Category: Meditações e sermões
D. José Pereira Alves
Conferência realizada em Buenos Aires
O nosso Brasil é uma pátria eucarística. Deus lhe concedeu essa predestinação histórica. A sua vocação cristã não foi apenas assinalada pela cruz erguida na terra virgem. Nas mãos de Frei Henrique de Coimbra, sob a verde umbela da mata rumorosa e selvagem, na primeira Missa da descoberta, a hóstia divina pairou como uma bandeira viva de Cristo proclamando a posse sagrada do território. Nosso Senhor armava na região desconhecida o seu pavilhão eucarístico. Alçava o pendão de sua realeza. O Brasil recebia o seu batismo na pia do altar. Desde aquele instante supremo seria o país do Coração Eucarístico, o Tabor do S. S. Sacramento.
A sua configuração geográfica seria quase a forma de um coração.
Cruzes e corações se encontrariam incrustados nos exemplares de sua flora e nas estrelas do céu. Deus o escolhera para ser o soldado do seu tabernáculo e arauto do Rei de Amor.
O culto da Eucaristia se irradiou por toda a nacionalidade com a aurora profética da primeira Missa.
O Cristo prometia a si mesmo operar uma nova transfiguração.
O Brasil se transfiguraria pela adoração e pelo amor da Hóstia Santa numa apoteose perene ao Cristo, Rei das nações que Ele recebeu em herança. Estão aí presentes em toda a sua visibilidade histórica os documentos desta fé eucarística que produziu, em nossa terra e sociedade, o milagre de uma unidade espiritual que serve de base indestrutível à unidade geográfica, racial e social de todo o nosso imenso país.
São os monumentos, as igrejas eretas desde o período colonial para a glória da Eucaristia. Há capitais, como Recife, em que as matrizes primeiras foram dedicadas ao S. S. Sacramento. Nas menores paróquias eram reservadas capelas especiais e mais ricas, as capelas do Santíssimo. O ouro, a prata, pedras preciosas enriquecem e constelam cálices, ostensórios, sacrários, altares, candelabros, lampadários-trabalhos riquíssimos de ourivesaria de talha, estatuária-primores de uma velha arte, saturada de inspiração religiosa e de piedade eucarística.
As belas artes se encontraram em piedoso rendez-vous para perpetuarem, através do tempo, a imortalidade da devoção nacional ao Deus velado no silêncio augusto da vida eucarística.
Em palanquins dourados ia o Viático, escoltado e seguido de multidão devota, aos moribundos ou sob umbelas vermelhas, o sacerdote a pé ou a cavalo, conduzia o Pai Nosso, como o povo ainda chama com ternura, ao Senhor, pelas fazendas, sítios agrestes, lugares rurais.
As festas do S. S. Sacramento sempre foram no Brasil custeadas por inúmeras confrarias e irmandades e pelo povo, festas excepcionais pelo esplendor do culto, pela afluência extraordinária, pelas procissões esplêndidas e triunfais, sempre coroadas por soleníssimo Te Deum.
E tão tradicionais o foram que municipalidades, como a Edilidade de S. Salvador da Baia, conservaram como uma honra celebrar com pompa, às expensas públicas, as solenidades do Corpo de Deus, mesmo depois da separação da Igreja do Estado. Tanto é verdade que a Nação só a contragosto se via oficialmente longe do altar!
Todas essas manifestações eloquentes do culto externo eram e ainda são expressões altissonantes do sentimento profundo dos brasileiros em relação à Sagrada Eucaristia.
Com a devoção à Virgem Santíssima da Conceição freme no sangue, na alma da raça, o amor crescente ao S. S. Sacramento, herança dos mártires.
Para citarmos apenas uma lembrança dos tempos da colônia, evoquemos tão somente o sangue do horrível morticínio de 3 de outubro de 1645 em Urussú, Estado do Rio Grande do Norte, em que os heróis da fé no Senhor Sacramentado eram trucidados e morriam gritando: “Louvado seja o S. S. Sacramento! ” Crônicas antigas nos falam da música celeste dos aromas do incenso e da conservação maravilhosa dos corpos dos cristãos, vítimas imoladas pelo furor herético e pagão, sementes eucarísticas de uma grande cristandade, consagrada ao Divino Coração Eucarístico.
Regada por um sangue tão generoso, cultivada com toda a solicitude pela ação missionária de Portugal bandeirante e católico, a árvore nacional não podia deixar de crescer, frondejar e produzir os mais abundantes frutos de vida eucarística, transformando o Brasil, como é hoje, um imenso altar do Coração Eucarístico.
A todas aquelas aparatosas manifestações do culto eucarístico de que tivemos ocasião de evocar, correspondiam já desde a época colonial o espírito de adoração eucarística, a oração do tabernáculo, a ascensão de almas, vítimas de amor. Já em 1750, um filho do nordeste brasileiro, o alagoano Felix da Costa, varão de grandes virtudes, fundava o Santuário Eucarístico de Macaúbas, hoje na Arquidiocese de Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais, recolhimento de religiosas clausuradas, consagradas à adoração do S. S. Sacramento, nesse laus perene brasileiro que é uma glória secular da nossa vida católica. É aí que o Cristo Redentor e Salvador, adorado e amado por almas virgens, simples e abrasadas de amor, recebia o beijo silencioso e a súplica incessante da alma cristianíssima da Pátria.
Desse cimo espiritual desceria a Benção eucarística da renovação social da nossa terra como uma aurora das apoteoses nacionais ao S. S. Sacramento.
Com o despertar religioso provocado pelo grito libertador da seráfica e heroica figura de D. Frei Vital Maria de Oliveira, com o rejuvenescimento das ordens religiosas e dos seminários e renascimento da vida paroquial, a organização da catequese infantil e a fundação de associações católicas, imunes da contaminação maçônica, a vida eucarística nacional começou a tomar um desenvolvimento prodigioso que se tornou universal e profundo em todo o país, graças especialmente à instituição providencial do Apostolado da Oração, que popularizou e intensificou com a Missa da primeiras sextas-feiras, a adoração solene e as comunhões reparadoras, à Devoção ao Sagrado Coração de Jesus e deu a todas as suas festas um cunho altamente eucarístico. O povo brasileiro, em décadas sucessivas, ficou saturado de amor pelo Coração Divino que nos deu o presente supremo da Eucaristia.
Pois bem, essa saturação eucarística, ao impulso vigoroso da hierarquia, guiada por esse bispo providencial — o Bispo da Eucaristia —, como o chama o povo, que é o nosso querido Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, essa saturação de amor transbordou na vida pública e social do Brasil, como uma torrente restauradora da consciência, mesmo política, da nossa pátria cristã. Os grandes Congressos Eucarísticos, como o de São Paulo em 1915, o inesquecível Congresso Nacional do Centenário, em 1922, e o recente e extraordinário Congresso Eucarístico Nacional de S. Salvador da Bahia, promovido com enorme brilho pelo Exmo., Primaz do Brasil e presidido pelo Eminentíssimo Legado Pontifício, o Sr. Cardeal Dom Sebastião Leme, tem sido no Brasil verdadeiros “pentecostes” de graças e retumbantes e profundos plebiscitos de amor ao Deus escondido, à Hóstia Divina dos nossos altares.
As semanas eucarísticas se sucedem em todas as dioceses com uma intensa repercussão espiritual. Hoje, pode dizer-se que não há solenidade, semana católica ou congresso que não culmine numa afirmação de fé na Eucaristia.
Esse movimento ascensional para o sacrário arrastou e arrasta multidões nos retiros, nas missões populares, é a alma das organizações paroquiais e se constitui sangue de toda a circulação religiosa brasileira.
As Horas Santas são hoje ansiosamente frequentadas pelo povo nas mais modestas paróquias do interior e, em muitos lugares, inúmeras velas, símbolos de favores alcançados estrelam as noites eucarísticas.
As classes superiores foram também dominadas pelo Cristo do tabernáculo. Nas capitais e cidades importantes, sobretudo na metrópole do Rio de Janeiro, num crescente edificante, centenas de intelectuais, homens de cultura geral e especializada, professores eminentes e estudantes das Escolas Superiores se aproximam da mesa da Santa Comunhão: é a Páscoa da inteligência.
As classes armadas, em verdadeira parada de fé, depõem cada ano suas espadas aos pés do altar do Cordeiro e em linhas de paz e de amor bebem a força, a coragem e o sacrifício no cálice eucarístico da redenção.
Essas páscoas benditas se renovam em vários setores da vida social, da vida brasileira. É um movimento consolador.
S. Eminência, o Sr. Cardeal D. Sebastião Leme pondo uma cúpula monumental sobre estas colunas erguidas pelo espírito nacional criou a corte suprema do Rei do amor: A Adoração Perpétua Nacional, no templo de Santana. E já hoje na Bahia e em São Paulo se instalam outras cortes perpétuas, em que é adorado e servido o Divino Senhor dos corações.
Diante desse panorama eucarístico não há senão exclamar: Cristo reina na sociedade brasileira pela Eucaristia.
A Eucaristia é a chave do nosso progresso na hierarquia, pela multiplicação rápida de nossas dioceses e pelo esplendor e fecundidade de nosso cardinalato, cuja púrpura é o cérebro de nossa irradiação espiritual, e nossa ação católica é o segredo de nossa expansão de vida interior e sobrenatural, não só em nossas comunidades religiosas, seminários e colégios, mas na floração exuberante de nossos grupos católicos na rede, hoje, tão alargada de nossas associações e obras de interesse espiritual, na coordenação de todos os valores da Santa Igreja no Brasil. É ela ainda que anima, encoraja e informa o esforço de tantos católicos que pelejam pelo Reino de Cristo com as armas da luz e da inteligência, da palavra e da pena, da ação cultural e do rádio.
Na sua tese recente sobre LES RENOUVEAU RELIGIEUX D’APRÉS LE ROMAN FRANÇAIS, Mme. Elisabete M. Frazer oferece uma contribuição importante ao estudo desse fenômeno contemporâneo que é o ressurgimento católico da mentalidade cultural.
Já hoje a Religião não é apenas considerada como uma organização social admirável, uma força de disciplina humana. Ela surge no romance, na literatura, com um aspecto do mistério e do sobrenatural.
A guerra fez a humanidade pensar no além diante das ruínas acumuladas nessa horrível tragédia da História.
Esse renascimento mundial do pensamento religioso não podia deixar de ter extensa repercussão na sociedade brasileira. Encontrou felizmente o movimento católico desencadeado pela Igreja nas massas e nas elites sob a forma providencial da ação eucarística no indivíduo, na família, nos grupos organizados e nas multidões pelas grandiosas manifestações de amor a Nosso Senhor Jesus Cristo no S. S. Sacramento.
Os homens católicos de pensamento, a mocidade católica que estuda e os expoentes de várias classes sociais são hoje sentinelas do Sacrário e apóstolos da Realeza Eucarística de Jesus.
Foi assim que se preparou esse magnífico estado d’alma que nos permitiu a vitória apolítica, consagrando a Constituição de 16 de julho, arejada de espírito cristão, que pôs a sua confiança em Deus, nos deu o Ensino Religioso, o Matrimônio indissolúvel, a assistência às Forças Armadas, o serviço militar eclesiástico sob a forma hospitalar, e criou no Direito Internacional o princípio novo da colaboração da Igreja e do Estado, apesar da separação; em suma, consagrou as aspirações cristãs da Liga Eleitoral Católica, constituída pelo Episcopado Nacional com um caráter supra e extra partidário, visando apenas o Reinado Social do Rei do Amor, na pátria brasileira.
Cristo reina e reinará no Brasil.
Cumpre-nos, a nós, soldados de Cristo, defender por todas as formas da Ação Católica, conservar o patrimônio eucarístico da pátria pela educação eucarística da nossa infância no lar, no templo, na escola, pela formação eucarística de nossa mocidade, pela penetração eucarística cada vez mais profunda da mentalidade nacional.
No obelisco de São Pedro se leem estas esplêndidas palavras de Sisto V: Cristus vincit, regnat, imperat, ab omni malo plebem suam defendat.
Já não será nos granitos do Corcovado, mas no Coração vivo da Pátria Eucaristica que escreveremos aquelas palavras: Cristo vence, reina e impera, defende de todo o mal o seu Brasil.
Desta gloriosa e hospitaleira Argentina, Grande Dama-Nobre de Cristo, transformada nestes dias magníficos na Metrópole Eucarística da Cristandade, no Ostensório do mundo, voltaremos incendidos da Divina Caridade, com a bênção maternal da Virgem de Lujan, Padroeira do Congresso, e apaixonados pela salvação de nossa pátria, iremos realizar no Brasil os votos paternais do grande pontífice Pio XI, expressos no último telegrama ao Presidente Justo: conseguir que o Evangelho de Cristo seja a inspiração na vida de todos os povos de maneira que todos possam gozar dos benefícios da paz e da Civilização cristã.
Dom José Pereira Alves - Discursos e Conferências, Imprensa Nacional 1948.
“O meu preceito é este: que vos ameis uns aos outros como eu vos amei. Não há amor maior que dar a própria vida pelos seus amigos. Vós sois meus amigos se fizerdes o que eu vos mando” (Jo 15,12-14).
Nosso Senhor convida seus discípulos a entregar suas vidas a seu amigo. Ele, claramente, ensina que não há amor maior que esse. Seguindo Cristo crucificado, o sacrifício da vida inteira de uma pessoa por amor de Deus, nosso maior amigo, é a maneira mais perfeita de obedecer a Deus. Há muitas maneiras através das quais um homem ou mulher pode aceitar esse mandamento divino da caridade. A vida matrimonial pede, em algum grau, que os esposos sacrifiquem suas vidas por seus filhos e pelo cônjuge. Muitos vivem uma vida celibatária em continência perfeita no mundo, sacrificando suas vidas por alguma obra de caridade. Os soldados também, de uma maneira especial, sacrificam suas vidas pelo seu país. Porém, duas das maneiras mais perfeitas de “entregar sua vida” ao próximo são a vida religiosa enclausurada e a vida de um missionário. Esses dois estados de vida, em essência, construíram a Cristandade.
O missionário edifica a Cristandade de dentro para fora. Da ordem espiritual das almas advém a ordem necessária para o avanço material da sociedade. O verdadeiro objetivo de toda a atividade missionária é a santificação das almas. Apenas após estabelecer a prática geral da virtude, o missionário pode começar a ver os benefícios materiais da sociedade. Se o canibal não parou de comer seu próximo, ou se o bárbaro não parou de guerrear e pilhar os inocentes, não pode haver nenhuma harmonia real ou qualquer tipo de estrutura na sociedade. O pecado e o vício, que são frutos do amor-próprio desordenado, são os elementos mais poderosos de autodestruição em qualquer sociedade. A alma pagã deve, em primeiro lugar, reconhecer que Deus tem o direito de pedir a ele grandes sacrifícios na sua vida pessoal. Apenas então ele será capaz de pensar em seu próximo caridosamente.
É aqui que a vida contemplativa vem em auxílio do missionário. Nenhum ser humano pode entrar no coração do homem. A vida interior de uma alma pertence, exclusivamente, a Deus, nosso Criador. Pelo sacrifício de sua vida inteira, o religioso impetra a Deus pela salvação das almas. Através das orações e dos sacrifícios dos religiosos, Deus adentra a esterilidade da terra inculta das almas e dá-lhes sua graça, usando o missionário como seu instrumento. O missionário não pode adentrar a alma de seu fiel, tampouco pode o contemplativo, mas Deus, como Mestre daquela alma, tem direito de entrada.
Em 1985, Dom Marcel Lefebvre abençoou a clausura das irmãs carmelitas nos Estados Unidos. Em seu sermão, ele explicou a vida de um mosteiro carmelita: “O Carmelo é uma casa de sacrifício e oração”. A casa ilustra a vida comum dos religiosos contemplativos vivendo na “casa” de sua comunidade. O sacrifício de suas vidas inteiras é derramado ao pé da Cruz em união ao sacrifício de Nosso Senhor. Suas mortificações purificam não apenas as suas almas, mas as dos seus próximos. Suas orações são oferecidas pela glória de Deus e pela salvação das almas. Elas unem-se, intimamente, às orações dos padres missionários, quase compartilhando da oração do Pai mencionada pelo profeta Joel: “Chorem os sacerdotes, ministros do Senhor, postos entre o vestíbulo e o altar, e digam: Perdoa, Senhor, perdoa ao teu povo, e não deixes cair a tua herança em opróbrio, de sorte que as nações a dominem”
O Reino de Deus funda-se sobre esse espírito, sejamos nós leigos, religiosos ou missionários. Infelizmente, o mundo moderno, construiu a “Cidade dos homens decaídos” ao negar esses valores. A família moderna pode ter uma casa confortável como moradia, mas eles, frequentemente, não têm um lar familiar. A ideia do sacrifício foi eliminada de suas confortáveis vidas, nas quais o prazer é o único objetivo real de sua existência. A oração foi substituída por reclamações, desespero e uma espécie de zombaria de Deus. Nossa sociedade moderna construiu uma civilização sobre as ruínas da noção católica de Cristandade. Estabelecemos uma morada confortável na qual os pais abortam seus filhos e praticam eutanásia para matar seus próprios pais, na qual a sensualidade do prazer pessoal é o ponto de referência para todas as decisões a serem tomadas, e na qual uma blasfêmia desesperadora zomba de nosso Criador. A “casa de sacrifício e oração” tornou-se um “abrigo de sensualidade de blasfêmia para os desabrigados”.
