Category: Meditações e sermões
Dom Alfonso de Galarreta
Hoje mais do que nunca trata-se de um combate, um combate sem trégua, sem piedade, mas é também ao mesmo tempo o único combate que vale a pena, que nos dá o entusiasmo e a paz.
Penso que foi Santo Agostinho quem definiu, melhor que ninguém, quais são as regras desse combate, da história da Igreja, da história da humanidade.
E a primeira regra que ele dá é que há dois amores opostos: o amor de si mesmo até ao desprezo de Deus, o amor de Deus até ao desprezo de si mesmo. Nós somos o que amamos.
E este combate é o combate de todo o homem necessariamente, quer se queira ou não, é a oposição entre o homem carnal e terrestre e o homem espiritual. É o combate que todos nós experimentamos.
É o homem egoísta ou o homem caritativo.
É o amor próprio, o amor de si ou, pelo contrário, verdadeiramente, o amor de Deus, o amor do próximo.
É o individualismo ou é o cuidado pelo bem comum, quer seja no seio da Igreja, da família, da sociedade.
É esta luta que se desenrola ao longo de toda a história e isso mostra-nos, pois, em primeiro lugar, a importância da caridade.
A caridade é o motor da nossa vida cristã, é verdadeiramente o desafio dessa vida.
A nossa vida é finalmente uma questão de caridade: o que se ama, e de que maneira se ama.
Pois o cristão deve antes de tudo exercitar-se na verdadeira caridade e, por aí, é preciso chegar ao desprezo de si.
Chamou-se a Santo Agostinho o doutor da graça, porque pôs em destaque a importância da graça.
É verdade finalmente que todo o desafio é o sobrenatural, a graça, e o sacerdote não faz senão dar, espalhar a graça de Deus, é essencialmente a sua função.
É isso que foi deixado de lado hoje pela igreja conciliar.
O sacerdote está ali para levar, dar, espalhar o sobrenatural.
E na medida em que o sobrenatural, portanto, a graça de Deus, fica bem estabelecido nas nossas almas, na medida em que a graça cresce, se desenvolve, pois bem, nessa medida é-se invencível!
Por quê? Porque pela graça tem-se Deus em si. Pela graça Deus está em nós! Ora, Deus não pode ser vencido.
Portanto fareis triunfar profundamente esta graça de Deus nas vossas almas e ter sempre um olhar sobrenatural; se não sossobra-se no desencorajamento, sossobra-se no ativismo naturalista, que é muito perigoso.
O terceiro princípio que coloca Santo Agostinho para explicar as leis que regem necessariamente a história da Igreja e a história da humanidade é o primado de Cristo.
Não há outra fonte da graça senão Nosso Senhor Jesus Cristo.
Ele é o centro e o fim da história.
É por isso que Santo Agostinho chama a toda a história antes da vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo a "história profética ".
Era para preparar e anunciar a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, a Sua encarnação, a Sua redenção.
E depois de Nosso Senhor Jesus Cristo o fim é o Seu triunfo e o Seu triunfo vai-se realizar quando da Sua segunda vinda, a Parusia.
É então que terá lugar o triunfo de Nosso Senhor Jesus Cristo e, enquanto se espera, edifica-se, constrói-se a Jerusalém celeste, a Igreja definitiva, a Igreja para sempre.
Fora de Nosso Senhor Jesus Cristo não há salvação, fora de Nosso Senhor Jesus Cristo não há paz; portanto não há felicidade, não há vida feliz fora de Nosso Senhor Jesus Cristo.
E o sacerdote deve deixar-se apaixonar por este ideal!
É preciso dar Cristo às almas, é preciso trabalhar no reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo por toda a parte.
O quarto princípio para Santo Agostinho e para nós é o de que não há fatalismo na vida, na história, não há determinismo, tão pouco há acaso. Tudo é Providência divina, tudo, absolutamente tudo!
É preciso convencermo-nos disto!
Das maiores às mais pequenas coisas, tudo é querido por Deus.
Não há nada que Lhe escape, nem na ordem natural nem menos ainda na ordem moral sobrenatural.
Finalmente, a história não é outra coisa senão o desenrolar dos desígnios eternos de Deus.
Bem entendido, inclui-se a nossa liberdade, Deus criou-nos livres.
Uma coisa impede a outra, mas os desígnios de Deus cumprem-se ao longo da história infalivelmente, necessariamente, se não Ele não seria Deus!
E isso deve dar-nos uma grande confiança, porque todos os males, de ordem natural e mesmo de ordem moral, estão previstos e permitidos por Deus.
Não somente contribuem para o bem do universo, mas têm um fim; são ordenados ao bem e ao cumprimento da Sua vontade, que é finalmente a salvação das almas e o triunfo de Nosso Senhor Jesus Cristo.
"Tudo foi criado para o homem para Cristo, Cristo para Deus".
E hoje poderíamos juntar ainda uma outra lei que rege a história, porque isso nos foi progressivamente desvelado no decurso dos tempos, no decurso dos séculos, e sobretudo no nosso tempo: é o papel e o lugar da Santíssima Virgem Maria no triunfo de Nosso Senhor Jesus Cristo e na salvação das almas, um lugar, um papel de eleição: tudo estava confiado ao Coração de nossa Mãe.
O bom Deus teria podido fazer doutro modo, mas por que quis fazê-lo assim? Para nos amparar nas nossas fraquezas, nas nossas misérias, nos nossos medos!
Que há de mais terno e de mais atraente do que uma mãe, compassiva, misericordiosa?
E é evidente que estas perfeições, que estão na Santa Virgem Maria, são perfeições divinas, participadas por uma criatura.
Se a Santa Virgem é como é, foi simplesmente porque o Bom Deus quis manifestar nela duma maneira mais brilhante e mais adequada a nós algumas das Suas perfeições.
Era uma vantagem em relação a nós, porque eu diria: Nosso Senhor, mesmo tão bom, tão doce, tão misericordioso no Seu Sagrado Coração, é sempre Deus e isso faz-nos sempre um pouco de medo.
Ele quis dar-nos a Santíssima Virgem Maria e confiar à sua Mãe a consumação dos desígnios que Deus tem na história da Igreja, na história da humanidade.
E quando nós olhamos para a obra de Monsenhor Lefebvre, é precisamente isso: compreendeu as intenções da Providência.
Tinha uma poderosa caridade; penso que todos nós o podemos testemunhar.
Era muito sobrenatural, pregava a tempo e a contratempo os temas da graça; estava verdadeiramente votado ao triunfo de Nosso Senhor Jesus Cristo pela Cruz, pelo Santo Sacrifício, pelo Seu Reinado, pois que Ele é rei; seguia sempre a Providência e não se tomava pela Providência.
Tinha uma verdadeira piedade por Nossa Senhora, sem deslocar o Seu lugar e o Seu papel para o centro do dogma católico e do combate, é de resto o que Ela deseja, mas dando-Lhe plenamente o lugar que deve ter neles.
Ele apresenta-nos assim um exemplo extraordinário: como simplesmente, humildemente pode uma pessoa pôr-se verdadeiramente ao serviço de Deus, ser dócil, nas mãos de Deus para defender o que é preciso defender.
É preciso ter esta vontade de se converter profundamente e de se pôr ao serviço de Deus como Deus o quer.
Neste domínio e hoje mais do que nunca, não convém ficar dentro do labirinto das misérias e das mesquinharias humanas.
É preciso estar por cima, ter um olhar sobrenatural.
Não convém tomar o lugar de Deus, não convém querer resolver por nós próprios os problemas que o Bom Deus permite e que tem permitido, porquanto Ele tem outros fins.
Quais são os Seus fins? Nós não sabemos nada disso.
Permitindo os males presentes hoje na Igreja, por um lado isso pode servir de mérito e de acréscimo da virtude daqueles que são fiéis, para se exercerem em certas virtudes, como a humildade, a paciência, para obter méritos para a eternidade, a menos que Deus não nos prepare para outras provas e que seria em definitiva simplesmente um pouco de treino de nossa parte - nós não o sabemos!
Quanto aos maus, por outro lado, o Bom Deus sabe também o que faz para a emenda deles, como um castigo, como uma punição.
Em todo o caso, é sempre Ele quem governa isso, quem o permite, e não somos nós multiplicando-nos por uma atividade natural e vistas humanas que vamos resolver seja o que for.
E quando Ele quiser, sem mais esforços que isso, então tudo entrará na normalidade, dentro da Igreja e no mundo.
Mas para nós este combate pessoal continua, para fazer triunfar a caridade, a graça de Deus, o Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo e isso deve em seguida traduzir-se num espírito, num ardor apostólico em fazê-lo.
E uma vez que se fez o seu dever, que se fez tudo o que se pode, pois bem, demos graças a Deus.
Agradeçamos ao bom Deus termos o que temos e façamo-lo frutificar.
Então peçamos neste dia à Santíssima Virgem Maria que nos dê aquela visão tão sobrenatural e tão alta que Santo Agostinho teve e que teve também o nosso querido e venerado fundador Monsenhor Lefebvre.
SERMÃO DA QUARTA-FEIRA DE CINZAS
(Igreja de S. Antônio dos Portugueses, Roma. Ano de 1670.)
Padre Antônio Vieira
Memento homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris.
Lembra-te homem, que és pó, e em pó te hás de converter.
I
O pó futuro, em que nos havemos de converter, é visível à vista, mas o pó presente, o pó que somos, como poderemos entender essa verdade? A resposta a essa dúvida será a matéria do presente discurso.
Duas coisas prega hoje a Igreja a todos os mortais, ambas grandes, ambas tristes, ambas temerosas, ambas certas. Mas uma de tal maneira certa e evidente, que não é necessário entendimento para crer: outra de tal maneira certa e dificultosa, que nenhum entendimento basta para a alcançar. Uma é presente, outra futura, mas a futura vêem-na os olhos, a presente não a alcança o entendimento. E que duas coisas enigmáticas são estas? Pulvis es, tu in pulverem reverteris: Sois pó, e em pó vos haveis de converter. — Sois pó, é a presente; em pó vos haveis de converter, é a futura. O pó futuro, o pó em que nos havemos de converter, vêem-no os olhos; o pó presente, o pó que somos, nem os olhos o vêem, nem o entendimento o alcança. Que me diga a Igreja que hei de ser pó: In pulverem reverteris, não é necessário fé nem entendimento para o crer. Naquelas sepulturas, ou abertas ou cerradas, o estão vendo os olhos. Que dizem aquelas letras? Que cobrem aquelas pedras? As letras dizem pó, as pedras cobrem pó, e tudo o que ali há é o nada que havemos de ser: tudo pó. Vamos, para maior exemplo e maior horror, a esses sepulcros recentes do Vaticano. Se perguntardes de quem são pó aquelas cinzas, responder-vos-ão os epitáfios, que só as distinguem: Aquele pó foi Urbano, aquele pó foi Inocêncio, aquele pó foi Alexandre, e este que ainda não está de todo desfeito, foi Clemente. De sorte que para eu crer que hei de ser pó, não é necessário fé, nem entendimento, basta a vista. Mas que me diga e me pregue hoje a mesma Igreja, regra da fé e da verdade, que não só hei de ser pó de futuro, senão que já sou pó de presente: Pulvis es? Como o pode alcançar o entendimento, se os olhos estão vendo o contrário? É possível que estes olhos que vêem, estes ouvidos que ouvem, esta língua que fala, estas mãos e estes braços que se movem, estes pés que andam e pisam, tudo isto, já hoje é pó: Pulvis es? Argumento à Igreja com a mesma Igreja: Memento homo. A Igreja diz-me, e supõe que sou homem: logo não sou pó. O homem é uma substância vivente, sensitiva, racional. O pó vive? Não. Pois como é pó o vivente? O pó sente? Não. Pois como é pó o sensitivo? O pó entende e discorre? Não. Pois como é pó o racional? Enfim, se me concedem que sou homem: Memento homo, como me pregam que sou pó: Quia pulvis es? Nenhuma coisa nos podia estar melhor que não ter resposta nem solução esta dúvida. Mas a resposta e a solução dela será a matéria do nosso discurso. Para que eu acerte a declarar esta dificultosa verdade, e todos nós saibamos aproveitar deste tão importante desengano, peçamos àquela Senhora, que só foi exceção deste pó, se digne de nos alcançar graça.
Ave Maria.
II
O homem foi pó e há de ser pó, logo é pó, pois tudo o que vive não é o que é, é o que foi e o que há de ser. O exemplo da vara de Arão que se converte em serpente. Deus se definiu a Moisés como aquele que é o que é, porque só ele é o que foi e o que há de ser. Se alguém puder afirmar o mesmo de si próprio também é digno de ser adorado.
Enfim, senhores, não só havemos de ser pó, mas já somos pó: Pulvis es. Todos os embargos que se podiam pôr contra esta sentença universal são os que ouvistes. Porém como ela foi pronunciada definitiva e declaradamente por Deus ao primeiro homem e a todos seus descendestes, nem admite interpretação nem pode ter dúvida. Mas como pode ser? Como pode ser que eu que o digo, vós que o ouvis, e todos os que vivemos sejamos já pó: Pulvis es? A razão é esta. O homem, em qualquer estado que esteja, é certo que foi pó, e há de tornar a ser pó. Foi pó, e há de tornar a ser pó? Logo é pó. Porque tudo o que vive nesta vida, não é o que é: é o que foi e o que há de ser. Ora vede.
No dia aprazado em que Moisés e os magos do Egito haviam de fazer prova e ostentação de seus poderes diante do rei Faraó, Moisés estava só com Arão de uma parte, e todos os magos da outra. Deu sinal o rei, mandou Moisés a Arão que lançasse a sua vara em terra, e converteu-se subitamente em uma serpente viva e tão temerosa, como aquela de que o mesmo Moisés no deserto se não dava por seguro. Fizeram todos os magos o mesmo: começam a saltar e a ferver serpentes, porém a de Moisés investiu e avançou a todas elas intrépida e senhorilmente, e assim, vivas como estavam, sem matar nem despedaçar, comeu e engoliu a todas. Refere o caso a Escritura, e diz estas palavras: Devoravit virga Aaron virgas eorum: a vara de Arão comeu e engoliu as dos egípcios (Ex 7, 12) — Parece que não havia de dizer: a vara, senão: a serpente. A vara não tinha boca para comer, nem dentes para mastigar, nem garganta para engolir, nem estômago para recolher tanta multidão de serpentes. A serpente, em que a vara se converteu, sim, porque era um dragão vivo, voraz e terrível, capaz de tamanha batalha e de tanta façanha. Pois, por que diz o texto que a vara foi a que fez tudo isto, e não a serpente? Porque cada um é o que foi e o que há de ser. A vara de Moisés, antes de ser serpente, foi vara, e depois de ser serpente, tornou a ser vara; a serpente que foi vara e há de tornar a ser vara não é serpente, é vara: Virga Aaron. É verdade que a serpente naquele tempo estava viva, e andava, e comia, e batalhava, e vencia, e triunfava, mas como tinha sido vara, e havia de tornar a ser vara, não era o que era: era o que fora e o que havia de ser: Virga.
Ah! serpentes astutas do mundo vivas, e tão vivas! Não vos fieis da vossa vida nem da vossa viveza; não sois o que cuidais nem o que sois: sois o que fostes e o que haveis de ser. Por mais que vós vejais agora um dragão coroado e vestido de armas douradas, com a cauda levantada e retorcida açoitando os ventos, o peito inchado, as asas estendidas, o colo encrespado e soberbo, a boca aberta, dentes agudos, língua trifulca, olhos cintilantes, garras e unhas rompentes, por mais que se veja esse dragão já tremular na bandeira dos lacedemônios, já passear nos jardins das hespérides, já guardar os tesouros de Midas, ou seja dragão volante entre os meteoros, ou dragão de estrelas entre as constelações, ou dragão de divindade afetada entre as hierarquias, se foi vara, e há de ser vara, é vara; se foi terra, e há de ser terra, é terra; se foi nada, e há de ser nada, é nada, porque tudo o que vive neste mundo é o que foi e o que há de ser. Só Deus é o que é, mas por isso mesmo. Por isso mesmo. Notai.
Apareceu Deus ao mesmo Moisés nos desertos de Madiã; manda-o que leve a nova da liberdade ao povo cativo, e perguntando Moisés quem havia de dizer que o mandava, pare que lhe dessem crédito, respondeu Deus e definiu-se: Ego sum qui sum: Eu sou o que sou (Ex 3, 14). Dirás que o que é te manda: Qui est misit me ad vos? Qui est? O que é? E que nome, ou que distinção é esta? Também Moisés é o que é, também Faraó é o que é, também o povo, com que há de falar, é o que é. Pois se este nome e esta definição toca a todos e a tudo, como a toma Deus só por sua? E se todos são o que são, e cada um é o que é, por que diz Deus não só como atributo, senão como essência própria da sua divindade: Ego sum qui sum: Eu sou o que sou? Excelentemente S. Jerônimo, respondendo com as palavras do Apocalipse: Qui est, et qui erat, et qui venturus est [2], Sabeis por que diz Deus: Ego sum qui sum? Sabeis por que só Deus é o que é? Porque só Deus é o que foi e o que há de ser. Deus é Deus, e foi Deus, e há de ser Deus; e só quem é o que foi e o que há de ser. é o que é. Qui est, et qui erat, et qui venturus est. Ego sum qui sum. De maneira que quem é o que foi e o que há de ser, é o que é, e este é só Deus. Quem não é o que foi e o que há de ser, não é o que é: é o que foi e o que há de ser: e esses somos nós. Olhemos para trás: que é o que fomos? Pó. Olhemos para diante: que é o que havemos de ser? Pó. Fomos pó e havemos de ser pó? Pois isso é o que somos:Pulvis es.
Eu bem sei que também há deuses da terra, e que esta terra onde estamos foi a pátria comum de todos os deuses, ou próprios, ou estrangeiros. Aqueles deuses eram de diversos metais; estes são de barro, ou cru ou mal cozido, mas deuses. Deuses na grandeza, deuses na majestade, deuses no poder, deuses na adoração, e também deuses no nome: Ego dixi, dii estis. Mas se houver, que pode haver, se houver algum destes deuses que cuide ou diga: Ego sum qui sum, olhe primeiro o que foi e o que há de ser. Se foi Deus, e há de ser Deus, é Deus: eu o creio e o adoro; mas se não foi Deus, nem há de ser Deus, se foi pó, e há de ser pó, faça mais caso da sua sepultura que da sua divindade. Assim lho disse e os desenganou o mesmo Deus que lhes chamou deuses: Ego dixi, dii estis. Vos autem sicut homines moriemini [3]. Quem foi pó e há de ser pó, seja o que quiser e quanto quiser, é pó: Pulvis es.
III
Jó define-se como quem foi pó e há de ser pó: Abraão define-se como quem é pó. O texto sagrado não diz: converter-vos-eis em pó mas tornareis a ser pó. O que chamamos vida não é mais que um círculo que fazemos de pó a pó.
Parece-me que tenho provado a minha razão e a conseqüência dela. Se a quereis ver praticada em próprios termos, sou contente. Praticaram este desengano dois homens que sabiam mais de nós que nós: Abraão e Jó, com outro memento como o nosso, dizia a Deus: Memento quaeso, quod sicuit lutum feceris me, et in pulverem deduces me: Lembrai-vos, Senhor, que me fizestes de pó, e que em pó me haveis de tornar (Jó 10, 9). —Abraão, pedindo licença ou atrevimento para falar a Deus: Loquar ad Dominum, cum sim pulvis et cinis: Falar-vos-ei , Senhor, ainda que sou pó e cinza (Gn 18, 27). — Já vedes a diferença dos termos que não pode ser maior, nem também mais natural ao nosso intento. Jó diz que foi pó e há de ser pó; Abraão não diz que foi, nem que há de ser, senão que já é pó: Cum sim pulvis et cinis. Se um destes homens fora morto e outro vivo, falavam muito propriamente, porque todo o vivo pode dizer: Eu fui pó, e hei de ser pó; e um morto, se falar, havia de dizer: Eu já sou pó. Mas Abraão que disse isto, não estava morto, senão vivo, como Jó; e Abraão e Jó não eram de diferente metal, nem de diferente natureza. Pois se ambos eram da mesma natureza, e ambos estavam vivos, como diz um que já é pó, e outro não diz que o é, senão que o foi e que o há de ser? Por isso mesmo. Porque Jó foi pó e há de ser pó, por isso Abraão é pó. Em Jó falou a morte, em Abraão falou a vida, em ambos a natureza. Um descreveu-se pelo passado e pelo futuro, o outro definiu-se pelo presente; um reconheceu o efeito, o outro considerou a causa; um disse o que era, o outro declarou o porquê. Porque Jó e Abraão e qualquer outro homem foi pó, por isso já é pó. Fôstes pó e haveis de ser pó como Jó? Pois já sois pó como Abraão: Cum sim pulvis et cinis.
