substância separada, impossível é que, por esta, intelijamos formalmente; pois, é pela forma e pelo seu ato que o agente, formalmente, age, visto, que todo agente age enquanto atual, como já disse antes (q. 76, a. 1), a respeito do intelecto possível.
Segundo, porque se o intelecto agente é como acaba de ser dito, uma substância separada, não se unirá substancialmente, mas só pela sua luz, enquanto está é participada pelas coisas inteligidas especuladas, e não em relação às outras ações do intelecto agente; de modo que, quando vemos as cores iluminadas pelo sol, não se une conosco a substancia do sol, para que possamos fazer as ações deste; mas somente, a luz do sol, para podermos ver as cores.
Terceiro, porque, dado que, pelo modo sobredito, a substância do intelecto agente se unisse conosco, contudo os da opinião de Averróis ensinam que essa união é total, não quanto a um ou dois inteligíveis, mas quanto a todas as coisas inteligidas. Ora, a virtude do intelecto agente não é esgotada por todas as coisas especulativas inteligidas; porque muito mais é inteligir as substâncias separadas, do que, todas as coisas materiais. Por onde é manifesto que, mesmo inteligidas que sejam todas as coisas materiais, nem assim ficaria o intelecto agente unido conosco, de modo a podermos, por ele, inteligir as substâncias separadas.
Quarto, porque, sendo concedido a muito raros, neste mundo, inteligir todos os objetos materiais, ninguém, ou pouquíssimos, chegariam à felicidade. O que vai conta o Filósofo, dizendo que a felicidade é um bem comum que podem alcançar todos os que não são privados da virtude. E é também contra a razão que, de seres contidos numa espécie, só poucos consigam o fim da espécie.
Quinto, porque o Filósofo diz expressamente que a felicidade é a operação conforme à virtude perfeita. E tendo enumerado muitas virtudes, conclui que a felicidade última, consistente no conhecimento dos máximos inteligíveis, deve ser conforme à virtude da sapiência, que estabelecera como a capital, dentre as ciências especulativas. Por onde se vê Aristóteles colocou a felicidade última do homem no conhecimento das substâncias separadas, tais como podem ser alcançadas pelas ciências especulativas, e não por união com o intelecto agente, imaginada por alguns.
Sexto, porque, como já se demonstrou antes (q. 79, a. 4), o intelecto agente não é uma substância separada, mas uma virtude da alma, estendendo-se, ativamente, às mesmas coisas às quais, se estende, receptivamente, o intelecto possível. Pois, como já se disse, o intelecto possível é o princípio pelo qual a alma pode vir a ser todas as coisas, e o intelecto agente é o princípio de fazer todas as coisas. Por onde, ambos esses intelectos se estendem, no estado da vida presente, só às coisas materiais que, tornadas inteligíveis em ato, pelo intelecto agente, são recebidas no intelecto possível.
E portanto, no estado da vida presente, nem pelo intelecto possível, nem pelo intelecto agente, podemos inteligir as substâncias separadas imateriais, em si mesmas.
Donde a resposta à primeira objeção. ― Do passo citado de Agostinho pode-se concluir que aquilo que a nossa mente conhece, dos seres incorpóreos, pode conhecer por si mesma. E isto é tão verdadeiro que, mesmo os filósofos podem dizer que a ciência da alma é um princípio para se conhecerem as substâncias separadas. Pois, conhecendo-se a si mesma, a nossa alma atinge, na medida em que isso lhe é possível, um certo conhecimento das substâncias incorpóreas; não as conhece, porém, em si e perfeitamente, conhecendo-se a si mesma.
Resposta à segunda. ― Se a semelhança de natureza fosse razão suficiente do conhecimento, então seria necessário dizer, com Empédocles, que a alma, conhecendo tudo, tem a natureza de tudo. Mas o necessário, para conhecer, é que a semelhança da coisa conhecida esteja no conhecente, como forma deste. Ora, ao nosso intelecto possível, no estado da vida presente, é natural ser informado pelas semelhanças das coisas materiais abstratas dos fantasmas; e, por isso, conhece melhor as coisas materiais do que as substâncias imateriais.
Resposta à terceira. ― Entre o objeto e a potência cognoscitiva é necessário haver a mesma relação que há entre o ativo e o passivo, entre a perfeição e o perfectível. Por onde, se os sensíveis mais excelentes não são apreendidos pelos sentidos, a razão não é só porque eles corrompam os órgãos sensíveis, mas também porque são desproporcionadas às potências sensitivas. E, deste modo, as substâncias imateriais são desproporcionadas ao nosso intelecto, no estado da vida presente, de modo a não poder ser inteligidas por ele.