Nosso Senhor ensina que o Reino de Deus está dentro de nós. Ele também nos ordena buscar, primeiro, o Reino de Deus, e todas as outras coisas nos serão dadas. Para a reconstrução da Cristandade, devemos, primeiramente, estabelecer Nosso Senhor como Rei de nossas almas, tornar-nos seus amigos e entregar nossas vidas a Ele. Devemos viver continuamente na sua “casa de sacrifícios e orações”.
A Cristandade, ou o reino espiritual, é a real edificação da civilização. “Santificado seja o Vosso nome, venha a nós o Vosso Reino, seja feita Vossa vontade assim na terra como no Céu...”
(Revista The Angelus, Julho-Agosto de 2020. Tradução: Permanência)
Charles Journet
Na Quinta-feira Santa Jesus dissera a seus discípulos: “Tenho desejado, ansiosamente, comer convosco esta páscoa, antes de sofrer” . Como pôde desejar assim a páscoa na qual vão começar sua agonia e Paixão? A resposta secreta está contida numa só realidade: desde a sua entrada no mundo, Jesus está devorado e consumido pelo desejo de reparar a ofensa infinita feita a Deus pelo pecado, e abrir aos homens as fontes do perdão prometidas pelo profeta. A aproximação do suplício sangrento da Cruz, pelo qual todas as coisas na terra e nos céus vão-se reconciliar, traz-Lhe misterioso reconforto.
A sede do desejo que atormenta a Jesus é salientada por Santo Agostinho nos seus comentários sobre os salmos: “Desejaria o Cristo realmente comer quando procurava os frutos da figueira, para apanhá-los se os encontrasse?” . Desejaria Ele, realmente, beber, quando dizia à mulher de Samaria: Dai-me de beber? E quando disse, sobre a Cruz: Tenho sede? Do que teria o Cristo fome? Do que teria sede, senão de nossas boas obras?” . E ainda: “Que haverá de mais evidente que os homens devem ser atraídos pelo batismo para esse corpo da cidade de Jerusalém, da qual era imagem o povo de Israel... Até o fim, esse corpo estará sedento: caminha e tem sede. Acolhe multidões nele, jamais, porém cessará de ter sede. Daí provém a palavra de Jesus: Tenho sede, mulher, dá-me de beber. A Samaritana junto ao poço compreende que o Senhor está com vontade de beber e é saciada por Aquele que tem sede. Assim compreende a princípio, e Ele, então, a acolhe quando ela crê. E sobre a Cruz, Ele diz: Tenho sede! Não lhe deram, porém, aquilo do que tinha sede. Era deles que tinha sede, e deram-Lhe vinagre...”
Santo Tomás insistirá, ao mesmo tempo, sobre os dois sentidos, um carnal, outro espiritual, do Sitio: “Se Jesus diz: tenho sede! É antes de tudo, porque morre de morte verdadeira, não da morte de um fantasma. Ainda aqui aparece seu desejo ardente da salvação do gênero humano, conforme diz São Paulo: Deus, nosso Salvador, quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade. Jesus mesmo dissera: O Filho do homem veio procurar e salvar o que estava perdido. Ora, a veemência do desejo exprime-se, muitas vezes, pela sede, como diz o salmista: Minha alma tem sede do Deus vivo”.
Esses aspectos são especialmente preferidos por Santa Catarina de Siena. “É a fome e a sede do ansioso desejo que Jesus tinha de nossa salvação, escreve ela, que o faziam exclamar sobre o madeiro da Santa Cruz: Tenho sede! Como se dissesse: Tenho sede e desejo de vossa salvação, mais do que vos pode demonstrar o suplício corporal da sede. Sim, porque a sede do corpo é limitada, mas a sede do santo desejo não tem limites” . Em outra carta, explica que, se Jesus foi saturado de opróbrios no seu corpo, Ele é insaciável no desejo. Desde o momento da Encarnação, tomou sobre si a Cruz do desejo de fazer a vontade do Pai e de salvar o mundo. É uma cruz mais pesada do que qualquer outra dor corporal. E assim, quando se aproxima o Seu fim, na Ceia da quinta-feira santa, exulta em espírito: o sofrimento do sacrifício, desde então iminente, vai afastar o sofrimento do desejo; por ela, o desejo será atendido.
Como teria a Santa de Siena compreendido tão intensamente a sede de fazer a vontade do Pai e de salvar o mundo, que dilacerava Jesus na Cruz, se algo dessa chama não existisse nela para devorá-la? Sua carta n. XVI dirige-se a um importante prelado. Com a impetuosidade de seu desejo, fala-lhe dos apaixonados de Deus que, vendo a ofensa que Lhe é feita no mundo e a condenação das criaturas, chegam a perder o sentimento da própria vida. Não fogem dos sofrimentos, mas vão a seu encontro. Glorificam-se deles como São Paulo nas suas tribulações. Oh! Segui este Apóstolo, acrescenta Catarina com audácia. Abri os olhos. O lobo infernal atira-se sobre as ovelhas que pastam nos jardins da santa Igreja. Ninguém ousa arrancá-las de suas presas. Os pastores dormem no amor de si mesmos, na cupidez, na impureza. O orgulho embriaga-os a ponto de não verem que a graça os desertou. Amam-se a si mesmos e não a Deus. Fingem não ver o mal: calam-se e deixam-no crescer. “Ó Pai muito querido! Deste amor de vós mesmo, quero que sejais isento! Eu vos conjuro, fazei que a Verdade primeira não tenha que vos repreender um dia, dizendo: Maldito sejas tu, tu que te calaste!”.
De Maria da Encarnação temos o seguinte relato: sendo ainda ursulina no Convento de Tours, foi transportada, soerguida pelo espírito apostólico e viu a indigência das terras em estado de missão que se abriam diante dela e inflamavam-lhe o desejo: “Por uma certeza interior, via os demônios triunfarem sobre aquelas pobres almas que ele arrebatava do domínio de Jesus Cristo, nosso divino Mestre e soberano Senhor, que, entretanto, os havia resgatado com seu precioso Sangue. Diante da certeza do que via, fui tomada de tal zelo que, não me contendo mais, estreitei de encontro ao peito todas aquelas pobres almas, e apresentei-as ao Pai Eterno, dizendo-Lhe que já estava em tempo de fazer justiça em favor de meu Esposo. Lembrei-Lhe que Lhe prometera todas as nações por herança, e que além do mais, Ele satisfizera, pelo seu Sangue, todos os pecados dos homens... Que embora houvesse morrido por todos, nem todos viviam, como, por exemplo, aquelas almas que eu lhe apresentava e trazia sobre mim. Queria-as todas para Jesus Cristo ao qual, de direito, pertenciam” .
Santa Teresinha sentia seu ardor de salvar o mundo identificar-se com o da Igreja eterna: “Queria esclarecer as almas como faziam os profetas, os doutores. Gostaria de percorrer a terra, pregar vosso nome, e plantar sobre o solo infiel vossa Cruz gloriosa, ó meu Bem-Amado! Uma única missão, porém, não me bastaria: queria anunciar o Evangelho ao mesmo tempo em todas as partes do mundo e até mesmo nas ilhas mais distantes. Queria ser missionária, não somente durante alguns anos, mas gostaria de tê-lo sido desde a criação do mundo e continuá-lo a ser até a consumação dos séculos” .
Assim os santos, à imitação de Cristo, têm sede da salvação do mundo. O sofrimento redentor do Cristo na Cruz, que exteriormente podemos descrever com acerto, não mostra a sua veemência, suas terríveis exigências senão àqueles que, através dos tempos, consentem em perder-se nela, sem nada reservar para si mesmos. É o mistério da co-redenção que lhes abre as portas supremos do mistério da redenção.
Jesus ora pelo mundo inteiro, se por “mundo inteiro” compreendemos todas as criaturas humanas. Entrega-se por todas e cada uma delas. “Filhinhos meus, diz São João, eu vos escrevo estas coisas a fim de que não pequeis, mas se algum de vós pecar, temos por advogado, junto do Pai, Jesus Cristo, o justo. Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo” . Se Jesus envia seus discípulos por toda parte, é a fim de que o mundo creia que o Pai O enviou. É para que “todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” de que Ele é o único mediador entre Deus e os homens, “que se deu a Si mesmo em resgate para todos” . Todos aqueles que forem salvos, sê-lo-ão pela única oração redentora que nos foi dada: a oração de Jesus na Cruz.
Entretanto, Jesus não reza pelo mundo, quando “mundo” significa cidade do mal. Ele roga contra o mundo. Roga por todos os homens, contra o mundo que está neles, para arranca-los do mundo que neles está, e transferi-los integralmente para a cidade de Deus. Todavia, esta oração mesma de Jesus pode ser recusada. Resisto contra ela, fecho-lhe meu coração. O Amor que vem a mim, primeiramente no presépio, depois sobre a Cruz, posso rejeitá-lo. Eis o inferno. Que este possa ser finalmente preferido por muitos, é a suprema causa da indizível agonia do Salvador.
“Pensava em ti na minha agonia; derramei tais gotas de sangue por ti” . Teologicamente, essas palavras são verdadeiras. Na essência divina onde mergulhava a sua visão, Jesus abrangia num só olhar todo o desenrolar concreto da história do mundo. Via, em cada minuto da existência, todas as almas imortais pelas quais intercedia. Conhecia cada pecado, cada ofensa infinita feita ao Amor. Nossas infidelidades de hoje e de amanhã O feriram. Desolaram a sua agonia. Foi por elas que — conscientemente — Ele morreu. Uma que fosse..., e essa já reclamaria a redenção infinita. A agonia de Jesus é assim coextensiva a toda a tragédia humana. Toda a duração do tempo, todas as novas faltas e omissões estão contidas nas profundezas do único instante da Paixão redentora. Ora, se Jesus sofreu pelos pecados que ainda serão cometidos, e que virão até o fim do mundo, então, — e esta verdade é tremenda — sou eu que, pecando amanhã, te-lo-ei posto em agonia há dois mil anos. É um dos sentidos de outro pensamento de Pascal: “Jesus estará em agonia até o fim do mundo: não se pode dormir durante esse tempo”.
Referindo-se àqueles que experimentaram o dom de Deus e renegaram-no depois, a Epístola aos Hebreus, usando de uma palavra misteriosa, declara com autoridade “que eles crucificaram em si mesmos o Filho de Deus e O expõem à ignomínia” .
Nossos pecados de amanhã contribuíram para a agonia de Jesus. Em compensação, e isso é verdade, nossas fidelidades de amanhã te-lo-ão consolado. Pio XI assim se expressou, na Encíclica Miserentissimus Redemptor: “Se a previsão de nossas faltas deixava a alma de Cristo triste até a morte, como duvidar que a previsão de nossas reparações futuras não lhe proporcionava, desde aquele instante, alguma doçura? Não nos diz o Evangelho que sua tristeza e angústia puderam ser consoladas pela visita do Anjo? Aquele Coração muito santo, ferido incessantemente, pela ingratidão do pecado, temos que consolá-lo agora, e nós o podemos, de maneira misteriosa, mas verdadeira. Com razão pôde queixar-se o Cristo, na liturgia, pela boca do salmista, de ser abandonado pelos seus amigos: “Tu conheces o meu opróbrio, minha confusão e minha vergonha. A afronta partiu-me o coração. Esperei que alguém se condoesse de mim e não houve ninguém” .
(Transcrição parcial da obra “As sete palavras” de Charles Journet).
Hugo de São Vitor
Encontrei na Sagrada Escritura, Irmão, cinco septenários e, se me for possível, gostaria – como tu me pedes – de enumerá-los primeiramente um por um, distinguindo uns dos outros. Depois, comparando-os em detalhe, mostrar a correspondência que há entre eles.
I. INTRODUÇÃO
Em primeiro lugar são colocados os sete vícios: primeiro a soberba, segundo a inveja, terceiro a ira, quarto a tristeza, quinto a avareza, sexto a gula, sétimo a luxúria.
Em oposição a tais vícios estão postos os sete pedidos da oração dominical: primeiro o que nos faz pedir a Deus: “Santificado seja o vosso Nome”; segundo: “Venha a nós o vosso Reino”; terceiro: “Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu”; quarto: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”; quinto: “Perdoai as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores”; sexto: “Não nos deixeis cair em tentação”; sétimo: “Mas livrai-nos do mal”.
Em terceiro lugar seguem os sete dons do Espírito Santo. Primeiro o espírito de Temor do Senhor; segundo o espírito de Piedade; terceiro o espírito de Ciência; quarto o espírito de Força; quinto o espírito de Conselho; sexto o espírito de Inteligência; sétimo o espírito de Sabedoria.
Em seguida vêm em quarto lugar as sete virtudes. A primeira: Pobreza de espírito, que é a Humildade; segunda: Mansidão ou Benignidade; terceira: Compunção ou Dor; quarta: Fome de Justiça ou Bom Desejo; quinta: Misericórdia; sexta: Pureza de Coração; Sétima: Paz.
Finalmente, em quinto lugar estão dispostas as sete bem-aventuranças. A primeira: O Reino dos Céus; segunda: a posse da Terra dos vivos; terceira: a Consolação; quarta: Saciedade da justiça; quinta: Misericórdia; sexta: a Visão de Deus; sétima: a Filiação divina.
Distingue primeiro estes septenários e compreenderás que os vícios são como doenças que enfraquecem a alma, ou feridas do homem interior; que o homem é ele mesmo como um doente; que o médico é Deus, que os dons do Espírito Santo são o remédio; as virtudes são a saúde e que as bem-aventuranças são a alegria da felicidade.
II. OS SETE VÍCIOS
Há, pois, sete vícios capitais ou principais e é deles que nascem todos os males. São as fontes e abismos tenebrosos dos quais os rios da Babilônia têm suas águas, e correm por toda a terra, e repartem gota a gota a iniqüidade. É destes rios que o Salmista falou quando cantava ao povo fiel: “Junto dos rios de Babilônia, ai nos assentamos a chorar, lembrando-nos de Sião. Nos salgueiros daquela terra penduramos as nossas cítaras” Destes sete vícios devastadores, que corrompem toda a integridade da natureza e ao mesmo tempo produzem rebentos de todos os males, nós só falaremos na medida em que seja necessário para explicar o nosso presente tema.
São, pois, sete, dos quais três dentre eles despojam o homem; uma vez despojado o homem, é flagelado pelo quarto vício; uma vez flagelado o homem, é jogado no chão pelo quinto vício; uma vez jogado no chão o homem, é seduzido pelo sexto vício; uma vez seduzido, o sétimo vício submete o homem à escravidão. A soberba despoja o homem de Deus; a inveja o despoja do próximo; a ira o despoja de si mesmo; a tristeza flagela o homem assim despojado; a avareza o joga no chão; a gula seduz o caído; e a luxúria reduz à escravidão aquele que fora seduzido. Voltemos um pouco e expliquemos em ordem cada um desses vícios
O VÍCIO DA SOBERBA
Nós dissemos que a soberba despoja o homem de Deus. A soberba, com efeito, é o amor da própria excelência, quando a alma ama exclusivamente o bem que ela possui, ou seja, sem Aquele do qual o bem procede. Oh, pestífera soberba, que fazes? Por que convences o riacho de separar-se da fonte? Por que persuades o raio de afastar-se do sol? Senão para que um, cessando de ser alimentado pela fonte, seque; e o outro, no mesmo instante que se separa do princípio da luz, se torne tenebroso? Ambos, pois, cessando de receber aquilo que ainda não têm, perdem imediatamente aquilo mesmo que tinham. De fato, quando tu ensinas a amar o dom fora do Doador, fazes que aquele que recebeu parte do bem reivindique-o perversamente para si, perdendo o bem inteiro que reside no Doador. Não podemos possuir algo com proveito, se não o amamos n’Aquele pelo qual o temos, e como todo bem verdadeiramente procede de Deus, nenhum bem pode ser possuído com proveito fora de Deus. Mais ainda: perde-se até mesmo aquilo que se possui, se não é amado n’Aquele e com Aquele que nos fez possuir o bem.
O VÍCIO DA INVEJA
Acontece, pois, que aquele que só sabe amar o bem em si mesmo, vendo em outro um bem que ele não possui, é necessariamente atormentado, e tanto mais amargamente quanto não sabe amar Aquele em que reside o bem.
E assim é que a inveja sempre se segue à soberba. Porque aquele que não fixa o seu amor lá onde reside todo bem, quanto mais se vangloria perversamente do seu bem próprio tanto mais gravemente é atormentado pelo bem alheio. A sua altivez recebe, pois, com toda justiça sua própria pena: a inveja que ela mesma engendra. Dado que não quis amar o Bem comum a todos, é justo que se consuma pela inveja do bem alheio. Certamente o feliz êxito alheio não o queimaria, se possuísse Aquele no qual todos os bens residem. Nem mesmo lhe pareceria alheio o bem de outro, se soubesse amar o seu próprio bem lá onde possuiria, a um tempo, o seu bem e o bem do próximo. Mas, pelo contrário, quanto se eleva contra o seu Criador, nessa mesma medida cai por debaixo do próximo pela inveja. Quanto ali se elevou mentirosamente, aqui verdadeiramente é derrubado.