Tudo temos no nosso texto, se bem se considera, porque as segundas palavras dele não só contêm a declaração, senão também a razão das primeiras. Pulvis es: sois pó. E por que? Porque in pulverem reverteris: porque fostes pó e haveis de tornar a ser pó. Esta é a forca da palavra reverteris, a qual não só significa o pó que havemos de ser, senão também o pó que somos. Por isso não diz: converteris, converter-vos-eis em pó, senão: reverteris, tornareis a ser o pó que fostes. Quando dizemos que os mortos se convertem em pó, falamos impropriamente, porque aquilo não é conversão, é reversão: reverteris. É tornar a ser na morte o pó que somos no nascimento; é tornar a ser na sepultura o pó que somos no campo damasceno. E porque somos pó e havemos de tornar a ser pó: In pulverem reverteris, por isso já somos pó: Pulvis es. — Não é exposição minha, senão formalidade do mesmo texto, com que Deus pronunciou a sentença de morte contra Adão: Donec revertaris in terram de qua sumptus es: quia pulvis es (Gn 3, 19): — Até que tornes a ser a terra de que fostes formado, porque és pó.— De maneira que a razão e o porquê de sermos pó: Quia pulvis es, é porque somos pó, e havemos de tornar a ser pó: Donec revertaris in terram de qua sumptus es.
Só parece que se pode opor ou dizer em contrário, que aquele donec: até que, significa tempo em meio entre o pó que somos e o pó que havemos de ser, e que neste meio tempo não somos pó. Mas a mesma verdade divina que disse: donec, disse também: pulvis es. E a razão desta conseqüência está no revertaris, porque a reversão com que tornamos a ser o pó que fomos começa circularmente, não do último senão do primeiro ponto da vida. Notai. Esta nossa chamada vida não é mais que um círculo que fazemos de pó a pó: do pó que fomos ao pó que havemos de ser. Uns fazem o círculo maior, outros menor, outros mais pequeno, outros mínimo: De utero translatus ad tumulum [4] Mas, ou o caminho seja largo, ou breve, ou brevíssimo, como é círculo de pó a pó, sempre e em qualquer parte da vida somos pó. Quem vai circularmente de um ponto para o mesmo ponto, quanto mais se aparta dele tanto mais se chega para ele; e quem quanto mais se aparta mais se chega, não se aparta. O pó que foi nosso princípio, esse mesmo, e não outro, é o nosso fim, e porque caminhamos circularmente deste pó para este pó, quanto mais parece que nos apartamos dele, tanto mais nos chegamos para ele; o passo que nos aparta, esse mesmo nos chega; o dia que faz a vida, esse mesmo a desfaz. E como esta roda que anda e desanda juntamente sempre nos vai moendo, sempre somos pó. Por isso, quando Deus intimou a Adão a reversão ou resolução deste círculo: Donec revertaris, das premissas: pó foste, e pó serás, — tirou por conseqüência: pó és: Quia pulvis es. Assim que desde o primeiro instante da vida até o último nos devemos persuadir e assentar conosco, que não só somos e havemos de ser pó, senão que já o somos, e por isso mesmo. Foste pó e hás de ser pó? És pó: Pulvis es.
IV
Se já somos pó, qual a diferença existente entre vivos e mortos? Os vivos são o pó levantado pelo vento, os mortos são o pó caído. Adão, feito de pó, recebendo o vento do sopro divino torna-se vivo. Nas Escrituras, levantar é viver, cair é morrer. Assim, como distingue Davi, há o pó da morte e o pó da vida.
Ora, suposto que já somos pó, e não pode deixar de ser, pois Deus o disse, perguntar-me-eis e com muita razão, em que nos distinguimos logo os vivos dos mortos? Os mortos são pó, nós também somos pó: em que nos distinguimos uns dos outros? Distinguimo-nos os vivos dos mortos, assim como se distingue o pó do pó. Os vivos são pó levantado, os mortos são pó caído: os vivos são pó que anda, os mortos são pó que jaz: Hic jacet. Estão essas praças no verão cobertas de pó; dá um pé-de-vento, levanta-se o pó no ar, e que faz? O que fazem os vivos, e muitos vivos. Não aquieta o pó, nem pode estar quedo: anda, corre, voa, entra por esta rua, sai por aquela; já vai adiante, já torna atrás; tudo enche, tudo cobre, tudo envolve, tudo perturba, tudo cega, tudo penetra, em tudo e por tudo se mete, sem aquietar, nem sossegar um momento, enquanto o vento dura. Acalmou o vento, cai o pó, e onde o vento parou, ali fica, ou dentro de casa, ou na rua, ou em cima de um telhado, ou no mar, ou no rio, ou no monte, ou na campanha. Não é assim? Assim é. E que pó, e que vento é este? O pó somos nós: Quia pulvis es; o vento é a nossa vida: Quia ventus es vita mea (Jó 7, 7). Deu o vento, levantou-se o pó; parou o vento, caiu. Deu o vento, eis o pó levantado: esses são os vivos. Parou o vento, eis o pó caído: estes são os mortos. Os vivos pó, os mortos pó; os vivos pó levantado, os mortos pó caído; os vivos pó com vento, e por isso vãos; os mortos pó sem vento, e por isso sem vaidade. Esta é a distinção, e não há outra.
Nem cuide alguém que é isto metáfora ou comparação, senão realidade experimentada e certa. Forma Deus de pó aquela primeira estátua, que depois se chamou corpo de Adão. Assim o diz o texto original: Formavit Deus hominem de pulvere terrae (Gn 2, 7). A figura era humana e muito primorosamente delineada, mas a substância ou a matéria não era mais que pó. A cabeça pó, o peito pó, os braços pó, os olhos, a boca, a língua, o coração, tudo pó. Chega-se pois Deus à estátua, e que fez? Inspiravit in faciem ejus: Assoprou-a (Gn 2, 7). E tanto que o vento do assopro deu no pó: Et factus est homo in animam viventem: eis o pó levantado e vivo; já é homem, já se chama Adão. Ah! pó, se aquietaras e pararas aí! Mas pó assoprado, e com vento, como havia de aquietar? Ei-lo abaixo, ei-lo acima, e tanto acima, e tanto abaixo, dando uma tão grande volta, e tantas voltas. Já senhor do universo, já escravo de si mesmo; já só, já acompanhado; já nu, já vestido; já coberto de folhas, já de peles; já tentado, já vencido; já homiziado, já desterrado; já pecador, já penitente, e para maior penitência, pai, chorando os filhos, lavrando a terra, recolhendo espinhos por frutos, suando, trabalhando, lidando, fatigando, com tantos vaivens do gosto e da fortuna, sempre em uma roda viva. Assim andou levantado o pó enquanto durou o vento. O vento durou muito, porque naquele tempo eram mais largas as vidas, mas ao fim parou. E que lhe sucedeu no mesmo ponto a Adão? O que sucede ao pó. Assim como o vento o levantou, e o sustinha, tanto que o vento parou, caiu. Pó levantado, Adão vivo; pó caído, Adão morto: Et mortuus est.
Este foi o primeiro pó, e o primeiro vivo, e o primeiro condenado à morte, e esta é a diferença que há de vivos a mortos, e de pó a pó. Por isso na Escritura o morrer se chama cair, e o viver levantar-se. O morrer cair: Vos autem sicut hominas moriemini, et sicut unus de principibus cadetis [5]. O viver, levantar-se: Adolescens, tibi dico, surge [6]. Se levantados, vivos; se caídos, mortos; mas ou caídos ou levantados, ou mortos, ou vivos, pó: os levantados pó da vida, os mortos pó da morte. Assim o entendeu e notou Davi, e esta é a distinção que fêz quando disse: In pulvere mortis deduxisti me: Levastes-me, Senhor, ao pó da morte. Não bastava dizer: In pulverem deduxisti, assim como: In pulverem reverteris? Se bastava; mas disse com maior energia: In pulverem mortis: ao pó da morte, porque há pó da morte, e pó da vida: os vivos, que andamos em pé, somos o pó da vida: Pulvis es; os mortos, que jazem na sepultura, são o pó da morte: In pulverem reverteris.
V
O memento dos vivos; lembre-se o pó levantado que há de ser pó caído. O vento da vida e o vento da fortuna. A estátua de Nabucodonosor: o ouro, a prata, o bronze, o ferro, tudo se converte em pó de terra. Significado do nome de Adão. S. Agostinho e a glória de Roma. Roma, a caveira do mundo, ainda está sujeita a novas destruições. Salomão e o espelho do passado e do futuro.
À vista desta distinção tão verdadeira e deste desengano tão certo, que posso eu dizer ao nosso pó senão o que lhe diz a Igreja: Memento homo. Dois mementos hei de fazer hoje ao pó: um memento ao pó levantado, outro memento ao pó caído; um memento ao pó que somos, outro memento ao pó que havemos de ser; um memento ao pó que me ouve, outro memento ao pó que não pode ouvir. O primeiro será o memento dos vivos, o segundo o dos mortos.
Aos vivos, que direi eu? Digo que se lembre o pó levantado que há de ser pó caído. Levanta-se o pó com o vento da vida, e muito mais com o vento da fortuna; mas lembre-se o pó que o vento da fortuna não pode durar mais que o vento da vida, e que pode durar muito menos, porque é mais inconstante. O vento da vida por mais que cresça, nunca pode chegar a ser bonança; o vento da fortuna, se cresce, pode chegar a ser tempestade, e tão grande tempestade que se afogue nela o mesmo vento da vida. Pó levantado, lembra-te outra vez que hás de ser pó caído, e que tudo há de cair e ser pó contigo. Estátua de Nabuco: ouro, prata, bronze, ferro, lustre, riqueza, fama, poder, lembra-te que tudo há de cair de um golpe, e que então se verá o que agora não queremos ver: que tudo é pó, e pó de terra. Eu não me admiro, senhores, que aquela estátua em um momento se convertesse toda em pó: era imagem de homem; isso bastava. O que me admira e admirou sempre é que se convertesse, como diz o texto, em pó de terra: In favillam aestivae areae (Dn 2, 35). A cabeça da estátua não era de ouro? Pois por que se não converte o ouro em pó de ouro? O peito e os braços não eram de prata? Por que se não converte a prata em pó de prata? O ventre não era de bronze, e o demais de ferro? Por que se não converte o bronze em pó de bronze e o ferro em pó de ferro? Mas o ouro, a prata, o bronze, o ferro, tudo em pó de terra? Sim. Tudo em pó de terra. Cuida o ilustre desvanecido que é de ouro, e todo esse resplendor, em caindo, há de ser pó, e pó de terra. Cuida o rico inchado que é de prata, e toda essa riqueza em caindo há de ser pó, e pó de terra. Cuida o robusto que é de bronze, cuida o valente que é de ferro, um confiado, outro arrogante, e toda essa fortaleza, e toda essa valentia em caindo há de ser pó, e pó de terra: In favillam aestivae areae.
Senhor pó: Nimium ne crede colori [7]. A pedra que desfez em pó a estátua, é a pedra daquela sepultura. Aquela pedra, é como a pedra do pintor, que mói todas as cores, e todas as desfaz em pó. O negro da sotaina, o branco da cota, o pavonaço do mantelete, o vermelho da púrpura, tudo ali se desfaz em pó. Adão quer dizer ruber, o vermelho, porque o pó do campo damasceno, de que Adão foi formado, era vermelho, e parece que escolheu Deus o pó daquela cor tão prezada, para nela, e com ela, desenganar a todas as cores [8]. Desengane-se a escarlata mais fina, mais alta e mais coroada, e desenganem-se daí abaixo todas as cores, que todas se hão de moer naquela pedra e desfazer em pó, e o que é mais, todas em pó da mesma cor. Na estátua o ouro era amarelo, a prata branca, o bronze verde, o ferro negro, mas tanto que a tocou a pedra, tudo ficou da mesma cor, tudo da cor da terra: In favillam aestivae areae. O pó levantado, como vão, quis fazer distinções de pó a pó, e porque não pôde distinguir a substância, pôs a diferença nas cores. Porém a morte, como vingadora de todos os agravos da natureza, a todas essas cores faz da mesma cor, para que não distinga a vaidade e a fortuna os que fez iguais a razão. Ouvi a S. Agostinho: Respice sepulchra et vide quis dominus, quis servus, quis pauper, quis dives? Discerne, si potes, regem a vincto, fortem a debili, pulchrum a deformi [9]: Abri aquelas sepulturas, diz Agostinho, e vede qual é ali o senhor e qual o servo; qual é ali o pobre e qual o rico? Discerne, si potes: distingui-me ali, se podeis, o valente do fraco, o formoso do feio, o rei coroado de ouro do escravo de Argel carregado de ferros? Distingui-los? Conhecei-los? Não por certo. O grande e o pequeno, o rico e o pobre, o sábio e o ignorante, o senhor e o escravo, o príncipe e o cavador, o alemão e o etíope, todos ali são da mesma cor.
Passa S. Agostinho da sua África à nossa Roma, e pergunta assim: Ubi sunt quos ambiebant civium potentatus? Ubi insuperabiles imperatores? Ubi exercituum duces? Ubi satrapae et tyranni [10]? Onde estão os cônsules romanos? Onde estão aqueles imperadores e capitães famosos, que desde o Capitólio mandavam o mundo? Que se fez dos Césares e dos Pompeus, dos Mários e dos Silas, dos Cipiões e dos Emílios? Os Augustos, os Cláudios, os Tibérios, os Vespasianos, os Titos, os Trajanos, que é deles? Nunc omnia pulvis: tudo pó; Nunc omnia favillae: tudo cinza; Nunc in paucis versibus eorum memoria est.: não resta de todos eles outra memória, mais que os poucos versos das suas sepulturas. Meu Agostinho, também êsses versos que se liam então, já os não há: apagaram-se as letras, comeu o tempo as pedras; também as pedras morrem: Mors etiam saxis, nominibusque venit[11]. Oh! que memento este para Roma!
Já não digo como até agora: lembra-te homem que és pó levantado e hás de ser pó caído. O que digo é: lembra-te Roma que és pó levantado, e que és pó caído juntamente. Olha Roma daqui para baixo, e ver-te-ás caída e sepultada debaixo de ti; olha Roma de lá para cima, e ver-te-ás levantada e pendente em cima de ti. Roma sobre Roma, e Roma debaixo de Roma. Nas margens do Tibre, a Roma que se vê para cima, vê-se também para baixo; mas aquilo são sombras. Aqui a Roma que se vê em cima, vê-se também embaixo, e não é engano da vista, senão verdade; a cidade sobre as ruínas, o corpo sobre o cadáver, a Roma viva sobre a morta. Que coisa é Roma senão um sepulcro de si mesma? Embaixo as cinzas, em cima a estátua; embaixo os ossos, em cima o vulto. Este vulto, esta majestade, esta grandeza é a imagem, e só a imagem, do que está debaixo da terra. Ordenou a Providência divina que Roma fosse tantas vezes destruída, e depois edificada sobre suas ruínas, para que a cabeça do mundo tivesse uma caveira em que se ver. Um homem pode-se ver na caveira de outro homem; a cabeça do mundo não se podia ver senão na sua própria caveira. Que é Roma levantada? A cabeça do mundo. Que é Roma caída? A caveira do mundo. Que são esses pedaços de Termas e Coliseus senão os ossos rotos e truncados desta grande caveira? E que são essas colunas, essas agulhas desenterradas, senão os dentes, mais duros, desencaixados dela! Oh! que sisuda seria a cabeça do mundo se se visse bem na sua caveira!
Nabuco, depois de ver a estátua convertida em pó, edificou outra estátua. Louco! Que é o que te disse o profeta? Tu rex es caput: Tu, rei, és a cabeça da estátua (Dn 2, 38). Pois se tu és a cabeça, e estás vivo, olhe a cabeça viva para a cabeça defunta, olhe a cabeça levantada para a cabeça caída, olhe a cabeça para a caveira. Oh! se Roma fizesse o que não soube fazer Nabuco! Oh! se a cabeça do mundo olhasse para a caveira do mundo! A caveira é maior que a cabeça para que tenha menos lugar a vaidade, e maior matéria o desengano. Isto fui, e isto sou? Nisto parou a grandeza daquele imenso todo, de que hoje sou tão pequena parte? Nisto parou. E o pior é, Roma minha, se me dás licença para que to diga, que não há de parar só nisto. Este destroço e estas ruínas que vês tuas, não são as últimas: ainda te espera outra antes do fim do mundo profetizado nas Escrituras. Aquela Babilônia de que fala S. João, quando diz no Apocalipse: Cecidit, cecidit Babylon (Ap 14, 8), é Roma, não pelo que hoje é, senão pelo que há de ser. Assim o entendem S. Jerônimo, S. Agostinho, S. Ambrósio, Tertuliano, Ecumênio, Cassiodoro, e outros Padres, a quem seguem concordemente intérpretes e teólogos [12]. Roma, a espiritual, é eterna, porque Portae inferi non praevalebunt adversus eam[13]. Mas Roma, a temporal, sujeita está como as outras metrópoles das monarquias, e não só sujeita, mas condenada à catástrofe das coisas mudáveis e aos eclipses do tempo. Nas tuas ruínas vês o que foste, nos teus oráculos lês o que hás de ser, e se queres fazer verdadeiro juízo de ti mesma pelo que foste e pelo que hás de ser, estima o que és.
Nesta mesma roda natural das coisas humanas, descobriu a sabedoria de Salomão dois espelhos recíprocos, que podemos chamar do tempo, em que se vê facilmente o que foi e o que há de ser. Quid est quod fuit? Ipsum quod futurum est. Quid est quod factum est? Ipsum quod faciendum est: Que é o que foi? Aquilo mesmo que há de ser. Que é o que há de ser? Aquilo mesmo que foi (Ecl 1, 9). Ponde estes dois espelhos um defronte do outro, e assim como os raios do ocaso ferem o oriente e os do oriente o ocaso, assim, por reverberação natural e recíproca, achareis que no espelho do passado se vê o que há de ser, e no do futuro o que foi. Se quereis ver o futuro, lede as histórias e olhai para o passado; se quereis ver o passado, lede as profecias e olhai para o futuro. E quem quiser ver o presente, para onde há de olhar? Não o disse Salomão, mas eu o direi. Digo que olhe juntamente para um e para outro espelho. Olhai para o passado e para o futuro, e vereis o presente. A razão ou conseqüência é manifesta. Se no passado se vê o futuro, e no futuro se vê o passado, segue-se que no passado e no futuro se vê o presente, porque o presente é o futuro do passado, e o mesmo presente é o passado do futuro. Quid est quod fuit? Ipsum quod futurum est. Quid est quod est? Ipsum quod fuit et quod futurum est. Roma, o que foste, isso hás de ser; e o que foste, e o que hás de ser, isso és. Vê-te bem nestes dois espelhos do tempo, e conhecer-te-ás. E se a verdade deste desengano tem lugar nas pedras, quanto mais nos homens. No passado foste pó? No futuro hás de ser pó? Logo, no presente és pó: Pulvis es.
VI
O memento dos mortos: lembre-se o pó caído que há de ser pó levantado. O pó que foi homem, há de tornar a ser homem. Jó compara-se à fênix e não à águia. O autor não teme a morte, teme a imortalidade, já reconhecida pelos filósofos pagãos. Nem vivemos como mortais, nem vivemos como imortais. A observação de Sêneca.
Este foi o memento dos vivos; acabo com o memento dos mortos. Aos vivos disse: lembre-se o pó levantado que há de ser pó caído. Aos mortos digo: lembre-se o pó caído que há de ser pó levantado. Ninguém morre para estar sempre morto; por isso a morte nas Escrituras se chama sono. Os vivos caem em terra com o sono da morte: os mortos jazem na sepultura dormindo, sem movimento nem sentido, aquele profundo e dilatado letargo; mas quando o pregão da trombeta final os chamar a juízo, todos hão de acordar e levantar-se outra vez. Então dirá cada um com Davi: Ego dormivi, et soporatus sum, et resurrexi [14]. Lembre-se pois o pó caído que há de ser pó levantado.