Resposta à quarta. ― A razão abduzida, do Comentador, é deficiente sob múltiplos aspectos. ― Primeiro, porque se as substâncias separadas não são inteligidas por nós, daí não se segue que não sejam inteligidas por nenhum intelecto; pois, são inteligidas por si mesmas e umas, pelas outras. ― Segundo, porque o fim das substâncias separadas não é serem inteligidas por nós. Ora, diz-se que é inútil e vão o que não consegue o fim para qual existe. E assim, não se seguiria que as substâncias imateriais fossem vãs, mesmo se, de nenhum modo, fossem inteligidas por nós.
Resposta à quinta. ― Os sentidos conhecem os corpos superiores e os inferiores pelo mesmo modo, que é a imutação do órgão, pelo sensível. Ora, as substâncias materiais, que inteligimos por meio da abstração, não são inteligidas por nós do mesmo modo por que o são as substâncias imateriais; pois estas, não tendo nenhuns fantasmas, não podem ser inteligidas pelo mesmo meio.
Em seguida deve-se considerar como a alma humana conhece as coisas que lhe são superiores, a saber, as substâncias imateriais. E, sobre este ponto, três artigos se discutem:
(Supra, q. 82, a. 4, ad 1; III Sent., dist. XXIII, q. 1, a. 2, ad 3).
O quarto discute-se assim. ― Parece que o intelecto não intelige o ato da vontade.
1. ― Pois, só é conhecido do intelecto aquilo que, de certo modo, lhe está presente. Ora, o ato da vontade não está presente ao intelecto, pois, são potências diversas. Logo, o ato da vontade não é conhecido pelo intelecto.
2. Demais. ― O ato se específica pelo seu objeto. Ora, o objeto da vontade difere do objeto do intelecto. Logo, o ato da vontade tem espécie diversa do objeto do intelecto. Logo, não é conhecido por este.
3. Demais. ― Agostinho diz, que os afetos da alma não são conhecidos, nem pelas imagens, como os corpos, nem pela presença, como as artes, mas por certas noções. Ora, não pode haver na alma noções de outras coisas, senão da essência das coisas conhecidas ou das semelhanças destas. Logo, é impossível que o intelecto conheça os afetos da alma, que são atos da vontade.
Mas, em contrário, diz Agostinho: Intelijo-me como querendo.
Solução. ― Como já se disse antes (q. 59, a. 1), o ato da vontade não é senão uma certa inclinação conseqüente à forma inteligida; assim como o apetite natural é a inclinação conseqüente à forma natural. Ora, a inclinação está, a seu modo, na coisa à qual pertença. Por onde, a inclinação natural está naturalmente na coisa natural; a do apetite sensível está sensivelmente, no ser que sente; e semelhantemente, a inteligível, que é ato da vontade, está inteligívelmente, no ser que intelige, como no primeiro princípio e no sujeito próprio. Por isso, o Filósofo usa da locução: a vontade está na razão. Ora, é conseqüente que, o que está, inteligívelmente, num ser inteligente, seja por este inteligido. Por onde, o ato da vontade é inteligido pelo intelecto, enquanto alguém tem consciência de querer e enquanto conhece a natureza deste ato e, por conseqüência, a natureza do princípio do mesmo, que é o hábito ou a potência.
Donde a resposta à primeira objeção. ― A objeção procederia, se a vontade e o intelecto, sendo potências diversas, também diferissem; então, o que estivesse na vontade estaria ausente do intelecto. Ora, como ambas se radicam numa mesma substância da alma, e uma é, de certo modo, o princípio da outra, resulta conseqüentemente, que o que está na vontade está também, de certo modo, no intelecto.
Resposta à segunda. ― O bem e o verdadeiro, objetos da vontade e do intelecto, diferem, certo, pela razão; contudo, um se contém no outro, como antes já se disse (q. 82, a. 4, ad 1); pois, o verdadeiro é um certo bem e o bem, um certo verdadeiro. Por onde, o que é da vontade cai sob a alçada do intelecto; e o que é do intelecto pode cair sob a da vontade.
Resposta à terceira. ― Os afetos da alma não estão no intelecto, nem pela semelhança, somente, como os corpos, nem pela presença, como no sujeito próprio, conforme se dá com as artes; mas como o principiado está no princípio, no qual é ela a noção do principiado. E por isso Agostinho diz que os objetos da alma estão na memória, por meio de certas noções.