O VÍCIO DA IRA
Mas uma vez começado este processo de destruição não se pode detê-lo aqui. Tão logo a inveja nasce da soberba, ela mesma dá à luz a ira. A alma miserável já se enraivece da sua própria imperfeição, porque não soube alegrar-se, pela caridade, do bem alheio. E, assim, até mesmo aquilo, que tem, começa a desagradar-lhe, ao encontrar no outro o bem que ela não pode ter.
Aquele que poderia ter alcançado em Deus todos os bens pela caridade, perde pela inveja e pela ira o que tentava possuir fora de Deus: depois de ter perdido a Deus pelo orgulho, perde o próximo pela inveja e a si mesmo pela ira.
OS VÍCIOS DA TRISTEZA E DA AVAREZA
Tendo perdido tudo, não lhe resta nada onde a infeliz consciência possa alegrar-se, e ela volta-se contra si mesma pela tristeza. Não querendo piedosamente alegrar-se do bem alheio, é justo que seja cruciada pelo seu próprio mal. Depois que a soberba, a inveja e a ira roubaram o homem, logo em seguida a tristeza lhes segue para flagelar o homem desnudado. À tristeza lhe sucede a avareza, que expulsa o que fora flagelado, pois tendo perdido a alegria interior, é impelido a buscar consolo exteriormente.
OS VÍCIOS DA GULA E DA LUXÚRIA
Apresenta-se, então, a gula, que seduz o expulsado: este vício tenta em primeiro lugar e de modo muito próximo a alma que aspira aos bens exteriores, pois é por meio do próprio apetite natural que ela a convida aos excessos.
Finalmente sobrevém a luxuria, que violentamente reduz à escravidão aquele que fora seduzido. Porque uma vez que a carne foi inflamada pelos desregramentos, a alma amolecida e enfraquecida não consegue vencer o ardor da luxúria que a ataca. A alma torpemente submetida se vê escrava de uma crudelíssima tirania; e não teria meio de levantar-se dessa escravidão que lhe tem cativa se não recorresse e fosse escutada pela bondade do Salvador.
III. AS SETE PETIÇÕES DA ORAÇÃO DOMINICAL OPOSTAS AOS SETE VÍCIOS E SUA RELAÇÃO COM OS DONS DO ESPÍRITO SANTO, COM AS VIRTUDES E COM AS BEATITUDES
É por isso que se seguem sete petições opostas aos sete vícios: por meio delas imploramos o socorro d’Aquele que nos ensinou a rezar e que nos prometeu, se rezarmos, dar-nos seu bom Espírito para curar nossas feridas e desatar o jugo de nosso cativeiro. Mas, antes de explicar essas petições, queremos mostrar, por outra comparação, a extensão do dano que engendram em nós os ditos vícios: assim, mais perigosa mostrar-se-á a apatia e mais se imporá a necessidade do remédio.
O coração infla-se pela soberba; torna-se árido pela inveja; racha-se pela ira; é esmagado e como que feito pó pela tristeza; dispersa-se pela avareza; é infectado e umedecido pela gula; é pisoteado e reduzido ao estado de lama pela luxúria. Enfim, o infeliz está em condições de dizer: “estou atolado num lodo profundo, e não encontro onde pôr pé; cheguei a um sítio de águas profundas, e já as ondas me cobrem” . A alma, uma vez atolada nessa lama das profundezas e mergulhada na lama da imundice e da impureza, não pode em absoluto puxar-se para fora, a menos que clame ao Salvador e lhe peça socorro. Daí as palavras do Salmista: “Esperei, esperei no Senhor, e Ele inclinou-se para mim e ouviu o meu clamor. Tirou-me da fossa da perdição, do pântano lodoso, e assentou os meus pés sobre a pedra” . Eis porque ensinou-nos a rezar, para que todo nosso bem venha d'Ele, para que nós compreendêssemos que o que nós pedimos, bem como o que nós recebemos em resposta ao nosso pedido, é um dom seu, não algo devido que merecemos.
A primeira petição se opõe, portanto, à soberba. Ela faz-nos dizer a Deus: “Santificado seja o vosso nome”. Pedimos que Ele nos conceda temer e venerar seu nome, para que lhe sejamos submetidos pela humildade, já que pela soberba mostramo-nos rebeldes e obstinados. Por essa petição é dado o dom do Espírito Santo de temor a Deus, para que esse espírito, vindo ao coração, crie nele a virtude da humildade, e para que esta virtude cure a doença da soberba: assim o homem humilde poderá chegar ao Reino dos Céus, que o anjo orgulhoso perdeu por sua presunção.
A segunda petição opõe-se à inveja. Ela faz-nos dizer “Venha a nós o vosso reino”. Ora, o reino de Deus é a salvação dos homens, pois se diz que Deus reina sobre os homens quando os homens, de sua parte, são submissos a Deus, tanto agora, unindo-se a Ele pela fé, quanto depois, permanecendo unidos a Ele pela visão. Assim, aquele que pede que venha o reino de Deus busca certamente a salvação de todos os homens; por isso, pedindo a salvação comum de todos, mostra sua reprovação ao vício da inveja. Por essa petição é dado o espírito de piedade, para que esse espírito, vindo ao coração, acenda a benignidade; assim o homem chegará ele mesmo à posse da herança eterna, à qual ele deseja ver chegar o próximo.
A terceira petição opõe-se à ira. Ela faz-nos dizer: “Seja feita vossa vontade assim na terra como no céu”. Aquele que diz “seja feita a vossa vontade” não busca a querela, mas indica que lhe agrada tudo o que a vontade de Deus decide sobre ele e sobre o próximo segundo seu bel-prazer. Por essa petição é dado o espírito de ciência, para que esse espírito, vindo ao coração, instrua-o e coloque-o numa salutar compunção: assim o homem saberá que o mal que ele sofre resulta de suas próprias faltas, e que o bem que ele pode ter provém da misericórdia de Deus; ele aprenderá por esse meio, seja quanto aos males que ele suporta, seja quanto aos bens dos quais é privado, a não se irritar contra o Criador, mas a mostrar-se paciente em tudo. É maravilhoso como, pela compunção do coração, que, sob a ação do espírito de ciência, nasce interiormente da humildade, a ira e o tumulto da alma pacificam-se. Ao contrário, “a ira matou o insensato” , porque, atribulado e cego pelo vício da impaciência no tempo da adversidade, não reconhece nem que mereceu o mal que enfrenta, nem que recebeu por graça o bem que possui. Esta virtude, a compunção ou dor, é recompensada pela consolação: assim aquele que, por livre vontade, aflige-se e geme cá embaixo diante de Deus merece encontrar lá no alto a verdadeira alegria e felicidade.
A quarta petição opõe-se à tristeza. Ela faz-nos dizer “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”. A tristeza é o desgosto e o luto sentidos pela alma quando, amolecida, por assim dizer, e amargurada por seu vício, ela não aspira mais aos bens interiores e que, uma vez que todo seu vigor foi morto, nenhum desejo de restauração espiritual lhe sorri mais. Por conseguinte, para curar esse vício, é preciso que supliquemos ao Senhor misericordioso que apresente à alma apática e desgostosa o alimento que a recomporá interiormente: ausente esse alimento, a alma ignora o apetite por ele; presente, seu sabor relembra-a da realidade e ela põe-se a amá-lo. Por essa petição é, portanto, dado o espírito de força, para que esse espírito recomponha a alma que sucumbe: assim, uma vez retomada a virtude de seu vigor passado, ela encontra forças para sair de seu desgosto e pôr-se a desejar a suavidade interior. O espírito de força cria, portanto, no coração a fome de justiça: poderosamente iluminada cá embaixo pelo desejo nascido da piedade, ela obtém lá no alto como recompensa a saciedade perfeita da beatitude.
A quinta petição opõe-se à avareza. Ela faz-nos dizer “Perdoai as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores”. É justo, com efeito, que aquele que não se mostrou avaro na reivindicação do que lhe é devido não duvide da exoneração de sua dívida. Por esse meio, ao mesmo tempo em que somos libertados do murmúrio da avareza pela graça de Deus, a condição posta à nossa salvação instrui-nos sobre a maneira segundo a qual nossas dívidas são perdoadas. Por essa petição é, portanto, dado o espírito de conselho, para que esse espírito nos ensine a exercer de bom coração neste mundo a misericórdia para com aqueles que pecam contra nós: assim, no mundo futuro, quando daremos conta de nossos próprios pecados, mereceremos encontrar misericórdia.
A sexta petição opõe-se à gula. Ela faz-nos dizer “Não nos deixeis cair em tentação” . Essa tentação é aquela que, lisonjeando a carne, esforça-se frequentemente, por meio do apetite natural, em arrastar-nos aos excessos. Ela faz deslizar inadvertidamente à voluptuosidade, embora abertamente nos seduza pelo pretexto da necessidade. Mas, na verdade, nós não somos em absoluto induzidos nessa tentação se nos aplicamos a dar à natureza a medida do necessário, sempre nos lembrando de manter o apetite prevenido contra a lisonja da voluptuosidade. Para que sejamos capazes de agir assim, é-nos dado, por nossa petição, o espírito de inteligência, para que o alimento interior da palavra de Deus contenha o apetite exterior, e que a alma, fortificada pela nutrição espiritual, não se deixe abater pela fome corporal nem vencer pela voluptuosidade carnal. É por essa razão que o Senhor mesmo, quando teve fome, e quando seu tentador sugeriu-lhe enganosamente que se restaurasse com um pão exterior, respondeu-lhe: “Nem só de pão vive o homem, mas de toda palavra que provém da boca de Deus” . Assim, Ele mostrava claramente que, quando a alma é interiormente restaurada por este pão [espiritual], ela não faz muito caso da fome corporal, que, exteriormente, faz com que ela sofra por um momento. Para lutar contra a gula é dado, portanto, o espírito de inteligência, que, vindo ao coração, limpa-o e purifica-o; pelo conhecimento da palavra de Deus, como um colírio, ele cura o olho interior e o torna tão luminoso e claro que se torna penetrante ao ponto de contemplar até a própria claridade da divindade. Ao vício da gula opõe-se, assim, como remédio, o espírito de inteligência; deste, nasce a pureza do coração; e a pureza do coração é um penhor da visão de Deus, pelo que está escrito: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” .
A sétima petição opõe-se à luxúria. Ela faz-nos dizer “Livrai-nos do mal”. Certamente, é normal que o escravo peça sua liberdade. Por essa petição é dado o espírito de sabedoria, apto a devolver ao cativo a liberdade perdida: com a ajuda da graça, ele poderá – o que lhe seria impossível apenas por suas próprias forças – escapar ao jugo de uma injusta dominação. De fato, “sabedoria” (sapientia) vem de “sabor” (sapor): a alma, tocada pelo gosto da doçura interior, recolhe-se toda no interior por efeito do desejo e não se dissipa mais desordenadamente no exterior pela voluptuosidade da carne, porque possui interiormente tudo aquilo em que se deleita. É, portanto, a justo título que, à voluptuosidade exterior, vem opor-se a doçura interior; assim, quanto mais tivermos provado e adquirido gosto e prazer nesta, mais livremente e liberalmente desprezaremos aquela. Assim, o espírito de sabedoria, ao tocar o coração com sua doçura, ao mesmo tempo modera exteriormente o ardor da concupiscência e, uma vez anestesiada a concupiscência, cria interiormente a paz: desde então, enquanto a alma inteira recolhe-se na alegria interior, o homem encontra-se plena e perfeitamente restaurado à imagem de Deus, pelo que está escrito: “Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filho de Deus” .
Eis aí, irmão. Satisfiz a teu pedido, não como deveria, mas como, no momento, pude. Recebe o humilde presente que pediste sobre os cinco septenários e, quando lhe lançares os olhos, lembra-te de mim. Que a graça de Deus esteja contigo. Amém.
(Tradução: Permanência. Six opuscules spirituels, les éditions du cerf, paris, 1969.)
Pe. Manuel Bernardes
Perguntado S. Francisco de Assis porque se negava ao necessário para a sustentação da vida humana, respondeu:
— Dificultosa coisa é satisfazer à necessidade do corpo e não obedecer à lei dos apetites.
É muito dificultoso discernir quais são os precisos limites por onde confrontam estes dois vizinhos: necessidade e apetite; porque ambos se fundam na natureza, e o mesmo ramo que leva uns frutos bons ou indiferentes leva outros ruins e venenosos. Quem há de definir ao justo: “Até aqui é necessidade de comer, ou beber, ou dormir, ou conversar, daqui por diante já é vício”?
No Prado Espiritual se conta de um virtuoso monge a quem o seu abade mandou guardar os porcos do convento, que andavam pastando debaixo das azinheiras da mesma casa. Alguns vizinhos, cujas fazendas do mesmo gênero confinavam com aquela, instigados de inveja e malícia, se punham à espreita para, tanto que algum daqueles animais saísse fora dos seus limites, toma-lo por perdido e mata-lo.
Andando os dias, desejou o monge pastor subir ao seu convento para tomar alguma refeição de espírito com os santos exercícios que costumava. Não tendo, porém, quem por entretanto ficasse de guarda, e confiado na virtude divina, chamou a toda a grei e lhe intimou, da parte do Senhor, que até ele tornar nenhum deles passasse de tal marco, que era os das próprias terras.
Caso maravilhoso!
Tao pontuais obedeceram todos que, em chegando ali em busca da lande, nem um só pé punham fora, e logo voltavam para dentro. Até que os vizinhos, enfadados da espera, entraram, e às vergastadas os procuravam desencaminhar para fora; porém, por muita instância que nisto puseram, nunca puderam conseguir; porque, tanto que os perseguidos animais chegavam ao termo sinalado pelo monge, como se topassem com um muro de pedra e cal, tornavam a fugir para dentro. Reconhecida, enfim a maravilha, pediram aqueles homens perdão do seu depravado intento, contando o caso.
E, aplicando eu este ao nosso, digo que, se os brutos dos nossos apetites foram tais que lhes pudéramos impor semelhante preceito: “Até aqui chegai, até aqui não” — fácil fora largar à natureza o que lhe compete, sem perigo de se desmandar. Porém este mau gado anda solto à bolota, sem distinguir a que é sua da que é alheia; e, quanto mais engorda, mais grunhe. E não se divisam bem os marcos destes dois terrenos. Logo, é conveniente encurtar o da necessidade para que se não confunda com o do apetite.
A esta dificuldade de distinguir o necessário do supérfluo acresce outra, que é de negar o supérfluo e ilícito, se nos não negarmos também em parte no lícito e necessário. Usemos para o declarar de outros símiles:
Quero endireitar uma vara que está torcida. Bastará porventura trazê-la com moderada força até aquele ponto em que fique direita? Não, por certo; senão que é necessário repuxar para a parte contrária, como se a minha tenção fosse, não tirar-lhe o torcimento, senão trocá-lo por outro. Quero passar um rio caudaloso de ribeira a ribeira. Bastará meter a proa em direitura da paragem onde pretendo desembarcar? Não, por certo; senão que é necessário metê-la muito mais arriba, porque a força da corrente me fará insensivelmente vir descaindo.
Pois, assim também para uma pessoa endireitar as suas más inclinações, não basta que procure pôr a natureza em uma mediania razoável, senão que é necessário puxar para o extremo contrário; e, para vir sair com a mortificação ou negação do ilícito, é necessário emproar mais alto, abraçando a negação do lícito. Para que o apetite não peça o almoço que era supérfluo, é bem negar à natureza a ceia que era necessária. Por que o apetite não cobice o alheio, que é ilícito, é bem negar à natureza ajuntar e guarda o próprio, que é lícito.
De semelhante indústria usava São Pedro de Alcântara, que, quando o corpo lhe pedia mais roupa, porque estava frio, tirava o manto e ficava mais frio; e, quando depois lho restituía, já ficava satisfeito e contente com aquilo mesmo que dantes lhe não bastava...
(Nova Floresta, Apetites)
Sermo Geminet terra:
que se cubra de verdura a terra!
Breve preâmbulo
Produza a terra erva verde, e que dê semente, e árvores frutíferas, que dêem fruto segundo sua espécie, cuja semente esteja nelas mesmas (para se reproduzirem) sobre a terra. E assim se fez.(Gn. 1, 11). Declara Isaías sobre o Cristo: Quem falará de sua geração? (Is. 53, 1) De certo modo depende a geração do Cristo da geração de Maria (falo da geração temporal do Cristo). Ora para se descer a detalhes da geração de Maria, não basta a inteligência humana. Invoquemos pois a graça do Espírito Santo, por que se santificou Maria, e imploremos ao Divino Espírito que me conceda dizer algo de valor.