Este segundo memento é muito mais terrível que o primeiro. Aos vivos disse: Memento homo quia pulvis es, et in pulverem reverteris; aos mortos digo com as palavras trocadas, mas com sentido igualmente verdadeiro: Memento pulvis quia homo es, et in hominem reverteris: lembra-te pó que és homem, e que em homem te hás de tornar. Os que me ouviram já sabem que cada um é o que foi e o que há de ser. Tu que jazes nesta sepultura, sabe-o agora. Eu vivo, tu estás morto; eu falo, tu estás mudo; mas assim como eu sendo homem, porque fui pó, e hei de tornar a ser pó, sou pó, assim tu, sendo pó, porque foste homem, e hás de tornar a ser homem, és homem. Morre a águia, morre a fênix, mas a águia morta não é águia, a fênix morta é fênix. E por que? A águia morta não é águia porque foi águia, mas não há de tornar a ser águia. A fênix morta é fênix, porque foi fênix, e há de tornar a ser fênix. Assim és tu que jazes nessa sepultura. Morto sim, desfeito em cinzas sim, mas em cinzas como as da fênix. A fênix desfeita em cinzas é fênix, porque foi fênix, e há de tornar a ser fênix. E tu desfeito também em cinzas és homem, porque foste homem, e hás de tornar a ser homem. Não é a proposição, nem comparação minha, senão da Sabedoria e Verdade eterna. Ouçam os mortos a um morto que melhor que todos os vivos conheceu e pregou a fé da imortalidade. In nidulo meo moriar, et sicut phoenix multiplicabo dies meos: Morrerei no meu ninho, diz Jó, e como fênix multiplicarei os meus dias [15]. Os dias soma-os a vida, diminui-os a morte e multiplica-los a ressurreição. Por isso Jó como vivo, como morto e como imortal se compara à fênix. Bem pudera este grande herói, pois chamou ninho à sua sepultura, comparar-se à rainha das aves, como rei que era.
Mas falando de si e conosco naquela medida em que todos somos iguais, não se comparou à águia, senão à fênix, porque o nascer águia é fortuna de poucos, o renascer fênix é natureza de todos. Todos nascemos pare morrer, e todos morremos para ressuscitar. Para nascer antes de ser, tivemos necessidade de pai e mãe que nos gerasse; pare renascer depois de morrer, como a fênix, o mesmo pó em que se corrompeu e desfez o corpo, é o pai e a mãe de que havemos de tornar a ser gerados. Putredini dixi: pater meus es, mater mea, et soror mea vermibus [16]. Sendo pois igualmente certa esta segunda metamorfose, como a primeira, preguemos também aos mortos, como pregou Ezequiel, para que nos ouçam mortos e vivos (Ez 37, 4). Se dissemos aos vivos: lembra-te homem que és pó, porque foste pó, e hás de tornar a ser pó — brademos com a mesma verdade aos mortos que já são pó: lembra-te pó que és homem porque foste homem, e hás de tornar a ser homem: Memento pulvis quia homo es, et in hominem reverteris.
Senhores meus, não seja isto cerimônia: falemos muito seriamente, que o dia é disso. Ou cremos que somos imortais, ou não. Se o homem acaba com o pó, não tenho que dizer; mas se o pó há de tornar a ser homem, não sei o que vos diga, nem o que me diga. A mim não me.faz medo o pó que hei de ser; faz medo o que há de ser o pó. Eu não temo na morte a morte, temo a imortalidade; eu não temo hoje o dia de cinza, temo hoje o dia de Páscoa, porque sei que hei de ressuscitar, porque sei que hei de viver para sempre, porque sei que me espera uma eternidade, ou no céu, ou no inferno. Scio enim quod Redemptor meus vivit, et in novissimo die de terra surrecturus sum [17]. Scio, diz. Notai. Não diz: Creio, senão, Scio, sei. Porque a verdade e certeza da imortalidade do homem não só é fé, senão também ciência. Por ciência e por razão natural a conheceram Platão, Aristóteles e tantos outros filósofos gentios [18]. Mas que importava que o não alcançasse a razão onde está a fé? Que importa a autoridade dos homens onde está o testemunho de Deus? O pó daquela sepultura está clamando: De terra surrecturus sum, et rursum circumdabor pelle mea, et in carne mea videbo Deum meum, quem visurus sum ego ipse, et oculi mei conspecturi sunt, et non alius [19]. Este homem, este corpo, estes ossos, esta carne, esta pele, estes olhos, este eu, e não outro, é o que há de morrer? Sim; mas reviver e ressuscitar à imortalidade. Mortal até o pó, mas depois do pó, imortal. Credis hoc? Utique, Domine [20]. Pois que efeito faz em nós este conhecimento da morte, e esta fé da imortalidade?
Quando considero na vida que se usa, acho que não vivemos como mortais, nem vivemos como imortais. Não vivemos como mortais, porque tratamos das coisas desta vida como se esta vida fora eterna. Não vivemos como imortais, porque nos esquecemos tanto da vida eterna, como se não houvera tal vida. Se esta vida fora imortal, e nós imortais, que havíamos de fazer, senão o que fazemos? Estai comigo. Se Deus, assim como fez um Adão, fizera dois, e o segundo fora mais sisudo que o nosso, nós havíamos de ser mortais como somos, e os filhos de outro Adão haviam de ser imortais. E estes homens imortais, que haviam de fazer neste mundo? Isto mesmo que nós fazemos. Depois que não coubessem no Paraíso, e se fossem multiplicando, haviam-se de estender pela terra, haviam de conduzir de todas as partes do mundo todo o bom, precioso e deleitoso que Deus para eles tinha criado, haviam de ordenar cidades e palácios, quintas, jardins, fontes, delícias, banquetes, representações, músicas, festas, e tudo aquilo que pudesse formar uma vida alegre e deleitosa. Não é isto o que nós fazemos? E muito mais do que eles haviam de fazer, porque o haviam de fazer com justiça, com razão, com modéstia, com temperança; sem luxo, sem soberba, sem ambição, sem inveja; e com concórdia, com caridade, com humanidade. Mas como se ririam de nós, e como pasmariam de nós aqueles homens imortais! Como se ririam das nossas loucuras, como pasmariam da nossa cegueira, vendo-nos tão ocupados, tão solícitos, tão desvelados pela nossa vidazinha de dois dias, e tão esquecidos, e descuidados da morte, como se fôramos tão imortais como eles! Eles sem dor, nem enfermidade; nós enfermos e gemendo; eles vivendo sempre, nós morrendo; eles não sabendo o nome à sepultura, nós enterrando uns a outros; eles gozando o mundo em paz, e nós fazendo demandas e guerras pelo que não havemos de gozar. Homenzinhos miseráveis — haviam de dizer — homenzinhos miseráveis, loucos, insensatos; não vedes que sois mortais? Não vedes que haveis de acabar amanhã? Não vedes que vos hão de meter debaixo de uma sepultura, e que de tudo quanto andais afanando e adquirindo, não haveis de lograr mais que sete pés de terra? Que doidice, que cegueira é logo a vossa? Não sendo como nós, quereis viver como nós? — Assim é. Morimur ut mortales, vivimus ut immortales: morreremos como mortais que somos, e vivemos como se fôramos imortais [21]. Assim o dizia Sêneca gentio à Roma gentia. Vós a isto dizeis que Sêneca era um estóico. E não é mais ser cristão que ser estóico? Sêneca não conhecia a imortalidade da alma; o mais a que chegou foi a duvidá-la, e contudo entendia isto.
VII
Cuidar da vida imortal. As duas portas da morte. Opinião de Aristóteles . A escada do sonho de Jacó. No momento da morte não se teme a morte, teme-se a vida. Resolução.
Ora, senhores, já que somos cristãos, já que sabemos que havemos de morrer e que somos imortais, saibamos usar da morte e da imortalidade. Tratemos desta vida como mortais, e da outra como imortais. Pode haver loucura mais rematada, pode haver cegueira mais cega que empregar-me todo na vida que há de acabar, e não tratar da vida que há de durar para sempre? Cansar-me, afligir-me, matar-me pelo que forçosamente hei de deixar, e do que hei de lograr ou perder para sempre, não fazer nenhum caso! Tantas diligências para esta vida, nenhuma diligência para a outra vida? Tanto medo, tanto receio da morte temporal, e da eterna nenhum temor? Mortos, mortos, desenganai estes vivos. Dizei-nos que pensamentos e que sentimentos foram os vossos quando entrastes e saístes pelas portas da morte? A morte tem duas portas: Qui exaltas me de portis mortis [22]. Uma porta de vidro, por onde se sai da vida, outra porta de diamante, por onde se entra à eternidade. Entre estas duas portas se acha subitamente um homem no instante da morte, sem poder tornar atrás, nem parar, nem fugir, nem dilatar, senão entrar para onde não sabe, e para sempre. Oh! que transe tão apertado! Oh! que passo tão estreito! Oh! que momento tão terrível! Aristóteles disse que entre todas as coisas terríveis, a mais terrível é a morte. Disse bem mas não entendeu o que disse. Não é terrível a morte pela vida que acaba, senão pela eternidade que começa. Não é terrível a porta por onde se sai; a terrível é a porta por onde se entra. Se olhais para cima, uma escada que chega até o céu; se olhais para baixo, um precipício que vai parar no inferno, e isto incerto.
Dormindo Jacó sobre uma pedra, viu aquela escada que chegava da terra até o céu, e acordou atônito gritando: Terribilis est locus iste! Oh! que terrível lugar é este (Gn 18, 17)! E por que é terrível, Jacó? Non est hic aliud nisi domus Dei et porta caeli: Porque isto não é outra coisa senão a porta do céu. — Pois a porta do céu, a porta da bem-aventurança é terrível? Sim. Porque é uma porta que se pode abrir e que se pode fechar. É aquela porta, que se abriu para as cinco virgens prudentes, e que se fechou para as cinco néscias: Et clausa est janua (Mt 25, 10). E se esta porta é terrível para quem olha só para cima, quão terrível será para quem olhar para cima e mais para baixo? Se é terrível para quem olha só para o céu, quanto mais terrível será para quem olhar para o céu e para o inferno juntamente? Este é o mistério de toda a escada, em que Jacó não reparou inteiramente, como quem estava dormindo. Bem viu Jacó que pela escada subiam e desciam anjos, mas não reparou que aquela escada tinha mais degraus para descer que para subir: para subir era escada da terra até o céu, para descer era escada do céu até o inferno; para subir era escada por onde subiram anjos a ser bem-aventurados, para descer era escada por onde desceram anjos a ser demônios. Terrível escada para quem não sobe, porque perde o céu e a vista de Deus, e mais terrível para quem desce, porque não só perdeu o céu e a vista de Deus, mas vai arder no inferno eternamente. Esta é a visão mais que terrível que todos havemos de ver; este o lugar mais que terrível por onde todos havemos de passar, e por onde já passaram todos os que ali jazem. Jacó jazia sobre a pedra; ali a pedra jaz sobre Jacó, ou Jacó debaixo da pedra. Já dormiram o seu sono: Dormierunt somnum suum(Sl 75, 6); já viram aquela visão; já subiram ou desceram pela escada. Se estão no céu ou no inferno, Deus o sabe; mas tudo se averiguou naquele momento.
Oh! que momento, torno a dizer, oh! que passo, oh! que transe tão terrível! Oh que temores, oh! que aflição, oh! que angústias! Ali, senhores, não se teme a morte, teme-se a vida. Tudo o que ali dá pena, é tudo o que nesta vida deu gosto, e tudo o que buscamos por nosso gosto, muitas vezes com tantas penas. Oh! que diferentes parecerão então todas as coisas desta vida! Que verdades, que desenganos, que luzes tão claras de tudo o que neste mundo nos cega! Nenhum homem há naquele ponto que não desejara muito uma de duas: ou não ter nascido, ou tornar a nascer de novo, para fazer uma vida muito diferente. Mas já é tarde, já não há tempo: Quia tempus non erit amplius (Apc 10, 6). Cristãos e senhores meus, por misericórdia de Deus ainda estamos em tempo. É certo que todos caminhamos para aquele passo, é infalível que todos havemos de chegar, e todos nos havemos de ver naquele terrível momento, e pode ser que muito cedo. Julgue cada um de nós, se será melhor arrepender-se agora, ou deixar o arrependimento para quando não tenha lugar, nem seja arrependimento. Deus nos avisa, Deus nos dá estas vozes; não deixemos passar esta inspiração, que não sabemos se será a última. Se então havemos de desejar em vão começar outra vida, comecemo-la agora: Dixi: nunc caepi [23]. Comecemos de hoje em diante a viver como quereremos ter vivido na hora da morte. Vive assim como quiseras ter vivido quando morras. Oh! que consolação tão grande será então a nossa, se o fizermos assim! E pelo contrário, que desconsolação tão irremediável e tão desesperada, se nos deixarmos levar da corrente, quando nos acharmos onde ela nos leva! É possível que me condenei por minha culpa e por minha vontade, e conhecendo muito bem o que agora experimento sem nenhum remédio? É possível que por uma cegueira de que me não quis apartar, por um apetite que passou em um momento, hei de arder no inferno enquanto Deus for Deus? Cuidemos nisto, cristãos, cuidemos nisto. Em que cuidamos, e em que não cuidamos? Homens mortais, homens imortais, se todos os dias podemos morrer, se cada dia nos imos chegando mais à morte, e ela a nós, não se acabe com este dia a memória da morte. Resolução, resolução uma vez, que sem resolução nada se faz. E para que esta resolução dure e não seja como outras, tomemos cada dia uma hora em que cuidemos bem naquela hora. De vinte e quatro horas que tem o dia, por que se não dará uma hora à triste alma? Esta é a melhor devoção e mais útil penitência, e mais agradável a Deus, que podeis fazer nesta quaresma. Tomar uma hora cada dia, em que só por só com Deus e conosco cuidemos na nossa morte e na nossa vida. E porque espero da vossa piedade e do vosso juízo que aceitareis este bom conselho, quero acabar deixando-vos quatro pontos de consideração para os quatro quartos desta hora. Primeiro: quanto tenho vivido? Segundo: como vivi? Terceiro: quanto posso viver? Quarto: como é bem que viva? Torno a dizer para que vos fique na memória: Quanto tenho vivido? Como vivi? Quanto posso viver? Como é bem que viva? Memento homo!
Notas:
[1] Augustinus in sentent. ultima.
[2] Aquele que é, e que era, e que há de vir (Apc 1,4).
[3] Eu disse : Sois deuses... Mas vós, como homens, morrereis ( Sl 81,6s).
[4] Desde o ventre trasladado para a sepultura (Jó 10,19).
[5] Mas vós como homens morrereis, e caireis como um dos príncipes (Sl 81,7).
[6] Moço, eu te mando: levanta-te (Lc 7,14).
[7] Não dês crédito ao demasiado colorido.
[8] Hieronymus hic in quaest. Hebraic. Lyran. Hugo Abul. etc.
[9] Augustinus in sentent. ultima.
[10] Aug. ibid.
[11] Também as pedras e os nomes morrem.
[12] Hier. Aug. Ambr. Tertullian. Ecumen. Cassiod. Bellar. Suar. et plures apud Cornelium ibi.
[13] As portas do inferno não prevalecerão contra ela (Mt 16,18).
[14] Eu dormi e estive sepultado no sono, e levantei-me (Sl 3,6)
[15] In textu graeco Job 29, 18.
[16] Eu disse à podridão: Tu és meu pai; e aos bichos: Vós sois minha mãe e minha irmã. (Jó 17, 14)
[17] Porque eu sei que o meu Remidor vive, eu no derradeiro dia surgirei da terra (Jó 19,25).
[18] Plat. in Timaeo. Philabo Menon. Et lib. de Rep. Aristotel. I de Anima cap. 4 et lib. 3, cap. 4 et lib. 2 de Gen. anim.
[19] Surgirei da terra, e serei novamente revestido da minha pele, e na minha própria carne verei a meu Deus, a quem eu mesmo hei de ver e meus olhos hão de contemplar, e não outro (Jó 19,25 ss).
[20] Crês isto? Sim, Senhor (Jo 11,26).
[21] Seneca. De Consolat. ad Marciam Ep. 57 et Ep. 117.
[22] Tu que me retiras das portas da morte (Sl 9,15).
[23] Disse: Agora começo (Sl 76,11).
BREVE ANTOLOGIA DE TRECHOS MEMORÁVEIS
COLHIDOS TODOS DA OBRA DO SERMONISTA MOR, GLÓRIA DE PORTUGAL
E GLÓRIA DE NOSSAS LETRAS
PADRE ANTONIO VIEIRA
Invocação do nome de Maria:
Do sermão do Santíssimo nome de Maria pregado na ocasião em que a Santa Sé instituiu a festa universal do nome de Maria.
Sermões, 11° vol.
Só vos digo que invoqueis o nome de Maria quando tiverdes necessidade dele: quando vos sobrevier algum desgosto, alguma pena, alguma tristeza: quando vos molestarem os achaques do corpo, ou vos não molestarem os da alma: quando vos faltar o necessário para a vida, ou despejardes o supérfluo para a vaidade: quando os pais, os filhos, os irmãos, os parentes se esquecerem das obrigações do sangue: quando vo-lo desejarem beber a vingança, o ódio, a emulação, a inveja: quando os inimigos vos perseguirem e os amigos desampararem, e de onde semeastes benefícios, colherdes ingratidões e agravos: quando os maiores vos faltarem com a justiça, os menores com o respeito, e todos com a proximidade: quando vos inchar o mundo, vos lisonjear a carne, e vos tentar o demônio, que será sempre e em tudo: quando vos virdes em alguma dúvida, ou perplexidade, em que vos não saibais resolver, nem tomar conselho: quando vos não desenganar a morte alheia, e vos enganar a própria, sem vos lembrar a conta de quanto e como tendes vivido, e ainda esperais viver: quando amanhecer o dia, sem saberdes se haveis de anoitecer, e quando vos recolherdes à noite, sem saber se haveis de chegar a manhã: finalmente, em todos os trabalhos, em todas as aflições, em todos os perigos, em todos os temores, e em todos os desejos e pretensões, porque nenhum de nós conhece o que lhe convém: em todos os sucessos prósperos ou adversos, e muito mais nos prósperos, que são os mais falsos e inconstantes: e em todos os casos e acidentes súbitos da vida, da honra, da fazenda e principalmente nos da consciência, que em todos anda arriscada, e com ela a salvação. E como todas estas coisas, e cada uma delas necessitamos de luz, alento e remédio mais que humano; se em todas e cada uma recorremos à proteção e amparo da Mãe das misericórdias, não haverá dia, nem hora, nem momento, que não invoquemos o nome de Maria.
O Juízo dos Homens:
D’um sermão do advento, tendo por tema: que o juízo dos homens é mais temeroso que o de Deus.
Sermões, 3° vol.
Vede que grande é a fidalguia do juízo de Deus. Apareceis diante do tribunal divino, acusam-vos os homens, acusam-vos os anjos, acusam-vos os demônios, acusam-vos vossas próprias obras, acusam-vos o céu, a terra, o mundo todo, se a vossa consciência vos não acusa, estai-vos rindo de todos. No juízo dos homens não é assim. Tereis a consciência mais inocente que a de Abel, mais pura que a de José, mais justificada que a de São João Batista: mas se tiverdes contra vós um Caim invejoso, um Putifar mal informado, ou um Herodes injusto, há de prevalecer a inveja contra a inocência, a calúnia contra a verdade, a tirania contra a justiça, e por mais que vos esteja saltando e bradando dentro no peito a consciência, não vos hão de valer seus clamores. Vede que comparação tem este rigor com o do juízo de Deus. Acho eu muita graça aos pregadores, que para nos representarem a terribilidade do juízo divino, trazem aquela autoridade ou oráculo de Deus a Samuel: Homo videt ea quæ parent, Dominus autem intuetur cor: (I Reg. XVI, 7). Os homens vêem só os exteriores, porém Deus penetra os corações: antes por isso mesmo é muito mais para temer o juízo dos homens: se os homens conheceram os corações, se aos homens se lhes pudera dar com o coração na cara, então não havia que temer seus juízos. Que maior descanso e que maior segurança, que trazer um homem sempre consigo no seu coração a sua defesa? Acusais-me, condenais-me, infamais-me; quereis mil testemunhas, pois ei-las aqui, e mostrar-lhes o coração: Bona conscientia mille testes. Sabei vós para quem não era boa invenção a de os homens verem os corações? Para os traidores, para os hipócritas, para os lisonjeiros, para os mentirosos e para outra gente desta ralé; mas para os zelosos, para os verdadeiros, para os honrados, para os homens de bem, ó que grande costume, ó que grande felicidade fora! Mas como a consciência no juízo humano não vale testemunha, quem leva a calúnia nas obras, que importa que tenha as defesas no coração?
