Beneditino irlandês (1858-1923), abade de Maredsous, autor de diversas obras de espiritualidade.
Tudo é perfeito no sacrifício de Jesus: o amor que o inspira e a liberdade com que o executa. Perfeito também no dom oferecido: Jesus Cristo se oferece a si mesmo.
Jesus Cristo se oferece a si mesmo e de maneira total: alma e corpo ficam esgotados, quebrantados, de tanta dor: não existe dor desconhecida por Nosso Senhor. Ao ler o Evangelho com atenção, vê-se que os sofrimentos de Jesus Cristo de tal modo foram dispostos que alcançaram todos os membros de seu sagrado corpo, e que todas as fibras de seu coração ficaram esgarçadas na ingratidão das turbas, no desamparo dos seus e nas dores de sua Santíssima Mãe, e que sua alma bendita sofreu tantas afrontas e humilhações quantas podem pesar sobre um homem. Cumpriu-se literalmente em Jesus Cristo aquele vaticínio da profecia de Isaías: “Como pasmaram muitos à vista de ti; não tinha aparência do que era...ele não tinha beleza, nem formosura...por isso não fizemos caso dele...nós o reputamos como um leproso”.
Na agonia do Horto das Oliveiras, Jesus Cristo, que não exagera, declara aos apóstolos que sua alma “está triste até a morte”. Oh, abismo insondável! Um Deus, Poder e Glória infinitos, “começou a sentir temor, angústias e tristeza”. O Verbo Incarnado conhecia todos os sofrimentos que sobre ele iam descarregar-se naquelas longas horas da Paixão; esta visão produzia em sua natureza sensível o efeito que uma simples criatura poderia sentir ante um purgante – viam sua alma e divindade, de forma claríssima, todos os pecados dos homens, os ultrajes à santidade e ao amor infinito de Deus.
Carregara todas as iniqüidades, como que revestira-se delas e sentira sobre si o peso da cólera da justiça divina: “Sou um verme e não um homem, o opróbrio dos homens e a abjeção da plebe”. De antemão sabia que o sangue derramar-se-ia em vão para muitos homens, e este pensamento levava ao cúmulo a amargura da alma santíssima. Mas, como vimos, Jesus Cristo tudo aceitou. Agora se levanta, sai do Horto, e vai ao encontro de seus inimigos.
Aqui começa para Nosso Senhor a série de humilhações e padecimentos que mal podemos descrever. Denunciado no beijo de um dos discípulos, preso pela soldadesca como um facínora, levam-no à casa do sumo sacerdote. Ali, entre as muitas acusações falsas proferidas contra Ele, Jesus “calava-se”.
Só abre a boca para proclamar que é o Filho de Deus: “Vós o dizeis, eu o sou”. Esta é a mais solende das confissões sobre a divindade de Jesus Cristo: Jesus, Rei dos mártires, morre por confessar sua divindade, e todos os mártires darão a vida pela mesma causa.
Pedro, cabeça dos apóstolos, seguira ao longe seu Divino Mestre; prometera-lhe não o abandonar jamais. Pobre Pedro! Negou Jesus três vezes. Sem dúvidas, esta foi uma das maiores provações por que passou nosso Divino Salvador naquela espantosa noite.
Os soldados que vigiam Jesus o injuriam e o maltratam, e não resistindo àquele olhar tão doce, vendam-lhe os olhos por escárnio, dão-lhe insolentes bofetadas e ainda se atrevem a sujar de modo vil com sua imunda saliva o rosto adorável, espelho em que se contemplam a si os anjos, com deleite indizível.
Depois disso, narra-nos o Evangelho como à alvorada reconduziram Jesus ante o sumo sacerdote, arrastando-o de tribunal em tribunal. E ainda que fosse a Sabedoria Eterna, Herodes o trata como louco, Pilatos dá ordens de açoitá-lo, os algozes golpeiam sem piedade a inocente vítima, cujo corpo se converte rapidamente em chaga viva. Apesar de tudo, a desumana flagelação não bastava àqueles homens, que de humano nada tinham: cravam na cabeça de Jesus uma coroa de espinhos e o enchem de insultos e zombarias.
O covarde governador romano percebe que saciará o ódio dos judeus, caso vissem Cristo em tão lastimoso estado; apresenta-o às turbas e lhes diz: “Eis aqui o homem!”. Contemplemos neste momento o Divino Mestre em meio a um oceano de afrontas e dores, e pensemos também que o Pai no-lo apresenta e nos diz: “Vede o meu Filho, o resplendor de minha glória, a quem feri pelo crime de meu povo...”.