Primeira Parte
[Maria, remédio enquanto erva verdejante]
É regra da divina providência diligenciar por cada ser, segundo sua conveniência. Por isso dispõe ao homem, porque é humano, remédio tirado da terra. Assim conforme lemos em Sirácida: O Altíssimo é quem produziu da terra o medicamento (Eclo. 38, 4). Oferecem-se dois remédios tirados da terra: a erva verdejante e as árvores frutíferas. A erva verdejante é a bem-aventurada Virgem, cuja festa celebra a Igreja por esses dias. Com efeito, ela se chama erva pela humildade, verdejante pela virgindade, e frutífera pela fecundidade. Considerando as propriedades da erva, podemos apanhar três características: a erva é mirrada em tamanho, suave ao tato, benfazeja em virtude.
Em primeiro lugar, digo que a erva é mirrada em tamanho. Se comparássemos a erva à árvore, veríamos que ela pouco cresce em altura, contrariamente à árvore, que se avulta para cima. Ora a altura significa orgulho. Assim aquilo do Salmo: Vi o ímpio arrogante, e elevando-se como o cedro frondoso (Sl. 37 [36], 35). O ímpio, i. é, o orgulhoso, pois que o orgulho é princípio de impiedade, se eleva pela riqueza do mundo, contra a qual escreve o Apóstolo: Manda aos ricos deste mundo que não sejam altivos, nem confiem na incerteza das riquezas, mas em Deus vivo (1 Tm. 6, 17). Eleva-se no conhecimento, porque o orgulho do conhecimento se exalta a si mesmo. Se sua soberba subir até ao céu, e sua cabeça tocar nas nuvens, por fim perecerá como o esterco (Jó 20, 6). Percebe que a prosperidade mundana e a alta idéia que tem de si, que o eleva como o cedro do Líbano, exaltam o ímpio. Donde o profeta Amós: Sua altura era como a altura dos cedros (Amós 2, 9).
A erva não cresce muito, mas permanece mirrada em tamanho, significando humildade. [Deus] faz germinar a erva (...) para serviço do homem (Sl 147 [148], 8). Por serviço entenda-se a humildade. Eleva-se a árvore muito acima da terra, permanecendo fixada a ela; a erva pouco se fixa a terra, sendo rapidamente arrancada dela. Assim o orgulhoso, conquanto se magnifique deveras e se exalte, tem o coração plantado em terra, donde não se pode arrancá-lo. O humilde nada possui na terra; assim, o coração se arranca facilmente dali. Em razão dessa pequenez o humilde se compara à erva.
Possuía a bem-aventurada Virgem inúmeras qualidades por que se deve louvá-la. Era ela cheia de graça, segundo o testemunho do anjo. Foi escolhida Mãe de Deus, e em se tornando Mãe de Deus, só glorificava de si a humildade ao dizer (Lc. 1, 48): Porque se curvou sobre sua humilde serva. Buscava o Senhor a mulher por que se salvaria o gênero humano, para que o contrário curasse o contrário. O orgulho perdeu o gênero humano, pois a origem de todo o pecado foi o orgulho. Não convinha que o humilde Filho, que com a humildade veio salvar o gênero humano, habitasse mãe orgulhosa. Assim, Deus é todo atenção para a humildade. A propósito da humildade da bem-aventurada Maria escreve Agostinho num sermão sobre a Assunção: Ó verdadeira humildade de Maria, que engendrara Deus para a humanidade, revelara a vida aos mortais, franqueara os céus, purificara o mundo, desvendara o Paraíso ao homem, libertara as almas dos homens!. A pequenez da erva significa a humildade de Maria.
Em segundo lugar, a erva não é dura, mas tenra. Tenra ou cediça ao tato, como um coração tenro que não se obstina. Há de se notar a existência de certa ternura de coração, [que é] virtuosa e natural, e de outra viciosa e supurativa. [Ora] localiza-se a vontade ou coração humano entre duas realidades: a que lhe é superior, e a que lhe é inferior. Caso ceda facilmente ao inferior – à concupiscência da carne ou à cobiça do mundo – trata-se de ternura antinatural, de que fala o livro dos Provérbios: Para guardar-te da mulher estrangeira, da desconhecida de palavras lisonjeiras (Pr 2, 16), e Jeremias: Sai do meio dela, povo meu, para que salve cada um a sua vida da ira do furor do Senhor (Je 51, 45). Não era essa a ternura da erva [Virgem Maria]. Do mesmo modo a vontade do homem tem a de Deus acima, devendo ceder à moção divina, pois o coração duro conhecerá a tristeza no último dia (Eclo. 3, 26). Acerca da ternura escreve Jó: Deus amolgou meu coração, e o Onipotente me turbou (Jó 23, 16). Compara-se a juventude à erva, no Salmo 90[89], 6: De manhã, i. é, na juventude, floresce e rebenta; de noite, abate-se e resseca. Durante a juventude, deixa-se o homem facilmente conduzir. A bem-aventurada Virgem teve essa fineza de obediência, porque logo obedeceu a palavra do anjo, e acreditou fosse conceber do Espírito Santo. Ela se submete sem vacilar: Eis aqui a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a vossa palavra! (Lc. 1, 38). Assim se dá com os santos, que só ensinam o que experimentaram. Como fosse a bem-aventurada Virgem a mais obediente das criaturas, ensina-nos a obediência. De tudo quanto se diz dela no Evangelho, lê-se que ensinara sobretudo o mandamento da obediência: Fazei tudo quanto ele vos disser (Jo 2, 5). Diz ela: Tudo quanto vos disser, e não: Tudo quanto vos ordenar, pois ela é a mesma prontidão de obediência, obedecendo à mera palavra do superior. Assim escreve São Paulo a Tito: Sejam sujeitos aos príncipes e às autoridades, que lhes obedeçam (Tito 3, 1). A obediência é virtude primordial. Deste modo se refere a ela Gregório, nas Morais (XXXV, 14): “A obediência é a única virtude que introduz n’alma as demais virtudes, para em seguida guardá-las ali”. Certas pessoas saem a murmurar e dizer que é melhor obedecer à vontade espontânea que à vontade alheia, mas isso é falso. Dentre todas as boas ações exteriores, nenhuma se compara ao oferecimento de sacrifício, e a obediência é mais agradável que holocaustos. Por isso diz Gregório: “É justo preferir obediência a sacrifícios, porque estes imolam carne estranha, enquanto aquele imola a vontade própria” (ibid). A bem-aventurada Virgem propusera ensinamentos em atos e palavras sobre a obediência. Pela desobediência de um só homem, todos somos pecadores; era conveniente que fôssemos salvos pela obediência, e como a obediência do filho se inicia pela mãe, deste modo a bem-aventurada Virgem foi obediente.
Em terceiro lugar, a erva possui virtude benfazeja para a saúde: serve para cuidar das doenças; se ela não tivesse virtude medicinal, escrever-se-ia em vão no livro da Sabedoria: Nem erva nem ungüento recobravam-lhe a saúde (Sb. 16, 12). O gênero humano estava doente: Tende piedade de mim, Senhor, porque sou enfermo: sara-me (Sl. 6, 3). A doença é conseqüência do pecado; quisera Deus aplicar remédio medicinal, agindo como bom médico. Quando os bons médicos querem demonstrar sua ciência médica, aplicam-se em primeiro às doenças gravosas, tornando-se deste modo célebres. O gênero humano definhava, nascendo em corrupção no ventre da mulher. É o que afirmava Salomão: Constatei que a mulher era mais amarga que a morte (Sb. 7, 26). Querendo manifestar a bondade do remédio, o Senhor aplicou-o antes do mais na mulher, para que o remédio se estendesse aos demais, como está escrito: O remédio de todos esses males é uma nuvem que venha depressa (Eclo. 43, 24). Na oração Salomão diz: O Senhor disse que habitaria numa névoa (1 Re 8, 12). Dentro da nuvem, i. é, da bem-aventurada Virgem, encontra-se a salvação e a cura do gênero humano. Assim se afirma em Sirácida: Em mim há toda a graça do caminho e da verdade, em mim toda a esperança da vida e da virtude (Eclo. 24, 25). Como se encontrasse o remédio de todos na nuvem, a saber, a bem-aventurada Virgem, escreve o Apóstolo: Aproximemo-nos, pois, confiadamente do trono da graça, a fim de alcançar a misericórdia (Hb. 4, 16). Ele diz: [O remédio] é uma nuvem que venha depressa, pois a virtude [desse remédio] rapidamente se manifesta. Já que é rápida para quem recebeu a graça durante a infância, quanto mais para a Virgem, que a recebe desde o seio maternal, donde foi purificada do pecado original [...]. Deus está no meio dela; não será comovida (Sl. 46 [45], 6), nem pelo pecado mortal, nem pelo venial. Também diz Agostinho: “Não hei de falar coisa alguma, quando se trata de pecado na mãe de Deus”. Igualmente o texto de Jerônimo no saltério traz: “Deus a socorreu desde o despontar da manhã” (Sl. 46 [45], 6). Assim sendo celebramos seu nascimento acima daquele dos outros santos, exceto os do Cristo e de São João Batista. A bem-aventurada Virgem fora erva pela humildade.
De igual modo, foi ela erva verdejante pela virgindade. Em Jerônimo se diz: Toda a erva da região ressecará; mas a bem-aventurada Virgem era erva verdejante pela virgindade. Assim em Lucas: O anjo Gabriel foi enviado a Maria, [que era] virgem (Lc. 1, 27).
Vede como neste verdejar observamos a humildade, a beleza e a utilidade ou necessidade. [Traduzida] nesta verdura, vemos [simbolizadas] a frescura, a beleza, a utilidade ou necessidade.
Em primeiro lugar, digo que nisso constatamos a humildade como causa, pois a humildade é causa do verdejar. Assim em Sirácida: A verdura que cresce sobre as águas (Eclo. 40, 16). Deveis saber que a erva se resseca por causa do sol ou do fogo. Do mesmo modo a concupiscência da carne resseca a verdura da virgindade. Segundo Jó: É fogo que consome até o extermínio (Jó 31, 12). Que alimenta a verdura da virgindade? Sem dúvidas o amor celeste, pois a virgindade tem algo de celeste. Deste modo escreve Jerônimo: “Viver na carne como se fora dela não é comportamento terrestre ou humano, mas celeste.” E o Apóstolo, ao encorajar a virgindade, apostrofa: Cada um tem de Deus seu próprio dom; uns dum modo, e outros doutro (1 Co. 7, 7). A virgindade é dom da graça de Deus, com o concurso do livre arbítrio. Assim o adolescente diz: Não poderia ser casto se Deus me não concedesse (Sb. 8, 21). Não continha a Virgem a água da graça? Claro, porque lhe declarara o anjo: Não temais, Maria, pois encontrastes graça diante de Deus (Lc. 1, 30). Ela foi cumulada de graça, como também afirmou o anjo: Ave, cheia de graça; porque ela continha em plenitude as águas da graça, não se contentara em preservar a virgindade do modo habitual, a saber, pela continência conjugal, mas se propusera firmemente à preservação da virgindade perpétua para além do uso comum. Desta feita respondeu ela: “Como poderá ser, se não conheço varão?” (Lc. 1, 34), i. é: “Não me proponho a conhecer nenhum”.
Em segundo lugar, vemos neste verdejar beleza deleitável. Diz-se em Sirácida: A graça e a beleza deleitam a tua vista; mas a verdura dos campos leva vantagem a ambas essas coisas (Eclo. 40, 22). A pureza da carne e a virgindade regozijam o olhar de Deus e dos santos. Por quê? A bem falar, quem regozija é a ordem ou beleza da ordem. Fala Agostinho: “Se algum percebe janelas mal postas numa casa, não se regozija”. No homem a ordem natural é a carne submissa à alma; onde a ordem é respeitada existe beleza, mas onde a perturbam deforma-se o homem. Daí vem que os pecados da carne, embora uns e outros difiram em gravidade, desonrem o homem, por vergonhosos e desordenadores: o que no homem é inferior se torna superior, e vice-versa. Na bem-aventurada Virgem nada era desordenado, nem ato, nem desejo, estando isenta das inclinações pecaminosas. Por isso se diz nos Cânticos: Toda és formosa, minha amiga, e em ti não há mácula (Ct. 4, 7). Por causa disso escreve-se a seu respeito: O rei desejará tua beleza (Sl. 45, 12).
Igualmente concluímos que o verdejar é útil. Enquanto a erva permaneça verde, espera-se que produza frutos. Mas à ressecção, já não se espera mais frutos. Vaticina Isaías: Secou-se a erva, não vingaram as sementes, pereceu toda a verdura(Is. 15, 6). Ao contrário, verde a erva, espera-se dela fruto. Assim Jeremias: Será sempre verde sua folha e em tempo de seca não terá mingua (Je. 17, 8). Quando alguém floresce em virgindade, produzirá fruto de caridade. Mas quando ressequido na concupiscência, então suas obras são estéreis para a vida eterna. Aquele semeia na carne, da carne colherá corrupção (Ga. 6, 8). Só tem serventia a erva seca se jogada no fogo. Em paralelo, quem arde no fogo da concupiscência não tem serventia, senão jogado no fogo do inferno. Contudo a bem-aventurada Virgem sublimou-se em virgindade, melhor, ela é a rainha das virgens. Como possuísse em grau excelente a verdura da virgindade, produziu fruto admirável. As demais, porque virgens, produziram fruto espiritual, sobre o qual diz o Apóstolo: O fruto do Espírito é caridade, contentamento, paz (Gl. 6, 8). Como abundava nesta verdura, a bem-aventurada Virgem produziu fruto em seu seio. Disseram acerca dela: Bendita és tu entre as mulheres, e bendito é o fruto de teu ventre! (Lc. 1, 42). A propósito diz Isaías: Uma virgem concebera e dará luz a um filho (Is. 7, 16). Seu coração arderá de admirável ardor, e por isso faz maravilhas em sua carne. As demais virgens produziram fruto espiritual, mas esta produziu fruto no ventre. Foi ela então erva verdejante. Disse [Deus]: Produza a terra erva verde, e que dê semente! (Gn. 1, 11).
Que tipo de semente? Semente santa, semente virtuosa, semente necessária.
Em primeiro lugar, produziu a bem-aventurada Virgem semente santa. Segundo Isaías (6, 13): Estabelecer-se-á nela uma semente santa. Por que santa? Porque será a semente do que é santo. Em primeiro lugar, será a santidade de Deus, que é o mesmo Santo dos Santos. Diz-se: Sereis santos como eu sou santo (Lv. 11, 45). Essa é a casta santa que brota da semente, por isso semente santa. A semente é a palavra de Deus (Lc. 8, 11), e o Cristo é o Verbo de Deus. A propriedade da semente é produzir algo semelhante a si; assim, a semente do Verbo de Deus produz algo semelhante a si, fabricando deuses. Por isso afirma João: Deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus (Jo 1, 12). Louva-se Abraão por sua santidade; o Cristo é semente de Deus segundo o Espírito, e descendente de Abraão segundo a carne, a quem se dirigiram as promessas, assim como à sua descendência (Gl. 3, 6). Na tua descendência serão benditas todas as nações da terra (Gn. 22, 18). A semente, pois, é santa. Pela semente do Verbo de Deus nos tornamos filhos de Deus, tanto quanto pela semente de Abraão somos filhos de Abraão. Bendita a semente que nos traz a benção!
Ela é também semente virtuosa. No Evangelho comparam-na ao grão de mostarda, o menor dentre os grãos, que produz árvore de longos ramos, onde se refugiam os pássaros do céu. O Cristo é uma semente pequenina: na cruz, apequenou-se, mas crescera até preencher o céu e a terra. Subiu aos céus para abarcar todas as coisas.
Igualmente é semente necessária. Assim concluiu Isaías: Se o Senhor dos Exércitos não nos conservasse alguma semente, teríamos sido como Sodoma (Is. 1, 9). O bem-aventurado Pedro diz: Não existe, sob os céus, outro nome dado aos homens por que possamos ser salvos (At. 4, 12). A semente é admirável, e admirável sua germinação. A terra é a natureza humana privada da umidade da graça. Assevera Jeremias: Observei a terra; eis que estava vazia, e não havia coisa alguma (Je. 4, 23) Como pudera produzir erva? Dalguma forma, certamente. A terra estava árida da concupiscência do pecado. Eis aquilo do Sirácida: Ao meio-dia queima a terra (Eclo. 43, 3). Com efeito estava a terra mais abaixo, pois acima Deus criara o céu, e embaixo a terra. Como ela germinou? Está escrito em Gênese: Disse Deus: produza a terra erva verde (Gn. 1, 11). Uma palavra, i. é, a geração do Verbo, e se produz o fruto. De igual modo em Provérbios: A Sabedoria construiu sua casa (Pr 9, 1), a saber, na bem-aventurada Virgem, fazendo-lhe produzir erva. [Lemos] nos Salmos: Nela nasceu um homem etc. (Sl 87 [86], 5). Tal homem preencheu a terra, porque estava vazia. Visitaste a terra e a regaste, cumulaste-a de riquezas (Sl. 65 [64], 10). Igualmente, por que estava ressecada, ele a regou com o Espírito Santo. Lemos nos Salmos: Ressumam os pastos do deserto, e as colinas cingem-se de alegria (Sl. 65 [64], 13). Também, porque era pequenina, infiltrou-se na terra para dar-lhe semente celeste. Prega Isaías: Assim será a minha palavra, que sair da minha boca: não tornará para mim vazia, mas fará tudo o que eu quero, e produzirá os efeitos para os quais eu enviei (Is. 55, 11). Se alguém se esvaziou pelo pecado, volva-se a esta erva, e será cumulado de bens. Lemos nos Salmos: Seremos cumulados dos bens da tua casa (Sl. 65 [64], 5). Se há alguém que ressecou, recorra a esta palavra, e será regado. Lemos nos Salmos: Nele confiou meu coração, e fui ajudado (Sl. 28 [27], 7). Se há alguém mergulhado em profundezas, recorra a esta palavra, e será conduzido à luz celeste. Salmo 43 [42], 3: Envia tua luz e tua verdade; elas me guiarão, me levarão à montanha santa, e me introduzirão nas tuas moradas.