Os papas e os bispos no Juízo Final:
Sermão do Advento pregado na capela real em 1650.
Sermões, 2° vol.
Sairão pois os anjos; vêde que suspensão e que tremor será o dos corações dos homens naquela hora. Sairão os anjos e irão primeiramente ao lugar dos papas: Et separabunt (faz horror só imaginar, que em uma dignidade tão divina e em homens eleitos pelo Espírito Santo há de haver também que separar). Et separabunt malos de medio justorum. E separarão os pontífices maus dentre os pontífices bons. Eu bem creio que serão muito raros os que se hão de condenar, mas haver de dar conta a Deus de todas as almas do mundo, é um peso tão imenso que não será maravilha que, sendo homens, levasse alguns ao profundo. Todos nesta vida se chamaram padres santos; mas o dia do Juízo mostrará que a santidade não consiste no nome senão nas obras. Nesta vida beatíssimos, na outra mal-aventurados: Oh que grande miséria!
Sairão após estes outros anjos e irão ao lugar dos bispos e arcebispos: Et separabunt malos de medio justorum. Lá vai aquele porque não deu esmolas: aquele porque enriqueceu os parentes com o patrimônio de Cristo: aquele porque, tendo uma esposa, procurou outra melhor dotada: aquele porque faltou com o pasto da doutrina a suas ovelhas: aquele porque proveu as igrejas nos que não tinham mais merecimento que o de serem seus criados: aquele porque na sua diocese morreram tantas almas sem sacramentos: aquele por não residir: aquele por simonias: aquele por irregularidades: aquele por falta de exemplo da vida e também algum por falta de ciência necessária, empregando o tempo e o estudo em divertimentos, ou da côrte e não de prelado, ou do campo e não de pastor. Valha-me Deus, que confusão tão grande! Mas que alegres e que satisfeitos estarão neste passo, um São Bernardino de Sena, um São Boaventura, um São Domingos, um São Bernardo, e muitos outros varões santos e sisudos, que quando lhes ofereceram as mitras, não quiseram subir à alteza da dignidade, porque reconheceram a do precipício. Pelo contrário, que tais levarão os corações aqueles miseráveis condenados? Maldito seja o dia em que nos elegeram, e maldito quem nos elegeu: maldito seja o dia em que nos confirmaram, e maldito quem nos confirmou. Se um homem mal pode dar conta de sua alma, como a dará de tantas? Se este peso deu em terra com os maiores atlantes da Igreja, quem não temerá e fugirá dele?
A casa da Sabedoria
Do conhecido sermão de Santa Catharina pregado à Universidade de Coimbra em 1663 e destinado a exaltar o valor da verdadeira sabedoria.
Sermões, 2° vol.
A casa que edificou para si a Sabedoria: Sapientia ædificavit sibi domun (Prov. IX, 1) era aquela parte mais interior e mais sagrada do tempo de Salomão, chamada por outro nome Sancta Sanctorum. Levantavam-se no meio dela os dois grandes querubins, cujo nome quer dizer sábios, e são entre todos os coros dos anjos os mais eminentes na sabedoria. Com as asas cobriam estes querubins a Arca do testamento, e com as mãos sustentavam o propiciatório, que eram o tesouro e o assento da sabedoria divina. A Arca era o tesouro da sabedoria divina em letras, porque nela estavam encerradas as tábuas da lei, primeiro escritas e depois ditadas por Deus; e o propiciatório era o assento da mesma sabedoria em voz, porque nele era consultado Deus, e respondia vocalmente, que por isso se chamava oráculo. As paredes de toda a casa em roda estavam ornadas com sete palmas, cujos troncos formavam outras tantas colunas; e os ramos de umas para as outras faziam naturalmente seis arcos, debaixo dos quais se viam em pé seis estátuas também de querubins. Esta era a forma e o ornato da casa da Sabedoria, edificada por Salomão, porém traçada por Deus; e não se viam em toda ela mais que querubins e palmas, em que a mesma Sabedoria, como vencedora de tudo, ostentava seus troféus e triunfos.
Mas se Deus naquele tempo se chamava Dominus exercituum, e se prezava de mandar sobre os exércitos e batalhas, e dar ou tirar vitórias; parece que as estátuas colocadas debaixo dos arcos triunfais de palmas não haviam de ser de querubins sábios, senão de capitães formosos. Não pareceria bem debaixo do primeiro arco a estátua de Abraão com a espada sacrificadora de seu próprio filho, vencendo a quatro reis só com os guardas das suas ovelhas? Não diria bem debaixo do segundo arco a estátua de Moisés com o bastão da vara prodigiosa, afogando no Mar Vermelho a Faraó, e triunfando de todo Egito? Não sairia bem debaixo do terceiro arco a estátua de Josué com o sol parado, desfazendo o poder e geração dos gabaonitas sem deixar homem a vida? Não avultaria bem debaixo do quarto arco a estátua de Gedeão com a tocha na mão esquerda, e a trombeta na direita, metendo em confusão e ruína os exércitos inumeráveis de Madian e Amalech? Não campearia bem debaixo do quinto arco a estátua de Sansão com o leão aos pés, e a queixada do jumento na mão matando a milhares de filisteus? Finalmente, não fecharia esta famosa fileira a estátua de David com a funda e a pedra derrubando o gigante, e cortando-lhe a cabeça com a sua própria espada? Pois se estas seis estátuas famosas ornariam pomposamente a sala do Senhor dos exércitos, porque razão os arcos triunfais das palmas cobrem antes estátuas de querubins sábios, que de capitães valorosos? Porque é certo na estimação de Deus (ainda que alguns homens cuidem o contrário) que as vitórias da sabedoria são muito mais gloriosas que as das armas, quanto vai das mãos à cabeça. Por isso quis o mesmo Deus que lhe edificasse a casa não o pai senão o filho; não David, o valente, senão Salomão, o sábio.
Utilidade da dor
Do segundo dos discursos apelidados “Cinco pedras de David” e proferidos em Roma, em italiano, perante a Rainha da Suécia.
Sermões, 12° vol.
Nem a natureza, nem Deus fizeram neste mundo coisa alguma ociosa, inútil, e sem fim; e qual é o fim para que Deus fez a dor, que parece tão contrária e tão inimiga da mesma natureza? Pelos efeitos se vê: nenhum mal se remedeia com a dor senão o pecado; nenhum bem se restaura pela dor senão a graça; logo só para remédio deste mal e só para restauração deste bem foi feita a dor. Oh dor! remédio único do sumo mal! Oh dor! preço único do sumo bem! E que maior dor, que ver os abusos em que te desperdiçam os homens sem utilidade, nem proveito! Este se dói da sua pobreza, e nem por isso deixa de ser pobre; aquele se dói da sua enfermidade, e nem por isso se vê são: outro, e tantos outros, se dóem da má correspondência dos poderosos, e nem por isso os fazem mais justos, ou menos ingratos. Dói-se o amor e o ódio, dói-se o desejo e o temor, dói-se a esperança e a desesperação, dói-se a miséria e a fome; e o fastio e a abundância também se dóem; dói-se a soberba, dói-se a cobiça, dói-se sobre todas, a inveja; e não pelos males próprios, senão pelos bens alheios; porque o outro cresce, porque sobe, porque pode, porque manda, e ainda porque vive e porque tarda em lhe vir a morte, gênero de dor que não alcançou a imaginar o pensamento de Crisóstomo, pregando não em Roma,mas em Constantinopla: Ut non in morte, aux in re tali doleamus. Estas são as dores do mundo, e não sei se também as da cabeça do mundo, menos miserável por aquilo de que se dói, que por aquilo que não se dói. Que miséria mais miserável que ver tantas almas que têm perdido a graça de Deus, doer-se, e doer-se de outra coisa que não são os seus pecados? Senhores meus: desengano; livrar-se, ou escapar-se da dor nesta vida, é impossível; não há fortuna tão alta, ou estado tão feliz, nem a púrpura, nem a coroa, nem a tiara, que, dentro ou fora, não pague tributo a dor: que melhor conselho logo, que reduzir todas as dores a uma só dor, e tantas dores inúteis e vãs, e de maior tormento, a uma só dor, que nesta e na outra vida me livra de todas? Levai este último documento, e sejam epílogo de todo o meu discurso estas duas palavras: conhecer que a dor é o único remédio do bem perdido; e que o maior bem perdido é a dor que se perde.
RETIRO ESPIRITUAL
DE SANTO INÁCIO
PETRÓPOLIS
QUINTA-FEIRA 4 DE FEVEREIRO
A TERÇA-FEIRA 9 DE FEVEREIRO
PARA OS HOMENS
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Em 5 dias, no silêncio e na meditação, o fiel alcança um maior conhecimento de si mesmo, base necessária para a conversão diária e para a dilatação da Caridade. A obra dos Retiros espirituais é uma das armas mais eficazes contra os erros modernos e a perda das almas.
Após ter feito o sermão do 1º Domingo da Paixão, deste ano de 2006, pareceu-me importante transmitir aos nossos leitores alguns dos dados apresentados naquela ocasião aos paroquianos da Capela Nossa Senhora da Conceição, em Niterói, e da Capela São Miguel, no Rio. Estamos vivendo tempos estranhos e é preciso vigilância e atenção para não sermos levados de roldão pelo mundo.
Quando entramos na igreja no Primeiro Domingo da Paixão, e sentimos um certo choque com a austeridade penitencial do velamento das imagens, vem imediatamente à alma a questão: qual o objetivo da Santa Igreja ao cobrir as imagens, tirá-las de diante dos nossos olhos, justamente no momento em que ela levanta bem alto o estandarte da Santa Cruz?
Pois o que a Igreja busca com esta situação nova e tão desconfortável para nós é levar nossa oração a uma fé mais profunda, para que o tempo da Cruz não nos pareça apenas uma comemoração, um aniversário, mas esteja presente com sua carga de dor, de confusão e obscuridade.
O que vem a ser Rezar ?
Mas se é para medir e regular nossa oração, caberia a cada um de nós perguntarmos: e eu rezo? O tempo da Quaresma serviu para melhorar minha oração?
Para responder a esta pergunta é necessário saber o que seja rezar. Ora, tanto o Catecismo como os santos doutores nos falam sobre a boa oração. Diz lá, então, a doutrina perene:
- Rezar é elevar a alma a Deus.
Santo Agostinho nos dará uma compreensão melhor ao afirmar:
- Rezar é ter uma intenção afetiva do espírito para Deus.
Outros santos dirão:
- Rezar é ter uma conversa íntima com Deus.
Ora, estas definições ou explicações se completam maravilhosamente e nos ajudarão a medir o nosso grau de oração, a sabermos se, de fato, rezamos de verdade ou não.
Ainda se encontra quem reze?
Mas a experiência de qualquer sacerdote, nos dias de hoje, deixa-nos assustados, a ponto de podermos interrogar: - O que está acontecendo conosco? Onde estão as almas que rezam de verdade? E se muitos adultos ainda guardam o costume salutar de recolher-se, todos os dias, diante de Deus, já os adolescentes, os jovens, deixando a idade da infância, porque abandonam tão facilmente a prática da oração que nos dá o céu? Onde encontraremos oração que seja elevação da alma, intenção afetiva, ou conversa íntima com Deus?
Não! Não! O que vemos hoje nestas almas é uma oração pesada, um coração irritado, uma oração rápida e mecânica.
Mas se é pesada por causa da contrariedade que se sente em rezar, então não se eleva.
Se vem carregada com irritação, nunca será uma intenção afetiva.
Se é mecânica, não se pode pensar em conversa íntima com Deus.
Que quadro desolador o que encontramos nas almas. Passaram-se quatro semanas da Quaresma e nada! O mundo segue seu curso e as almas não se converteram!
Pergunto então, assustado e solene: O que falta à oração da grande maioria dos homens?
O que falta é o AMOR! Falta o Amor do espírito que busca o Espírito do Amor, o Deus que é Caritas, que é Caridade!
Todo amor é um apetite. Se nosso amor vai em busca das coisas sensíveis, será um amor baixo, sensível, humano, animal. Estaremos de corpo e alma entregues às coisas deste mundo, e este amor toma conta do nosso coração, elimina a Presença de Deus, e causa o pecado.
Mas se inclinarmos nosso corpo e nossa alma para o bem, para agradar a Deus em tudo, mesmo quando estamos fazendo algo de humano, estaremos intencionalizando nossos atos na direção de Deus, dando uma intenção nova, elevada, vivificante. Nestes atos de amor espiritual encontraremos a união com Deus, a Presença de Deus em tudo que fazemos, mesmo se não estivermos, naquela hora, pensando Nele.
Por que não se consegue mais rezar?
Devemos então nos perguntar, levando adiante esta pesquisa dos nossos corações:
Porque não se consegue mais rezar direito, segundo a elevação da alma, as intenções santas e a intimidade de Deus?
Porque somos constantemente SEDUZIDOS.
Os nossos três inimigos , o demônio, o mundo e a carne armaram uma guerra sutil e subterrânea que invade nosso coração, nosso corpo, nossas intenções, com todo tipo de sedução. Atraem nossa atenção para afastar-nos do gosto pelas coisas santas, pela vida de Deus.
Como somos seduzidos?
Pelos VÍCIOS. Somos seduzidos todos os dias por vícios antigos e por vícios modernos.
Os vícios antigos são aqueles conhecidos de todos: excesso de bebida, gula, sensualidade, preguiça e todo tipo de vícios capitais.
Os vícios modernos são: a televisão, os video-games, o uso de Messengers, orkut e Internet, telefone celular e todo tipo de modernidade que provoca atitudes compulsivas. Todas estas coisas desviam as almas de seus compromissos, tornando-as agressivas, estressadas, desobedientes, preguiçosas e "burrificadas".
Formaram uma vida em torno de nós que nos prende, ligados 24 horas por dia: trabalho, dinheiro, saúde, esportes, e os novos vícios, tirando todo o tempo que poderíamos ter para rezar, ler bons livros, pensarmos na nossa salvação eterna. Como rezar bem numa vida assim?
Então passamos quatro semanas da Quaresma onde se constata que, se alguns fizeram algum esforço de penitência e oração, a grande maioria nem se lembra de que os católicos são chamados com toda urgência a se converterem. Continuam no churrasquinho da sexta-feira, nas festas, em muitos pecados. Até quando vamos viver como se a vida da Igreja fosse uma OPÇÃO? Quando muito um dever secundário que realizamos com aquele espírito de revolta de que falamos acima. Como rezar se não combatemos a sedução?
É preciso rezar sempre
Eis o que ensina Nosso Senhor: "Oportet semper orare - É preciso rezar sempre". E os santos doutores concluirão: "Quem reza se salva, quem não reza fecha as portas do Paraíso".
Então, católico, levante as armas capazes de vencer o sedutor das almas, capaz de dobrar tua cerviz dura e revoltada. Falta-te o Espírito de Fé!
Não se trata exatamente da fé. A Fé pode ser considerada como o conjunto de verdades reveladas por Deus; é o que os teólogos chamam o Objeto da Fé. Dentro de nós, se produz pela graça divina os Atos de Fé, que são as marcas da nossa adesão ao Objeto da fé, a tudo que Deus nos revelou e a Igreja ensina.
Mas a arma poderosa para combater a sedução dos vícios anti-oração é o Espírito de Fé, que consiste em tomar a fé que está, como um dom divino, colocada em nossas almas, e aplicá-la a todos os momentos, situações, encontros, diversões que fazemos ao longo do dia e da vida. Pelo Espírito de fé fica estabelecida em nossas vidas a Presença de Deus. Esta presença de Deus é que nos aproxima Dele, tornando nosso coração mais próximo, mais íntimo, preparando-o para as conversas sublimes, para a afeição amorosa e para a elevação de nossas almas na verdadeira e pura oração.
É preciso, portanto, intencionalizar todos os nossos atos, transformá-los em armas de combate contra os vícios que nos devoram. É preciso forçar o desejo do nosso coração e todos os sentimentos dele para que não impeçam o momento da oração, da meditação, da leitura espiritual que abre nossas mentes para as coisas divinas.
É preciso acreditar que, perdendo tempo com Deus, o trabalho renderá muito mais e compensará ao cêntuplo o tempo perdido. Ao contrário, quando não rezamos, acabamos presas fáceis para os vícios modernos e perdemos mais tempo do que seria o da oração.
Meditação sobre a morte
Se ainda agora, depois de pensar nestas coisas, neste diagnóstico terrível que mostra o céu fechado, ainda assim não conseguir se desvencilhar da malha viciosa, então, vamos pensar na morte. Por que não? Afinal de contas, estamos no tempo da Paixão, de luto pela morte de Nosso Salvador. Imaginemos, então, que estamos perto da morte, ou que um ente querido, um filho, um esposo, a mulher, tenha acabado de falecer. Parece duro, pensar nestas coisas? Pior é continuar vivendo sem rezar! O terrível peso que a alma sente pela perda joga por terra todos aqueles vícios horríveis que prendiam a alma. Então, de repente, ela percebe o quanto era fraca, envenenada, ridícula, por não conseguir se dominar e produzir algo de sólido e elevado. A morte nos atrai para o essencial, e é exatamente isso que a Igreja deseja quando vela as imagens no Tempo da Paixão. O Essencial é Cristo, sua Paixão, sua morte na Cruz para nos salvar. O essencial é vivermos unidos todo tempo a Jesus, e dizer com o Apóstolo: "Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim".
Cabe a cada um de nós mostrarmos aos nossos adolescentes, aos nossos filhos, que é bom rezar. É bom querer rezar. E, mais do que tudo, é muito bom amarmos a oração porque por ela aprendemos a amar a Deus em sua própria intimidade.
Foi incansável na tentativa de levar às almas a verdade, tanto natural quanto sobrenatural, o Pe. Leonel Franca, que ilustra o pensamento brasileiro com livros dignos de um mestre. Entre seus escritos, encontra-se um pequeno livro, A Psicologia da Fé, onde o grande jesuíta analisa os detalhes do ato de fé, aquilo que leva o homem a agir pela Fé, o que falta na atitude daqueles que não têm Fé.
Exórdio. Sermão aos pregadores ou aos prelados
1. Qual de vós me argüirá de pecado? Se vos digo a verdade, porque não me credes?
Aos pregadores fala Jeremias: Armai-vos de fortaleza, filhos de Benjamim, no meio de Jerusalém e fazei soar a trombeta em Técua e levantai o estandarte em Betacarém. Benjamim interpreta-se filho da direita; Jerusalém, visão da paz; Técua, trombeta; Betacarém, casa estéril. Armai-vos, portanto, de fortaleza e não temais, ó pregadores, filhos de Benjamim, isto é, da direita, ou seja, da vida eterna, da qual se escreve nas Parábolas: Na sua direita está uma larga vida. Armai-vos de fortaleza no meio de Jerusalém. Jerusalém é a Igreja militante, na qual há visão de paz, ou seja, a reconciliação do pecador. E diz-se bem: no meio. O meio da Igreja é a caridade, que se estende ao amigo e ao inimigo. Para conseguir este meio deve o pregador armar de fortaleza os fiéis da Igreja. E fazei soar a trombeta da pregação em Técua, isto é, entre aqueles que, quando praticam alguma obra boa, como os hipócritas, tocam a trombeta diante de si – comprazem-se, como se diz no livro da Sabedoria, em ter debaixo de si muitas nações –,para que, ao ouvir a trombeta, como diz Jeremias, exclamem: Ai de nós, Senhor, porque pecamos. E em Betacarém, casa estéril daqueles que são áridos da umidade da graça, estéreis de boas obras, cuja terra, o entendimento, não recebe gota de sangue do corpo de Cristo, levantai o estandarte da cruz, pregai a Paixão do Filho de Deus, porque chegou o tempo da Paixão, anunciai aos mortos que ressurjam na morte de Jesus Cristo, que afirma às turbas dos Judeus no Evangelho de hoje: Qual de vis me argüirá de pecado?