Jesus ouve a gritaria do populacho furioso, que o troca por um bandido, e como paga de tantos benefícios feitos, exigem sua morte: “Crucifica-o, crucifica-o!”.
Pronunciada a sentença de morte, Jesus Cristo, tomando a pesada cruz sobre os ombros, dirige-se ao Calvário. Quantas dores ainda o aguardam: a presença de sua Mãe, a quem professa tão perfeito amor e cuja imensa aflição ele conhece melhor que ninguém, o despojo dos vestidos, a perfuração dos pés e das mãos, e a sede abrasadora! Mais ainda, as burlas e sarcasmos de ódio de seus mortais inimigos: “Ó tu, que destróis o templo de Deus, e reedificas em três dias, salva-te a ti mesmo e creremos em ti...Ele salvou outros, a si mesmo não se pode salvar”. Finalmente, o abandono de seu Pai, a cuja santa vontade sempre atendera: “Pai! Porque me abandonaste?”.
Verdadeiramente bebeu o calix até o sarro, e cumpriu, sem faltar vírgula nem detalhe algum, tudo quanto Dele estava vaticinado. Por isso, realizadas as profecias, esgotando até o fundo o calix de todas as dores e humilhações, pôde exalar seu “Tudo está consumado”. Sim, em verdade, “tudo se consumou”, só falta pôr sua alma nas mãos do Pai: “E, inclinando a cabeça, rendeu o espírito”.
A Igreja, ao ler-nos nos dias da Semana Santa o relato da Paixão, interrompe-o neste passo para adorar a Deus em silêncio. Seguindo seu exemplo, prosternemo-nos reverentes e adoremos ao Crucificado que acaba de expirar; verdadeiramente é Filho de Deus: verdadeiro Deus de Deus verdadeiro. Sobretudo, na Sexta-feira Santa, tomemos parte na adoração solene da Cruz, para reparar, conforme quer a Igreja, as inúmeras ofensas que os inimigos infligiram à Divina Vítima. Enquanto se realiza a comovente cerimônia, põe a Igreja na boca do Salvador inocente censuras em tom de lamento triste; elas se aplicam diretamente ao povo deicida; nós podemos escutá-los em um sentido inteiramente espiritual que despertarão em nossas almas vivos sentimentos de compunção: “Povo meu, que te fiz eu? Em que te contristei? Responde-me! Que mais podia eu fazer que o não fizesse? Fui eu quem te plantou como a mais formosa das videiras; e tu só me causaste amargor, minha sede mitigaste com vinagre, e com uma lança trespassaste o lado do teu Salvador... Eu, por amor de ti, flagelei o Egito com os seus primogênitos; e tu entregaste-me à morte depois de me flagelares! Eu tirei-te do Egito, submergi a Faraó no Mar Vermelho; e tu entregaste-me aos príncipes dos sacerdotes! Eu a tua frente abri o mar; e tu abriste-me com a lança o coração! Eu fui adiante de ti numa coluna de nuvem; e tu conduziste-me ao pretório de Pilatos! Eu alimentei-te com o maná no deserto: e tu feriste-me a cabeça com bofetadas e açoites!... Eu dei-te o cetro real; e tu colocaste-me na cabeça uma coroa de espinhos! Eu elevei-te em grandeza e poder; e tu suspendeste-me no patíbulo da cruz!”.
Estas queixas de um Deus padecendo pelos homens devem mover nossos corações; unamo-nos a tal obediência cheia de amor que o levou até o sacrifício da cruz: “Feito obediente até a morte, e morte de cruz”. Digamos-lhe: “Ó Divino Redentor, que tanto sofreste por nosso amor! De hoje em diante vos prometemos fazer o que pudermos para não mais pecar; fazei, por vossa graça, que, morrendo, ó Mestre adorado, a tudo que é pecado e apego ao pecado e à criatura, vivamos unicamente para Vós”.
Porque, como diz São Paulo: “o amor de Cristo nos constrange; consideramos nós que, se um morreu por todos, todos, pois, morreram; e que Cristo morreu por todos a fim de que os que vivem, não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que morreu e ressuscitou por eles”.
Dom COLUMBA Marmión, O.S.B.
(Trecho do livro “Jesus Cristo em seus mistérios”. Tradução: Permanência).