Category: Meditações e sermões
[1] Deus não está compreendido no tempo: é eterno. Com razão se diz que Deus é eterno, pois carece de princípio e de fim, e também porque seu ser não se varia no passado ou no futuro. Nada se lhe subtrai, nada lhe pode advir de novo. Por isso disse a Moisés (Ex 3, 14): Sou aquele que sou, pois o ser dele não conhece nem passado nem futuro, mas encontra-se num perpetuo presente.
Esta e a seguinte Prática com tema avulso pregou o Autor
em ocasião que se lhe pediu falasse da Paixão de Cristo;
e por serem muitos discursos os repartiu em duas Práticas debaixo do mesmo tema.
II. MEDITAÇÃO
Quanto às virtudes, ou eficácia do augustíssimo nome de MARIA, a mesma Senhora, falando com Sta. Brígida, lhe disse que o seu nome quando se proferia devotamente alegrava os Anjos no Céu e rendiam louvor a Deus; e os da nossa guarda se chegavam mais para os justos, e no Purgatório as almas se aliviam, como o enfermo na cama quando alguém o consola; e os demônios fogem e deixam a alma que tinham nas unhas, como as aves de rapina fogem quando ouvem algum som que as espanta. O que parece quis o Céu confirmar com aquele caso maravilhoso que traz o Padre Cristovão da Vega. Criara certa donzela um pássaro daquela espécie que aprendem a falar o que lhes ensinam, e lhe ensinara a dizer: Ave MARIA; e ele repetia muitas vezes, com aplauso e gosto dos que ouviam. Sucedeu vir uma ave de rapina e levá-lo nas unhas; e o passarinho, repetiu o que costumava: Ave MARIA; e no mesmo ponto a ave de rapina, como se a ferissem com um pelouro, caiu morta em terra, e o passarinho tornou alegre às mãos de quem o ensinava e sustentava. Sem dúvida quis Deus mostrar quanto vale o nome poderoso de MARIA contra os repentinos assaltos do tentador; pois em sendo invocado da alma fiel e devota, logo a infernal ave de rapina solta a presa e desaparece.
§ I
Que o Criador, e as criaturas todas estejam continuamente lembrando ao homem, que há de morrer; e que possa o homem esquecer-se deste desengano! Muito é para admirar, e muito mais para sentir. Se estendermos os olhos da consideração por tudo o que abraça a redondeza do Céu e da terra, acharemos que em todo o tempo, e em toda a parte nos tem Deus postos manifestos avisos, e sinais da nossa morte. Mas também acharemos, que em todo o tempo, e em toda a parte tem o homem posto os sinais do esquecimento da sua morte. Que outra cousa é o movimento dessas estrelas, o ocaso dos planetas, a roda dos tempos, o combate dos elementos, o curso e recurso das águas, a diferença das idades, a mudança dos impérios, a instabilidade dos costumes, e leis, e a perpétua inconstância de todo o século; que outra coisa é, digo, senão uma viva e repetida lembrança que Deus nos faz da morte? E que outra cousa é também a ambição da glória do mundo, a estimação de seus gostos vãos, tantas esperanças, tantos temores sem fundamento; que cousa é todo o reino, ou escravidão do pecado, senão claros sinais do esquecimento que o homem tem da morte? Enfim, que Deus por sua boca diz: Caelum et terra transibunt. E o pecador por suas obras responde: Non movebor à generatione in generationem. Nos tempos de Noé naufragou o mundo em dous dilúvios: um de águas, e outro de pecado: Terra repleta est iniquitate. Multiplicate sunt aquae e omnia repleverunt in superficie terrae. Avisou Deus primeiro que mostrasse sua ira, e desprezaram os homens sua misericórdia, com tal excesso que Deus, sendo a mesma imutabilidade, mostrou pesar de haver criado o homem; e o homem, sendo a mesma mudança, não mostrou pesar de haver ofendido a Deus. Edificava pois Noé a arca, público desengano daquela destruição geral; e edificavam juntamente os pecadores palácios, e casas de prazer pelo