2. Observa que neste Evangelho há sete pontos: Primeiro, a inocência de Jesus Cristo, ao dizer: Qual de vós me argüirá? Segundo, a atenta audição da sua palavra, ao juntar: Quem é de Deus ouve as palavras de Deus etc. Terceiro, a blasfêmia dos Judeus: Porventura não dizemos nós bem que tu és Samaritano e tens demônio? Quarto, a glória da vida eterna ao cumpridor da sua palavra: Em verdade, em verdade vos digo, se alguém guardar a minha palavra, não experimentará a morte eternamente. Quinto, a glorificação do Pai: É meu Pai quem me glorifica. Sexto, a alegria de Abraão: Abraão, vosso Pai, exultou ao ver o meu dia. Sétimo, a voluntária lapidação dos Judeus e a ocultação de Jesus Cristo: Pegaram em pedras para lhas atirarem etc.
Nota ainda que neste domingo e no seguinte se lê Jeremias e se cantam os responsórios: Estes são os dias, juntamente com os restantes, em que se não diz o Glória ao Pai.
I – A inocência de Jesus Cristo
3. Assim fale o cordeiro inocente, que tirou o pecado do mundo, que não pecou nem se encontrou engano na sua boca, que tomou sobre si os pecados de muitos, como diz Isaías, e intercedeu pelos pecadores. Qual de vós me argüirá, isto é, acusará ou convencerá, de pecado? Certo, ninguém. Como poderia alguém argüir de pecado quem viera perdoar os pecados e dar a vida eterna? Por isso, o Apóstolo refere na Epístola de hoje aos Hebreus: Cristo intervém como pontífice dos bens futuros etc. Intervir significa ajudar ou obedecer. Cristo interveio, isto é, ajudou-nos. Donde o Profeta: Ajudou o pobre a sair da sua miséria. O gênero humano era pobre, porque espoliado dos dons gratuitos, vulnerado nos naturais; estava sem o recurso e sem o auxílio de ninguém. Veio Cristo: assistiu-lhe, ajudou-o, quando lhe perdoou os pecados. Cristo também obedeceu a Deus Pai até à morte, e morte de cruz. Nela ofereceu a Deus Pai, em reconciliação do gênero humano, não o sangue de bodes ou bezerros, mas o próprio sangue, para purificar a nossa consciência das obras mortas, para servir a Deus vivo. Chama-se-lhe Pontífice dos bens futuros. Pontífice é o que estabelece uma ponte, para dar passagem aos viandantes. Havia duas margens, a da mortalidade e a da imortalidade, entre as quais deslizava um rio intransponível, o rio das nossas iniqüidades e misérias. Delas escreve Isaías: As vossas iniqüidades abriram um abismo entre vós e o vosso Deus, e os vossos pecados esconderam de vós a sua face, para não vos ouvir.
Veio, portanto, Cristo, como Pontífice; fez-se ponte que vai da margem da nossa mortalidade à margem da sua imortalidade. Por ele, como prancha de madeira lançada entre as duas margens, passaríamos a possuir os bens futuros. Esta a razão por que se diz Pontífice dos bens futuros, não dos presentes, que não prometeu aos seus amigos, antes diz: Haveis de ter aflições no mundo. Cristo, portanto, intervém no perdão dos nossos pecados, como Pontífice dos bens futuros, para nos dar os bens eternos. Quem, portanto, o pode argüir de pecado? Que é o pecado senão a transgressão da Leo divina e a desobediência aos mandamentos celestes? Quem, pois, o pode argüir de pecado, cuja vontade esteve na lei do Senhor, que obedeceu, não só ao Pai celeste, mas ainda à Mãe pobrezinha? Qual de vós, portanto, me argüirá de pecado? Se eu vos digo a verdade, porque não me credes? Não criam na verdade, porque eram filhos do diabo, que é mentiroso e pai da mesma mentira, por ele inventada.
II – A audição da palavra de Cristo
4. Segue o segundo. Quem é de Deus, ouve as palavras de Deus; vós não as ouvis porque não sois de Deus. Deus, em hebraico, que dizer temor. É de Deus aquele que teme a Deus; a quem teme a Deus, ouve as suas palavras. Por isso, diz o Senhor por Jeremias: Levanta-te e desce à casa do oleiro, e ao ouvirás as minhas palavras. Levanta-te aquele que, tomado pelo temor, se arrepende de ter praticado o mal; e desce à casa do oleiro ao reconhecer-se lodo, temendo que o Senhor o quebre como vaso de barro; e desta forma ouve aí as palavras do Senhor, porque é de Deus, porque teme a Deus. Diz S. Jerônimo: É grande sinal de predestinação ouvir de bom grado as palavra de Deus e ouvir notícias da pátria celeste, como alguém que gosta de ouvir notícias da pátria terrena. E o contrário é sinal de obstinação. Por isso, ajunta-se: Vós não ouvis porque não sois de Deus, como se dissesse: Não ouvis as suas palavras porque não o temeis. Daí a fala de Jeremias: A quem falarei eu? A quem conjurarei eu que me ouça? Eis que os seus ouvidos estão incircuncidados e não podem ouvir; eis que a palavra do Senhor se tornou para eles motivo de opróbrio, e não a receberão. E noutra parte refere: Eis o que diz o Senhor: Farei apodrecer a soberba de Judá, isto é, dos clérigos, e o grande orgulho de Jerusalém, isto é, dos religiosos. Este povo perversíssimo, a saber, o povo dos leigos, não quer ouvir as minhas palavras e anda na maldade do seu coração. Acerca destes escreve ainda noutro sítio: Engordaram e engrossaram, e transgrediram pervesissimanente os meus preceitos. Não defenderam a causa da viúva. Porventura não hei-de eu punir estes excessos, diz o Senhor? Ou a minha alma não se há-de vingar duma tal gente? E noutra passagem: Eis que eu farei cair calamidades sobre este ovo, fruto dos seus desígnios, porque não ouviram as minhas palavras e rejeitaram a minha lei. Para que me trazeis vós incenso de Sabá e cana de suave cheiro de terra longínqua? Os vossos holocaustos não me são agradáveis, nem as vossas vítimas me agradaram, diz o Senhor.
Sabá interpreta-se rede ou cativa. O incenso designa a oração; a cana, a confissão do crime ou do louvor. Quem não ouve as palavras de Deus e não conhece a sua lei, que é a caridade, porque o amor é a plenitude da lei, queima baldadamente o incenso da oração. O incenso vem de Sabá, vaidade do mundo. A vaidade retém o homem enredado e cativo. Traz ao Senhor ainda a cana da confissão, que é de suave cheiro, se for feita em caridade; trá-la de terra longínqua, isto é, da imundície do espírito, que separa o homem de Deus. Os vossos holocaustos, isto é, as vossas abstinências, não me são agradáveis; e as vítimas, isto é, as vossas esmolas, não me agradaram, diz o Senhor, porque lançastes fora a caridade. Que mais? Todas as nossas obras são inúteis para a vida eterna se não são condimentadas com o bálsamo da caridade.
III – A blasfêmia dos Judeus contra Cristo
5. Segue o terceiro: Responderam os judeus e disseram-lhe: Não dizemos nós com razão que tu és um samaritano e que tens demônio? Jesus respondeu: Eu não tenho demônio, mas honro o meu Pai, e vós a mim desonrastes-me. E eu não busco a minha glória; há quem a busque e quem fará justiça. Os samaritanos, transferidos pelos Assírios, adotaram em parte o rito dos Israelitas e em parte o rito dos gentios Os judeus não mantinham relações com eles, por os reputarem impuros, por isso, a quem queriam insultar chamavam samaritano. Samaritanos interpretam-se guardas, por terem sido colocados pelos babilônios na guarda dos Judeus. Dizem portanto: Não dizemos nós com razão que tu és um samaritano? Isto aceita o Senhor sem o negar, porque é guarda. Não dorme nem dormita quem guarda a Israel e vigia sobre o seu rebanho. Daí a afirmação do Senhor a Jeremias: Que vês tu, Jeremias? E ele disse: uma vara vigilante, ou segundo outra tradução, uma vara de nogueira ou de amendoeira, estou eu a ver. E disse-me o Senhor: Viste bem, e eu vigiarei sobre a minha palavra para a realizar.A vara, assim chamada de virtude ou verdura ou porque com ela os homens governam, significa Jesus Cristo, virtude de Deus; plantada junto do curso das águas, isto é, junto da abundância das graças, permanece verde, ou seja, imune de todo o pecado. Ele de si próprio diz em S. Lucas: Se fazem isto no lenho verde, que acontecerá no seco? A ele disse o Pai: Governa-os com vara de ferro, isto é, com justiça inflexível. Esta vara vigiou sobre a sua palavra para a realizar, porque mostrou com fatos o que pregou de palavra. Vigia sobre a sua palavra quem pratica o que prega por palavra.
6. Ou então, Cristo chama-se vara vigilante, porque assim como o ladrão, desperto durante a noite, rouba objetos da casa dos qie dormem com uma vara munida de gancho, também Cristo, com a vara da sua humanidade e o gancho da santa Cruz roubou as almas ao diabo. Por isso, disse: Quando for exaltado da terra, tudo atrairei a mim, com o gancho da santa Cruz. De fato, o dia do Senhor virá como o ladrão durante a noite. E no Apocalipse diz: Se não vigiares, virei a ti como o ladrão.
Igualmente se chama Cisto vara de nogueira ou de amendoeira. Nota que na nogueira ou na amendoeira a amêndoa é doce, o caroço rijo, a casca amarga. A amêndoa doce designa a divindade de Cristo; o caroço rijo, a alma; a casca amarga, a carne, que suportou a amargura da Paixão. Vigiou sobre a palavra do Pai, que é chamada sua, porque faz um só com o Pai, para a realizar. Daí o dizer: Como o Pai me mandou, assim o faço. portanto, não tenho demônio, porque cumpro as ordens do Pai. Por conseguinte, blasfemam em verdade os falsos judeus: Tens demônio. Desta blasfêmia contra a pessoa de Cristo refere Jeremias: Ai de mim, minha mãe! Porque me geraste homem de rixa e de discórdia em toda a terra? Nunca lhes dei dinheiro a usura, nem a mim mo deu ninguém; todos me amaldiçoam, diz o Senhor.
Nota que há um duplo ai: o da culpa e o da pena. Cristo teve o ai da pena, mas não o da culpa. Ai, portanto, de mm, minha mãe! Porque me geraste para tamanha pena homem de rixa e homem de discórdia? Rixa é o que se comente entre muitos. Por isso, rixoso quer dizer ricto canino, porque sempre pronto a contradizer. A discórdia quer dizer coração diverso. Discordar é possuir um coração diverso. Assim entre os judeus havia rixa por causa das palavra de Cristo. Com efeito, os judeus estavam sempre prontos a ladrar e a contradizer como se foram cães. Tinham opiniões diferentes. Alguns efetivamente diziam: é bom; outros, pelo contrário: Não é, mas seduz as multidões. Nunca dei dinheiro a usura, nem a mim mo deu ninguém. Usurário chama-se não só o que empresta mas também o que recebe. Cristo, portanto, não deu dinheiro a usura, porque não encontrou dentre os judeus a quem emprestasse o dinheiro da sua doutrina. E não lhe deu ninguém dinheiro a usura, porque não quiseram multiplicar com boas obras a moeda da doutrina, antes todos o amaldiçoavam dizendo: És samaritano e tens demônio. Respondeu Jesus: Eu não tenho demônio. Refuta a calúnia, mas, paciente, não retorna a injúria. Honro o meu Pai, dando-lhe a honra devida, atribuindo-lhe tudo, e vós desonrastes-me. Por isso, na pessoa de Cristo diz Jeremias nos Trenos: Estou feito objeto de escárnio para o meu povo ao longo de todo o dia. E noutro lugar: Oferecerá a face a quem lhe bater, será saturado de opróbrios. Eu, porém, não procuro a minha glória, como os homens, que às afrontas sofridas retribuem com afrontas, mas reservo-a ao Pai. Donde ajuntar: Há quem a procure e quem faça justiça. É o que diz em Jeremias: Mas tu, Senhor dos exércitos, que julgas segundo a equidade e que sondas os afetos e os corações, faz que eu veja as vinganças que deles tomarás.
E nota que há duplo juízo: um de condenação, do qual se escreve: O Pai não julga ninguém, mas confiou todo o juízo ao Filho; outro de separação. Dele diz o Filho no Intróito da missa de hoje: Julga-,e, ó Deus, e separa a minha causa de uma gente não santa etc. É ainda neste sentido que ele diz: É o Pai quem procura a minha glória e separa a minha glória da vossa. Vós gloriais-vos segundo o século, não eu; a minha glória é aquela que tive junto do Pai antes que o mundo existisse, diferente do orgulho dos homens.
7. Sentido moral. Tens demônio. Demônio, do grego daimonion, quer dizer perito e conhecedor de fatos. O vocábulo grego daimon significa muito ciente. Quando, portanto, alguém, por adulação ou aplauso, te diz: És perito e sabes muito, diz-te: Tens demônio. E tu imediatamente deves responder com Cristo: Eu não tenho demônio. De mim mesmo nada sei, nada tenho de bom, mas honro o meu Pai. A ele atribuo tudo; a ele dou graças; dele provém toda a sabedoria, toda a perícia e ciência. Eu não busco a minha glória. Diz com S. Bernardo: Não me toques, palavra de vanglória, pois é só devida a glória a quem se reza: Glória ao Pai e ai Filho e ao Espírito Santo. Diz igualmente: O anjo, no céu, não busca do anjo a glória; e o homem, na terra, deseja ser louvado pelo homem.
IV – Glória eterna para o servidor da palavra de Cristo
8. Segue o quarto: Em verdade, em verdade vos digo: quem guardar a minha palavra, não verá a morte eternamente. Disseram-lhe, pois, os judeus: Agora reconhecemos que tens demônio. Abraão morreu e os Profetas, e tu dizes: Quem guarda a minha palavra não verá a morte eternamente. Porventura és maior do que o nosso pai Abraão, que morreu? E os Profetas morreram. Que pretendes tu ser? Respondeu Jesus: Se eu me glorifico a mim mesmo, não é nada a minha glória. Ámen significa: verdadeiramente, fielmente, ou faça-se. É vocábulo hebraico como aleluia. E assim como no céu S. João ouviu ámen e aleluia, conforme refere no Apocalipse, assim na terra estas duas palavras foram entregues pelos Apóstolos para serem pronunciadas por todos os povos: Em verdade, em verdade vos digo: quem guardar a minha palavra, não verá a morte eternamente. Morte vem da mordedura do primeiro homem, porque ao morder o pomo da árvore proibida incorreu na morte. Se tivesse guardado a palavra do Senhor: Come de toda a árvore do paraíso, mas não comas da árvore da ciência do bem e do mal, não teria experimentado a morte eternamente; mas porque não a guardou, experimentou a morte e pereceu juntamente com toda a sua posteridade. Daí a fala de Jeremias: O Senhor pôs-te o nome de oliveira fecunda, formosa, fértil, vistosa; à voz da sua palavra grandíloqua, acendeu-se nela o fogo e queimaram-se os seus ramos.
A natureza humana antes do pecado foi oliveira na criação e criada no campo damasceno, mas plantada, por assim dizer, no paraíso de delícias; fecunda nos dons gratuitos, formosa nos naturais, fértil no gozo da eterna felicidade, vistosa na sua pureza. Mas ai! à voz da sua palavra grandíloqua, isto é, da sugestão diabólica a prometer grandes coisas: Sereis como deuses, acendeu-se nela o fogo da vanglória e da avareza e desta forma foram queimados os seus ramos, ou seja, toda a sua posteridade. Ó filho de Adão, não imiteis os vossos pais, que não guardaram a palavra do Senhor, e por isso pereceram, mas guardai-a: Em verdade, em verdade vos digo que se guardardes a minha palavra, não vereis a morte eternamente. Ver, neste lugar, é o mesmo que experimentar.
9. Segue. Disseram, pois, os judeus: Agora reconhecemos que tens demônio. Ó desatino de espírito imbecil! Ó perfídia de gente demoníaca! Não vos basta uma vez só blasfemar do inocente, imune de todo o pecado, de modo tão horrível, com ultraje tão ignominioso, senão que repetis segunda vez: Agora reconhecemos que tens demônio. Ó cegos, se conhecêsseis que ele não tinha demônio, mas crêsseis no Senhor Filho de Deus!
Abraão morreu, não com aquela morte que o Senhor disse, mas de morte corporal, da qual se escreve no Gênesis: Foram os dias de Abraão cento e setenta e cinco anos; e faltando-lhe as forças, morreu numa ditosa velhice e em avançada idade e cheio de dias; e foi unir-se ao seu povo. E Isaac e Ismael, seus filhos, sepultaram-no na dupla caverna.
10. Sentido moral. Abraão significa o justo, cuja vida deve constar de cento e setenta e cinco anos. O número centenário, número perfeito, designa toda a perfeição do justo; o septuagenário, que consta de sete e de dez, a infusão da graça septiforme e o cumprimento do decálogo; no quinário, a vida limpa dos cinco sentidos. Portanto, a vida do justo deve ser perfeita pela infusão da graça septiforme e pelo cumprimento do decálogo e pelo porte limpo dos cinco sentidos; e desta maneira abandonará o amor mundano e morrerá para o pecado, cheio, não vazio, de dias e reunido ao seu povo. Deste diz o Senhor em Isaías: Os dias do meu povo serão como dias da árvore, isto é, de Jesus Cristo, porque assim como ele viverá eternamente, também o meu povo viverá e reinará com ele sempiternamente. Daí a palavra do Evangelho: Eu vivo, e vós vivereis.
E Isaa e Ismael, seus filhos, sepultaram-no na dupla caverna. Isaac interpreta-se gozo, Ismael interpreta-se audição de Deus. O gozo da esperança dos bens celestes e a audição dos divinos preceitos sepultam o justo na dupla caverna da vida ativa e contemplativa, a fim de que, escondido da perturbação dos homens no secreto da face do Senhor, se proteja das línguas maldizentes. Destas ainda se ajunta: Que pretendes tu ser? Segundo eles, pretendia passar por Filho de Deus, igual a Deus, como se o não fosse. Mas não se fazia: era-o verdadeiramente. Donde a afirmação do Apóstolo: Não considerou ser rapina ao fazer-se igual a Deus. Por isso, não diziam: Que és, mas: Que pretendes tu ser? Se eu me glorifico a mim mesmo, a minha glória não é nada. Contra o que dizem: Que pretendes tu ser?, refere a sua glória ao Pai. Dele é que tira o ser Deus.
V – Cristo a glorificar pelo Pai
11. Segue o quinto: É o Pai quem me glorifica, aquele que vós dizeis ser o vosso Deus; mas vós não o conhecestes; eu, porém, conheço-o; e se disser que o não conheço, serei mentiroso como vós. Mas eu conheço-o e guardo a sua palavra. Nota que o Pai glorificou o seu Filho no nascimento, ao fazê-lo nascer duma Virgem; no rio Jordão e num monte, quando disse: Este é o meu filho amado. Glorificou-o ainda na ressuscitação de Lázaro, na Ressurreição e na Ascensão. Por isso, disse em S. João: Pai, glorifica o teu nome. Veio, pois, uma voz do céu, dizendo: E glorifiquei-o, na ressurreição de Lázaro; e de novo o glorificarei na Ressurreição e na Ascensão. É, pois, o Pai quem me glorifica, o qual vós dizeis ser o vosso Deus. Aqui está abertamente um testemunho contra os hereges, que afirmam ter sido dada a Lei a Moisés pelo deus das trevas. Mas o Deus dos judeus, que deu a Lei a Moisés, é o Pai de Jesus Cristo; portanto, o Pai de Jesus Cristo deu a Lei a Moisés. E vós não o conheceis espiritualmente, quando servis os bens terrenos. Eu, porém, conheço-o, porque sou um com ele. E se disser que não o conheço, quando o conheço, serei mentiroso como vós, que dizíeis conhecê-lo, quando não o conheceis. Mas eu conheço-o e guardo a sua palavra. Como Filho, exprimia a palavra do Pai; e ele mesmo era a Palavra do Pai, Ele que fala aos homens. Guarda-se a si mesmo, isto é, guarda a divindade em si.