Que se digne o Senhor em nos conceder etc.!
Segunda Parte
[A cruz, remédio semelhante à árvore frutífera]
Produza a terra erva verde, etc. (Gn. 1, 11).
O Altíssimo nos retirou da terra dois remédios: a erva verdejante e a árvore frutífera. Falamos da erva, a bem-aventurada Virgem. Resta falar da árvore frutífera, a árvore da venerável cruz do Senhor, cuja celebração agora se inicia. Ambosremédios se ligam de modo conveniente, pois a erva verdejante nos traz a salvação, mas a árvore frutífera no-la garante e eleva, já que o Filho de Deus se fez obediente etc., e mais a frente: Por isso também Deus o exaltou (Fl. 2, 7). Deste modo lê-se no Evangelho que estavam de pé junto da cruz de Jesus sua mãe [...] (Jo. 19, 25).
Vejamos em que se constitui essa árvore. A propósito da árvore Moisés parece descrever três características: a espécie, a aparência e o fruto. Se tu te interrogares sobre a espécie, ele responde: de madeira; se sobre a aparência, ele responde: frutífera; se sobre o fruto, ele responde: carregado.
Primeiramente, se te interrogares sobre a espécie da árvore, digo que é de madeira. A madeira convém como remédio por três razões: convém em relação a nossa ferida, à nossa reparação, e àquele quem repara.
Em primeiro lugar, digo que a árvore da cruz nos convém como remédio porque convém à ferida. Uma árvore feriu o gênero humano, pois o primeiro homem comeu da árvore proibida. Assim encontrou a sabedoria divina remédio numa árvore. A desobediência feriu o gênero humano, porque o primeiro homem subtraiu o fruto da árvore proibida. O homem novo restituiu à árvore comum o fruto de salvação. Salmo 69 [68], 5: Restitui aquilo que não roubei. Ele se deu a si na árvore para compensar o dano e trazer o remédio. O madeiro, do qual se faz bom uso, é bendito (Sb. 14, 7).
Prestai atenção: comparemos o madeiro [da cruz] à árvore. A propósito da árvore proibida, diz-nos três coisas a Escritura: A mulher viu que a árvore era boa para comer e agradável aos olhos... tirou do fruto dela e comeu (Gn. 3, 6-7). Antes de tudo a árvore é boa para comer: por isso é apta à alimentação. Ao contrário a árvore da cruz nos ensina a mortificação da carne. Daí se afirmar: Aquele que os vossos príncipes suprimirão. Aquela árvore é morta: Se viverdes segundo a carne, morrereis (Rm 8, 13). Ao contrário a árvore da cruz vivifica a carne, matando-a: Porque também Cristo morreu uma vez pelos nossos pecados, ele, justo pelos injustos, para nos oferecer a Deus, sendo efetivamente morto segundo a carne, mas vivificado pelo Espírito (1 Pe. 3, 18); e ainda: Se pelo Espírito fizerdes morrer as obras da carne, vivereis (Rm. 8, 13).
Em segundo lugar, encontrava-se beleza terrestre na árvore proibida: Ela viu a árvore, que era agradável ao olhar (Gn. 3, 6). [Disse] Isaías: Toda sua glória é como a flor dos campos (Is. 40, 6). A flor carrega a beleza e a glória do mundo, mas é maldita porque por ela os homens são levados à danação. Lamenta Jó: Eu vi o insensato com profundas raízes, e logo amaldiçoei a sua prosperidade (Jó 5, 3). Ao contrário a árvore da cruz é ignominiosa. Assim se descrevera acerca deste momento: É maldito de Deus o que pende do madeiro (Dt. 21, 23). Reparai a afirmação de que a árvore era agradável aos olhares de Adão e Eva, e disso se gloriavam. Primeiro, fala-lhes a serpente sobre a ciência: sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal (Gn. 3, 5). Desta feita se denominava árvore da ciência do bem e do mal. Existem bens que os homens aplicam corretamente, como as virtudes; mas ter experiências de certas coisas não é experimentar virtudes. Há quem abunde em bens do mundo, e os utiliza mal. Esta árvore possuía beleza de olhar, mas a árvore da cruz possuía a vergonha da loucura. Assim aquilo do Apóstolo: Proclamamos um Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios (! Co. 1, 23). Oséias: Transformarei a beleza dessa árvore em ignomínia (Os. 4, 7). Mas a ignomínia da cruz se transmudou em glória. Assim encontramos em Ezequiel: Eu, o Senhor, humilhei a árvore alta e exaltei a árvore humilde (Ez. 17, 24). Vede com o madeiro da cruz está exaltado. Cosroes, rei da Pérsia, tomara de Jerusalém como despojo a árvore [da cruz], que foi devolvida à Cidade Santa por Heráclius; e é em memória desse acontecimento glorioso que até hoje apregoam a festa da exaltação da Santa Cruz. À cruz sempre se exaltou, porque o Senhor confirma o justo (Sl. 37 [36], 17). Num panegírico sobre a Santa Cruz escreve Agostinho: “Cessou a cruz como pena, mas permanece [como glória]: de suplício de condenados, gravou-se na fronte dos imperadores.” (Enarrationes in Psalmos, 36, Sermo 2, 4). Assegura São João Crisóstomo: “Em todo canto resplende a cruz sobre a coroa dos reis, as armas dos soldados, os altares consagrados; coroadas as cabeças, os reis tomam a cruz.” Exaltaram pois a árvore da cruz, a qual o Senhor há de exaltar muito mais. Vê-se em Mateus: Escurecer-se-á o sol, e a lua não dará sua luz, e então parecerá o sinal do Filho do Homem no céu (Mt. 24, 29-30), i. é, a árvore da cruz. Crisóstomo sustenta que “após o obscurecimento do sol e da lua, o Filho do Homem só haveria de aparecer em presença duma cruz mais resplendente que os raios do sol”.
De igual forma a árvore é agradável. Assim no Gênese: Era ela agradável aos olhos (Gn. 3, 6). A deleitação da cruz não é verdadeira deleitação, pois que é mais amarga que agradável. Por isso diz Salomão: Por isso declarei o riso como um devaneio; e disse ao gozo: por que te enganas assim vãmente? (Ecle. 2, 2). Ao contrário a árvore da cruz tem a beleza da amargura, que no livro de Reis se fala assim: Armar-se-á de ferro e de pau de lança (2 Re. 23, 7). Escreve o apóstolo Pedro: Tendo o Cristo padecido na carne, armai-vos deste mesmo pensamento (1 Pe. 4, 1). Transforma-se em doçura este transporte de amargura, sendo significado em Êxodo quando se diz que os filhos de Israel encontraram águas amargas: ordenou o Senhor a Moisés estendesse o cajado sobre elas, para se adoçarem. Os justos padecem tribulações, mas o madeiro da cruz os torna doces. Sob o signo da cruz, o fiel exalta-se na tribulação: Que eu jamais me glorie senão na cruz de Nosso Senhor (Gl. 6, 14); diz Tiago: Meus irmãos, tende por um motivo de maior alegria para vós as várias tribulações que caem sobre vós (Ti 1, 2) Por quê? Devido ao gosto pela cruz. Afirma o Apóstolo: Considerai, pois, aquele que sofreu tal contradição dos pecadores contra si, para que não vos fatigueis, desfalecendo em vossos ânimos (Hb. 12, 3), porque foi tomado como salteador. Quem deve considerar um mal ser alvo de contradição? Convém à ferida o madeiro da cruz.
Igualmente ele convém à reparação. Vede nas Escrituras: onde estava o perigo? Sabe-se que um remédio foi dado. Por uma árvore, adveio o primeiro mal ao homem, na expulsão do Paraíso. Qual fora o remédio? A árvore da vida. Mas como não pudesse o homem alcançar a árvore da vida, não haveria de ter o remédio. Disse então o Senhor: “Tende cuidado de não tomarem do fruto da árvore da vida!”. O Cristo nos trouxe o fruto dessa árvore. É árvore da vida para quem dela comer (Pr.3, 18). Outro perigo foi o dilúvio. O remédio veio da madeira da arca. Se estás no dilúvio, nas águas do século, acorre em direção à árvore da cruz. Lê-se num salmo: Se ando em meio à sombra da morte etc., tua vara, teu cajado, i. é, a cruz, etc. (Sl 23 [22], 4). Sou conduzido à boa direção pela madeira da cruz; igualmente, a madeira foi o remédio para o povo de Israel, ao ser perseguido pelo opressores egípcios, uma vez que Moisés os feriu com seu cajado e com ele dividiu o mar. Se sofres assaltos dos inimigos espirituais, acorre em direção ao madeiro da cruz. Está escrito no livro de Reis que os filhos de Israel combatiam contra os filisteus, e levaram a Arca do Senhor até o campo de batalha; os filisteus temeram, e diziam: Deus chegou ao acampamento!” (1 Re. 4, 7), devido à arca transportada ao campo. A arca era feita de madeira imputrescível. Vê-se num salmo: Os habitantes dos confins [da terra] temem pelos seus prodígios (Sl. 65 [64], 9). Os vencidos temem o estandarte adversário; assim os demônios vencidos pelo Cristo temem o estandarte, o madeiro da cruz. Daí canta a Igreja: “Eis o madeiro da cruz; fugi, inimigos!” Convém a cruz à ferida e à reparação.
Em terceiro lugar, ela convém ao reparador; nela o Cristo é exaltado. Por isso se escreve: É preciso que o filho do Homem seja elevado (Jo 12, 34). Como foi ele exaltado? Decerto como combatente. A ele convém o que se prediz em Números: Eu o verei, mas não agora; eu o contemplarei, mas não de perto; nascerá uma estrela de Jacó; e levantar-se-á uma vara de Israel (Nm. 24, 17). Escreve o Apóstolo: Despojando os principados e as potestades (infernais), levou-os (cativos) gloriosamente, triunfando em público deles em si mesmo (pela cruz) (Col. 2, 15). O madeiro da cruz é um como carro de triunfo exaltado em Cristo. Compara-se ele ao baldaquino de Salomão (Ct. 3, 9), ou ao cetro que dirige o povo: O cetro do teu reino é um cetro de eqüidade (Sl. 45 [44], 7). O Cristo foi exaltado como combatente. De mesmo modo foi exaltado como a um mestre [que ensinasse] desde a cátedra. Acerca dessa exaltação escreveram: E eu, quando for levantado da terra, atrairei tudo para mim (Jo 12, 32). Hoje contemplamos a esperança que nos trouxe o remédio.
Vejamos a aparência da árvore. A árvore aparece carregada de frutos; diz-se de tal árvore que é frutífera. E quais seus frutos? Fala-se neles nos Cânticos: temos à nossa porta frutos excelentes, novos e velhos que guardei para ti, meu bem-amado (Ct. 7, 14). Os frutos velhos são figuras que remontam à árvore. A propósito dos frutos, aquilo de Oséias: vi os vossos pais como os primeiros frutos da figueira (Os. 9, 10). Quais são os frutos novos? Durante a benção de Josué, no Deuteronômio, faz-se menção de três frutos, a saber, frutos do céu, frutos do sol e da lua, e frutos das colinas eternas. Quais são os frutos do céu? Os membros do Cristo. Os membros do Cristo ornaram a cruz como os frutos a uma árvore, e não apenas os membros corporais do Cristo, mas também os de seu corpo místico, dos quais se proclamam: Estou pregado à cruz do Cristo (Gl. 2, 19). Dos frutos se diz nos Cânticos: Entre meu amado no seu jardim, prove-lhe os frutos deliciosos. (Ct. 5, 1). Os frutos do sol e da lua são os exemplos das virtudes que manifestou o Cristo na cruz. Tu tens na cruz a demonstração da caridade do Cristo, pois que ele nos amou e entregou-se por nós: Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos. (Jo 15, 13). De igual modo deu-nos exemplo de humildade, porque humilhou-se a si mesmo (Fi. 2, 8). Deu exemplo de obediência, porque ele se fez obediente (ibid.) ao Pai. Ensinou a paciência, Ele, ultrajado, não retribuía com idêntico ultraje (1 Pe. 2, 23). São estes os frutos daquele vale, sobre o qual se canta: Eu desci ao jardim das nogueiras para ver os novos frutos dos vales (Ct. 6, 11). Quais são os frutos das colinas eternas? Afirmo serem os ensinamentos, impregnados de sabedoria, dos doutores. O esplendor luminoso de vosso poder manifestou-se do alto das eternas montanhas (Sl. 76 [75], 5). Encontrarás doutores que ensinam a fé; o Cristo ensina a fé na cruz, ao dizer: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes? (Mt. 27, 46). Ele demonstra que sua humanidade padeceu a paixão, mas não em razão da impotência de [sua] divindade. Ainda encontrarás doutores que ensinam a paciência; o Cristo ensina a paciência na cruz, ao dizer: Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem (Lc. 23, 34). Encontrarás alguns que ensinam o comportamento humano; o Cristo fê-lo na cruz, ao demonstrar a sua mãe o que devia a ela e ao discípulo, ao falar: “Mulher, eis aí teu filho!”. Depois, disse ao discípulo: “Eis aí tua mãe!” (Jo 19, 27). Tais são os frutos das colinas eternas, de que falam os Cânticos: Teus rebentos são como um bosque de romãs com frutos deliciosos (Ct. 4, 13). Ele é então uma árvore frutífera.
Existem árvores que estão continuamente carregadas de flores e de frutos – é o caso a árvore da cruz, carregadas de flores. Vede que a árvore da cruz carrega um fruto triplo, a saber, fruto de purgação, de santificação e de glorificação.
Em primeiro lugar, digo que a árvore da cruz produziu fruto de purgação, pois pela cruz somos todos libertados do pecado. Assim aquilo do bem-aventurado Pedro: Carregou os nossos pecados em seu corpo sobre o madeiro (1 Pe. 2, 24). Acerca do fruto escreve Isaias: Este é o fruto do perdão do seu pecado (Is. 27, 9). Em segundo lugar, produz o madeiro da cruz fruto de santificação, de que se afirma: Frutificais na santidade (Rm. 6, 19). Em que consiste a santificação? No apego do homem à cruz. O pecado distanciou de Deus o homem, que se reconciliou pela cruz. Deste modo em Romanos 5, 10: Fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, e: Reconcilia-te com Deus e faze as pazes com ele: deste modo terás melhores frutos (Jó 22, 21), a saber, os frutos do Espírito: a caridade, a paz, o contentamento. A fim de nos purificar, [o Cristo] padeceu fora das portas (Hb. 13, 12); em toda santificação, os ministros da Igreja utilizam o sinal da cruz. Em terceiro lugar, o fruto da cruz é a glorificação, de que nos diz João: O que ceifa recebe o salário e ajunta fruto para a vida eterna (Jo 4, 36); no livro da Sabedoria: É esplêndido o fruto de bons trabalhos, e a raiz da sabedoria é sempre fértil (Sb. 3, 15). Como já se falou, o fruto se adquire pela cruz. Pelo pecado o homem foi excluído do Paraíso; por isso, padeceu o Cristo a paixão para que, através da cruz, fosse aberto o caminho entre a terra e o Céu. Assim a cruz do Cristo é aquela escada de Jacó: E viu em seus sonhos uma escada posta sobre a terra, cujo cimo tocava o céu, e os anjos de Deus subindo e descendo por ela, e o Senhor apoiado na escada (Gn. 28, 12). Os santos ascendem aos céus pela virtude da cruz. Assim aquilo do Apóstolo: Temos ampla confiança de poder entrar no santuário eterno, em virtude do sangue de Jesus etc.. (Hb. 10, 19).
Imploremos ao Senhor etc..
Tradução: Permanência
(a partir da tradução francesa de Dominique-Raphael Kling, 2005)
Lux orta est:
Nasce a luz.
Prólogo
[Os bens verdadeiros: graça e glória eternas]
Nasce a luz para o justo, e a alegria para os retos de coração (Sl. 97 [96], 11). Toda dádiva excelente, todo dom perfeito vem do alto e descende do Pai das luzes. Estas últimas palavras são extratos do cap. 1 de São Tiago (1 ,17). Os bens temporais são boas dádivas; os bens naturais, sejam alma e corpo, são dádivas melhores; os bens da graça e glória eternas são dádivas excelentes.