desenho de sua vaidade. Cada prevenção de Noé é um aviso, cada golpe um protesto, tudo são cautelas para escapar da morte, e os pecadores tudo prevenções para lograr-se da vida. Entraram todos os animais naquele estreito refúgio de sua conservação (caso estupendo) e não entrou ninguém em si para tomar o acordo de segui-los. Justo foi o sentimento depois de tanta insensibilidade. Rasgam-se as cataratas do Céu, abrem-se as fontes do abismo, e soçobram às enchentes os mais altos montes – tudo perece. Pombinha solitária, que saistes a descobrir terra, que é o que vedes? Mudou de rosto a natureza, tudo está submergido debaixo de um mar sem praias. Oh quem dera também a nosso espírito asas de pomba! Voara sobre si mesma, e vira: vira bem como a morte entrando no mundo, foi outro dilúvio, que o alagou. Disse-o Esdras sabiamente: Factum est in unoquoque eorum, sicut Adae mori, sic his diluvium. Vira que o Sol também morre; que as estrelas também caem; que os gostos passam, como as idades, e a idade como as flores. Vira como a sucessão das gerações não é mais que um desejo baldado de imortalidade, e um despojo certo da morte. Vira que toda a duração temporal vai edificada sobre as cinzas do que já foi, e debaixo das ruinas do que há de ser; e que a natureza defectível caminha pelos mesmos passos do ser ao perecer. Vira que as águas deste dilúvio prevaleceram sobre os mais levantados montes do poder, da sabedoria, e da santidade: Aquae praevaluerunt nimis, não se livrando a comum sorte nem aquele escelso monte, donde foi cortada a pedra Cristo, MARIA Santíssima, com ter seus fundamentos sobre os montes santos; nem o mesmo Cristo monte de ambos os testamentos: Intraverunt aquae usque ad animam meam, disse o Senhor falando de si mesmo, e noutra parte: Omnes fluctus tuos induxisti super me. Mas também vira que o mesmo que vemos os homens parece que o não cremos, porque se a morte anda diante de nossos olhos, como é possível esquecer-se dela? Basta que tudo acaba; eu só o presumo de eterno! Basta que aquele geral estatuto, que o dedo de Deus escreveu até nas estrelas, é necessário que a Igreja o escreva no pó que somos. Memento homo, quia pulvis es? Esta é a minha admiração, e este deve ser nosso sentimento. E esta será também a matéria do presente Sermão: inquirir, e impugnar as causas que fazem tão esquecida a morte, sendo a morte tão lembrada. Memento homo quia pulvis es, et in pulverem revertéris.
Angeli eorum in Caelis semper vidents faciem Patris mei (Matth. 18)
I
Se aos Anjos festejam neste dia os homens, não sei eu melhor modo de os festejar do que aspirando os homens a ser Anjos. Não pareça temerária a pretensão; por quanto o que não pode a natureza, pode a graça. E para que os fundamentos desta verdade se entendam, ouçam a seguinte história, que se bem no modo de referir-se parecerá nova, na substância é a mais antiga que há no mundo.
HIPOCRISIA
É hipócrita o mercador que dê esmolas em público e leva usuras em oculto; é hipócrita a viúva que sai mui sisuda no gesto e no hábito, e dentro em casa vive como ela quer e Deus não quer; é hipócrita o sacerdote que, sendo pontual e miúdo nos ritos e cerimônias, é devasso nos costumes; é hipócrita o julgador que onde falta a esperança do interesse é rígido observador do direito; é hipócrita o prelado que diz que faz o seu ofício por zelo da honra e glória de Deus, não sendo senão pela honra e glória própria. Hipócrita é o que não emenda em si o que repreende nos outros; o que cala como humilde, não calando senão como ignorante;o que dá como liberal, não dando senão como avarento solicitador das suas pretensões; o que jejua como abstinente, não se abstendo senão como miserável.
Do Seráfico Padre S. Francisco.