VI – A alegria de Abraão
12. Segue o sexto. O vosso pai Abraão suspirou por ver o meu dia; viu-o e ficou cheio de gozo. Disseram-lhe, por isso, os Judeus: Tu ainda não tens cinqüenta anos e viste Abraão? Disse-lhe Jesus: Em verdade, em verdade vos digo, antes que Abraão fosse feito, eu sou. Nota as três palavras: suspirou, viu e alegrou-se. Nota ainda que é triplo do dia do Senhor: o do Natal, o da Paixão e o da Ressurreição. Sobre o primeiro escreve Joel: Naquele dia sairá uma fonte da casa do Senhor e irrigará uma torrente de espinhos. No dia de Natal, uma fonte, isto é, Cristo, sairá da casa de David, isto é, do útero da Santíssima Virgem, e irrigará uma torrente de espinhos, isto é, refrigerará a abundância das nossas misérias, com que todos os dias somos atormentados e feridos.
Acerca do segundo, diz Isaías: Meditou no seu espírito duro, para o dia da ardência. No dia da Paixão, em que o Senhor suportou a ardência dos trabalhos e da dor no seu espírito duro, enquanto pendia na cruz, meditou no modo de condenar o diabo e libertar de suas mãos o gênero humano.
A respeito do terceiro, diz Oséias: Ao terceiro dia ressuscitará, e nós viveremos na sua presença: entraremos na ciência do Senhor e o seguiremos a fim de o conhecer. Ao terceiro dia, Cristo, ressurgindo dos mortos, ressuscitou-nos juntamente com ele, isto é, conformes com a sua ressurreição, porque assim como ele ressuscitou, também nós acreditamos que havemos de ressuscitar na ressurreição geral. E então viveremos, entraremos na sua ciência e o seguiremos, a fim de o conhecer. Nestes quatro verbos entendemos os quatro dotes do corpo glorioso: viveremos: eis a imortalidade; entraremos na sua ciência: eis a sutileza; o seguiremos: eis a agilidade; a fim e conhecermos o Senhor: eis a claridade.
Abraão, pois, isto é, o justo, exulta no dia do nascimento do Verbo Encarnado; com a visão da fé, vê-o suspenso no patíbulo da cruz; com ele, já imortal, gozará no reino celeste.
Disseram-lhe os judeus, olhando nele só para a idade da carne, sem considerar a natureza divina: Ainda não tens cinqüenta anos e viste Abraão? Com trinta e um ou talvez trinta e dois anos, pro causa do demasiado trabalho e instância da pregação, o Senhor parecia ser mais velho. Disse-lhes Jesus: Antes que Abrão fosse feito, eu sou. Não disse: fosse. Mas: fosse feito, porque criatura; não disse, feito, mas: sou, porque criador.
VII – A ocultação de Jesus dos Judeus que o queriam lapidar
13. Segue o sétimo: Então pegaram em pedras para lhe atirarem; mas Jesus encobriu-se, e saiu do templo. Os apedrejadores recorrem a pedras para lapidar a pedra angular. Em si juntou as duas paredes: o povo judaico e o povo gentio, que vinham de parte contrária. Os judeus, imitadores da malícia de seus antepassados, quiseram lapidar o Senhor dos profetas. Seus pais apedrejaram o profeta Jeremias no Egito. Por isso, diz-lhes o Senhor em S. Mateus: Sois filhos daqueles que mataram os profetas, e vós enchei a medida dos vosso pais.
14. Sentido moral. Os falsos cristãos, filhos estranhos, filhos do diabo, que mentiram ao Senhor, violando o pacto feito no Batismo, apedrejam todos os dias, quanto deles depende, com as duras pedras dos seus pecados, o seu pai e Senhor Jesus Cristo, do qual tiraram o nome de cristãos, e se esforçam por matá-lo, por matar a fé nele. Assemelham-se aos filhos do abutre, que deixam o pai morrer de fome. Não são como os filhos do grou, que se expõem à morte pelo pai, quando o abutre lhes persegue o pai; já envelhecido, alimentam-no, por já não poder caçar. O nosso pai, como pai faminto, bate à porta, para que lha abramos e lhe demos, se não uma ceia, ao menos um bocado de pão. Eu, diz no Apocalipse, estou à porta e bato; se alguém me abrir, entrarei na casa dele e cearei com ele e ele comigo. Nós, porém, filhos degenerados, como os do abutre, deixamos morrer de fome o nosso pai. Por isso, ele queixa-se de nós por boca de Jeremias: Porventura tenho eu sido para Israel um deserto ou terra de trevas? Porque disse, pois, o meu povo: Nós nos retiramos, não tornaremos mais a ti? Porventura esquecer-se-á a donzela do seu ornato, ou a esposa da faixa que lhe cinge o peito? Mas o meu povo esqueceu-se de mim durante dias sem número. O Senhor não é deserto ou terra de trevas, que não dão fruto algum ou dão pouco fruto, mas é paraíso de delícias e terá de bênção, na qual recebemos o cêntuplo de tudo o que tivermos semeado.
Qual a razão, pois, por que, miseráveis, nos afastamos dele e dele nos esquecemos por tão longo tempo? Mas a alma, esposa de Cristo, donzela pela fé e pela caridade, não pode esquecer-se do seu ornato, isto é, do amor divino, de que anda adornada, e da faixa que lhe cinge o peito, ou seja, da consciência pura, sob a qual vive segura.
Sejamos, por favor, irmãos caríssimos, como os filhos do grou, a fim de que, se for necessário, afrontemos a morte pelo nosso pai, isto é, pela fé do nosso pai, e restauremos, com boas obras, este mundo, já envelhecido e que depressa cairá na ruína, para que não nos suceda o que se ajunta: Jesus, porém, encobriu-se e saiu do templo. E, por esta causa, dede o presente domingo, que se intitula Paixão do Senhor, nos responsórios não se diz Glória ao Pai. Todavia, não há completo silêncio, porque o Senhor ainda não fora entregue nas mãos dos lanistas.
Roguemos, portanto, e com lágrimas peçamos ao Senhor Jesus Cristo que não nos encubra a sua face e não saia do templo do nosso coração, e não nos argua de pecado no seu juízo; antes nos infunda a sua graça, para que diligentemente ouçamos a sua palavra; nos conceda paciência na injúria sofrida; nos livre da morte eterna; nos glorifique no seu reino, a fim de merecermos ver o dia da sua eternidade juntamente com Abraão, Isaac e Jacob. Ajude-nos ele mesmo, ao qual é devida honra e poder, decoro e império pelos séculos eternos. Diga toda a Igreja: Assim seja.
Fonte: SANTO ANTÔNIO DE LISBOA. Obras Completas. Sermões Dominicais e Festivos (Vol. I)
Introdução, tradução e notas por Henrique Pinto Rema.
Lello e Irmão Editores, Porto, 1987; págs 228-247.
Exórdio. Sermão aos pregadores.
1. Com cinco pães e dois peixes saciou o Senhor cinco mil homens etc.
Aos pregadores fala Salomão no Eclesiastes: Lança o teu pão sobre as águas que passam, e depois de muito tempo o acharás. As águas que passam são os povos a correr para a morte. Por isso, diz a mulher de Técua no segundo livro dos Reis: Todos corremos como água. Escreve Isaías: Este povo rejeitou as águas de Siloé, que correm em silêncio, e preferiu apoiar-se em Rasim e em Face, filho de Romélia. Siloé interpreta-se enviado; portanto, as águas de Siloé são a doutrina de Jesus Cristo, enviado do Pai. Rejeitam esta água os que se perdem em desejos terrenos e se apóiam em Rasim, isto é, no espírito soberbo, e em Face, ou seja, na imundície da luxúria. E por esta razão correm como água para o profundo da Geena. Portanto, sobre as águas que passam, ó pregador, lança o teu pão, o pão da palavra de Deus, do qual se diz: Não só de pão etc. E Isaías: Foi-lhe, isto é, ao justo, dado o pão; depois de muito tempo, no dia do juízo, achá-lo-ás, ou seja,encontrarás o que te dará em troca dele. Em nome do Senhor, lançarei o pão sobre as águas, compondo por vosso amor, sobre os cinco pães e dois peixes, um pequeno sermão.
Os cinco pães e os dois peixes.
2. Digamos, portanto: Com cinco pães e dois peixes etc. Os cinco pães são os cinco livros de Moisés, em que se encontram as cinco refeições da alma. O primeiro pão é detestar o pecado na contrição; o segundo é revelá-lo na confissão; o terceiro é a miséria e humilhação de si mesmo na satisfação; o quarto é o zelo das almas na pregação; o quinto é a doçura da pátria celeste na contemplação.
Acerca do primeiro pão lê-se no primeiro livro, no Gênesis, que Judá mandou um cabrito a Tamar pelo seu pastor Odalamita. Judá interpreta-se o que se confessa e significa o penitente, que deve enviar o cabrito, isto é, a detestação do pecado. Tamar, que se interpreta amarga, trocada, palmeira, é a alma penitente, em cuja tripla interpretação se designa o triplo estado dos penitentes. Chama-se amarga relativamente ao estado dos incipientes; trocada, dos proficientes; palmeira, dos perfeitos. Odolamita interpreta-se testemunho pela água e significa a compunção das lágrimas pelas quais o penitente testemunha que detesta o pecado e promete não voltar a cometê-lo. E assim desta Tamar, como diz S. Mateus, poderá Judá gerar Farés e Zara. Farés interpreta-se divisão; Zara, oriente. O penitente deve antes separar-se do pecado e depois tender à iluminação das boas obras. Declina, diz o Profeta, do mal: eis Farés; e faz o bem: Eis Zara.
Acerca do segundo pão lê-se no segundo livro de Moisés, no Êxodo, que Moisés escondeu debaixo da areia o egípcio morto. Moisés interpreta-se aquático e significa o penitente, flutuando nas água da compunção. Ele deve matar o egípcio, isto é, o pecado mortal, na contrição, e escondê-lo debaixo da areia na confissão. Escreve, pois, S. Agostinho: Se tu te descobres, Deus cobre-te; se tu te cobres, Deus descobre-te. Esconde, portanto, o egípcio quem descobre o seu pecado. Esconde-o para Deus e descobre-o ao sacerdote. Daí o dizer-se no Gênesis que Raquel escondeu os ídolos de Labão. Raquel interpreta-se ovelha. Esta é a alma penitente, que deve esconder os ídolos, isto é, os pecados mortais, de Labão, ou seja, do diabo. Bem-aventurados aqueles, diz o Profeta, cujos pecados foram cobertos.
Acerca do terceiro pão lê-se no terceiro livro de Moisés, no Levítico, onde se manda aos sacerdotes: O papo e as penas lançá-los-ás no lugar das cinzas para o lado do Oriente. O papo simboliza o ardor e a sede da avareza, da qual escreve Job: Uma sede ardente atormentará o avarento. A pena designa a leveza da soberba. A pena, escreve Job, do avestruz, isto é, do hipócrita, é semelhante às penas da cegonha e do falcão, isto é, do varão contemplativo. São lançadas no lugar das cinzas quando pensamos de coração compungido na palavra da maldição: És cinza, e à cinza hás-de voltar. O lado do Oriente é a vida eterna, da qual nos separamos por causa dos primeiros pais. Humilha-se, portanto, o penitente na satisfação e lança fora de si o papo da avareza e a pena da soberba quando traz à memória o eulógio da primeira maldição e geme todos os dias, prostrado diante dos olhos de Deus.
Acerca do quarto pão lê-se no quarto livro, o dos Números, que Finéias, tomando um punhal, atravessou os dois fornicadores pelas partes genitais. Finéias é o pregador, que tomando o punhal, isto é, a palavra da pregação, deve atravessar os fornicadores nas partes genitais, para que, descoberta e como que lançada em rosto a sua torpeza, se envergonhem do crime cometido. Revelarei, diz o Senhor por boca do seu Profeta, diante da tua face as partes vergonhosas. Cobre os seus rostos de ignomínia, diz David.
Acerca do quinto pão lê-se no quinto livro, o Deuteronômio, que Moisés subiu das planícies do Moab ao monte Abarim e aí morreu diante de Deus. Moisés é o penitente. Sobe das planícies de Moab, que se interpreta do pai. Quer dizer, deve deixar a vida dos carnais, provenientes do pai diabo, e subir ao monte Abarim, que se interpreta passagem, ou seja, a excelência da contemplação, para que passe deste mundo ao Pai.
Estes são os cinco pães de que se diz: Com cinco pães e dois peixes.
3. Estes são os cinco côvados da mirra. Escreve Solino que na Arábia há uma árvore chamada mirra, de cinco côvados de altura. Arábia interpreta-se sagrada e significa a santa Igreja, na qual há a mirra da penitência que eleva o homem das coisas terrenas cinco côvados, que são os cinco pães evangélicos. Estes são os cinco irmãos de Judá, a respeito dos quais diz Jacob no Gênesis: Judá, louvar-te-ão os teus irmãos; são eles: Ruben, Simeão, Levi, Issacar, Zabulão. Ruben interpreta-se vidente; Simeão, audição; Levi, ajuntado; Issacar, recompensa; Zabulão, casa de fortaleza.
Tenha, portanto, Judá um irmão chamado Ruben, para que veja na contrição com aqueles sete olhos a que se refere Zacarias: Numa só pedra, ou seja, no penitente, que deve ser pedra pela constância e um só pela unidade da fé, havia sete olhos. Com o primeiro deles deve ver o passado, para o chorar; com o segundo, o futuro, para dele se acautelar; com o terceiro, as coisas prósperas, para não o ensoberbecerem; com o quarto, as adversas, para não o deprimirem; com o quinto, as coisas superiores, para as saborear; com o sexto, as inferiores, para as tornar insípidas; com o sétimo, as interiores, para se comprazer em Deus.
Tenha, portanto, um segundo irmão de nome Simeão ao confessar-se, para que o Senhor ouça a sua voz, como diz Moisés no Deuteronômio: Ouve, Senhor, a voz de Judá. Dela se lê nos Cânticos: Ressoe a tua voz aos meus ouvidos, pois que a tua voz é doce.
À contrição e à confusão se ajunte o terceiro irmão, Levi, na satisfação, a fim de que a medida da pena corresponda à culpa. Fazei, diz, dignos frutos de penitência. No Sinai, de fato, que se interpreta medida, foi dada a lei. A lei da graça é dada àquele cuja penitência se mede de conformidade à culpa.
Tenha ainda um quarto irmão, Issacar, para que, incendiado pelo zelo das almas, receba a recompensa da eterna felicidade. Mas o tronco inútil, a ocupar terreno, e o fátuo idiota, a entravar um lugar na Igreja, receba, não a recompensa da vida eterna, mas a amargura da morte eterna.
Todavia, por favor, tenha um quinto irmão, Zebulão, para que, habitando na casa da contemplação, juntamente com o simples Jacob, mereça tomar gosto à doçura celeste.
Estes são os cinco pães, de que diz: Com cinco pães e dois peixes etc.
4. Os dois peixes representam a inteligência e a memória, que devem servir de condimento aos cinco livros de Moisés, para que entendas o que lês e confies ao tesouro da memória o que entendes. Ou então, os dois peixes, tirados da profundeza do mar para a mesa do rei, são Moisés e Pedro. O nome Moisés vem da água de que fora tirado; e Pedro o pescador é elevado à dignidade de Apóstolo. A Sinagoga foi encomendada àquele; a Igreja, a este. A Sinagoga e a Igreja são Sara e Agar, das quais se escreve na Epístola de hoje:Está escrito que Abraão teve dois filhos etc. A escrava Agar, que se interpreta solene, significa a Sinagoga, que se gloriava na observância da lei, como se foram coisas solenes. Sara, que se interpreta carvão, significa a santa Igreja, inflamada no dia de Pentecostes pelo fogo do Espírito Santo. O filho de Agar é o povo judeu, que luta com o filho de Sara, o povo dos crentes.
Por outras palavras, Sara, que se interpreta princesa, é a parte superior da razão, que deve comandar, como a senhora manda na escrava. A escrava é a sensualidade, representada por Agar, que se interpreta abutre. Com efeito, a sensualidade, qual abutre, segue os cadáveres dos desejos carnais. O filho de Agar, isto é, o movimento da carne, persegie o filho de Sara, ou seja, o movimento da razão. E isto é o que diz o Apóstolo: A carne deseja contra o espírito e o espírito contra a carne, de forma a pô-la fora juntamente com o seu filho. Por isso, diz-se: Põe fora a escrava e o seu filho. Efetivamente, a carne, carregada com os bens da natureza e opulenta com as vantagens temporais, insurge-se contra a senhora. Sucede então o que diz Salomão nas Parábolas: A terra estremece com três coisas e uma quarta não a pode suportar: com um escravo que chega a reinar; com um insensato farto de alimento, com uma mulher odiosa que um homem desposou, e com uma escrava que se torna herdeira de sua senhora. O escravo que chega a reinar é o corpo recalcitrante. O insensato farto de alimento é a alma inebriada de delícias. A mulher odiosa são as más obras; é recebida em matrimônio quando o pecador cai na cilada do mai hábito. E desta forma a escrava Agar, a sensualidade, torna-se herdeira da sua senhora, a razão. Mas para que este domínio infeliz acabe, com cinco pães e dois peixes saciou o Senhor cinco mil homens.
5. Acerca deste assunto há concordância no Intróito da missa: Alegra-te, Jerusalém, e reuni-vos etc. Nota que para o número de cinco mil homens há cinco reuniões. A primeira foi celebrada no céu; a segunda, no paraíso; a terceira, no monte das Oliveiras; a quarta, em Jerusalém; a quinta, em Corinto.
Na primeira reunião nasceu a discórdia. Com efeito, o primeiro anjo, antes monge branco, depois monge negro, porque primeiro lúcifer, depois tenebrífero, semeou a cizânia da discórdia nas fileiras dos seus irmãos. No corro da concórdia, de fato, começou a cantar a antífona da soberba, partindo do mais alto, em vez do mais baixo. Subirei, diz, ao céu, para aí ser igual ao Pai, e serei semelhante ao Altíssimo, isto é, ao Filho. E enquanto desta forma cantava altaneiramente e entumecia as veias do coração, caiu irrecuperavelmente: o firmamento não pôde suster a sua soberba.
Na segunda reunião do paraíso nasceu a desobediência, por causa da qual os protoparentes foram lançados à miséria deste exílio.
Na terceira, nasceu a simonia. Consiste ela em comprar ou vender o espiritual ou o que é anexo ao espiritual. Ora, que coisa mais espiritual e mais santa do que Cristo? Cremos que Judas, ao vendê-lo, incorreu no pecado de simonia, e por isso, suspenso dum laço rebentou o ventre. Assim todo o simoníaco, se não se sujeitar e fazer verdadeira penitência, suspenso do laço da eterna condenação, arrebentará o ventre pelo meio.
Na quarta reunião, a pobreza foi desonrada, quando Ananias e Safira subtraíram para eles parte do preço do campo vendido, mentido ao Espírito Santo. E por isso imediatamente sofreram a sentença do manifesto ultraje. Desta maneira, se os que tiverem renunciado aos próprios bens, marcando-se com o selo da santa pobreza, quiserem reedificar a Jericó destruída, sofrerão eternamente o impropério da maldição.
Na quinta, foi lesada a castidade. Lê-se na epístola aos Coríntios que Paulo não duvidou ferir, para morte da carne, com a sentença de excomunhão aquele fornicador que tomara a mulher do pai.
Vós, porém, membros da Igreja, cidadãos da Jerusalém celeste, fazei uma reunião dividida em cinco partes, de que serão banidos estes cinco crimes: a cizânia da discórdia, a loucura da desobediência, a concupiscência da simonia, a lepra da avareza e a imundície da luxúria. Assim merecereis ser saciados com cinco pães e dois peixes entre cinco mil homens e gozar da perfeição do número milenário. Ajude-nos aquele que é bendito por séculos de séculos. Assim seja.
Fonte: SANTO ANTÔNIO DE LISBOA. Obras Completas. Sermões Dominicais e Festivos (Vol. I)
Introdução, tradução e notas por Henrique Pinto Rema.
Lello e Irmão Editores, Porto, 1987; págs 217-226.
Em louvor da Santíssima Virgem Maria.