Toda a dádiva excelente, qual seja, a graça, provém do Pai das luzes. Da graça se diz dádiva excelente por sua ação meritória; donde aquilo de João 15, 5: Sem mim, nada podeis fazer. Igualmente da graça se diz dádiva perfeita por alcançar as benesses da glória. E tais dádivas, quem no-las distribui é o Pai das luzes. Salmo 84 [83], 12: O Senhor dá a graça, no presente, e a glória, no futuro. Porque a graça de Deus é de tamanha eficácia para a boa ação no presente, em vistas à glória eterna no futuro, imploremos antes ao Senhor de nos conceder a graça etc..
Primeira Parte
[Por que chamam de “luz” a Virgem?]
Nasce a luz para o justo. Breve é a expressão, e de sentidos mui diversos; encontramo-la no Salmo 97 [96], 11. Lemos que o nascimento da Virgem se havia anunciado no Antigo Testamento, em numerosas figuras; dentre as várias figuras, representam-na três de modo singular, a saber, a aurora, a aparição da estrela e o broto da raiz. A aurora significa o nascimento [da Virgem], sob o aspecto da santificação. Na aparição da estrela ela está prefigurada sob o aspecto da integridade da virgindade. No broto da raiz, sob o aspecto de sua elevação e grande contemplação.
A propósito da aurora, em que se prefigura o nascimento da Virgem sob o aspecto da santificação, lê-se em Gênese 32, 27, no que o anjo fala a Jacó: Larga-me, porque já vem vindo a aurora. O combate de Jacó significa a assembléia dos patriarcas que outrora lutavam contra o anjo usando dois braços, i. é, lágrimas e orações. Assim em Oséias 12, 4: Prevaleceu sobre o anjo, e ficou vencedor; chorou e suplicou-lhe. Após reconhecer o nascimento da bem-aventurada e gloriosa Virgem na aurora, declarou o anjo: Larga-me, como se dissesse: “Não me supliques mais, antes recorra à bem-aventurada Virgem.” A aurora é o termo da noite precedente e início do dia vindouro. De igual modo, no nascimento da bem-aventurada Virgem Maria, termina a noite da culpa, e começa o dia da graça. Declara Sedúlio: “Ela pôs cobro aos vícios e deu medida aos costumes.”
Em segundo lugar, o nascimento da Virgem gloriosa está prefigurado na aparição da estrela, representando a integridade da virgindade. Assim pontifica Balaão em Números 24, 17: Nascerá uma estrela de Jacó; e levantar-se-á uma vara de Israel. Ora, compara-se seu nascimento à integridade da virgindade duma estrela; assim como o astro emite seus raios sem corrupção, nem diminuição ou perda de luz, assim a bem-aventurada Virgem engendrou seu Filho sem desprendimento violento na carne, e sem a perda da virgindade. Afirma São Bernardo: “É de justiça que se compare a bem-aventurada Virgem a um astro, pois assim como o astro emite seu resplendor sem se corromper a si mesmo, e sem diminuir a claridade, assim o Filho [da Virgem] não suprime em nada a virgindade de sua mãe.”
Em terceiro lugar, o nascimento da gloriosa Virgem se prefigurou no broto da raiz, representando a contemplação. Isaías 11, 1: Sairá uma vara do tronco de Jessé, e uma flor brotará da sua raiz. O broto retesa-se em direção ao céu, significando a contemplação da bem-aventurada Virgem, que tinha o coração elevado ao alto, acima as coisas terrestres. Daí São Bernardo: Ó Virgem sublime! Em que sois sublime? Vós elevais tua alma àquele que se assenta no trono, ao Senhor da glória.”
Deste modo, nesta tríplice figura, anunciaram-nos o nascimento da bem-aventurada Virgem Maria. Houve uma como aurora em seu nascimento; e uma como estrela que nasceu na formação do Filho de Deus; e um como broto que germinava em seu comportamento honesto. Num só versículo resume David a tríplice figura: Nasce a luz para o justo etc.. A luz encerra a noite, e faz romper o dia, emite seu resplendor sem incorrer em corrupção e, abandonando as coisas inferiores, tende em direção ao alto. No Evangelho chamam a assembléia dos apóstolos de “luz”. Assim Mateus 5, 14: Vós sois a luz do mundo. São os anjos também chamados “luz”, Gênese 1, 3: E Deus disse: “Que a luz seja”. E a luz foi. A Glosa afirma que tal se declara dos espíritos bem-aventurados ou anjos. Como a Virgem ultrapassasse a assembléia dos apóstolos e dos anjos, em razão de sua excelência, ela é denominada convenientemente “luz”.
Por outra razão, pode ela também ser denominada “luz”. Vemos Deus dizer em João 8, 12: Eu sou a luz do mundo, e a bem-aventurada Virgem germinar essa luz. Ora, é impossível se engendrar a luz, em geração unívoca, por algo que não seja luz. Eis porque convém à Virgem o apelido de “luz”.
Vestem-lhe bem estas palavras: Nasceu a luz para o justo etc.. É necessário sublinhar dois fatos em particular: em primeiro lugar, o nascimento da gloriosa Virgem, quando se lê: Nasceu a luz; em segundo lugar, o fruto do nascimento, neste passo: Nasce a luz para os justos, e a alegria para os retos de coração! Nasceu a luz para o justo, i. é, para seu pai, Joaquim, porque era sua filha, e para o justo, i. é, o Cristo; nasceu a luz, i. é, a bem-aventurada Virgem havia de se tornar um tipo singularíssimo de mãe. Ainda: Nasceu a luz para o justo, i. é, ela será advogada do arrependido. Assim se canta: “Ó Virgem, advogada nossa!”. Ainda: Nasceu a luz para o justo, i. é, para os praticantes da justiça, os [homens] ativos; e a alegria para os retos de coração, i. é, para os [homens] contemplativos. Denomina-se “ativos” os praticantes da justiça, e “contemplativos” os espirituais, que necessitam de luz que os oriente ao bom comportamento e à contemplação de Deus.
Revela-se assim porque a bem-aventurada Virgem é denominada “luz” e por quais figuras fora anunciada.
Tratará o sermão deste trecho: Nasceu a luz para o justo; a conferência [da noite] tratará do resto.
Até agora se tratou das razões por que a bem-aventurada Virgem foi chamada “luz”; acrescente-se pois algumas mais. Observamos que a luz corporal é fonte de alegrias, que guia os viajantes e os que se mantém na via; dissipa as trevas; difunde as semelhanças; é a mãe das cores e a mas bela das criaturas; dá agrado e consolação aos olhos. Encontram-se tais qualidades na bem-aventurada Virgem, e por isso se diz que é bom contemplá-la.
Em primeiro lugar, afirmo que a luz é fonte de alegrias, pois aquele que se acha no mar é mui desejoso da luz, e nela se compraz. Assim ela convém à Virgem, figurada em Ester 8, 16: E aos Judeus parecia-lhes ter-lhes nascido uma nova luz, a alegria, a honra e o júbilo. Assim se declarou aos judeus, i. é, aos que têm fé, e aos cristãos que confessam o Cristo, Deus e homem, que existe uma nova luz, i. é, a bem-aventurada Virgem, chamada de nova luz, pois que parece que não houve alguma antes dela, nem haverá outra depois dela. Denominam-na de “luz” porque lhe são estranhas as trevas do pecado e da ignorância. Parecia ela alçar os olhos da alma, como agora fazia com os do corpo: felicidade para o íntimo, honra para o próximo, triunfo para Deus! Acerca da alegria de seu nascimento, diz-se nos Provérbios de Salomão 13, 9: A luz dos justos, i. é, a bem-aventurada Virgem alegra; porém a candeia dos ímpios apagar-se-á.
Em segundo lugar, essa luz é vereda e guia dos viajantes. De igual modo a bem-aventurada Virgem é aquela que indica a direção nesta estrada da vida. Está em João 12, 35: Andai enquanto tendes luz, para que não vos surpreendam as trevas, i. é, as obras das trevas, ou os anjos das trevas, i. é, os demônios, ou ainda as trevas, i. é, o suplício dos infernos. Assim fala Provérbios 4, 18: A vereda dos justos, como luz que resplandece, vai adiante, e cresce até ao dia pleno. A vereda dos justos, i. é, a bem-aventurada Virgem, que é vereda estreita e direita, e é pura da pureza da virgindade – aperta-se pelo rigor de sua fidelidade religiosa, e alonga-se pela direitura de seu caminho. A vereda dos justos é a bem-aventurada Virgem, como luz que luz para si mesma e para outrem, como progresso do bem em direção ao melhor, crescendo até ao dia pleno, até ao gozo da eternidade.
Em terceiro lugar, a luz dispersa as trevas. De igual modo o poder da gloriosa Vigem extirpa os vícios. Isaías 9, 2: Este povo, que andava nas trevas, viu uma grande luz, i. é, a bem-aventurada Virgem, que fora grande luzeiro pois que, como o Filho ilumina o mundo inteiro, a Virgem [ilumina] todo o gênero humano. Desta luz declara o Gênese 1, 3: “Que a luz seja!”. E Deus separou a luz das trevas, e a luz foi. “Que a luz seja!”, quando da criação da alma da bem-aventurada Virgem e a luz foi, quando de [sua] santificação. Gênese 1, 4: E Deus separou a luz das trevas, por que, no seguimento, [a Virgem] não pecou. Desta luz se diz em Gênese 32, 27: Larga-me, porque já vem vindo a aurora. À aurora fogem as trevas e aparece a luz. Do mesmo modo a bem-aventurada Virgem espanta as trevas do pecado e desvenda-nos a luz da graça. Chamam-na de “aurora”, que quer dizer “hora do orvalho” [hora rorans], pois que, ao seu nascimento, tornaram-se os céus doces como mel. É denominada “aurora”, que quer dizer “brisa suave”, pois naquele momento silvavam os passarinhos, demonstrando um como gozo de alegria e felicidade. Igualmente viram os Padres no nascimento da Virgem a alegria do céu. Chamam-na também de “aurora”, i. é, “sopro d’ouro” [aurea aura], em razão de sua preciosidade. Assim aquilo de São Bernardo: “Retirai o sol que ilumina o mundo inteiro: onde o dia? Retirai Maria, a estrela do mar grande e extenso, i. é., do mundo: que sobrará senão obscuridade e trevas espessíssimas? Que se conclui daí? Se ela está presente, dissipam-se as trevas; se ela está presente, aurora o dia.”
Em quarto lugar, a luz difunde e comunica seu resplendor. A bem-aventurada Virgem difunde e partilha para todos os raios de sua graça. Assim, em Sirácida 24, 19-20: Vinde até mim, vós que me desejais, e abastecei-vos de meus víveres, pois meu hálito é mais doce que o mel etc.. Vinde, i. é, “Passai das vaidades do mundo para mim, que sou cheia de graças”; ou então: “Vinde até mim, abandonai as delícias, que amo a castidade.” De meus víveres,. i. é, das dádivas da graça, abastecei-vos. Não recebereis pouco, senão muito, pois meu hálito é mais doce que o mel, porque a bem-aventurada Virgem é vigilante e misericordiosa com todos. Assim prega Bernardo: “A todos abre a bem-aventurada Virgem os braços da misericórdia, e todos recebem algo de sua plenitude: o doente a cura, o aflito a consolação, o pecador o perdão, o justo a graça; mais ainda, o Filho de Deus recebeu dela a substância da carne, de sorte que não há quem fuja a seu calor.”
Em quinto lugar, a luz é a mãe generosa das cores. Deste modo é a bem-aventurada Virgem a mãe das virtudes. Como as cores embelezam o corpo, assim as virtudes embelezam a alma, porque a bem-aventurada Virgem é a mãe das virtudes. Consta em Sirácida 24, 24: Eu sou a mãe do amor formoso [dilectio], i. é, do amor que leva a Deus. “Dileção” quer dizer “ação de ligar duas coisas”. A Virgem liga-nos a Deus: [Eu sou a mãe do amor formoso] e do temor, por que fugimos ao pecado. Diz [Salomão], em Provérbios 14, 16: O sábio teme e desvia-se do mal. Demais, o Sirácida, em 1, 27: O temor do Senhor baniu o pecado. [Eu sou a mãe...] do conhecimento, i. é, da fé santa, e da santa esperança, i. é, da esperança da beatitude futura. Deste modo escreve Bernardo: “Se em nós há traço de virtude, se existe algo de salvação e graça, sabemos que tudo isso transborda daquela que abunda em delícias. Aqui [em Maria] encontra-se o jardim sobre o qual se dispersa a divina viração que vem do sul, e seus perfumes transbordam em dádivas da graça.”
Em sexto lugar, a luz é das criaturas a mais esplêndida. Assim a bem-aventurada Virgem. No livro [da Sabedoria] 7, 29 se lê: Ela é mais formosa do que o sol, i. é, que o justo que fulge na Igreja Militante; [ela é mais formosa] do que todas as constelações de estrelas, i. é, que os santos da Igreja Triunfante. Comparada com a luz, i. é, com a criatura angélica, ela vence em dignidade e formosura.
Em sétimo e último lugar, a luz é o agrado e a consolação dos olhos. De igual modo a bem-aventurada Virgem é a consolação dos homens. Assim se encontra no [livro da] Sabedoria 7, 10: Eu amei [a Sabedoria] mais do que a saúde, que põe em fuga a doença, e que a formosura de corpo, por que se retira a feiúra, e resolvi-me tê-la por luz de uma boa vida. Os demônios e os perversos detestam a luz, que praz aos bons. Prega Santo Agostinho que “no palato enfermo, o pão é amargo, enquanto é doce no palato saudável; aos olhos doentes, a luz é insuportável, enquanto é amável aos olhos puros”. A luz é amável à inteligência curada pela fé, e desejosa da alma curada pela caridade. Não é de admirar que a bem-aventurada Virgem seja amável, pois se diz dela no livro de Ester 5, 1: Ela era bem feita e de inacreditável formosura, parecendo aos olhos de todos amável e graciosa. De também aquilo dos Provérbios 11, 16: A mulher gentil obterá glória, i. é, a glória eterna, à qual nos conduz Aquele que, com o Pai e o Espírito Santo, vive etc..
Segunda Parte
[Maria é a jóia das almas retas]
Nasceu a luz para o justo, e a alegria para os retos de coração (Sl 97 [96], 11). Dissemos hoje como a bem-aventurada Virgem, em seu nascimento, é luz esplendorosa. Resta falar de como ela é uma jóia para os homens retos, pois se escreve no Salmo: ...alegria para os retos de coração.
Na Santa Escritura, não se promete a jóia aos que fazem prova de retidão, senão aos retos de coração, i. é, aos perfeitamente retos. Poremos de manifesto o significado de Jó 1, 1, de quem se diz: Este homem era sincero e reto, e temia a Deus, e fugia do mal, i. é, do pecado. Em Provérbios 14, 16 doutrina Salomão: O sábio teme e desvia-se do mal. Ao homem com tal retidão se promete a alegria.
Convém notar que existem dois homens: o homem interior e o homem exterior. De acordo com isso, é preciso que o homem perfeitamente reto possua a retidão do homem interior e [a do homem exterior]. O homem interior tem-na dentro d’alma. Ora, possui a alma duas partes, a saber, o intelecto e a vontade. É pois necessário que exista retidão no homem interior; em primeiro lugar, para aquilo que é ato da inteligência [intellectus], porque a retidão consiste no conhecimento da verdade; em segundo lugar, é necessário que exista também junto ao ato da vontade a retidão [affectus], que é a deleitação no verdadeiro bem, pois o conhecimento da caridade retifica a inteligência, e o amor do verdadeiro bem a vontade.
Em primeiro lugar, afirmo que o conhecimento da maior dentre as verdades retifica a inteligência. Assim aquilo do Salmo 72 [71], 1: Quão bom é Deus – i. é, boníssimo – para com os retos, o Senhor para com os puros de coração! Ele é bom, i. é, espalha suas benesses sobre os retos de coração, sobre os possuidores do altíssimo conhecimento da verdade pela fé. A fé é luz particular em vistas ao conhecimento do Senhor e do que lhe respeita. Salmo 125 [124], 4: Senhor, faze bem aos bons – no que respeita à potência afetiva – e aos retos de coração – no que é próprio à inteligência. Está claro agora que, para que o homem seja perfeitamente reto, exige-se a retidão da luz interior, de sua alma, para o que é próprio ao intelecto.
Em segundo lugar, exige-se a retidão do homem interior para o que é próprio ao afeto. Acerca deste gênero de retidão, diz Bernardo que “a retidão da criatura racional é o conformar-se com a vontade divina”. Ora, consiste essa conformidade na caridade, que transforma o amador no ser amado, não segundo a substância, mas na conformidade da vontade.
Igualmente é preciso que tudo seja reto no homem exterior; por isso, se requerem três condições: em primeiro lugar, que seja reto em sua vista e seu olhar; em segundo lugar, que seja reto em sua língua; em terceiro lugar, que seja reto em seu caminhar.