Perguntado uma vez como podia tolerar os rigores do inverno com tão rota e pobre túnica, respondeu: Se a chama da celeste pátria nos forrara por dentro, facilmente suportaríamos maiores frios
Quaeretur peccatum illius, et non invenietur. (Sl 9, 10)
Há umas coisas que se buscam para se acharem, e há também outras, que para se não acharem é que se buscam. A mulher do Evangelho buscava a jóia, e o pastor buscava a ovelha, para achar um a ovelha e outro a jóia. Pelo contrário, aqueles exploradores, que foram em busca de Elias, quando desapareceu da terra, buscavam-no para o não acharem. Foi o caso: sendo arrebatado Elias em um carro de fogo, disseram alguns zelosos que queriam buscá-lo, porque poderia estar aí lançado em algum monte ou vale. Sabia Eliseu muito bem que Deus o tinha transportado para si, e disse-lhes: não há para que o buscar. Eles, pelo contrário, instaram tanto, até que lhes disse: buscai embora: Coegeruntque eum, donec acquiesceret, et diceret: Mittite (4 Rg 2). Partiram cinqüenta homens expeditos, cada um por diferente parte a procurar Elias — três dias andaram por cerros e campos e vales, sem descobrir rastro do que buscavam, até que, cansados, tornaram a Eliseu, o qual lhes disse com grande descanso: Não vos disse eu, que o não buscásseis? Numquid non dixi vobis: Nolite mittere? Pois se Eliseu estava certo que o não haviam de achar, porque ali havia especial mistério e obra de Deus, para que deixou estes pobres homens irem cansar-se debalde? Oh, que obrou como prudente! Se o não buscaram, a qualquer tempo haviam de dizer: Se nós o tivéssemos buscado, pode ser que o tivéssemos achado. Ah, sim. Pois buscai-o, embora: Mittite. Porque se não achareis a Elias, ao menos achareis o desengano. Porque há coisas que se buscam para o mesmo efeito de se não acharem.
Escreve o Padre Euzébio de Nieremberg, referindo-se a outros autores, o seguinte caso admirável. Um clérigo, devotíssimo de Nossa Senhora, considerando quanta seria a formosura daquela soberana Virgem, que excede incomparavelmente a todas as formosuras que Deus criou no Céu e na terra, se ascendeu em fervorosos desejos de a ver. E como os que nascem do amor santo e sincero tem seus atrevimentos e confianças pias, fez instante e continuada petição à mesma Senhora que o deixasse ver sua formosura, para mais a venerar e estimar. Foi-lhe revelado por um anjo, que não se podia ver tão grande Majestade sem que perdesse a vista, por quanto não era decente que olhos que viram a Senhora se empregassem em outros objetos da terra. O clérigo respondeu, como animoso e namorado, que não importava que ficasse cego, contanto que lograsse tal excessiva dita. Mas, advertindo depois que, perdendo a vista, ficava reduzido a pedir esmola de porta em porta para sustento da vida, lhe pareceu que seria conveniente abrir um só dos olhos, para lograr o favor e reservar outro para a sua necessidade. Assim se fez quando a Senhora se dignou aparecer-lhe: e vendo, ainda que só por um relâmpago, tanta graça e tão aprazível beleza; quis mui depressa abrir ambos os olhos, para melhor lográ-la. E já no mesmo instante, tinha a Virgem desaparecido. E o seu devoto, ainda que se achasse meio cego, dizia consigo, com grande mágoa e sentimento: Que teria importado se eu perdesse mil olhos, se mil tivesse? Ó, se durasse mais aquele favor! Assim vos ausentastes, ó Mãe amabilíssima; vi-vos, e não vos vi, ó beleza incrível: com este pinguinho de orvalho me acendestes mais a sede. Ó, já que não ceguei totalmente de ver, cegue eu agora de chorar! Mas vós, ó Sacratíssima Virgem, mais piedosa sois do que eu posso imaginar. Ora, Senhora, vinde ainda outra vez; vinde, ó formosíssima: eu de boa vontade quero cegar de todo; antes o terei por grande interesse. Estes, e outros semelhantes requerimentos fazia aquele devoto: e é tão pia e benigna a Senhora, que admitiu a petição, e a despachou melhoradamente. Porque a mesma luz excessiva, que no primeiro relâmpago o deslumbrou, e lhe cegou um dos olhos, no segundo lhe deixou a vista restituída e clara.
(De "Tratados Diversos", pág. 397-398)
Do P. Fr. Sebastião de Sta. Maria:
Este verdadeiro religioso, capucho da província de S. José, sendo uma vez repreendido pelo prelado com rigor, e sem culpa sua, ficou não somente quieto mas alegre. Perguntado pela causa disto, respondeu: Não quer, irmão, que esteja alegre um pobrezinho a quem Deus faz digno de padecer alguma coisa por seu amor?