1. Naquele tempo, levantando a voz uma mulher do meio da multidão, disse-lhe: Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos a que foste amamentado etc.
O esposo fala à esposa nos Cânticos: Ressoe a tua voz aos meus ouvidos, porque a tua voz é doce. A voz doce é o louvor que se tributa à gloriosa Virgem, que nos soa dulcíssima aos ouvidos do Esposo, isto é, de Jesus Cristo, Filho da mesma Virgem. Levantemos, portanto, todos e cada um a voz em louvor da Santíssima Virgem e digamos ao seu Filho: Bem-aventurado o centre que te trouxe e os peitos a que foste amamentado.
2. Bem-aventurado quer dizer bem aumentado. Bem-aventurado é aquele que possui tudo o que quer e não quer nada de mal Bem-aventurado é aquele a quem sucede tudo segundo os seus desejos. Bem-aventurado, portanto, o ventre da gloriosa Virgem, que mereceu trazer por nove meses todo o bem, o sumo bem, a felicidade dos anjos, a reconciliação dos pecadores. Por isso, diz S. Agostinho: Fomos reconciliados só pelo Filho segundo a carne, mas não fomos reconciliados só com o Filho, enquanto Deus. De fato, a Trindade reconciliou-nos consigo enquanto a mesma Trindade provocou a Encarnação só do Verbo. Bem-aventurado, portanto, o ventre da gloriosa Virgem, da qual escreve S. Agostinho no livro De Natura et Gratia: Quando se trata de pecados, excetuo a Santíssima Virgem, da qual, por honra do Senhor, não quero absolutamente se faça questão alguma. De fato, sabemos que lhe foi conferida mais graça para vencer o pecado, em todos os aspectos, de maneira que merecei conceber e dar à luz aquele que seguramente não teve pecado algum. Excetuada, portanto, esta Virgem, se todos os santos e santas pudessem reunir-se e lhes fosse perguntado se tinham pecado, que responderiam senão o que diz São João: Se dissermos que não temos pecado, a nós mesmos nos enganamos, e não está em nós a verdade? – Porém, aquela Virgem gloriosa foi prevenida e cheia de graça singular, para que tivesse como fruto do seu ventre aquele mesmo que de início o universo teve como Senhor.
3. Bem-aventurado, portanto, o ventre. Dele, em louvor de sua Mãe, diz o Filho nos Cânticos: O teu ventre é como um monte de trigo, cercado de lírios. O ventre da Virgem gloriosa foi como um monte de trigo: monte, porque nele foram reunidas todas as prerrogativas dos méritos e prêmios; de trigo, porque nele, como em celeiro, por diligência do verdadeiro José, foi posto trigo, para não perecer de fome todo o Egito. O trigo, assim chamado por se enceleirar quando está puríssimo, ou porque se mói e esmaga o seu grão, que é alvo no interior e avermelhado no exterior, significa Jesus Cristo, escondido, durante nove meses, no celeiro do santíssimo ventre da Virgem gloriosa, na mó da cruz esmagado po nossa causa, cândido pela inocência da vida, avermelhado pelo derramamento de sangue. Este bem-aventurado ventre foi cercado de lírios. Lírio, vocábulo parecido ao de leite, simboliza, por causa do seu candor, a Virgindade da Santíssima Virgem. O seu útero foi cercado de lírios, isto é, cingido pelo vale da humildade. Estes lírios são a dupla virgindade, interior e exterior. Donde o dizer de S. Agostinho: O Deus unigênito, ao ser concebido, recebeu verdadeira carne da Virgem, e, ao nascer, guardou na Mãe a integridade da virgindade. Bem-aventurado, portanto, o ventre que te trouxe.
É na verdade bem-aventurado quem te trouxe a ti, Deus e Filho de Deus, Senhor dos anjos, criador do céu e da terra, redentor do mundo. A Filha trouxe o Pai, a Virgem pobrezinha trouxe o Filho. Ó Querubins, ó Serafins, ó Anjos e Arcanjos, adorai reverentemente de rosto baixo e cabeça inclinada o templo do Filho de Deus, o sacrário do Espírito Santo, o bem-aventurado ventre cercado de lírios, dizendo: Bem-aventurado o ventre que te trouxe. Ó terrenais filhos de Adão, a quem esta graça, esta especial prerrogativa foi concedida, compenetrados da fé, compungidos no espírito, prostrados em terra, adorai o trono ebúrneo do verdadeiro Salomão, excelso e elevado, o trono do nosso Isaías, dizendo: Bem-aventurado o ventre que te trouxe.
4. Segue: E os seios a que foste amamentado. Deles escreve Salomão nas Parábolas: Seja para ti como uma corça caríssima e como um veado cheio de graça: os seus seios te inebriem em todo o tempo; no seu amor busca sempre as tuas delícias. Nota que a corça, como se diz em ciências naturais, dá à luz em caminho trilhado, sabendo que o lobo evita o caminho trilhado por causa dos homens. a corça caríssima é Maria Santíssima, que em caminho trilhado, isto é, numa estalagem, deu à luz um veado cheio de graça, porque nos deu gratuitamente e em tempo agradável um filhinho. Por isso, lemos em S. Lucas: Deu à luz o seu filho e envolveu-o em panos, para que recebêssemos a estola da imortalidade, e reclinou-o num presépio, porque não havia lugar pra ele na estalagem. Comentário da Glossa: Não encontra lugar na estalagem, para que tenhamos várias mansões no céu. Os seis desta corça, caríssima ao mundo inteiro, hão-de inebriar-te, ó cristão, em todo o tempo, a fim de que, esquecido de tudo o que é temporal, como inebriado, te lances para o que antes de ti existiu. Mas é muito de admirar que tivesse dito: inebriar-te-ão, quando nos seios não há vinho que inebrie, mas leite agradabilíssimo. Ouve o porquê: O Esposo seu Filho, louvando-a nos Cânticos, diz: Quão formosa e encantadora és, ó caríssima, entre as delícias! A tua estatura é semelhante a uma palmeira e os teus seios a dois cachos de uvas. Quão formosa és de entendimento, quão encantadora és de corpo, minha mãe, esposa minha, corça caríssima, entre delícias, isto é, entre os prêmios da vida eterna.
5. A tua estatura é semelhante a uma palmeira. Nota que a palmeira em baixo é áspera por causa de sua casca, na parte superior é bela à vista e pelo fruto, e, como diz Isidoro, dá fruto quando centenária. Assim a Virgem Maria neste mundo foi áspera na casca da pobreza, mas no céu é bela e gloriosa, porque rainha dos anjos. E mereceu alcançar o fruto centésimo, que se dá às virgens, ela a Virgem das virgens, acima de todas as virgens. Com razão se diz portanto: A tua estatura é semelhante a uma palmeira e os teus seis a dois cachos de uvas.
O conjunto de frutos reunidos fazem o cacho, por exemplo, de uvas, que nasce, na videira. Desta, na história de José, no Gênesis, diz o copeiro do rei: Eu via diante de mim uma cepa, na qual havia três varas a crescerem pouco a pouco em gomos e, depois das flores, as uvas amadurecem. Nesta sentença, há sete coisas: a cepa, três varas, gomos, flores e uvas. Vejamos de que modo estas sete coisas convêm egregiamente a Maria Nossa Senhora. A cepa, assim chamada por ter força de ganhar raízes mais depressa, ou por se entrelaçar, é Maria Santíssima, que, entre os outros, ganhou raízes mais depressa e subiu mais alto no amor de Deus, e de modo inseparável se entrelaçou à verdadeira cepa, ao seu Filho, que disse: Eu sou a verdadeira cepa. De si mesma disse no Eclesiástico: Como a cepa, lancei flores de agradável cheiro. O parto da Santíssima Virgem não tem exemplo no sexo das mulheres, mas tem semelhança na natureza das coisas. Perguntas como a Virgem gerou o Salvador. Encontrarás incorrupta a flor da cepa depois de fornecer o cheiro; também crê inviolado o pudor da Virgem por ter dado à luz o Salvador. Que é a flor da virgindade senão a suavidade do cheiro?
As três varas desta cepa foram a saudação angélica, a vinda do Espírito Santo e a concepção inenarrável do Filho de Deus. Destas três varas propaga-se, isto é, multiplica-se, pela fé, todos os dias, em todo o mundo, prole sempre renovada de fiéis. Os gomos na cepa são a humildade e a virgindade de Maria Santíssima. As flores são a fecundidade sem corrupção, o parto sem dor. Os três cachos de uvas na cepa são a pobreza, a paciência e a abstinência na Virgem Santíssima; estas são as uvas maduras de que provém o vinho maduro e odorífero, que inebria e, inebriando, torna sóbrios os corações dos fiéis. Com razão se diz, portanto: Os seus seios te inebriem em todo o tempo; e no seu amor busca sempre as tuas delícias, a fim de com o seu amor consigas desprezar o falso deleite do mundo e conculcar a concupiscência da carne.
6. Refugia-te nela, ó pecador, porque ela é cidade de refúgio. Com efeito, assim como outrora, o Senhor, como se diz no livro dos Números, separou cidades de refúgio, para nelas se refugiar quem tivesse perpetrado o homicídio involuntário, também agora a misericórdia ao nome de Maria até para os homicídios voluntários. Torre fortíssima é o nome da Senhora. Refugie-se nela o pecador e salvar-se-á. Nome doce, nome que conforta o pecador, nome de bem-aventurada esperança. Senhora, o teu nome está no desejo da minha alma. E o nome da Virgem, diz S. Lucas, era Maria. O teu nome é óleo derramado. o nome de Maria é júbilo no coração, mel na boca, melodia no ouvido. Egregiamente, portanto, em louvor da mesma Virgem, se diz: Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos a que foste amamentado.
Nota que mamar, em latim, sugere, vem de sumendo agere, porque, enquanto Cristo tomava leite, trabalhava na nossa salvação. A nossa salvação foi o seu sofrimento: susteve o sofrimento corporal, por ter sido alimentado com leite duma Virgem. Por isso, ele mesmo diz nos Cânticos: Bebi o meu vinho com o meu leite. Por que razão não disseste, Senhor Jesus: Bebi vinagre com o meu leite? Foste aleitado em seios virginais e deram-te a beber fel e vinagre. A doçura do leite transformou-se em amargor de fel, a fim de que o seu amargor nos proporcionasse eterna doçura. Mamou nos seios quem no monte Calvário quis ser lanceado no seio, para que seus filhos pequeninos mamassem sangue em vez de leite. Destes escreve Job: Os filhinhos da águia chupam sangue.
7. Segue: Mas ele disse: Antes etc. Comentário da Glossa: Maria não só deve ser louvada por ter trazido no ventre o Verbo de Deus, mas também é bem-aventurada porque realmente guardou os preceitos de Deus.
Rogamos-te, portanto, Senhora nossa, esperança nossa, que Tu, Estrela do mar, irradies luz para nós, feridos pela tempestade deste mar, nos encaminhes para o porto, protejas a nossa morte com a tutela da tua presença, a fim de merecermos sair seguros do cárcere e alegres cheguemos ao gozo infindo. Ajude-nos aquele que trouxeste no teu bem-aventurado ventre, aleitaste nos teus seios sacratíssimos. A ele é devida honra e glória pelos séculos eternos. Assim seja.
Fonte: SANTO ANTÔNIO DE LISBOA. Obras Completas. Sermões Dominicais e Festivos (Vol. I)
Introdução, tradução e notas por Henrique Pinto Rema.
Lello e Irmão Editores, Porto, 1987; págs 207-215.
Exórdio. Sermão aos pregadores.
1. Jesus tomou consigo a Pedro, Tiago e João e levou-os a um monte muito alto etc.
Falou o Senhor a Moisés, dizendo no Êxodo: Sobe para mim ao monte e permanece aí; e eu te darei duas tábuas: a lei e os mandamentos, que eu escrevi, para os ensinares aos filhos de Israel. Moisés interpreta-se aquático, e significa o pregador que rega os espíritos dos fiéis com a água da doutrina que salta para a vida eterna. A este diz o Senhor: Sobe para mim ao monte. O monte, por causa da sua altitude, significa a excelência da vida santa, em que o pregador, deixado o vale dos bens temporais, deve subir pela escada do amor divino, e aí encontrará o Senhor, pois que o Senhor se encontra na excelência da vida santa. Daí a afirmação no Gênesis: No monte o Senhor providenciará, isto é, na excelência da vida santa fará ver e entender quanto deve a Deus e ao próximo.
Dar-te-ei, diz, duas tábuas. As duas tábuas designam a ciência de cada um dos Testamentos, a única capaz de saber e de fazer sábios; só esta ciência ensina a amar a Deus, a desprezar o mundo, a sujeitar a carne. O pregador deve ensinar estas coisas aos filhos de Israel, dos quais depende toda a lei e os profetas. Mas onde se encontra esta tão preciosa ciência? De verdade, no monte: Sobe para mim ao monte e deixa-te estar ali, porque aí há a mudança da dextra do Excelso, a transfiguração do Senhor, a contemplação do verdadeiro gozo. Por isso, do mesmo monte se diz no Evangelho de hoje: Tomou Jesus consigo a Pedro, Tiago e João, etc.
2. Neste Evangelho observam-se cinco coisas muito notáveis: a subida de Jesus ao monte com os três Apóstolos, a sua transfiguração, o aparecimento a Moisés e a Elias, a nuvem resplandecente que os envolveu, e o testemunho da voz do Pai: Este é o meu Filho caríssimo. Vejamos o que significam, no sentido moral, estas cinco coisas, conforme Deus for servido nos inspirar, para sua honra e utilidade de nossas almas.
I – A subida de Jesus Cristo ao monte com três Apóstolos
3. Digamos, portanto: Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João. Estes três Apóstolos e especiais companheiros de Jesus Cristo significam as três virtudes da alma sem as quais ninguém pode subir ao monte da luz, isto é, à excelência da vida santa. Pedro interpreta-se o que reconhece, Tiago o que suplanta, João a graça do Senhor. Tomou, portanto, Jesus consigo a Pedro etc. Toma também tu, que crês em Jesus e de Jesus esperas a salvação, a Pedro, isto é, o reconhecimento do teu pecado, que consiste em três coisas: na soberba do coração, na lascívia da carne, na avareza do mundo. Toma também contigo Tiago, isto é, a suplantação destes vícios, a fim de esmagares debaixo da planta da razão a soberba do teu espírito, e mortificares a lascívia da tua carne, reprimindo a vaidade do mundo enganador. Toma ainda contigo João, isto é, a graça do Senhor, que está à porta e bate, para que te ilumine, faça reconhecer o mal que fizeste e te conserve no bem que começaste.
Estes são aqueles três homens, dos quais disse Samuel a Saul no primeiro livro dos Reis: Ao chegares ao carvalho de Tabor, encontrar-te-ão aí três varões, que vão adorar a Deus em Betel, levando um três cabritos e outro três tortas de pão e outro um barril de vinho. O carvalho e o monte Tabor significam a excelência da vida santa, que bem se diz carvalho e monte Tabor: carvalho, porque é constante e inflexível pela perseverança final; monte, porque alta e sublime pela contemplação de Deus; Tabor, que se interpreta luz que vem, pelo brilho do bom exemplo. Na excelência da vida santa requerem-se estes três predicados: constante em relação a si, contemplativo em relação a Deus, brilhante em relação ao próximo. Ao chegares, portanto, isto é, quando te dispuseres a vir ou subir ao carvalho ou monte Tabor, encontrar-te-ão aí três varões, que vão adorar a Deus em Betel. Estes três varões são Pedro, o que reconhece, Tiago, o que suplanta, e João, a graça do Senhor. Pedro leva três cabritos, Tiago três tortas de pão, João um barril de vinho.
Pedro, isto é, o que se reconhece pecador, leva três cabritos. No cabrito simboliza-se o fedor do pecado; nos três cabritos os três gêneros de pecados em que mais pecamos, a saber, na soberba do coração, na petulância da carne, na avareza do mundo. Quem, portanto, quiser subir ao monte da luz, deve levar estes três cabritos; isto é, reconhecer-se pecador nestas três coisas.
Tiago, isto é, o que suplanta os vícios da carne, leva três tortas de pão. O pão significa a suavidade do entendimento, que consiste na humildade do coração, na castidade do corpo, no amor da pobreza; ninguém poderá possuir esta suavidade se antes não suplantar os vícios. Portanto, leva três tortas de pão, isto é, a tríplice suavidade do entendimento, quem reprime a soberba do coração, refreia a petulância da carne e rejeita a avareza do mundo.
João, isto é, o que conserva fielmente e de ânimo perseverante tudo isto, com a graça proveniente e subseqüente do Senhor, verdadeiramente leva um barril de vinho. O vinho no barril é a graça do Espírito Santo na boa vontade.
Tomou, portanto, Jesus consigo Pedro, Tiago e João. Toma também tu estes três varões e sobe ao monte Tabor.
4. Mas, crede-me, a subida é difícil, porque o monte é alto. Queres, portanto, subir mais facilmente? Toma aquela escada de que se lê e canta na história do presente domingo: Viu Jacob em sonhos uma escada direita, posta sobre a terra, cujo cimo tocava o céu e os anjos de Deus subindo e descendo por ela, e o Senhor apoiado na escada. Observa cada uma das palavras e aparecerá a concordância do Evangelho. Viu: eis o reconhecimento do pecado, de que diz S. Bernardo: Deus não me dê a ver outra visão que não seja o conhecimento dos meus pecados. Jacob tem a mesma interpretação de Tiago: eis a suplantação da carne. Dele disse Esaú: Eis que me suplantou outra vez. Em sonhos: eis a graça do Senhor, que traz consigo o sono da quietude e da paz. O sono assim é descrito pelo Filósofo: O sono é o repouso das virtudes animais com intensificação das naturais. Quando alguém dorme no sono da graça, nele as paixões carnais repousam das suas más obras e intensificam-se as faculdades espirituais; daí o dizer-se no Gênesis: Depois de se ter posto o sol, veio um sono profundo a Abraão, e um horror grande o acometeu. Por sol entende-se aqui o prazer carnal, que, ao sucumbir, um sono profundo, isto é, o êxtase da contemplação, vem sobre nós; e um horror grande nos invade a respeito dos pecados passados e das penas do inferno. Queres ouvir a intensificação das faculdades espirituais juntamente com o perdão das paixões carnais? Eu, diz a Esposa, durmo, isto é, repouso do amor dos bens temporais, e o coração vigia na contemplação das celestes. Com razão, portanto, se diz: Viu Jacob em sonhos uma escada, pela qual podes subir ao monte Tabor.
5. Nota que esta escada tem dois banzos e seus degraus, pelos quais se pode subir. Esta escada significa Jesus Cristo; os dois banzos são a natureza divina e humana; os seis degraus são a sua humildade e pobreza, a sabedoria e misericórdia, a paciência e obediência. Foi humilde ao tomar a nossa natureza, quando olhou para a humildade da sua serva. Pobre no seu nascimento, em que a Virgem pobrezinha, quando deu à luz o próprio Filho de Deus, não teve onde o reclinar, tendo de o envolver em panos e pôr em manjedoura de animais. Foi sábio na sua pregação, porque começou a obrar e ensinar. Foi misericordioso ao receber afavelmente os pecadores: Não vim, diz, chamar os justos mas os pecadores à penitência. Foi paciente no meio dos flagelos, bofetadas e escarros: por isso, ele mesmo diz em Isaías: Ofereci a minha face como uma pedra duríssima. Se se bate numa pedra, não se vinga nem murmura contra quem a quebra. Assim Cristo, quando o amaldiçoaram, não amaldiçoava; sofrendo, não ameaçava. Foi ainda obediente até à morte e morte de cruz. Esta escada apoiava-se sobre a terra, quando Cristo se entregava à pregação e operava milagres; tocava o céu, quando pernoitava, como refere S. Lucas, na oração do Senhor.