Em primeiro lugar, afirmo que é necessário que o homem exterior seja reto em sua vista e seu olhar. Salomão em Provérbios 4, 25 diz: Os teus olhos olhem direito, e a tua vista preceda os teus passos. Escreve: Os teus olhos olhem direito, não apenas interior, senão que exteriormente, o que é permitido ver; vaticina Gregório: “Não é permitido contemplar o que é interdito desejar.” Também diz: olhem direitos, a saber, os exemplos dos santos e as boas obras dos próximos. E a tua vista etc..: o homem deve abater o olhar em direção aos seres inferiores e humildes. Mas a verdade é que os olhos se alçam, por causa do orgulho e da arrogância do coração; está consignado em Provérbios 6, 16-17: Seis são as coisas que o Senhor abomina, e a sua alma detesta uma sétima: olhos altivos, língua mentirosa. Quando o pavão, que se glorifica da cauda, observa seus pés, imediatamente recolhe a cauda. Do mesmo modo se alguns homens de bem são arrastados pelo orgulho, o que não praz a Deus, contemplem os pés para seu escarmento. Diz-se: teus olhos, no plural, e não no singular; e completa: olhem direito, e não à esquerda.
Em segundo lugar, o homem exterior deve ser reto em sua língua, para o que é próprio ao afeto. De fato, escreve o Apóstolo: Esforça-te por te apresentares a Deus [como um homem] digno de aprovação, como um operário que não tem de quê se envergonhar, que distribui retamente a palavra da verdade (2 Tm. 2, 15). Dirige-se aqui sobretudo a um prelado e, em seguida, num timbre diferente, a todos. Diz: Esforça-te, pela dor de contrição; por te apresentares a Deus digno de aprovação, como um operário que não tem de quê se envergonhar, i. é, que não seja suscetível à vergonha, mas ao louvor e a recompensa. Este é aquele que diz palavras úteis. São os perversos os suscetíveis à vergonha. Dispensando com diligência a linguagem da verdade. Há pessoas que não dispersam diligentemente a linguagem da verdade, a saber, aqueles que predicam em nome da glória, ou da excelência dos bons, ou ainda da vaidade própria. Ao contrário dispensam corretamente a linguagem da verdade os que o fazem em vistas à glória de Deus e à edificação do próximo.
Ouvi falar dum mestre que ensinara teologia por vinte e cinco anos, vinte dos quais exercera, como confessou quando de sua morte, mais em nome da vanglória que por reconhecimento de Deus e edificação do próximo. Mal uso faremos duma bela espada, feita para cortar, caso a tomemos para atiçar o fogo, pois não será utilizada em consideração à finalidade para que foi concebida. De mesmo modo, a palavra da verdade foi concebida para a glória de Deus e edificação do próximo. Serve-se mal quem dela se serve de outra maneira ou para outra finalidade. Daí aquilo do Sirácida 28, 25: Faze uma balança para pesares tuas palavras, i. é, pesa tuas palavras para saber se são ou não para a glória de Deus, se são ou não mofinas a teu próximo; e um freio bem ajustado para tua boca. Um freio está bem ajustado quando ambos os lados estão igualmente firmes; caso um lado esteja frouxo, enquanto o outro firme, então não está bem ajustado. Por vezes, ocorre a uma pessoa em prosperidade conservar corretamente o freio de sua boca, mas durante a tribulação, blasfemar e murmurar. Deles se fala na epístola de Tiago 1, 26: Se alguém, pois, julga que é religioso, não refrando a sua língua, para guardá-la das palavras más e blásfemas, sua religião é vã.
Em terceiro lugar, o homem exterior deve ser reto em sua inteligência. Ensina o Apóstolo, em Hebreus 12, 13: Dirigi os vossos passos pelo caminho direito, para que o que manqueja não se desvie, devido à infidelidade da inteligência, antes, porém, seja sanado, a saber, pela graça de Deus. A afetividade pode fazer alguém manquejar das duas pernas. Assim em 1 Reis 18, 21: Até quando claudicareis vós para os dois lados? Se o Senhor é Deus, segui-o. Manquejam dum pé só os que possuem a fé na inteligência, mas tem aversão ao bem em sua afetividade. Manquejam de dois pés os que cometem infidelidade na inteligência e detestam o bem em sua afetividade, ou os que exultam no tempo de prosperidade, mas murmuram no tempo da tribulação. Por isso afirma o Apóstolo: (Hebreus 12, 13): Dirigi os vossos passos pelo caminho direito etc.., i. é, onde há a paciente humilde, a verdadeira fé, o amor verdadeiro. Se deparamos com um homem reto tanto interior quanto exteriormente, temos nele promessa de alegria.
Mas tu perguntarás por que quem descreveu os retos de coração não fê-lo, do mesmo modo, com os retos de corpo, andar ou olhar? Quando existe a retidão do homem interior, existe a do homem exterior. Mateus 6, 22 diz: Se teu olho for são, i. é, sem marca de duplicidade, todo o teu corpo será luz, o conjunto inteiro de tuas obras será bom e reto. De fato, porque depende o homem exterior do homem interior, limitou-se ele a descrever o homem reto de coração.
Está claro quais são os retos de coração. Sabeis o que fazem os que possuem um coração reto? Ao Senhor reembolsam três coisas: primeiro, reformam a vida; segundo, amam ao Senhor; terceiro, bendizem ao Senhor e lhe rendem graças pelas benesses que Deus lhes concedera.
Em primeiro lugar, afirmo que eles reformam a vida. Assim em Provérbios, o ímpio, o que não tem piedade diante do Senhor nem compaixão diante do próximo, afrouxa a brida, i. é, não modera seu olhar, i. é, seu coração; o reto corrige suas veredas com previdência. Este é o reto de coração, reto em justiça perante o próximo, reto em contemplação perante Deus. Por sua vez, o ímpio não modera seu olhar, de tal sorte que não acolhe os mandamentos de Deus e, se os acolhe, não os pratica.
Em segundo lugar, os retos de coração apegam-se a Deus por amor. Assim no Cântico 1, 3: os retos amam-te. Salmo 17, 5: Os inocentes e os justos se acercam de mim, a saber, pelo fervor e pelo habitus da caridade.
Em terceiro lugar, os retos de coração rendem a Deus graças pelas benesses recebidas, como no último capítulo de Esdras (Neemias 8, 5): Quando Esdras terminou o livro da lei, todos os justos puseram-se de pé. Quando Esdras terminou, i. é, quando Esdras lera e explicara o inteiro teor [da lei] (fala-se de “lei” porque esta nos obriga). Bendisse ao Senhor, o Altíssimo, o Senhor Todo-Poderoso dos Exércitos, e o povo respondeu: “Ámen!”. Em seguida: Reuniram-se todos em Jerusalém para celebrar seu contentamento etc..
Tradução: Permanência
(a partir da tradução francesa)
Tudo é perfeito no sacrifício de Jesus: o amor que o inspira e a liberdade com que o executa. Perfeito também no dom oferecido: Jesus Cristo se oferece a si mesmo.
Jesus Cristo se oferece a si mesmo e de maneira total: alma e corpo ficam esgotados, quebrantados, de tanta dor: não existe dor desconhecida por Nosso Senhor. Ao ler o Evangelho com atenção, vê-se que os sofrimentos de Jesus Cristo de tal modo foram dispostos que alcançaram todos os membros de seu sagrado corpo, e que todas as fibras de seu coração ficaram esgarçadas na ingratidão das turbas, no desamparo dos seus e nas dores de sua Santíssima Mãe, e que sua alma bendita sofreu tantas afrontas e humilhações quantas podem pesar sobre um homem. Cumpriu-se literalmente em Jesus Cristo aquele vaticínio da profecia de Isaías: “Como pasmaram muitos à vista de ti; não tinha aparência do que era...ele não tinha beleza, nem formosura...por isso não fizemos caso dele...nós o reputamos como um leproso”.
Na agonia do Horto das Oliveiras, Jesus Cristo, que não exagera, declara aos apóstolos que sua alma “está triste até a morte”. Oh, abismo insondável! Um Deus, Poder e Glória infinitos, “começou a sentir temor, angústias e tristeza”. O Verbo Incarnado conhecia todos os sofrimentos que sobre ele iam descarregar-se naquelas longas horas da Paixão; esta visão produzia em sua natureza sensível o efeito que uma simples criatura poderia sentir ante um purgante – viam sua alma e divindade, de forma claríssima, todos os pecados dos homens, os ultrajes à santidade e ao amor infinito de Deus.
Carregara todas as iniqüidades, como que revestira-se delas e sentira sobre si o peso da cólera da justiça divina: “Sou um verme e não um homem, o opróbrio dos homens e a abjeção da plebe”. De antemão sabia que o sangue derramar-se-ia em vão para muitos homens, e este pensamento levava ao cúmulo a amargura da alma santíssima. Mas, como vimos, Jesus Cristo tudo aceitou. Agora se levanta, sai do Horto, e vai ao encontro de seus inimigos.
Aqui começa para Nosso Senhor a série de humilhações e padecimentos que mal podemos descrever. Denunciado no beijo de um dos discípulos, preso pela soldadesca como um facínora, levam-no à casa do sumo sacerdote. Ali, entre as muitas acusações falsas proferidas contra Ele, Jesus “calava-se”.
Só abre a boca para proclamar que é o Filho de Deus: “Vós o dizeis, eu o sou”. Esta é a mais solende das confissões sobre a divindade de Jesus Cristo: Jesus, Rei dos mártires, morre por confessar sua divindade, e todos os mártires darão a vida pela mesma causa.
Pedro, cabeça dos apóstolos, seguira ao longe seu Divino Mestre; prometera-lhe não o abandonar jamais. Pobre Pedro! Negou Jesus três vezes. Sem dúvidas, esta foi uma das maiores provações por que passou nosso Divino Salvador naquela espantosa noite.
Os soldados que vigiam Jesus o injuriam e o maltratam, e não resistindo àquele olhar tão doce, vendam-lhe os olhos por escárnio, dão-lhe insolentes bofetadas e ainda se atrevem a sujar de modo vil com sua imunda saliva o rosto adorável, espelho em que se contemplam a si os anjos, com deleite indizível.
Depois disso, narra-nos o Evangelho como à alvorada reconduziram Jesus ante o sumo sacerdote, arrastando-o de tribunal em tribunal. E ainda que fosse a Sabedoria Eterna, Herodes o trata como louco, Pilatos dá ordens de açoitá-lo, os algozes golpeiam sem piedade a inocente vítima, cujo corpo se converte rapidamente em chaga viva. Apesar de tudo, a desumana flagelação não bastava àqueles homens, que de humano nada tinham: cravam na cabeça de Jesus uma coroa de espinhos e o enchem de insultos e zombarias.
O covarde governador romano percebe que saciará o ódio dos judeus, caso vissem Cristo em tão lastimoso estado; apresenta-o às turbas e lhes diz: “Eis aqui o homem!”. Contemplemos neste momento o Divino Mestre em meio a um oceano de afrontas e dores, e pensemos também que o Pai no-lo apresenta e nos diz: “Vede o meu Filho, o resplendor de minha glória, a quem feri pelo crime de meu povo...”.
Jesus ouve a gritaria do populacho furioso, que o troca por um bandido, e como paga de tantos benefícios feitos, exigem sua morte: “Crucifica-o, crucifica-o!”.
Pronunciada a sentença de morte, Jesus Cristo, tomando a pesada cruz sobre os ombros, dirige-se ao Calvário. Quantas dores ainda o aguardam: a presença de sua Mãe, a quem professa tão perfeito amor e cuja imensa aflição ele conhece melhor que ninguém, o despojo dos vestidos, a perfuração dos pés e das mãos, e a sede abrasadora! Mais ainda, as burlas e sarcasmos de ódio de seus mortais inimigos: “Ó tu, que destróis o templo de Deus, e reedificas em três dias, salva-te a ti mesmo e creremos em ti...Ele salvou outros, a si mesmo não se pode salvar”. Finalmente, o abandono de seu Pai, a cuja santa vontade sempre atendera: “Pai! Porque me abandonaste?”.
Verdadeiramente bebeu o calix até o sarro, e cumpriu, sem faltar vírgula nem detalhe algum, tudo quanto Dele estava vaticinado. Por isso, realizadas as profecias, esgotando até o fundo o calix de todas as dores e humilhações, pôde exalar seu “Tudo está consumado”. Sim, em verdade, “tudo se consumou”, só falta pôr sua alma nas mãos do Pai: “E, inclinando a cabeça, rendeu o espírito”.
A Igreja, ao ler-nos nos dias da Semana Santa o relato da Paixão, interrompe-o neste passo para adorar a Deus em silêncio. Seguindo seu exemplo, prosternemo-nos reverentes e adoremos ao Crucificado que acaba de expirar; verdadeiramente é Filho de Deus: verdadeiro Deus de Deus verdadeiro. Sobretudo, na Sexta-feira Santa, tomemos parte na adoração solene da Cruz, para reparar, conforme quer a Igreja, as inúmeras ofensas que os inimigos infligiram à Divina Vítima. Enquanto se realiza a comovente cerimônia, põe a Igreja na boca do Salvador inocente censuras em tom de lamento triste; elas se aplicam diretamente ao povo deicida; nós podemos escutá-los em um sentido inteiramente espiritual que despertarão em nossas almas vivos sentimentos de compunção: “Povo meu, que te fiz eu? Em que te contristei? Responde-me! Que mais podia eu fazer que o não fizesse? Fui eu quem te plantou como a mais formosa das videiras; e tu só me causaste amargor, minha sede mitigaste com vinagre, e com uma lança trespassaste o lado do teu Salvador... Eu, por amor de ti, flagelei o Egito com os seus primogênitos; e tu entregaste-me à morte depois de me flagelares! Eu tirei-te do Egito, submergi a Faraó no Mar Vermelho; e tu entregaste-me aos príncipes dos sacerdotes! Eu a tua frente abri o mar; e tu abriste-me com a lança o coração! Eu fui adiante de ti numa coluna de nuvem; e tu conduziste-me ao pretório de Pilatos! Eu alimentei-te com o maná no deserto: e tu feriste-me a cabeça com bofetadas e açoites!... Eu dei-te o cetro real; e tu colocaste-me na cabeça uma coroa de espinhos! Eu elevei-te em grandeza e poder; e tu suspendeste-me no patíbulo da cruz!”.
Estas queixas de um Deus padecendo pelos homens devem mover nossos corações; unamo-nos a tal obediência cheia de amor que o levou até o sacrifício da cruz: “Feito obediente até a morte, e morte de cruz”. Digamos-lhe: “Ó Divino Redentor, que tanto sofreste por nosso amor! De hoje em diante vos prometemos fazer o que pudermos para não mais pecar; fazei, por vossa graça, que, morrendo, ó Mestre adorado, a tudo que é pecado e apego ao pecado e à criatura, vivamos unicamente para Vós”.
Porque, como diz São Paulo: “o amor de Cristo nos constrange; consideramos nós que, se um morreu por todos, todos, pois, morreram; e que Cristo morreu por todos a fim de que os que vivem, não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que morreu e ressuscitou por eles”.
Dom COLUMBA Marmión, O.S.B.
(Trecho do livro “Jesus Cristo em seus mistérios”. Tradução: Permanência).
Instrução pastoral do Cardeal Pio - Quaresma 1863
Anticristo, o que nega que Jesus seja Deus; anticristo, o que nega que Jesus seja homem; anticristo, o que nega que Jesus seja homem e Deus ao mesmo tempo.
Um anticristo, nos diz São João, nega o Pai, pois negando o Pai nega o Filho: Hic est antichristus qui negat Patrem et filium (I Jo. 2, 22). De fato, não há anticristianismo mais radical do que aquele que nega a divindade em sua raiz, em seu princípio. Como o Cristo seria Deus se Deus não existisse? Ora, negar o ser divino, a substância divina, a personalidade divina e introduzir não sei que outra teodicéia é prova de que suprimem a realidade, substituindo-a por abstrações e sonhos que flutuam entre o ateísmo e o panteísmo ou que não têm sentido algum. Eis o sistema capital da atual situação intelectual; eis o ensinamento que enche os livros e inspira as lições de toda uma escola, abundante e poderosa. Diante de tais doutrinas, “só tenho uma coisa a dizer-vos: cuidado com o anticristo”: Unum moneo: cavete antechristum.
São João continua: “Todo aquele que nega o Filho, também não reconhece o Pai. O que crê no Filho de Deus, tem em si o testemunho de Deus. O que não crê no Filho, torna Deus mentiroso, porque não crê no testemunho que Deus deu de seu Filho. Aquele que tem o Filho tem a vida; aquele que não tem o Filho, não tem a vida” (I Jo. 2,23; 5, 10-12). “Muitos sedutores se têm levantado no mundo, que não confessam que Jesus Cristo tenha vindo em carne; quem faz isso é um sedutor e um anticristo”: “Qui non confiteur Christum in carne venisse, hic est seductor et antichristum” (II Jo. 7). Ora, se os senhores escutarem o que se diz hoje e se lerem o que se escreve atualmente, descobrirão ou que o personagem histórico Jesus nem chegou a existir (ao menos como é representado nos Evangelhos) ou que foi um desses tipos que manifestou mais fortemente o ideal de sabedoria, de razão, de perfeição e que convencionou-se denominar “Deus”. Jamais admitirão que o Filho de Maria seja o Filho de Deus feito homem, o Verbo feito carne, aquele em que reside corporalmente a plenitude da divindade (Col. 2, 9), e, para concluir definitivamente, o Homem-Deus. Aterrorizado com tais blasfêmias, que são a própria inversão do símbolo cristão, “só tenho uma coisa a dizer-vos: cuidado com o anticristo”: “Unum moneo: cavete antechristum”.
Que diria eu ainda? Anticristo, o que nega o milagre, o que ensina que o milagre não tem lugar possível na trama das coisas humanas. Cristo, ainda que suas palavras tivessem um tom que merecesse credibilidade, só estabeleceu sua divindade pelo argumento decisivo do milagre. Ele deu a seus apóstolos, como meio de persuasão e conquista, o poder de operar milagres. Sua vinda ao mundo em carne, a união entre a natureza humana e a natureza divina em uma única pessoa é o milagre por excelência. Suprimir o milagre é suprimir toda a ordem sobrenatural e cristã. Aqui repito: “Cuidado com o anticristo”: “Unum moneo: cavete antechristum”.
Anticristo, aquele que nega a revelação divina das Escrituras: pois são os profetas divinamente inspiradas que nos anunciaram o Cristo. São os Evangelhos ditados pelo Espírito Santo, assim como os atos e as cartas dos Apóstolos que nos fazem conhecer a Cristo. Podemos alegar as próprias palavras de Santo Hilário: “Quem quer que negue o Cristo tal como foi anunciado pelos Apóstolos, este é um anticristo”: “Quisquis enim Christum, qualis ab apostolis est praedicatus, negavit, antichristum est”. Se os senhores ouvirem negar os livros santos, se sua autoridade for desprezada como simples concepção e invenção do espírito humano, “tenho um conselho a dar: cuidado com o anticristo”: “Unum moneo: cavete antechristum”.
Anticristo, aquele que nega a instituição divina a missão divina da Igreja, pois a conclusão, a finalização das obras, dos sofrimentos e da morte de Jesus Cristo foi a fundação de sua Igreja. “Cristo amou a Igreja e por ela se entregou a si mesmo, para a santificar, purificando-a no batismo da água pela palavra da vida, para apresentar a si mesmo esta Igreja gloriosa, sem mácula, sem ruga, mas santa e imaculada” (Ef. 5.25-27). Ora, se a Igreja não possui um caráter sobrenatural, se ela é somente uma instituição terrena, um dos estabelecimentos religiosos destinados a desempenhar um papel mais ou menos longo no seio da humanidade, uma sociedade exposta às vicissitudes e falhas das coisas desse mundo, uma escola mais ou menos respeitável de filosofia e filantropia, numa palavra, se a Igreja não é divina, é que Cristo, seu fundador, não é Deus. Rejeitar a divindade da obra é rejeitar a divindade do autor: “Tenho sempre a mesma recomendação a dar: cuidado com o anticristo”: “Unum moneo: cavete antechristum”.
Anticristo, aquele que nega a suprema e indefectível autoridade de Pedro. Na verdade, Jesus Cristo, depois de ter olhado nos olhos desse homem, disse-lhe: “Simão, filho de João, tu serás chamado Cefas que quer dizer Pedro” (Jo. 1, 42); “e sobre esta pedra Eu edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão sobre ela. Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; e tudo o que desatares sobre a terra, será desatado nos céus” (Mt. 16, 18-19). E o mesmo Jesus lhe disse ainda: “Simão, Simão, eis que Satanás te reclamou com instância para te joeirar como trigo; mas eu roguei por ti, para que tua fé não falte; e tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos” (Lc. 22, 31-32). Se essas palavras de Jesus Cristo não fizeram de Pedro o fundamento inabalável da Igreja, a rocha imutável da verdade, o oráculo infalível da fé, é porque quem as pronunciou não tinha o poder de torna-las eficazes. Ferir Pedro é ferir a cabeça viva, o chefe invisível da Igreja cristã que nele revive e subsiste. “Clamo ainda: cuidado com o anticristo”: “Unum moneo: cavete antichristum”.
Anticristo, aquele que nega ou despreza o sacerdote cristão. Jesus Cristo ressuscitado disse a seus apóstolos: “Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio” (Jo. 20, 21). “Foi-me dado todo o poder no céu e na terra. Ide, pois, ensinai a todas as gentes, batizando-as em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as observar todas as coisas que vos mandei; e eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos” (Mt. 28, 18-20). Se os poderes assim conferidos por Jesus não são os plenos poderes de ensinar a verdade em nome de Deus pela pregação, de administrar a graça dos sacramentos, de velar pela observância dos preceitos divinos pelo governo eclesiástico e se, no exercício de seus poderes, o sacerdócio cristão não for sustentado por uma assistência contínua e uma presença quotidiana de Cristo, aqui ainda, deve-se admitir que Cristo falou mais do que podia fazer. Conseqüentemente, ele não é Deus. O Senhor disse aos próprios levitas da antiga lei: “Não toqueis os meus ungidos” (I Par. 16, 22), e disse aos ministros da nova lei: “O que vos recebe, a Mim recebe; e o que Me recebe, recebe Aquele que Me enviou” (Mt. 10, 40); sabendo disso, quando vejo a língua de meu país se depravar até chegar a transforma em título de insulto e desdém essa primícia sacerdotal e real chamada clericatura, e que o vocabulário tinha sido por muito tempo sinônimo de saber e de instrução, me sinto tomado de imensa piedade por uma geração cuja própria elite sucumbe a tal baixeza e se mostra culpada de tal esquecimento e desrespeito em relação ao que todos os povos tiveram de mais sagrado. E “repito sempre a mesma lição: cuidado com o anticristo: unum moneo: cavete antichristum”.
Anticristo, aquele que nega a superioridade dos tempos e países cristãos sobre os tempos e países infiéis ou idólatras. Se Jesus Cristo, que nos iluminou quando estávamos nas trevas e nas sombras da morte, e deu ao mundo o tesouro da verdade e da graça, não enriqueceu o mundo com bens superiores aos possuídos no seio do paganismo, [e falo até mesmo do mundo social e político] é que a obra do Cristo não é uma obra divina. Além disso: se o Evangelho que salva os homens é impotente para fornecer os princípios do verdadeiro progresso dos povos; se a luz revelada, proveitosa aos indivíduos é prejudicial às sociedades, e talvez até para as famílias, é prejudicial e inaceitável para as cidades e os impérios; em outros termos, se Jesus Cristo, que os profetas prometeram e a quem o Pai deu as nações como herança, só pode exercer seu poder sobre elas em seu detrimento e para sua infelicidade temporal, tem de se concluir que Jesus Cristo não é Deus. Porque nem em Sua pessoa nem no exercício dos Seus direitos, Jesus Cristo pode ser dividido, dissolvido, fracionado. Nele, a distinção das naturezas e das operações nunca poderá ser a separação, a oposição. O divino não pode ser antipático ao humano, nem o humano ao divino. Ao contrário, ele é a paz, a aproximação, a reconciliação, é o traço de união “que faz de duas coisas, uma”: “ipse est pax nostra qui fecit utraque unum” (Ef. 2, 14). Por isso São João nos diz: “todo espírito que divide Jesus não é de Deus; mas este é um anticristo do qual vós ouvistes que vem, e agora está já no mundo”. “Et omnis spiritus qui sivit Jesum, ex Deo non est; et hic est antichristum de quo audistis quoniam venit, et nunc jam in mundo est” (I Jo. 4, 3). Quando ouço então certos ruídos que surgem, certos aforismos que prevalecem com maior freqüência dia a dia e se introduzem no coração das sociedades, dissolvendo-as sob a ação daquele por quem o mundo há de perecer, “lanço um grito de alarme: cuidado com o anticristo”: “unum moneo: cavete antichristum”.
Poderíamos, caros irmãos, nos estender sobre os detalhes dos erros que se propagam a cada dia em nosso redor, que constituem o que poderíamos chamar anticristianismo. O que dissemos é mais do que suficiente para excitar em nós a vigilância e desconfiança de qualquer doutrina que não proceda da Igreja (...).
Permaneçamos firmes na fé antiga e invariável da Santa Igreja; “sejam homens e não crianças flutuantes, e levadas, ao sabor de todo vento de doutrina, pela malignidade dos homens, pela astúcia com que induzem ao erro” (Ef. 4, 14). O divino Salvador disse, profetizando os tempos de ruína de Jerusalém: “Mas ai das mulheres grávidas e das que tiverem crianças de peito naqueles dias!” (Mt. 24, 19). Santo Hilário nos explica essa passagem: “Nos dias difíceis e de tempestade da Igreja, ai das almas minadas pela incerteza e nas quais a fé e a piedade estiverem ainda em estado embrionário ou ainda na infância. Umas, surpreendidas no embaraço de suas incertezas e atrasadas por causa das irresoluções de seu espírito constantemente irrequieto, estarão muito pesadas para escapar às perseguições do anticristo. Outras, tendo apenas degustado os mistério da fé em embebidas somente de uma fraca dose de ciência divina, não terão força suficiente e habilidade necessário para resistir a tão grandes assaltos” (Comment. In Mat. 25. 6). É esse o peso e debilitação das almas que hão de tornar os últimos tempos tão perniciosos, propícios a tantas quedas.
Por outro lado, Santo Agostinho ressalta o quanto esses dias de provações serão favoráveis ao embelezamento e crescimento do mérito das almas fieis. Comentando a passagem do Apocalipse: “depois disso é necessário que o demônio seja solto por um pouco de tempo” (Ap. 20, 3), o santo doutor nos mostra que o demônio nunca está preso de maneira absoluta durante a vida da Igreja militante. Entretanto, ele fica freqüentemente preso no sentido de que não lhe é permitido utilizar sua força toda nem todos os seus artifícios para seduzir os homens.
A enfermidade do grande número é tal que, se ele tivesse esse pleno poder ao longo de todos os séculos, muitas almas com que Deus quer aumentar e povoar sua Igreja seriam desviadas da verdadeira crença ou tornar-se-iam apóstatas: isso Deus não quer suportar. Eis porque o demônio fica parcialmente atado. Porém, por outro lado, se ele nunca fosse solto, o poder de sua malícia seria menos conhecido; a paciência da Cidade Santa menos exercida e compreenderíamos menos o imenso fruto que o Todo Poderoso soube tirar da imensa força do mal. O Senhor então desatá-lo-á por um tempo a fim de mostrar a energia com a qual a cidade de Deus vencerá tão horrível adversário, para a grande glória de seu redentor, de seu auxílio, de seu libertador. E o santo doutor chega a dizer a seus contemporâneos: “Quanto a nós, irmãos, quem somos e que mérito possuímos em comparação aos santos e fiéis de então? Porque, para prova-los, o inimigo que nós já temos tanta dificuldade em combater e vencer atado, estará desatado”.
Coragem, meus caros irmãos. Quanto mais a religião é atacada, a Igreja oprimida por todos os lados, quanto mais as doutrinas errôneas e de perversão moral invadem os discursos, livros e teatros e enchem a toda a atmosfera com seus miasmas pestilentos, mais possível será adquirir grandeza, perfeição e mérito diante de Deus, se não nos deixarmos abalar em nenhuma de nossas convicções e permanecermos fiéis ao Senhor Jesus, coisa em que muitos outros falharam e tiveram a desgraça de abandona-Lo. Não vos deixai seduzir pela força e número dos perversos, nem pelas aparentes vitórias dos adversários de Jesus Cristo. Está escrito que os maus e os sedutores farão a terra progredir; progresso no mal, progresso na destruição, progresso na desordem: proficient in pejus “irão de mal a pior” (II Tim. 3, 13). Mas também está escrito que esse tipo de sucesso nunca durará por muito tempo. Os homens que resistem à verdade, pessoas corrompidas em seu espírito e réprobos sob o olhar da fé não tardarão a se convencer dessa loucura juntamente com seus seguidores nessa via.
Perseverai na fé, caríssimos irmãos; perseverai também nas obras, sobretudo nas obras de caridade. É uma doutrina constante e que não deve ser abandonada a nenhum preço: aqueles que crêem em Deus são os que tomam a frente das boas obras: a humanidade, e principalmente, a humanidade sofredora encontrará sempre consolo desse modo. Não ouvimos dizer também, que nesses últimos dias, a esmola feita por sentimento sobrenatural e segundo as tradições da piedade cristã não terá lugar no seio de nossas sociedades e que seu “selo eclesiástico” será uma ofensa à dignidade dos necessitados que se tenta aliviar? O naturalismo, o ardor que põe na secularização de tudo, entende que fazer o bem é obra puramente humana, profana e não tem nada em comum com a ordem da graça e da salvação. Propósito execrável, e se pudesse chegar a desencorajar a caridade cristã e sacerdotal, conseguiria neutralizar as mais oportunas fontes de alívio dos infelizes. Ah! Eu vos diria ainda: “cuidado com o anticristo”: “unum moneo: cavete antichristum”. Mas tenham os olhos sempre fixos em Cristo; no menino Jesus do estábulo de Belém; no operário-Deus do ateliê de Nazaré; naquele que, sendo rico por natureza fez-se pobre para nos enriquecer com sua humilhação; naquele que será um dia nosso juiz, e que, em consideração com essa multidão de operários indigentes e privados de trabalho que terá sido aliviada por amor a Ele, nos fará possuir o reino que seu Pai nos preparou.
A paz do mundo procura sua plataforma entre os homens, no que eles têm de parecido e de comum. Constrói sobre fundamentos da igualdade.
Procede por concessões e por silêncios. Faz concessões ao erro e ao mal, envolve no silêncio a verdade e o bem, coloca o verdadeiro e o falso, o bem e o mal no mesmo pé de igualdade e lhes concede os mesmos direitos. Assim pensa apaziguar todas as reclamações e reinar sem problemas.
Há homens religiosos que rezam e procuram servir a Deus, mas que contestam ou a divindade de Cristo ou a autoridade da Igreja. Não reconhecem nem as verdades que a Igreja ensina, nem os sacramentos sobre os quais ela tem gestão, nem a hierarquia que é sua armadura. No entanto são irmãos; desejamos estender-lhes a mão, estabelecer algum acordo com eles, organizar alguma colaboração. O que se faz então? Volta-se para os filhos da Igreja, pede-se para que se consintam, guardando para si suas convicções íntimas, calando-as, escondendo-as num profundo silêncio para não entristecer ou alienar os irmãos dissidentes. Põe-se todas as confissões no mesmo pé de igualdade, propõe-se-lhes um trabalho comum, a elaboração de um CREDO de onde serão riscados todos os artigos contestados por uma ou outra confissão, e na profissão de fé desse CREDO todos se encontrarão. CREDO paupérrimo e que logo se evapora como se dissipam as brumas da manhã sob a ação dos raios do sol do verão.
Ora, logo se verá que além desses homens religiosos, existem outros que se convencionou chamar homens de bem e que não crêem em Deus.
Não professam nenhum culto e não experimentam nenhum sentimento religioso. Esses também são irmãos, nós os amamos, queremos estender-lhes a mão, entrar em algum acordo ou colaboração com eles. Então nos voltamos para os homens religiosos. Pedimos para que consintam, guardando para si suas convicções íntimas, calando-as, envolvendo-as em profundo silêncio para não afastar ou contristar nossos irmãos incrédulos.
Vamos nos unir fora de toda profissão de princípios religiosos, sobre o terreno social, vamos trabalhar em comum para salvar a ordem social por meios materiais.
Porém logo que olhamos mais adiante desse grande grupo, percebemos que fora dos partidários da ordem social, existem outros homens que rejeitam as bases sobre as quais repousa essa ordem social. Eles repelem a autoridade e a propriedade. No entanto são nossos irmãos.
Queremos amá-los e estender-lhes a mão. Não se desiste em chegar a um entendimento e uma colaboração com esses. Para atingir a esse tão almejado resultado, volta-se aos defensores da ordem social. Que continuem fiéis às suas convicções, mas as envolvam de um espesso silêncio, que se abstenham em falar em Pátria e Família, em autoridade e propriedade. Então um acordo poderá ser feito em um terreno comum, por exemplo, sobre o terreno comercial.
Assim o véu que recobre os princípios religiosos e sociais se faz cada dia mais vasto e mais espesso. As verdades que exigem no entanto nossa profissão expressa e pública desapareceriam da linguagem. Não se fala mais nisso. Mas é uma lei da psicologia humana que as idéias das quais não se fala desaparecem rapidamente. As convicções que elas inspiram se enfraquecem. Depois de terem desaparecido da linguagem, desaparecem da consciência.
O QUE RESTARÁ ENTÃO?
Restam os apetites, as ambições e as paixões. Resta a necessidade das riquezas e dos prazeres. Restam a inveja e a luxúria, em uma palavra, resta a besta humana. Resta tudo o que divide, tudo o que excita o ódio ímpio, tudo o que desencadeia as guerras imperdoáveis. Procurou-se a paz por métodos que não são os do Príncipe e do Deus da Paz. Não se encontrou a Paz. E se verificou a palavra dos Livros dos Santos: “Dixerunt pax et non est Pax”. Proclamaram a paz e a paz não foi feita. Projetaram, isto sim, uma luz singular sobre essa fórmula que poderia bem ser uma lei da história: “Si vis bellum, para pacem”, se quer a guerra prepare a paz, a paz segundo o mundo!
Discurso de Mgr. Chollet, arcebispo de Cambrai, no Congresso Eucarístico de Roma 1924.