Eis que a escada é direita; porque, pois, não subis? Porque rastejais de mãos e pés sobre a terra? Subi, porque Jacob viu anjos a subir e a descer pela escada. Subi, portanto, ó anjos, ó prelados da Igreja, ó fiéis de Jesus Cristo; subi, digo, a contemplar quão suave é o Senhor; descei a socorrer, a aconselhar, porque disto precisa o próximo. Porque tentais subir por caminho diferente do da escada? Por onde quer que quiserdes subir, depara-se-vos um precipício. Ó estultos e tardos de coração, não digo para crer, porque credes, e os demônios também crêem, mas duros e de pedra para agir! Pensais poder subir por outro caminho ao monte Tabor, ao repouso da luz, à glória da felicidade celeste, sem ser pela escda da humildade, da pobreza, da Paixão do Senhor? Na verdade, não. A palavra do Senhor é clara: Quem quiser vir após de mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. E em Jeremias: Tu me chamarás pai, e não cessarás de andar após de mim. Como refere S. Agostinho, o médico bebe primeiro a poção amarga, para que o doente não tenha medo de a beber. Por meio duma poção amarga, diz S. Gregório, se chega ao gozo de saúde. Para salvar a vida, tens de parecer o ferro e o fogo. Subi, portanto, não temais, porque o Senhor está apoiado à escada, preparado para receber os que sobem. Tomou, portanto, Jesus consigo Pedro, Tiago e João e subiu a um alto monte.
II – A transfiguração de Jesus Cristo.
6. Segue o segundo: E transfigurou-se diante deles. Imprimi-te, como cera mole, nesta figura, a fim de que possas receber a figura de Jesus Cristo, que foi assim: E o seu rosto ficou refulgente como o sol e as suas vestiduras tornaram-se brancas como a neve. Nesta sentença verificam-se quatro coisas: o rosto e o sol, as vestiduras e a neve. Vejamos o eu significam no sentido moral o rosto e o sol, as vestiduras e a neve.
Nota que na parte anterior da cabeça, chamada rosto do homem, há três sentidos ordenados por via e disposição sapientíssima: a vista, o olfato e o gosto. O olfato, na verdade, está colocado, semelhante a uma balança, entre a vista e o gosto. Igualmente no rosto da nossa alma há três sentidos espirituais, dispostos em reta ordem pela sabedoria do sumo artífice: a vista da fé, o olfato da discrição, o gosto da contemplação.
7. Acerca da vista lê-se no Êxodo que Moisés e Aarão, Nadab e Abiu e setenta anciãos de Israel viram o Senhor de Israel; e debaixo de seus pés estava como que uma obra de pedra de safira, que se parecia com o céu quando está sereno. Nesta sentença descrevem-se todos aqueles que vêem e o que devem ver, isto é, crer, com a visão da fé. Moisés e Aarão, etc. Moisés interpreta-se aquático e significa todos os religiosos, que devem ser mergulhados nas águas das lágrimas. De fato, foram tirados do rio do Egito, com o fim de semearem, em lágrimas, nesta solidão horrível, e depois, em júbilo, ceifarem na terra da promissão. E o sumo pontífice Aarão, que se interpreta montanhês, significa todos os prelados maiores da Igreja, constituídos no monte da dignidade. Nadab, que se interpreta espontâneo, todos os súditos, que devem obedecer espontaneamente, não à força. Abiu, que se interpreta pai deles, significa todos aqueles que, segundo o rito da Igreja, se uniram pelo matrimônio para serem pais de filhos. Os setenta anciãos de Israel significam todos os batizados que no batismo receberam o espírito da graça septiforme.
Todos estes vêem, isto é, crêem, e devem ver, isto é, crer no Deus de Israel. E debaixo de seus pés estava como que uma obra de pedra de safira, etc. Quando diz Senhor de Israel: eis a divindade; ao dizer debaixo de seus pés: eis a humanidade de Jesus Cristo, que devemos crer como verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Destes pés diz Moisés no Deuteronômio: Os que se aproximam de seus pés receberão da sua doutrina. Por isso, diz-se em S. Lucas que Maria estava sentada aos pés do Senhor e escutava a sua palavra. Portanto, debaixo dos pés do Senhor, isto é, depois da Encarnação de Jesus Cristo apareceu a obra do Senhor, como que de pedra de safira, que se parecia com o céu quando está sereno. A pedra de safira e o céu sereno são da mesma cor.
E nota que a safira tem quatro propriedades: ostenta em si uma estrela, dá cabo do antraz, é semelhante ao céu sereno, estanca o sangue. A pedra de safira significa a santa Igreja, começada depois da Encarnação de Cristo e que há-de durar até ao fim dos séculos. Esta divide-se em quatro ordens, a saber, apóstolos, mártires, confessores e virgens, que acertadamente entendemos nas quatro propriedades da pedra de safira.
A safira ostenta em si uma estrela, e nisto significa os apóstolos, que primeiro mostraram a estrela matutina da fé aos que jaziam nas trevas e na sombra da morte. a safira, com o seu contato, dá cabo do antraz, que é doença mortal; nisto significa os mártires, que destruíram com o seu martírio o antraz da idolatria. A safira, semelhante à cor celeste, significa os confessores, que, reputando todas as coisas temporais como esterco, se suspenderam na corda do amor divino para contemplar a celeste beatitude, dizendo com o Apóstolo: Somos cidadãos dos céus. Igualmente a safira estanca o sangue, e nisto significa as virgens, que por amor do celeste Esposo estancaram em si por completo o sangue da concupiscência carnal. Esta é a admirável obra da pedra de safira, que apareceu debaixo dos pés do Senhor. Eis claramente o que a tua alma deve ver e o que deve crer com a visão da fé.
8. Do olfato da discrição escreve-se no Cântico do amor: O teu nariz é como a torre do Líbano, que olha para Damasco. Nesta sentença há quatro palavras muito dignas de nota; o nariz, a torre, o Líbano e Damasco. No nariz designa-se a discrição, na torre a humildade, no Líbano, que se interpreta alvura, a castidade, em Damasco, que se interpreta o que bebe sangue, a malícia do diabo. Portanto, o nariz da alma é a virtude da discrição, através da qual, como se fora nariz, deve discernir o bom do mal cheiro, o vício da virtude, e pressentir ainda as coisas postas ao longe, isto é, as futuras tentações do diabo. Por isso, diz Job: Cheira de longe a batalha, a exortação dos capitães e a gritaria do exército. De fato, a alma fiel pressente pelo nariz, isto é, pela virtude da discrição, a batalha da carne e a exortação dos capitães, isto é, as sugestões da razão vã, que são compreendidas por meio dos capitães, para não cair no fosso do mal, sob pretexto de santidade; e a gritaria do exército, isto é, as tentações do demônio, que gritam como bestas, porque gritar é próprio de bestas.
Este nariz da esposa deve ser como a torre do Líbano, pois, na humildade de coração e castidade de corpo consiste sobretudo a virtude da discrição. E bem se diz humildade a torre da castidade, porque assim como a torre defende o castelo, assim a humildade do coração defende a castidade do corpo das setas da fornicação. Se tal for o nariz da esposa, bem poderá olhar para Damasco, isto é, para o diabo, desejoso de beber o sangue das nossas almas, descobrindo a malícia da sua sutileza.
9. Acerca do gozo da contemplação diz o Profeta: Experimentai e vede quão suave é o Senhor. Experimentai, isto é, esmagai com a garganta do vosso espírito e, esmagando, repensai na felicidade daquela Jerusalém celeste, na glorificação das almas santas, na glória inefável da dignidade angélica, na doçura perene da Trindade e Unidade; repensai também quanta será a glória de estar entre os coros dos anjos, louvar a Deus juntamente com eles com voz indefessa, contemplar face a face o rosto de Deus, ver o maná divino na urna de ouro da humanidade! Se saboreardes bem estas coisas, verdadeiramente, sim, vereis quão suave é o Senhor. Feliz aquela alma cujo rosto se adorna e se decora com tais sentimentos.
E nota que o olfato, qual balança, está colocado entre a vista da fé e o gosto da contemplação. Na fé, com efeito, a discrição é necessária, para que não pretendamos aproximar-nos e ver a sarça ardente, desatar a correia do calçado, isto é, desvendar o segredo a Encarnação do Senhor. Crê apenas, e basta. Não está em teu poder desatar a correia do calçado. O que quer sondar a majestade, diz Salomão, será oprimido pela sua glória. Portanto, acreditemos firmemente e confessemos com simplicidade.
Na contemplação também é necessária a discrição, para que não saibamos mais da sabedoria, de sabor celeste, do que importa saber. Donde Salomão nas Parábolas: Filho, achaste mel, isto é, a doçura da contemplação, come o que te basta, para que não suceda que depois de farto o vomites. Vomita o mel quem, não contenta com a graça que lhe foi dada gratuitamente, deseja indagar com a razão humana a doçura da contemplação, não atendendo àquilo que se diz no Gênesis que ao nascer Benjamim morreu Raquel. Por Benjamim designa-se a graça da contemplação, por Raquel a razão humana. Ao nascer, portanto, Benjamim, morre Raquel, porque, quando o entendimento, elevado acima de si mesmo na contemplação, divisa alguma coisa acerca da luz da divindade, toda a razão humana sucumbe. A morte de Raquel é a falta de razão. Por isso, disse alguém: Ninguém chega pela razão humana aonde S. Paulo foi arrebatado
Seja, portanto, o olfato da discrição como balança entre a vista da fé e o gosto da contemplação, para que o rosto da nossa alma resplandeça como o sol.
10. E nota que no sol há três propriedades: claridade, alvura e calor; e vê quão bem elas convêm aos três sobreditos sentidos da alma. A claridade do sol convém à vista da fé, que divisa e crê as coisas invisíveis pela claridade da sua luz. Alvura, isto é, a mundícia ou pureza, convém ao olfato da discrição; e com acerto, porque assim como fechamos e viramos o nariz dum objeto mal cheiroso, assim nos devemos afastar da imundícia do pecado com a virtude da discrição. Também o calor do sol convém ao gosto da contemplação, na qual verdadeiramente há o calor da caridade. Escreve S. Bernardo: É, de fato, impossível ver o sumo bem e não o amar, pois que o próprio Deus é caridade.
Atendei, portanto, caríssimos, e vede quão útil, quão salutar é tomar três companheiros e subir ao monte da luz, porque aí há verdadeira transfiguração da figura deste mundo, que passa, na figura de Deus, que permanece por séculos de séculos. Dela se diz: O seu rosto resplandeceu como o sol. Resplandeça também o rosto da nossa alma como o sol, a fim de que transforme em obras o que vemos pela fé; e o bem que discernimos no interior, o executamos fora, na pureza da obra, com a virtude da discrição; e o que saboreamos na contemplação de Deus, se torne vida no amor do próximo; e desta maneira o nosso rosto resplandecerá como o sol.
11. Segue: E as suas vestiduras tornaram-se alvas como a neve, quais um tintureiro não seria capaz neste mundo de o fazer. As vestiduras da nossa alma são os membros do nosso corpo, que devem ser cândidos. Daí Salomão: As tuas vestiduras sejam cândidas em todo o tempo. Mas de qual candura? Como a neve. Por boca de Isaías promete o Senhor aos pecadores convertidos: Se os vossos pecados forem como o escarlate, tornar-se-ão alvos como a neve. Nota aqui duas palavras: Escarlate e neve. Escarlate é um pano que possui a cor do fogo e do sangue. A neve é fria e alva. O fogo designa o ardor do pecado; o sangue, a imundícia do mesmo; a frigidez da neve, a graça do Espírito Santo; a alvura, a pureza do entendimento. Diz, portanto, o Senhor: Se os vossos pecados forem como o escarlate etc. Como se dissesse: Se vos converterdes a mim, eu infundir-vos-ei a graça do Espírito Santo, que não só extinguirá o ardor do pecado, como também lavará a sua imundícia. Por isso, ele mesmo diz por Ezequiel: Derramarei sobre vós água limpa, e sereis limpos de todas as vossas iniqüidades. As vestiduras, portanto, isto é, os membros do nosso corpo, sejam alvas como a neve, para que frigidez da neve, isto é, a compunção do espírito, extinga o ardor do pecado, e a alvura duma vida santa lave a imundícia do pecado.
Por outras palavras, as vestiduras da nossa alma são as virtudes. Vestida com elas, apareça gloriosa na presença do Senhor. Destes vestidos se diz na história do presente domingo que Rebeca vestiu Jacob de vestidos muito bons, que tinha consigo. Rebeca, isto é, a sabedoria de Deus Pai, vestiu Jacob, isto é, o justo, com os vestidos, isto é, com as virtudes boas, porque feitas com a mão e o artifício da sua sabedoria, as quais ele tem consigo guardadas no tesouro da sua glória. Tem-nas verdadeiramente, porque é o Senhor, dono de tudo; tem-nas verdadeiramente, porque as distribui a quem quer, quando quer e como quer. Estas vestiduras são cândidas, de fato, dado que fazem cândido o homem, não digo como a neve, mas branqueiam-no acima da neve. O tintureiro, isto é, o pregador, na calandra da sua pregação, não pode fazer assim tais vestiduras neste mundo.
III – A aparição a Moisés e a Elias.
12. Segue o terceiro: E Moisés e Elias apareceram a falar com ele. Moisés e Elias aparecem ao justo assim transfigurado,assim iluminado, assim vestido. Por Moisés, que era o mais manso de todos os homens que habitavam sobre a terra, cuja vista, como se diz no Deuteronômio, não diminuiu, nem os dentes se lhe abalaram, entende-se a mansidão da paciência e da misericórdia. Manso quer dizer acostumado à mão. Ele, na verdade, como filho, como animal manso, acostumou-se à mão da divina graça, cuja vista, isto é, a razão, não diminui com a fuligem do ódio nem se ofusca com a nuvem do rancor; os seus dentes não se abalam contra alguém pela murmuração. Nem mordem pela detração.
Por Elias, que, segundo se lê no terceiro livro dos Reis, matou os profetas de Baal na torrente de Cisão, entende-se o zelo da justiça. Baal interpreta-se superior ou devorador; Cisão, a dureza deles. Portanto, o que ferve verdadeiramente com o zelo da justiça, mata com a espada da pregação, da ameaça e da excomunhão os profetas e os escravos da soberba, – a qual se dirige sempre a coisas superiores – da gula e da luxúria, que tudo devoram, a fim de que, mortos ao vício, vivam para Deus. E pratica isto na torrente de Cisão, isto é, na abundância do seu coração duro. Por isso, entesouram ira para o dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus.
Dela diz Deus a Ezequiel: Aqueles a quem te envio são filhos de cerviz dura e de coração indomável. De fato, toda a casa de Israel é de cara desavergonhada e de dura cerviz. Possui cara desavergonhada quem, ao ser corrigido, não só despreza a correção, mas não se envergonha do pecado. a este impropera Jeremias: O descaramento duma mulher meretriz apoderou-se de ti; não quiseste ter vergonha. Moisés, portanto, e Elias, isto é, a mansidão da misericórdia e o zelo da justiça, devem aparecer justos com o justo, já transfigurado no monte da vida santa, a fim de que, à semelhança do Samaritano, derramem vinho e azeite nos cobertos de chagas. O acre do vinho exacerba a brandura do azeite, e abrandura do azeite suaviza o acre do vinho.
Daí o dizer-se em S. Mateus, do anjo que apareceu na ressurreição de Cristo, que o seu aspecto era como o raio e as suas vestiduras como a neve. o raio designa a severidade do juízo; o candor da neve, a brandura da mansidão. O anjo, isto é, o prelado, deve ter o aspecto do raio, para que as mulheres, isto é, os espíritos efeminados, temam o seu olhar ao considerarem a sua vida santa. Desta maneira procedeu Ester, de quem se diz no livro da mesma: Tendo o rei Assuero levantado o rosto e manifestado em seus olhos cintilantes o furor do peito, a rainha desmaiou, e, trocando-se a sua cor em palidez, deixou cair a cabeça vacilante sobre a criada. Mas o prelado, tal como procedeu Assuero, deve apresentar o báculo de ouro da benignidade e revestir-se das vestiduras de neve, para, com piedosa benignidade de mãe, consolar os que corrigiu com austeridade de pai. Donde o dito: Tem azorragues de pai e peitos de mãe.
O prelado deve ser como o pelicano, o qual, segundo se conta, mata os seus filhos, mas depois extrai o sangue do próprio corpo e o derrama sobre os filhos mortos e desta forma os faz reviver. Assim o prelado deve chamar os seus filhos, isto é, os seus súditos, os quais corrige com o flagelo da disciplina e mata com a espada da áspera reprimenda. Deve chamá-los, repito, à penitência, que é vida da alma, com o seu sangue, ou seja, com espírito compungido e com derramamento de lágrimas, sangue da alma, no dizer de S. Agostinho.
IV – O testemunho da voz do Pai: Este é o meu Filho muito amado.
13. E se estas três coisas, a subida ao monte, a transfiguração e o aparecimento a Elias e Moisés, precederam em ti, conseguirás a quarta, de que se acrescenta: eis que uma nuvem resplandecente os envolveu. Lê-se coisa semelhante no fim do Êxodo, onde se diz: Depois de acabadas todas estas coisas, uma nuvem cobriu o tabernáculo do testemunho e a glória do Senhor o encheu.
Nota que no tabernáculo do testemunho havia quatro objetos: o candelabro com sete lâmpadas, a mesa da proposição, a arca do testamento e o altar de ouro. O tabernáculo do testemunho é o justo. É tabernáculo, porque a sua vida é um combate sobre a terra. os soldados em armas costumam desde a sua tenda combater os inimigos e por estes ser combatidos. Também o justo, colocado na linha de batalha, enquanto combate é combatido; daí o dizer-se: O inimigo qye bem combate torna-te bom combatente. O justo é o tabernáculo do testemunho. Tem bom testemunho, não só dos de fora, nem sempre verdadeiro, mas também de si mesmo. A sua glória é o testemunho da própria consciência, não de língua alheia.
Neste tabernáculo do testemunho há o candelabro de ouro batido, com sete lâmpadas; é o áureo coração compungido do justo, batido por múltiplos suspiros, como se foram martelos. As sete lâmpadas deste candelabro são os três cabritos, as três tortas de pão e o barril de vinho, que os sobretidos três companheiros do justo levam. Há ainda no tabernáculo do justo a mesa da proposição, pela qual se entende a excelência da vida santa. Sobre ela devem pôr-se os pães da proposição, isto é, o alimento da palavra divina, que a todos se deve propor. Donde o Apóstolo: Sou devedor de Gregos e Bárbaros. Há também ali a arca do testamento, em que se guardava o maná e a vara. Na arca, isto é, no espírito dp justo, deve existir o maná da mansidão, para que seja Moisés, e a vara da correção, para que seja Elias. Há também aí um altar de ouro, pela qual se entende o firme propósito da perseverança final. Neste altar, todos os dias se oferece o incenso da compunção devota e os perfumes da oração odorífera.
14. Com razão, portanto, se diz: Depois de acabadas todas estas coisas, uma nuvem cobriu o tabernáculo do testemunho. Tal tabernáculo, em que são acabadas todas as coisas atinentes à perfeição, uma nuvem o cobre e a glória do Senhor o enche. Desta se escreve no Evangelho de hoje: E uma nuvem resplandecente os envolveu. A graça do Senhor, de fato, envolve o justo transfigurado no monte da luz, isto é, da vida santa, protegendo-o do ardor da prosperidade mundana, da chuva da concupiscência carnal, da tempestade da perseguição do demônio; e desta forma merecerá ouvir o cicio de tênue aura, a doçura de Deus Pai: Este é o meu Filho caríssimo; ouvi-o. Verdadeiramente é digno de se chamar Filho de Deus quem tomou consigo os três sobreditos companheiros, subiu ao monte, a si mesmo se transfigurou de figura do mundo em figura de Deus, teve por companheiros Moisés e Elias e mereceu ser envolvido por nuvem resplandecente.
Rogamos-te, portanto, Senhor Jesus, que nos faças subir deste vale de miséria ao monte duma vida santa, a fim de que impressos na figura da tua Paixão, fundados na mansidão da misericórdia e no zelo da justiça, mereçamos no dia do juízo ser envolvidos por nuvem transparente e ouvir a voz de gozo, alegria e exultação: Vinde, benditos de meu Pai, que vos abençoou no monte Tabor, recebei o reino que vos foi preparado desde o princípio do mundo. A este reino Ele mesmo se digne conduzir-nos. A Ele pertence a honra e glória, louvor e império, majestade e eternidade pelos séculos dos séculos. Diga todo espírito: Assim seja.
Fonte: SANTO ANTÔNIO DE LISBOA. Obras Completas. Sermões Dominicais e Festivos (Vol. I)
Introdução, tradução e notas por Henrique Pinto Rema.
Lello e Irmão Editores, Porto, 1987; págs 117-138.